sábado, 15 de dezembro de 2012

James Watson, pioneiro do DNA, revela história quase nunca contada sobre as hélices


ROBIN McKIE

DO "OBSERVER"
na Folha de São Paulo
Apontado como um dos maiores livros escritos sobre a ciência no último século, "A Dupla Hélice" tem sido saudado como uma obra que combina o enredo de um romance picante com percepções profundas sobre a natureza da pesquisa moderna.
Mas o autor, James Watson, revelou que sua obra-prima esteve perto de ser suprimida. Em entrevista exclusiva ao "Observer", ele admitiu que seu relato sobre a descoberta da estrutura do DNA, quando apresentado a amigos e colegas no final dos anos 1960, causou tamanha hostilidade e indignação que parecia fadado a nunca aparecer na forma impressa.
"Você invadiu rudemente a minha privacidade", queixou-se seu colega Francis Crick. Outro colaborador, Maurice Wilkins, objetou que o livro apresenta "uma imagem distorcida e desfavorável dos cientistas". Como Crick e Wilkins eram os homens com quem Watson havia dividido o Prêmio Nobel de Fisiologia de 1962 por seu trabalho na descoberta da estrutura do DNA, a oposição dos dois pesquisadores britânicos às palavras do jovem cientista americano era preocupante.
Markus Schreiber - 11.out.04/Associated Press
O cientista James Watson posa para foto atrás de uma reprodução do modelo de uma dupla hélice de DNA
O cientista James Watson posa para foto atrás de uma reprodução do modelo de uma dupla hélice de DNA
Muitos editores se assustaram com as ameaças de ações judiciais por parte de críticos do manuscrito. Watson descrevia vários cientistas de forma profundamente desabonadora, e a trama secundária do livro, focada na busca de Watson por moças --ou "popsies", como ele as chamava-- na região de Cambridge, foi considerada irrelevante e arrogante. A Harvard University Press, tendo aceitado o manuscrito Watson para a publicação, sofreu pressões dos dirigentes da universidade e cancelou o livro.
Foi necessária a intervenção de lady Alice Bragg, esposa de um ex-chefe de Watson, lorde William Bragg, para salvar "A Dupla Hélice", revelou Watson. Bragg era diretor do laboratório Cavendish, em Cambridge, onde Watson trabalhara com Crick na estrutura do DNA na década de 1950, e que era parte das instituições britânicas.
"Eu precisava de Bragg ao meu lado", explicou Watson ao "Observer" na semana passada. "Então eu sugeri que ele escrevesse o prefácio do meu livro. Isso o faria parecer aceitável para o 'establishment' e para a maioria dos meus críticos. Levei um tempo até juntar coragem para lhe escrever pedindo um prefácio, mas afinal o fiz."
Bragg --a quem Watson certa vez comparou ao coronel Blimp-- ficou inicialmente enfurecido com a desfaçatez de Watson e com a mistura de fofoca com insultantes caricaturas de cientistas de destaque em "A Dupla Hélice". No entanto, ele foi convencido por lady Bragg, que havia gostado do livro, a mudar de ideia, e afinal ele aceitou redigir o prefácio, descrevendo "A Dupla Hélice" como "um drama da mais alta ordem; a tensão cresce sucessivamente, até o clímax final". Seu aval --ou mais precisamente a intervenção de lady Bragg-- foi decisivo, sabemos agora. "A Dupla Hélice" foi lançado em 1968, e se tornou um best-seller mundial.
Em retrospecto, o sucesso do livro não chega a surpreender. A história de Watson, caracterizada por oportunismo científico, pela audácia e pela brilhante capacidade dedutiva, é um fio fascinante. É também de considerável importância. Ao mostrar que a estrutura do DNA, a substância da qual são feitos nossos genes, é a de uma dupla hélice, Crick e Watson explicaram o mecanismo subjacente à herança de características biológicas, e descobriram algo de imensa importância científica. Todo o campo da genômica, a identificação das "impressões digitais" do DNA e o desenvolvimento da ciência da biologia sintética teriam sido impossíveis sem a descoberta feita por Crick e Watson em Cambridge, em 1953.
