sábado, 23 de março de 2013

Freyre, um sábio sacana - Gustavo Fonseca

Livro de poemas e seleção de frases de Casa-grande & senzala destacam a contribuição do sociólogo pernambucano para o conhecimento da formação da família patriarcal brasileira 


Gustavo Fonseca

Estado de Minas: 23/03/2013 

Mais conhecido por sua obra sociológica, Gilberto Freyre também foi autor de novelas, livros de poesia e memórias
O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987) é conhecido do público leitor basicamente por sua trilogia sobre a sociedade patriarcal brasileira: os clássicos Casa-grande & senzala (1933); Sobrados e mucambos (1936) e Ordem e progresso (1957). Esse escritor de múltiplos interesses, porém, não se restringiu aos textos históricos e sociológicos, tendo se aventurado também pelo jornalismo, pela ficção, pela poesia e pela autobiografia, com o livro De menino a homem: de mais de trinta e de quarenta, de sessenta e mais anos, da Editora Global, com o qual ganhou postumamente o Prêmio Jabuti especial na categoria Biografia, em 2011. Agora, em resgate do limbo a que foi deixada sua principal obra poética nas últimas décadas, a Global relança a coletânea Talvez poesia, originalmente publicada em 1962.

Em seus versos, Freyre mantém os temas centrais de seus estudos sociológicos, como a família patriarcal brasileira, nossa miscigenação, o senhor de engenho e o escravo, algumas de nossas principais personagens históricas e o modo de vida nas regiões tropicais, em que predominou por gerações a cultura da cana-de-açúcar. Homem cosmopolita, o autor dedica alguns de seus poemas às principais cidades de sua vida, entre as quais Recife e Olinda; Madri e Salamanca; Lisboa, Bombaim e Heidelberg. Para complementar o volume, alguns dos poemas publicados em 1980 em Poesia reunida foram acrescentados, bem como dois poemas antes inéditos em livro: “Atelier”, homenagem a Cícero Dias, pintor responsável pelo desenho do Engenho Noruega que estampa Casa-grande & senzala, e “Francisquinha”, escrito para sua neta.

Entre os poemas selecionados, sobressai o conhecido “Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados”, que o poeta pernambucano Manuel Bandeira saldou entusiasmado ainda em 1927 em carta ao amigo: “Teu poema, Gilberto Freyre, será a minha eterna dor de corno. Não posso me conformar com aquela galinhagem tão gozada, tão sem vergonhadamente lírica, trescalando a baunilha de mulata asseada. Sacana!” Outro poeta brasileiro de primeira grandeza, Carlos Drummond de Andrade, a quem o livro é dedicado, tomou-o por assunto em crônica publicada naquele ano de 1962: “(...) dê um passo à frente, abra o livro Talvez poesia e trave relações com o poeta. Ficará espantado ao saber que esse poeta é sociólogo”.

Devido à morte recente do poeta Lêdo Ivo, sua apresentação aos poemas de Gilberto Freyre, “A poesia do Narciso de Apipucos”, ganha um sabor especial, por se tratar de texto da última lavra do autor. Nele, Lêdo Ivo confessa orgulhoso: “Posso vangloriar-me de ter sido a primeira voz a incitar o mestre de Aventura e rotina a assumir a sua condição de poeta num livro isolado. Desse incitamento nasceu este Talvez poesia”. Como crítico, Lêdo Ivo pontua: “O seu versilibrismo reflete uma das preocupações mais veementes da época de sua formação intelectual, a da suposta libertação da arte e da poesia, despojando-a de regras que aparentemente a manteriam cativa ou manietada, e permitindo-lhe respirar os ares salubres da liberdade”.

Fecha a publicação alentada biobibliografia de Gilberto Freyre, com mais de 40 páginas, assinada pelo maior especialista em sua obra, Edson Nery da Fonseca, amigo do sociólogo por décadas e ainda hoje seu divulgador mais apaixonado. Nessas páginas, o leitor encontra os fatos mais relevantes da vida e da carreira de Gilberto Freyre, além, claro, de muitas informações sobre a ampla bibliografia freiriana em língua portuguesa e estrangeira, sinalizando seu prestígio e sua influência mundo afora.

Ao leitor do século 21, os poemas de Gilberto Freyre atraem muito mais por se tratar de versos do grande sociólogo e do grande prosador de Casa-grande & senzala do que por seu lirismo, apesar da boa qualidade de alguns de seus poemas, sobretudo “Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados”. Ao estudioso da obra freiriana, esta Talvez poesia interessa diretamente pela temática escolhida e pelo tom francamente sacana de muitos de seus poemas, como bem pontuou Manuel Bandeira. Nessa literalidade, muitos dos sociólogos e antropólogos “sérios” que assolaram o país nas últimas décadas se viram insultados, dado o estilo não estritamente “científico” de Gilberto Freyre. Uma característica que outro de nossos ícones das ciências sociais, o antropólogo e escritor Darcy Ribeiro, mais um sacana assumido, levaria às suas principais obras, com destaque para O povo brasileiro.

