sábado, 15 de dezembro de 2012

Romance da vida real (Mário Palmério) - João Paulo‏

Conhecido como romancista, Mário Palmério construiu um mito em torno de sua atuação política e empresarial. Para o pesquisador André Azevedo da Fonseca, o escritor é um subproduto do varguismo 

João Paulo
Estado de Minas: 15/12/2012 

Em imagem publicada por ocasião da assinatura de um contrato de financiamento da sede de ginásio de sua propriedade, o jovem Palmério, aos 27 anos, está sentado no centro de uma longa mesa no gabinete da prefeitura, circundado por nove autoridades, incluindo o prefeito, todos em uma posição levemente curvada a ele. De acordo com a interpretação de André Azevedo da Fonseca, há uma luz irradiando desse centro. %u201CA composição da imagem guarda semelhanças com a representação clássica da Santa Ceia. A imagem causou uma impressão duradoura no imaginário da cidade.%u201D


André Azevedo da Fonseca, de 37 anos, sempre foi fascinado pelo romance Vila dos Confins, de Mário Palmério, publicado em 1956. “Brasilianistas como Thomas Skidmore argumentam que esse livro é uma das melhores maneiras de compreender a atmosfera do coronelismo no Brasil”, pontua. Vem daí o interesse do pesquisador por deslindar o contexto histórico que havia influenciado o escritor, o que acabou por gerar a pesquisa de doutorado em história, feito na Universidade do Estado de São Paulo (Unesp), que deu origem ao livro A construção do mito Mário Palmério. Da literatura para a vida, o escritor criou seu próprio roteiro existencial, que o levaria a ocupar vários postos políticos de destaque e levar adiante empreendimentos de vulto na área da educação. 

Nada foi feito sem método e, menos ainda, sem despertar polêmica e oposição. Terçando com eficiência as armas que movimentam o teatro social, entre elas a bajulação e a construção do mito do salvador da pátria, Mário Palmério passou a escrever e encenar o roteiro de sua própria consagração nas entrelinhas de sua ascensão profissional. “Ele foi tão bem-sucedido nessa ficção social que, no final dos anos 1940, já era representado pela imprensa local como um ‘herói’ imbuído de um ‘compromisso sagrado’, que fazia ‘sacrifícios’ em nome de um ‘apostolado’ pela educação.” 

Para quem conhece apenas o Mário Palmério escritor, autor de apenas dois romances, mas que faz parte da história literária brasileira de forma destacada, o esforço de história social de André Azevedo da Fonseca surpreende. De tal forma a trajetória política do escritor avulta em sua região que chegou a circular a lenda de que ele não seria sequer autor de seus livros, sendo sua literatura resultado de uma fraude. “No que diz respeito à história, tanto Vila dos Confins como Chapadão do Bugre exploram algumas das piores práticas políticas que ocorriam no interior, da fraude eleitoral à chacina de adversários. Mas Palmério alcança uma dimensão universal ao abordar o lado sombrio dos sentimentos humanos, como a mágoa, a vingança, a traição, o medo e a ânsia por poder”, analisa o pesquisador.

E é exatamente sobre ânsia por poder que parece ter se guiado Mário Palmério em sua trajetória de homem, político, empresário e artista. Em entrevista ao Pensar, André Azevedo, que hoje é professor da Universidade Estadual de Londrina, ajuda a desvendar o mito. 

O que despertou seu interesse pela figura pública de Mário Palmério?


A questão era: quais foram as experiências reais de Mário Palmério na política? Isso era um enigma na história da literatura. Vila dos Confins, publicado em 1956, é um romance indispensável para compreender a brutalidade das práticas políticas no interior do país. O próprio autor dizia que Vila dos Confins havia começado como relatório. Quando publicou o romance, Palmério já tinha seis anos de experiência como deputado federal. Portanto, estudar a história que o levou a escrever Vila dos Confins foi meu ponto de partida. Mas no decorrer da pesquisa fiquei absolutamente surpreso com a habilidade do jovem Mário Palmério na construção meticulosa de sua própria carreira política. Ele aprendeu a manipular uma série de símbolos de prestígio e, tal como um personagem de si mesmo, trabalhou conscientemente para encenar um protagonista de destaque no imaginário de sua cidade. Ou seja, ele percebeu que a vida pública local era um teatro onde atores sociais representavam papéis em uma cena política para impressionar os cidadãos e conquistar prestígio. 

De que forma e com que instrumentos o escritor construiu sua imagem na região de Uberaba e do Triângulo Mineiro?

