sábado, 23 de março de 2013

Alguma delicadeza (A parte dos anjos) Elisa Arreguy Maia‏


Elisa Arreguy Maia



Em A parte dos anjos, o cineasta Ken Loach, numa postura exemplar, não julga nem condena


O filme de Ken Loach A parte dos anjos, conta uma história comum a muitos jovens pobres do mundo. E o faz de um modo que parece despretensioso. Inteligente e bem interpretado, com uma direção exata e contendo aquela dose sutil do humor que já aprendemos a reconhecer como tão inglês. O filme, que se passa na Escócia, apresenta uma leveza que, mais do que torná-lo agradável de assistir, pode, aqui, nos servir de guia de leitura. No que se joga entre o que há de sutil e o que tem de mais comum, este filme convida, convoca, a falar dele.

Jovens pobres, de origem urbana, têm suas vidas marcadas por sucessivas passagens pela polícia e, em consequência, pelo encontro com a lei através do aparelho judiciário. Algumas pequenas transgressões, outras nem tão pequenas, penas a cumprir, novas prisões, novas condenações vão desenhando o destino dos que ficam “de fora”: “Tá escrito na cara da gente”, diz um dos personagens, porque eles não podem entrar em certos lugares da cidade, porque lhes está reservado o próximo mau encontro na cena social.

O filme foca o que seria mais um desses momentos de cumprimento de penas alternativas, a prestação de serviços comunitários. Para Robbie (Paul Brannigan), há uma namorada e a iminente paternidade, há uma defensora pública sensível a estes sinais de novas possibilidades; mas há também uma rivalidade nas ruas, antiga, arcaica mesmo, a lhe vociferar que ele não tem como sair, que ele não tem futuro. E há o encontro com um agente social, Harry (John Henshaw), o encarregado de zelar pelo cumprimento da medida judicial junto ao pequeno grupo do qual ele faz parte. Um encontro não é alguma coisa qualquer.

Inesperado e, muitas vezes, improvável, ele pode ou não se dar. Um homem comum, como a vida destes jovens infratores, Harry não se apresenta como grande autoridade, mas cumpre sua função com certa graça e sem sinais de tédio burocrático. Está mais para o “cara legal”, despretensioso – e essa palavra vai me aparecendo quando penso no filme – e com certa dose de generosidade. É, pois, com uma dose de um valiosíssimo uísque, de 32 anos, que ele reconforta Robbie, ao mesmo tempo em que brinda a chegada de seu filho, após presenciar, impotente, uma cena em que este é mais uma vez surrado por aqueles que vêm fazendo as vezes de cadeias de seu destino trágico.

E, nesse gesto, nesse encontro, se transmite um desejo humano. Um desejo não anônimo, mas sustentado por esta figura masculina gentil, abre ao rapaz um interesse novo pelo uísque. Não se trata da bebida como fonte de um gozo brutalizado, mas enquanto uma marca da tradição da cultura naquele reino. O estudo sobre esta bebida tão simbólica não se faz sem a presença do pequeno grupo de Robbie, os garotos perdidos, irmãos no infortúnio e na pena alternativa. Do estudo da fabricação do uísque à descoberta do  dom do olfato apurado vai um pulo, um pulo dado ainda junto ao grupo e à figura que ali faz as vezes de um (quase) pai bondoso.

Robbie, que por força de sua origem familiar sempre ficara de fora de tudo que a cultura pode ofertar, encontra um ponto de enlace à cultura. Mas resta ainda algo para que um nó de sustentação se escreva. Não é pouco significativo que isto se dê com um roubo, uma transgressão. Não se trata de um roubo qualquer, não é mais o furto compulsivo, nem mais o ataque à ordem, mas trata-se de roubar algo ali no ponto em a civilização se apresenta em paradoxo – afinal, quando, em seus excessos, a cultura ultrapassa tudo o que é normal (um barril de uísque que vale 1,3 milhão de libras!), onde é mesmo que está a lei?

Há algo no roubo de Robbie e seus amigos que remonta às origens da cultura com o mito de Prometeu. O roubo é uma prática curiosa, ele faz existir a autoridade que ele, no mesmo golpe, derroga. Quando uma criança mente, ela não está menos atravessada pelo que sua inteligência a leva a investigar sobre a verdade. Ela está atravessada por perguntas – nem sempre formuladas – sobre o que é a verdade e sobre quem diz a verdade.

Enigma do outro

Esse “quem”, oculto, está também presente na prática do roubo sintomático; esta prática se dirige a um Outro enigmático e que quase nunca respondeu ao sujeito transgressor senão sob a forma do desmando e ou da brutalidade. Roubar, em certos casos, é afirmar que o Outro tão poderoso, e tão cruel, não pode tudo, não vê tudo. Enganá-lo é um jeito, paradoxal, de colocar uma lei nesse Outro percebido como acima da lei, nesse Outro que, por parecer onipotente, zomba da lei. É aí que se torna evidente a necessidade, para a emergência do sujeito na sociedade em que habita, a incidência de um outro, um outro de carne e osso, que o acolha, que lhe transmita a lei à qual se submete sem exageros.

Há que haver leveza (essa nossa guia nesse caso) no trato com a lei. O filme de Loach não se arroga a julgar a cultura ou a sociedade britânica, ele não se inscreve em uma vertente “revolucionária”, que clama pelas saídas violentas para denunciar a violência cotidiana. Nem tribuna, nem tribunal, o filme tira outro partido daquilo que escreve como um caminho; é por isso que a leveza que identificamos aqui (como se o diretor fora um leitor das Seis propostas para o próximo milênio, de Calvino) nos sugere uma política como direção de tratamento a ser dada na vida social. Não menos oportuna, portanto, àqueles que se dedicam ao tratamento de jovens com problemas com a lei.

* Elisa Arreguy Maia é doutora em letras, psicanalista, autora de Textualidade Llansol – Literatura e psicanálise (Scriptum).

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