domingo, 14 de julho de 2013

Zimmerman Trial

Julia Marinho 
Enquanto isso, na Flórida, uma mulher (negra), Marissa Alexander, foi condenada a 20 anos por dar tiros de advertência dentro de casa, ao ser quase atacada pelo ex-marido abusivo. Pra ela não valeu a "Stand Your Ground".



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/mundo/absolvicao-de-zimmerman-gera-protestos-em-diversas-cidades-dos-eua-9029269#ixzz2Z4MIWAPB 
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folha de são paulo
CHICLETE COM BANANA      ANGELI
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PIRATAS DO TIETÊ      LARTE
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NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES
FERNANDO GONSALES
MUNDO MONSTRO      ADÃO ITURRUSGARAI
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PRETO NO BRANCO      ALLAN SIEBER
ALLAN SIEBER
GARFIELD      JIM DAVIS
JIM DAVIS
HAGAR      DIK BROWNE
DIK BROWNE

A maçã envenenada - Michel laub

folha de são paulo
IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO
A maçã envenenada
MICHEL LAUB
1.
Um suicídio muda tudo o que seu autor disse, cantou ou escreveu. Para milhões de fãs do Nirvana, banda que o levou a ser chamado de porta-voz de uma geração, Kurt Cobain não é a infância em Aberdeen, o início da carreira em Seattle, o estrelato precoce que acabaria mudando a história da música com o disco Nevermind, nem o álcool e as drogas e a espiral de desespero acompanhada reiteradamente pela mídia, incluindo o casamento tumultuado com a cantora Courtney Love e o nascimento de sua única filha, Frances Bean. Ou é isso tudo, mas apenas como conjunto de sintomas, um espelho que aponta por meio de letras e versões desencontradas para uma cena nunca esclarecida, Lake Washington, abril de 1994, horas ou dias antes de um eletricista descobrir seu corpo com um tiro de espingarda na cabeça.
2.
Para mim, Kurt Cobain sempre será o homem que subiu ao palco do Morumbi, em 1993, para o que mais tarde chamaria de pior show da carreira do Nirvana. Na época eu morava em Porto Alegre, tinha dezoito anos e estava no quartel: a primeira guarda, as primeiras recomendações do pernoite, eu de pé numa quinta-feira em frente a um sargento gordo que falava dos cuidados com o fuzil. Ele não conseguia dizer a palavra senha, dizia sanha, e qual é o procedimento correto? Ele mesmo respondia: alto lá e pedir a sanha.
Eu estava no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, o CPOR, o quartel dos universitários que escaparam de limpar estrume numa unidade de cavalaria ou apanhar de sabonete na Polícia do Exército. Não fazia muita diferença: eu também me submetia às ordens do sargento gordo, e não importava que fosse chamado de aluno em vez de soldado, tivesse aulas de sociologia com um major do Guerra na Selva, assistisse a palestras sobre doenças venéreas e orçamento da União. Não importava a ditadura de 1964 a 1985, nem o impeachment de Collor em 1992, nem que a vida militar brasileira não despertasse mais o interesse de ninguém, menos ainda de quem morava com os pais e tinha uma guitarra e fazia parte de uma banda como eu, porque todas as manhãs era preciso estar de uniforme às sete, corneta, balde e vassoura, e o nome técnico para a retirada da hera da quadra de basquete é cri-cri.
3.
Acabei no CPOR porque um major amigo da família disse que meu nome estaria numa lista de dispensas do quartel de triagem. Mas ao chegar lá um cabo perguntou endereço, data de nascimento e se eu fazia faculdade. Direito. Onde? Na Federal. Eu tinha acabado o segundo semestre e fazia estágio num escritório de advocacia não muito longe dali, para onde pretendia ir depois de pegar o certificado de dispensa e fazer hora num café do mercado público. Já estava até planejado, eu já sabia até a fita que ouviria no walkman para comemorar, mas o cabo procurou o nome na lista e riu e deu a resposta que todo cabo sonha dar para um estudante de camisa social e pasta de couro e fone no pescoço: então vai trancar a matrícula.