Desde os seus 24 anos, Palmério sabia que era preciso encenar para conquistar prestígio na cidade. Ele era o caçula da família e teve que se empenhar para deixar de lado a imagem de garotão irresponsável. Para diferenciar-se dos irmãos, deixou o bigode crescer e tratou de produzir dois clichês fotográficos, artefatos caros na época, para serem utilizados nas notícias sobre as suas escolas. Somente em 1940 ele conquistou a emancipação simbólica do pai, deixou de ser apresentado como mais um filho do Francisco Palmério e finalmente apareceu por si próprio. Ao anunciar seus empreendimentos, ele exagerava no currículo, sobrevalorizando as experiências profissionais e alçando sua biografia às alturas. Ele ingressou rapidamente no jogo de lisonja e adulação que animava as elites de Uberaba. Nas fotografias que apareciam nos jornais, é notável o cuidado de Mário Palmério com detalhes do figurino, da postura corporal e do cenário. Ele se posicionava na frente de estantes de livros ou rodeado por seus alunos. 

Como era a região na época em que Mário Palmério começa a buscar projeção e de que maneira ele ligou os anseios do Triângulo à sua trajetória?

Uberaba era uma cidade que tinha forte nostalgia do período de prosperidade, que durou até o final do século 19. A cidade havia passado por um longo período de decadência urbana, mas a partir do Estado Novo começava a ensaiar um renascimento. As elites se empenhavam para convencer a todos e a si mesmo que a cidade estava prestes a se tornar o maior polo irradiador de civilização do Brasil central. Dizia-se que a cidade tinha arranha-céus, que estava repleta de palácios etc. Naturalmente, essa riqueza era altamente concentrada. Um relatório do final dos anos 1920 mostra que a cidade tinha 3 mil residências e apenas 15 palacetes. Mas veio daí essa obsessão em inventar uma vida social fictícia que procurava simular uma sociedade europeia no sertão. A partir de 1945, quatro grandes crises inspiraram um discurso apocalíptico em Uberaba, que ecoou pelo Triângulo. A principal foi a crise econômica, resultado da quebra dos pecuaristas. Havia muita especulação no preço do gado. Quando a bolha estourou, fortunas inteiras desmoronaram e isso devastou a economia da cidade. 

Simultaneamente, o pós-guerra foi um período de racionamento que angustiava muito as pessoas. Faltou pão, carne, leite, açúcar, além dos problemas com abastecimento de água e energia, que eram um desastre. Havia a crise política: as disputas locais em torno dos partidos criados após a queda de Vargas criaram situações que deixavam a população perplexa. E por fim havia a crise identitária. Com o fim do Estado Novo, as lideranças passaram de um debate sobre municipalismo a um discurso aberto em favor da separação do Triângulo Mineiro em relação a Minas. 

Como Mário Palmério reagiu a essa situação?
Mário Palmério leu cada uma dessas crises e, sustentando-se em uma trajetória bem-sucedida e no capital de prestígio que acumulara, apresentou as soluções de modo espetacular por meio do manifesto “Carta aos triangulinos”. Ele propôs a diversificação da economia local como forma de se livrar da dependência exclusiva da pecuária, defendeu o trabalhismo como ideal político, propôs a união suprapartidária para o fortalecimento do poder de negociação regional e ergueu a bandeira da separação do Triângulo Mineiro como forma de unir toda a população em nome de uma causa libertadora. Nessa mitologia, o Estado do Triângulo representava a terra prometida. Como toda a região havia acompanhado a sua ascensão, pois Uberaba era uma cidade polo, seu discurso foi reconhecido como legítimo e entusiasmou uma geração de eleitores.

ENTREVISTA/ANDRé AZEVEDO DA FONSECA » Publique-se a lenda 
Pesquisador analisa a construção do mito em torno de Mário Palmério, autor de Vila dos Confins e Chapadão do Bugre, deputado petebista e empresário do ensino na região do Triângulo Mineiro
 

João Paulo
As obras de Mário Palmério fazem parte do cânone da literatura brasileira do século 20. No entanto, em sua terra natal, o escritor é muito mais célebre pela atuação real e simbólica que exerceu nos campos da política e da educação. Fundador de colégios, escolas profissionalizantes e faculdades, Mário Palmério foi deputado ligado a Getúlio Vargas e ao trabalhismo e, em sua atuação parlamentar, se especializou na área da educação, tendo canalizado recursos para sua região, sobretudo para sua cidade, Uberaba. Perspicaz, percebeu cedo que havia um espaço importante a ser ocupado e, para isso, se investiu da figura do herói civilizador, responsável por levar o progresso ao abandonado centro brasileiro. Acompanhar a trajetória de Palmério ajuda a entender a política brasileira na primeira metade do século. Mas é sobretudo um exercício de compreensão de um homem que gostava de se reinventar a cada fase da vida nacional e que, já velho, resolve abandonar seus negócios e parte em busca de um sonho na região amazônica. O verdadeiro Mário Palmério talvez seja o personagem mais interessante criado pelo escritor. O professor André Azevedo de Fonseca, ao dissecar o mito, revela ainda histórias interessantes, como a contenda entre Uberaba e Uberlândia e as lutas pelo separatismo na região.