Além do sexo Sinal da vitalidade da prosa e das ideias freirianas, a Editora Global também lança As melhores frases de ‘Casa-grande & senzala’: a obra-prima de Gilberto Freyre, com seleção da antropóloga pernambucana Fátima Quintas. Em certo sentido, o título é enganador, já que o mais proveitoso do livro não é a seleção em si do que a organizadora considera as melhores frases do maior clássico de Gilberto Freyre, e sim a separação dos vários temas de Casa-grande & senzala em uma série de tópicos, um recurso muito proveitoso especialmente aos estudantes de ciências sociais e aos leitores iniciantes da obra freiriana.

Nos quase 60 tópicos escolhidos por Fátima Quintas, percebe-se a vastidão do olhar de Gilberto Freyre ao passado brasileiro, com títulos como “Choque de culturas”, “Miscigenação”, “Mulher indígena”, “Medos, superstições, bruxarias”, “Higiene”, “Mística judaica”, “Medicina colonial”, “Sexualidade”, “Assombrações da casa-grande”, “Amas negras e mucamas”, “Família patriarcal: unidade colonizadora”, “Educação patriarcal” e “Bandeirantismo”. Como se vê, os críticos que reduzem Gilberto Freyre basicamente a um conservador que idealiza a sexualidade entre brancos e negras e entre brancos e índias ou não leram sua obra, ou a leram superficialmente, com pré-conceitos firmemente arraigados.

Na verdade, em tópicos como “Sadismo e masoquismo” e “Mulher indígena”, o lugar da mulher na sociedade patriarcal brasileira é definido sem romantismos, mas também sem lhe diminuir a importância. Pelo contrário, Gilberto Freyre ressalta, por exemplo, que “pela mulher transmitiu-se da cultura indígena à brasileira o melhor que hoje nos resta dos valores materiais dos ameríndios”. E, sem esconder os maus-tratos a negras feitos a mando das senhoras brancas, ressalva: “Sadistas eram, em primeiro lugar, os senhores com relação às esposas”. Mais ainda, estabelece a condição sexual da negra não como um traço de sua personalidade, e sim como um reflexo da sociedade em que vivia: “A virtude da senhora branca apoia-se em grande parte na prostituição da escrava negra”; “Nessa instituição social – a escravidão – é que encontramos na verdade o grande excitamento de sensualidade entre os portugueses, como mais tarde entre os brasileiros”.

O conhecimento sociológico, porém, só reforça nesse sacana o grande apreço que tinha pelos prazeres sensuais e pela mulher brasileira, cantados em alguns de seus versos mais atrevidos, como estes de “Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados”: “Bahia de cores quentes, carnes morenas, gostos picantes/ (...) Negras velhas da Bahia/ peitos caídos/ mães das mulatas mais belas dos Brasis/ mulatas de gordo peito em bico como pra dar de mamar/ a todos os meninos do Brasil./ Mulatas de mãos quase de anjos/ mãos agradando ioiôs/ criando grandes sinhôs quase iguais aos do Império/ penteando iaiás/ dando cafuné nas sinhás/ (...) índias nuas/ vergonhas raspadas/ (...) ranger de camas de vento/ corpos ardendo suando de gozo”.

Nesse encantamento de Gilberto Freyre pela mulher brasileira, que ele nunca escondeu e está presente também em sua prosa, talvez se encontre a origem da leitura simplista segundo a qual para ele a casa-grande e a senzala viviam em harmonia, num ambiente propício a relações sexuais e amorosas que originaram boa parcela de nossa população. Nada mais enganador – e a leitura de sua obra-prima desmente seus detratores mais ralos. No entanto, também afloram no texto freiriano feições machistas, pintando a mulher como objeto sexual do homem, como ao afirmar que “uma espécie de sadismo do branco e de masoquismo da índia e da negra terá predominado nas relações sexuais como nas sociais do europeu com mulheres das raças submetidas ao seu domínio”. O velho preconceito de que, ao lado do homem sádico, tem-se uma mulher masoquista, complementando-lhe a perversidade.

Esses aspectos controversos da sociologia de Gilberto Freyre apenas ressaltam a importância de o leitor ir direto à fonte para formular uma opinião a respeito dela, não se atendo aos maniqueísmos tão característicos de seus críticos e repassados em algumas das mais prestigiadas universidades brasileiras, nas quais predomina a cultura da leitura fragmentada, em xerox, em vez da leitura completa dos livros. Com o lançamento de As melhores frases de ‘Casa-grande & senzala’, faz-se um convite sobretudo aos universitários brasileiros a retomar por inteiro esse clássico, no qual se encontra o melhor da escrita freiriana. Com Talvez poesia, a sensibilidade e apuro literário de Gilberto Freyre se evidenciam, sinalizando aos nossos cientistas sociais a importância do zelo pela escrita, um passo imprescindível para se fazer entender muito além da academia.

As melhores frases de Casa-grande & senzala: a obra-prima de Gilberto Freyre
• Seleção de Fátima Quintas
• Editora Global
• 288 páginas, R$ 35

Talvez poesia
• De Gilberto Freyre
• Editora Global
• 208 páginas, R$ 42

Nenhum comentário:

Postar um comentário