VALOR ECONÔMICO - 07/10/2013
No julgamento do Rede, estiveram em jogo ética e lei. Isso me lembra a distinção antiga entre boas leis e bons reis
A questão crucial desta semana foi: deveria o Rede Sustentabilidade
ser autorizado a funcionar como partido? O problema é que ele não
conseguiu validar as 492 mil assinaturas de eleitores exigidas em lei. O
problema adicional é que dois partidos de quem ninguém ouviu falar até
um mês atrás, Pros e Solidariedade, conseguiram esse número de apoios.
Um terceiro problema é que o Rede tem por líder uma política notável,
que obteve 20 milhões de votos nas últimas eleições presidenciais,
enquanto o Pros, por exemplo, foi montado por um vereador de cidade
pequena: como um pequeno partido, de nome que simboliza o governismo
("pró"), se habilita para as eleições, enquanto fica fora uma força
liderada por gente do mais alto quilate ético? Vejo aqui uma nova versão
do embate entre a letra fria da lei e o espírito da ética.
Isso recorda uma questão que aparece na filosofia desde Aristóteles: é
melhor ser governado por boas leis ou por bons reis? Há argumentos para
as duas posições. Boas leis são necessárias. Mas bastam? Para
aplicá-las não é preciso o critério de bons líderes, capazes de
modulá-las? Mas, se o pêndulo favorecer o bom rei, não cairemos num
regime arbitrário, em que o governante fará o que quiser? Ainda mais, e
esta resposta me parece decisiva, onde está o Bem? Quem garante que
esteja deste lado, e não do outro? Porque, se soubermos onde está o Bem,
não precisaremos de leis, de instituições, de eleições.
Estamos divididos, como alertava o filósofo grego, entre as
instituições e nossas visões do Bem. Esta divisão não é privilégio
nosso. Os Estados Unidos são o caso modelar. Constituem o exemplo
supremo de país, na modernidade, em que a democracia coexiste com
práticas desumanas, a começar pela escravidão. Na América Latina, a
escravatura fazia parte do despotismo. Quando acaba o regime despótico,
acaba a propriedade do homem pelo homem. Já nos Estados Unidos, a
escravidão e depois a segregação racial couberam em regimes
democráticos. São hoje a único democracia a aplicar, com frequência, a
pena de morte. Chegaram a empossar, em 2000, um presidente derrotado nas
eleições. Mas isso convive com instituições democráticas, e quando
estas falham redondamente - mantendo a escravatura, o linchamento, a
segregação, a pena de morte, a fraude eleitoral - o resultado é acatado,
porque se crê nas regras do jogo. E se acredita que, com essas regras,
as coisas possam melhorar. E com o tempo melhoram. Daí que as
instituições pesem tanto naquele país e, embora falhem muitas vezes,
seus cidadãos possam, o que nos surpreende e até nos faz rir, também
acreditar que encarnam o bem, que representam o Bem na Terra.
Os moinhos moem devagar mas de forma sustentável
O que deu certo nos Estados Unidos foi a aposta na via institucional,
mesmo com quebras dela - como a Guerra de Secessão ou, nos anos 60, a
quase guerra civil que incendiou os bairros de negros. Quase guerra
civil porque o presidente Lyndon Johnson conseguiu aprovar uma
legislação de direitos humanos pacificando a relação entre as etnias e
fazendo seu país, mais atrasado na época que o Brasil no respeito ao
negro, se tornar em poucas décadas uma referência para nós. A mesma via
das instituições funcionou no Reino Unido. Já em outra grande
democracia, a França, a ruptura prevaleceu mais vezes. Aqui, cabe a
questão: queremos o cumprimento das leis, mesmo que inviabilize a curto
prazo o Rede, ou - porque Marina é representativa e seria absurdo não
poder disputar, em 2014, a Presidência - preferiríamos soluções
extraordinárias?
Confesso, com toda a simpatia que tenho pelo Rede, preferir a via das
instituições. Comete erros mas, com o tempo, eles são sanados. Não nego
que seja preciso pressionar as instituições. Até entendo pressões, como
algumas ações dos manifestantes de maio e junho, que ficam perto da
ilegalidade. Não as justifico eticamente, mas compreendo
sociologicamente. Contudo, aprovar um partido porque é do Bem me parece
abrir a via para todo tipo de arbitrariedade. Estamos perto de uma das
piores formas de tirania, que é a tirania do Bem, melhor dizendo, a
tirania exercida em nome do Bem (porque, o Bem, onde ele estará? quem
tem acesso a ele, quem fala em seu nome?). Foi esse um dos vícios
originais do comunismo. É esse o risco, hoje, de quem invoca o Bem na
política (não, não me refiro a Marina nem ao Rede).
Na era clássica, que é como chamamos os séculos 17 e 18, era comum
distinguir a ação ordinária e extraordinária do rei. Seu poder ordinário
estava na aplicação das leis, a exemplo de Deus quando rege o mundo por
suas leis usuais, como a água fervendo a cem graus ou o sol nascendo
todo dia. Mas, assim como o Criador eventualmente recorria ao milagre,
parando o sol diante de Josué, também o rei agia extraordinariamente.
Isso, para eles, era mais ou menos normal - nem tão normal assim, porque
a Revolução Inglesa de 1640 se deu contra o "milagre" que Carlos I
pretendia praticar, suspendendo a Constituição.
Estaremos hoje - quando alguns cogitam deixar em segundo plano a rota
das leis, das instituições, em favor do espírito da lei, do Bem - de
novo querendo milagres que nos salvem de um cotidiano tido por
insuportável? Mas os protestantes diziam que a era dos milagres tinha
passado. Talvez a fé católica em milagres e a descrença protestante
neles explique por que estes últimos foram mais capazes de construir as
primeiras grandes sociedades democráticas. Milagres são lindos, mas a
sociedade não é feita deles. Da religião, prefiro a passagem sobre os
moinhos de Deus que moem lentamente, mas muito fino. Só isso é
sustentável. Só isso educa.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
E-mail: rjanine@usp.br