Como foi a atuação parlamentar de Palmério, quais foram suas principais bandeiras?


Não estudei profundamente a sua atuação parlamentar, pois me interessei pela sua ascensão nos anos 1940 até a eleição em 1950. De qualquer forma, notei que no início do mandato ele participou da comissão de Educação e atuou como porta-voz do movimento separatista no Congresso. Mário Palmério era um homem partidário, fiel a Getúlio Vargas e propagador do ideal trabalhista. No Triângulo Mineiro, seus principais adversários eram Rondon Pacheco (UDN) e Vasconcelos Costa (PSD). Em Uberaba, seus adversários diretos na campanha de 1950 eram o prefeito Boulanger Pucci (PSP) e o ex-deputado Fidelis Reis (UDN). Naturalmente, no seu empenho por consagração ele sofreu muita oposição, algumas delas bem grosseiras. Desde o início de sua carreira profissional ele foi visto com ressalvas pelos setores conservadores da cidade. Como o seu propósito era criar escolas com preços acessíveis às classes populares, e essas escolas, por economia de recursos, acabaram admitindo turmas mistas, Palmério causou embaraços nas famílias que preferiam a separação de turmas femininas e masculinas. Mais tarde, suas escolas passaram a ser acusadas de oferecer um ensino de qualidade duvidosa e, quando criou a Faculdade de Odontologia, diziam que sua instituição de ensino era meramente tecnicista, ao contrário da faculdade criada pelos padres, que teria um caráter mais humanista. 

Por que, em determinado momento, ele foi considerado um inimigo pelos uberlandenses?

Essa história é interessante e tem dois elementos principais. Na campanha eleitoral de 1958 começou a circular o slogan de que Mário Palmério era o inimigo público número de Uberlândia. O motivo era simples: nas duas campanhas anteriores (1950 e 1954) Palmério prometera criar faculdades em todo o Triângulo, mas na prática criara apenas em Uberaba. Mas naquela época Uberlândia contava com Rondon Pacheco (UDN) e Vasconcelos Costa (PSD). Nessa época, o Correio de Uberlândia era controlado por udenistas e trabalhou conscientemente para desconstruir a aura de Palmério. Outra questão é relevante: naquele período de mobilização separatista, a cidade de Uberlândia, sob a liderança de Rondon, definiu-se como integracionista. A cidade não participou do congresso de prefeitos que defendia a emancipação e marcou posição pró-Minas. Apesar daquele começo consagrador, a carreira política de Mário Palmério fracassou. Para se ter uma ideia, em 1970, no mesmo ano em que Rondon se tornava governador de Minas, Palmério perdia as eleições para a prefeitura de Uberaba. 

Como foi o rompimento de Mário Palmério com o governo militar e como foi a atuação diplomática do escritor no Paraguai do ditador Alfredo Stroessner?
Mário Palmério foi exonerado do cargo de embaixador brasileiro no Paraguai poucos dias depois do golpe civil-militar de 1964. Ele preferiu se afastar da política e aproveitou o tempo livre para terminar seu segundo romance: Chapadão do Bugre, que seria publicado em 1965. Apesar de ser filiado ao PTB e ter se entusiasmado pelo trabalhismo de Vargas, Palmério não chegou a ser ameaçado ou perseguido, talvez por causa de suas boas relações com os militares: ele havia estudado na Escola Superior de Guerra em 1955, escreveu uma monografia defendendo a interiorização do desenvolvimento no país e estava em sintonia com o patriotismo do período. A atuação de Palmério na embaixada teve pelo menos um período relevante, pois ele foi encarregado de acalmar os ânimos nacionalistas paraguaios no período das negociações sobre a instalação de uma grande hidrelétrica em Sete Quedas – a futura Itaipu. Os jornais da época registravam que, nesse período, Palmério era o “homem mais atarefado da diplomacia brasileira”. Ele ficou conhecido também por transformar a embaixada em um refúgio de intelectuais e políticos de oposição.

Ele chegou a compor guarânias que se tornaram célebres…
Suas relações com o governo paraguaio foram cordiais. Ele esteve na missão brasileira designada para acompanhar a posse do general em 1963 e manteve uma relação de amizade duradoura com Stroessner, chegando a oferecer abrigo quando o ex-ditador se exilou no Brasil em 1989. O embaixador Mário Palmério, ou Don Mario, se tornou muito popular no Paraguai por causa das guarânias que viria a compor. Saudade e No digas no são as mais famosas.

Independentemente do mito, quais são as principais realizações de MP que ficam para a história?