A fita era uma gravação de Nevermind. Nos últimos vinte anos é possível que eu tenha ouvido esse disco centenas, talvez milhares de vezes, e é como se em todas elas pudesse evocar 1993: a saída do quartel de triagem, a umidade e a sujeira do verão em Porto Alegre, o barulho dos ônibus e uma grávida que carregava um saco de lixo e era seguida por uma fila de cachorros enquanto eu olhava para o documento informando que a partir dali eu estaria sob jurisdição do Regulamento Disciplinar do Exército. Meu pelotão era o sexto, comandado pelo tenente Pires. Eram cinco colunas de seis, os mais altos à testa, os do fundo cobertos e alinhados tendo como referência a nuca do companheiro da frente. Trinta alunos, e com nenhum deles mantive contato. De nenhum eu tenho uma fotografia. Eu não sei se algum ainda vive em Porto Alegre, se teve filhos, se está vivo. Eu talvez não lembrasse de nada que aconteceu com eles além do folclore militar comum, o pelotão aprendendo a marchar, a fazer os movimentos com arma, a cantar no ritmo do passo direito enquanto a companhia desfila para o palco dos oficiais, não fosse uma história que começa com a vinda de Kurt Cobain para São Paulo.
4.
Na verdade, é uma história que começa antes, na noite em que conheci Valéria. Eu estava num bar da Independência, um lugar com escada de lata e paredes de suor condensado. Ela tinha a minha idade, a mãe morreu quando ela tinha quatro anos, o pai pagava para ela o aluguel de um quarto e sala a dois quarteirões dali, mas isso eu fiquei sabendo depois porque a primeira conversa foi objetiva: me disseram que você tem uma banda e está procurando uma cantora, alguém que suba lá e mande todo mundo se foder.
Eu olhei para ela: tatuagens antes de isso estar tão na moda, ela viu o meu copo e falei, gosta de vodca ruim? Sou masoquista, ela respondeu. Eu perguntei de quantas bandas ela tinha participado. Ela perguntou que tipo de música eu ouvia. Eu pedi outra dose, ela falou é nosso primeiro drinque juntos, aproveite porque pode ser o ápice, daqui para frente é um caminho sem volta, e fui reparando na boca e nos cabelos e na maneira como ela mexia os ombros e os quadris e quando me dei conta ela estava encostada em mim.
No apartamento de Valéria havia uma estante com fitas cassete, nomes de bandas desenhados em esferográfica, variações de caracteres quadrados e fontes com sombra e símbolos góticos e pontas imitando raios. Também havia um gato e um pôster de Kurt Cobain. A sala era um sofá puído e uma geladeira reformada que servia para guardar livros. Tenho gosto de velha para decoração, ela falou. Você gosta de coisa velha? Já trepou com uma pessoa mais velha? Eu tenho a sua idade, mas décadas a mais que você.
Como todo mundo nos anos 1990, Valéria cantava gritando. A banda também não era muito original, arranjos que alternavam leveza e peso, melodia e distorção, bases magras de baixo e bateria e a guitarra estourando com as três cordas graves nos refrões. Se você pegar os elementos básicos de Nevermind, os acordes maiores, os dedilhados e trivelas, as modulações de batidas e pausas e vocais reiterando as marteladas, tem todos os recursos das músicas que tocamos naqueles primeiros ensaios. Só que Valéria tinha uma certa doçura, mesmo que limitada à performance ao microfone, e já na primeira vez que a ouvi me dei conta de que isso faria diferença.
Entre a noite no bar da Independência e a vinda do Nirvana a São Paulo foram onze meses. Comparar o dia anterior ao primeiro encontro com Valéria e o posterior ao show é como falar de tempos diversos, mundos contrários entre si. De Valéria eu também não guardei fotos, nem uma peça de roupa, nem uma fita com alguma música da banda, mas é como se ela continuasse com dezoito anos num presente eterno, e cada vez que vejo os vídeos do Morumbi eu sei que ela está lá, nas trevas entre as primeiras filas, logo adiante de onde filmaram a entrada de Kurt Cobain em meio à luz azul.