Estima-se hoje que "A Dupla Hélice" tenha vendido mais de 1 milhão de exemplares nos últimos 45 anos. Uma adaptação para TV também foi feita, em 1987, estrelada por Jeff Goldblum como Watson, Tim Pigott-Smith como Crick, e Alan Howard como Wilkins. E agora saiu uma edição especial anotada e ilustrada de "A Dupla Hélice", para celebrar o 50º aniversário do Prêmio Nobel dado a Watson, Crick e Wilkins.
MATERIAL INÉDITO
O livro, editado por Alexander Gann e Jan Witkowski, contém um grande volume de material inédito, incluindo uma série de cartas escritas por Crick, que só foram descobertas recentemente e revelam em detalhes a crescente fúria do cientista contra um livro que ele dizia ser "uma violação de amizade", e que ele descreveu como sendo mais "um fragmento da sua autobiografia" de uma história da descoberta da estrutura do DNA (no final, Crick --que morreu em 2004-- mudou de idéia e aceitou os méritos do livro, e ele e Watson continuaram amigos).
Além disso, um capítulo eliminado da primeira edição foi restaurado, junto com resenhas contemporâneas do livro, a maioria das quais favoráveis, embora algumas poucas sejam hostis.
A nova versão também inclui uma carta da escritora Naomi Mitchison --cujo filho Avrion foi amigo íntimo de Watson-- em que ela descreve o livro "como se fosse meu filho". Watson havia escrito a maior parte de "A Dupla Hélice" durante estadias em Carradale, a casa de Mitchison no promontório de Kintyre, e dedicou o livro a Naomi. "Talvez você nunca mais escreva esse tipo de coisa, não importa, você a escreveu de uma vez por todas", acrescentou Mitchison na sua carta.
Foram palavras proféticas. Watson --hoje com 84 anos-- nunca chegou perto de repetir o sucesso de "A Dupla Hélice", embora tenha publicado vários outros livros. Por outro lado, continuou no centro do cenário público como um paladino da ciência, frequentemente com resultados polêmicos. Em 2007, depois de fazer declarações sobre diferenças raciais na inteligência entre africanos e outros, ele foi forçado a se aposentar do cargo de reitor do Laboratório de Cold Spring Harbor, em Nova York.
Watson desde então nega veementemente que seja racista. Seus comentários foram apenas irrefletidos, argumentou. A julgar pelas páginas de "A Dupla Hélice", esse hábito --falar primeiro e pensar depois-- não é novidade. Além de sua atitude com as "popsies" e do desprezo por muitos de seus colegas, o tratamento que Watson dispensa a Wilkins e à sua colega Rosalind Franklin vem sendo criticado há anos. Wilkins e Franklin (que morreu de câncer em 1958) estavam estudando o DNA no King's College, em Londres. Crick e Watson estavam sediados em Cambridge, mas nunca realizaram uma experiência por contra própria. Em vez disso, eles exploraram parte das pesquisas de Franklin e Wilkins com a cristalografia dos raios-X para decifrar a estrutura do DNA. Ao mesmo tempo, Watson retrata Franklin de forma fria e antipática.
Mas Watson insistiu na semana passada que não havia animosidade. "Nunca senti que estivéssemos fazendo nada de ruim com ela", afirmou ele ao "Observer". Franklin, com Wilkins, queria obter seus dados antes, e então resolver a estrutura do DNA. "Nós queríamos estar à frente dos dados." Enquanto Franklin e Wilkins continuaram o seu trabalho com os raios-X, Crick e Watson trabalharam em diferentes modelos da molécula de DNA, até encontrarem o correto, uma dupla hélice.
Na verdade, se houve uma figura trágica na história do DNA foi a de Maurice Wilkins, insistiu Watson. Dos quatro cientistas que trabalhavam com o DNA em 1953 -- dois em Cambridge e dois em Londres, ele foi o único que havia pesquisado sua estrutura durante algum período. Franklin lhe foi imposta pelo chefe do seu laboratório, John Randall, que emerge das páginas de "A Dupla Hélice" como uma figura bastante maquiavélica. No final, Franklin e Wilkins mal se falavam, e Crick e Watson ficaram com a glória, para desgosto dos outros.
O livro também revela que na época o MI5 [serviço britânico de inteligência] abria a correspondência de Wilkins, sob a suposição de que ele seria um espião comunista. "Ele não era", diz Watson. "Era só um indivíduo bastante trágico. Foi uma grande vergonha."
Tradução de RODRIGO LEITE.

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