Os dois romances são uma contribuição duradoura para a cultura brasileira. As suas guarânias também serão lembradas. Os resultados de sua atuação política ainda precisam ser estudados. Assim como o seu período amazônico. É difícil mensurar a contribuição de suas escolas para o desenvolvimento do Triângulo Mineiro. Em 1945 o Ginásio já tinha mais de 500 alunos que não teriam oportunidade de estudar nas escolas tradicionais. O Ginásio Triângulo Mineiro era acessível, não exigia uniformes caros e cobrava uma anualidade compatível com a renda das classes trabalhadoras. Além disso, muitos alunos ganhavam bolsa de um pecuarista que decidiu contribuir para capitalizar a escola. O impacto provocado por milhares de jovens escolarizados é difícil de medir. 

Quando ele se retira e vai para a Amazônia, disposto a viver num barco, já havia abandonado a política e mesmo a condução de seus negócios na área educacional. Foi mais uma invenção do homem que sempre quis ser um mito?

Apesar de não ser o tema do livro, me interessei por isso também; mas depois de ler seus diários pessoais, analisar inúmeras cartas, notícias de jornal, slides, fotografias e documentos pessoais, confesso que essa aventura ainda é um mistério para mim. Tenho algumas hipóteses. Em primeiro lugar, creio que ele queria escrever um grande romance amazônico, mas como já estava mais velho, aposentado, acabou se deliciando com as rotinas inúteis da procrastinação. Seus diários são muito reveladores disso. Mas gosto de arriscar outra hipótese. No livro explico que o jovem Mário Palmério avançou socialmente em uma trajetória meteórica porque, entre outras coisas, aprendeu a lidar com as propriedades mágicas da polidez, do cerimonial, da lisonja e da adulação. Ora, ele foi embaixador, que vive da arte da pompa e circunstância. Pois bem. Quem conviveu pessoalmente com Mário Palmério afirma que ele odiava essas cerimônias de gente de nariz empinado. Ele tinha hábitos simples, preferia conversar com pessoas comuns e não suportava a ostentação e o pedantismo. Talvez – e isso é apenas uma hipótese pessoal – o refúgio na Amazônia tenha ocorrido quando ele perdeu toda a paciência com toda aquela encenação. Talvez tenha sido uma resposta radical contra aquela sociedade das aparências. E devemos notar que esse exílio foi concebido, não por acaso, em um período em que ele já não mais conseguia se impor com antes, porque os símbolos de prestígio que ele dominava não eram mais valorizados. Por isso, é plausível a hipótese de que ele queria se reinventar. Seu brilho político já tinha se extinguido no decorrer dos anos 1960. Na verdade, o mito que ele encenara já havia entrado em um processo irreversível de decadência. Mário Palmério recriou a sua imagem com essa fase na Amazônia e, de fato, fundou uma nova mitologia para a sua figura. E parte disso foi consciente. 

De que maneira a trajetória de Mário Palmério é exemplar na vida pública brasileira? Que outros políticos e empresários se fizeram a partir de uma estratégia semelhante?


O estudo sobre a ascensão de Mário Palmério deixa claro que, para alcançar sucesso eleitoral, um político precisa desenvolver uma sintonia profunda com a sua sociedade. Ninguém vence ou fracassa apenas pelas qualidades individuais. Há uma trama de circunstâncias sociais que levam um candidato à vitória. No caso de Palmério, tudo conjurou para o seu sucesso: ele construiu uma carreira bem-sucedida em um setor altamente valorizado pela própria sociedade; ele atuou conscientemente, por vários anos, para registrar no imaginário de seus contemporâneos uma narrativa biográfica exemplar, repleta de lutas e sacrifícios – experiências valorizadas em nossa cultura; e soube ler e interpretar as quatro crises – social, econômica, política e identitária – que angustiavam a sua sociedade. Por fim, ele vinculou-se a um projeto nacional muito popular; elaborou um discurso convincente para responder àquelas crises e, graças ao capital social que tinha acumulado, tornou-se um símbolo legítimo das aspirações regionais. Ou seja, surgindo do epicentro da crise, com sua palavra e sua encenação social, Mário Palmério teve a virtú e a fortuna de verbalizar os desejos de seu povo na exata melodia que as pessoas queriam ouvir. Por meio de sua atuação, a sociedade se viu representada. A relação com os eleitores não era apenas política, mas sobretudo cultural. Ele expressou o que as pessoas já acreditavam, mas que ainda não haviam verbalizado. A sintonia foi legítima. Não estudei outros personagens com profundidade, mas este período da experiência democrática brasileira no pós-guerra é repleto de casos semelhantes. Naturalmente, o maior deles é o próprio Getúlio Vargas. O historiador Jorge Ferreira tem alguns excelentes trabalhos sobre vários aspectos da mítica do getulismo. De certa forma, em termos regionais, o jovem Mário Palmério foi um subproduto dessa mitologia.

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