Manifestações são grandes e intuitivas demais para uma apreensão racional - CARLOS AYRES BRITTO

folha de são paulo
Extremamente alto e incrivelmente perto
RESUMO Por cortar o tecido social quase de uma extremidade à outra, a ampla mobilização popular a que se assiste hoje no Brasil rechaça categorizações clássicas, não é passível de enquadramento em modelos analíticos genéricos. A não filiação a movimentos pregressos e a esquiva ao aparelhamento a inserem na ordem do mistério.
Os movimentos de rua que aí estão colocam em saia justa não somente as autoridades públicas. Eles também aturdem a inteligência analítica ou puramente intelectual dos homens de ciência. Inteligência que tudo quer apreender para tudo descrever, conceituar, explicar por um modo exclusivamente racional.
Que é o modo pelo qual atua a mente humana, essa matriz de todo pensamento que se pretenda puro, ou seja, investigativo, metódico, reflexivo e demonstrativo. Essa ânsia racionalista nos toma como se o nosso quociente intelectual não fosse limitado no plano do conhecimento das coisas externas e também internas ao ser humano. Como se fosse possível dar um passo maior do que a perna no território do entendimento meramente cartesiano das coisas.
Tal categoria de analistas experimenta muita dificuldade em lidar com o incognoscível, a saber, com os objetos, fatos, eventos, fenômenos que já fazem parte de um terceiro estado de realidade: o mistério. Estado de mistério que se coloca, naturalmente, ao lado do estado das coisas já conhecidas e daquelas cognoscíveis, passíveis de assimilação. Essas últimas não perdem por esperar: mais cedo ou mais tarde serão apanhadas pela rede de arrasto da ciência e da tecnologia humanas.
Complemento o juízo: as coisas já conhecidas e aquelas passíveis de compreensão têm um ponto de identidade, que reside no fato de que ambas são suscetíveis de uma conceituação genérica. Trata-se aqui do conceito em abstrato ou da pura teorização a dar conta da tipologia do objeto sobre o qual incide.
É dizer, então: as coisas já conhecidas e aquelas que um dia se tornarão conhecidas (sua apreensão é uma questão de tempo) se abrem para um tipo de conceito-padrão porque se exteriorizam por uma forma que também tem na padronização sua característica central. Uma só forma, em linhas gerais, a recobrir qualquer das suas tópicas manifestações.
É o que se dá, por ilustração, com o fogo, o ar, a água, a terra, a luz; com o embrião, o feto, a criança, o adolescente, o jovem, o adulto, o idoso; com a moral, a religião, a etiqueta, os usos e costumes, o direito; com a bondade, a verdade, a beleza, a compaixão e outras categorias mentais suscetíveis de classificação por tipo, gênero, espécie, em síntese.
Ora, não é isso o que sucede com as coisas incognoscíveis. Essas já se alocam na imprecisa esfera do mistério, porque insubmissas a uma classificação tipológica ou padronizada. Não se encaixam num único molde para todo e qualquer aspecto de sua pontual manifestação. Numa frase, por maior que seja o número de suas empíricas ocorrências, as coisas ditas incognoscíveis não se prestam a generalizações teóricas ou antecipada classificação metódica. Logo, são abstratamente informes. Inconceituáveis em bloco ou aprioristicamente indescritíveis.
MULTIFORMA Ainda que inexplicáveis no plano da pura racionalidade (uma vez informes em tese), elas podem, entretanto, assumir qualquer forma em concreto. O que equivale a dizer, num aparente paradoxo: o genericamente informe é o que se abre a toda e qualquer forma em concreto. Caso da justiça, do amor, da eternidade, do nacionalismo ("As nações são mistérios. Cada uma delas é um mundo todo à parte", versejou Fernando Pessoa) e do próprio Deus.
O único modo de conhecê-las é sendo o que elas são, dizem as mais antigas escrituras sagradas hindus, conhecidas como "Upanishads". Existem, sim, porém como realidades aprioristicamente indescritíveis, na medida em que não se deixam aprisionar no cubículo dos conceitos previamente elaborados. Donde estes versos já antigos, de minha própria autoria: "A razão problematiza Deus, mas não consegue dar conta do tema. Como pode a razão dar conta do tema, se em matéria de Deus a razão é que é o problema?".
Pronto! É o que penso estar a acontecer com os movimentos populares dos dias presentes. São grandes demais, surpreendentes demais, entusiasmados demais, abertos demais, espalhados demais, intuitivos e instigantes demais para que deles se possa dizer algo que ultrapasse o mero comentário, formular entendimento que vá além da simples e precária opinião subjetiva, sem outro calço que não seja o corriqueiro "data vênia de entendimento contrário".
Eles não guardam a memória de qualquer movimento anterior de massa, e por isso é que chegam às vias públicas assim como quem tritura farelos de estrelas nas mãos consteladas. Desacumulados de tudo que é passado para criar a totalidade do espaço de que o virginalmente novo precisa para se concretizar sem contaminação.
Veja-se: irrompem em plena democracia como efeito e expressão da vitalidade que só ela tem, e não para trazer de volta regimes de exceção, pouco importando se militares ou então de natureza civil; assumem-se como uma instituição social em si mesmos, tanto espontânea quanto informalmente, mas não querem substituir as instituições oficiais (querem, sim, convocar tais instituições chapas-brancas a um repensar acerca do emperramento das respectivas juntas); não são aparelhados por quem quer que seja e também não aparelham ninguém.
Não têm o menor receio de desagradar gregos e troianos e tampouco se preocupam em "sair bem na fita"; expõem com a luminosidade do sol a pino do Nordeste a verdade de que a hediondez da corrupção é a principal responsável pela tragédia da renitente pobreza da maioria do povo. Não portam consigo o mais leve ranço de pauta corporativa, mas, ao contrário, apresentam-se como uma agenda propositiva para o Brasil (Marina Silva é quem o diz) e, quiçá, para uma nova e mais humanizada concepção de mundo.
TRAVESSIA Tal nova e humanizada agenda se vai encorpando a cada ostensiva manifestação, na clarividência de que a travessia em si é também um ser, um ente, um espírito do tempo que sai à cata dos seus mais arejados contornos, embora debaixo de todos os riscos. Travessia que não pode deixar de ser feita, contudo, sob pena de o país ficar à margem de si mesmo por um tempo ainda mais perigosamente alongado (como advertiu Fernando Pessoa acerca do desafio do crescimento interior de cada ser humano).
Enfim, os movimentos de rua que aí estão entram pelos nossos olhos com o grave e ao mesmo tempo alvissareiro aviso de que a hora é de fazer destino. Hora em que se busca não apenas protestar, porque o simples protesto pressupõe algo preexistente como referência central --o passado como espelho da reação coletivamente empreendida, ainda que na perspectiva do estilhaçamento dele.
"Agora, não!". Agora o que se busca é algo ainda inexistente, porém tão intuitivamente alentador quanto aquela presciência de que deu conta Bernard Shaw com a seguinte sentença oracular: "Vocês sonham com coisas que existem e se perguntam por quê. Eu sonho com coisas que não existem e me pergunto: Por que não?'".
Ou, como relatou Jung em diálogo tão medicinalmente terapêutico quanto espiritualmente propedêutico: "Pai, se o seu pequenino lhe disser eu vi você amanhã', pode acreditar, porque ele viu mesmo".
É esse o meu comentário. Não a minha explicação, de todo temerária. Um comentário de quem tateia as coisas ainda imersas em névoa e só apreendidas assim por vislumbres. Imaginação. Rudimentos de insights, na melhor das suposições.
Um singelo comentário de quem aprendeu com os grilos, não com os homens, que vale a pena roer toda a casca da noite para tentar chegar ao branco miolo do dia. O que não é diferente da percepção de que Deus fecunda a madrugada para o parto diário do Sol.

    Agora eu (não) era o herói - Sylvia Colombo

    folha de são paulo
    Redivisão de papéis na ditadura argentina
    SYLVIA COLOMBORESUMO Ex-guerrilheira, antropóloga lança livro em que se distancia de estereótipos maniqueístas associados a atores políticos da última ditadura militar argentina. Sem se furtar à descrição da barbárie de execuções e tortura, obra discorre sobre noções como a "forma divina" que repressores adquiriam aos olhos de alguns presos.
    No último dia 17 de maio, numa madrugada fria do outono portenho, o general Jorge Rafael Videla fechou os olhos para sempre. O velho ditador de 87 anos cumpria pena de prisão perpétua por crimes de lesa-humanidade. Sua morada era uma pequena cela na carceragem militar do Campo de Maio. Tratava-se de uma cama pequena, de solteiro, ladeada por uma mesinha sobre a qual repousavam fotos pessoais. O banheiro era compartilhado com outro preso.
    Líder da primeira junta de governo militar que assumiu o poder na Argentina após o golpe de 1976, Videla comandou um aparato que, ao cabo de sete anos, mataria cerca de 30 mil pessoas, segundo estimativas de grupos de direitos humanos, e seria responsável pelo desaparecimento de mais de 500 bebês, sequestrados de pais opositores do regime e entregues a famílias de oficiais leais, como bem ilustra o filme "A História Oficial" (1985), de Luis Puenzo.
    A morte de Videla encerrou um longo ciclo em que a Argentina julgou e condenou repressores de maneira inédita, principalmente se a base de comparação é o pós-ditadura de outros países da América Latina. Membros do governo kirchnerista, responsável por levar ao banco dos réus mais de 300 agentes do regime, disseram com mal disfarçado orgulho que o general morrera como um criminoso comum, condenado e preso.
    Em entrevista ao jornalista Ceferino Reato (publicada no volume "Disposición Final", lançado no ano passado), meses antes de morrer, Videla admitira o que considerava uma "necessidade": o desaparecimento de um grande número de pessoas que se opunham ao projeto de "reorganização nacional" proposto pela junta.
    Em 2013, lembram-se os 30 anos do fim desse período obscuro, em que tomou forma uma das ditaduras mais implacáveis do continente. Foi um tempo em que a tortura se difundiu como prática corrente em mais de 300 campos de detenção em todo o país, assim como as execuções e o recurso a requintes de maldade --basta lembrar os "voos da morte", em que prisioneiros políticos eram atirados de aviões sobre o rio da Prata, conforme mostrou o jornalista Horacio Verbitsky em seu clássico "O Voo" (ed. Globo).
    Se do ponto de vista da Justiça muito tem sido feito para esclarecer episódios daquele período, do ponto de vista da interpretação histórica os esforços ainda deixam a desejar. A maioria das leituras do passado chega manchada das tintas da polarização da sociedade. Se já era agudo nos anos 1970, esse antagonismo ideológico se encontra consolidado neste começo de século 21 e contamina as reflexões sobre a ditadura.
    Nesse cenário, o livro "Poder e Desaparecimento: Os Campos de Concentração na Argentina" [Boitempo, 192 págs., R$ 38], da antropóloga argentina radicada no México Pilar Calveiro, 59, constitui uma exceção. Talvez o maior poeta local vivo, Juan Gelman, que viu um filho desaparecer durante o regime e assina o prefácio à edição brasileira, diz que a interpretação da conterrânea pode ser comparada à obra que o italiano Primo Levi (1919-1987) construiu a partir de sua experiência pessoal em campos de concentração nazistas.
    Já para o filósofo argentino Thomas Abraham, o texto de Calveiro permite divisar todos os matizes de que se compõe a distinção entre guerrilheiros e repressores, mostrando que uma tipificação maniqueísta não faz jus aos fatos.
    Calveiro conversou por telefone com a Folha desde o México, onde vive há 34 anos e dá aulas na Universidade Autônoma de Puebla.
    MONTONERA Seu olhar é mais do que talhado para enquadrar o tema. Integrante da guerrilha esquerdista Montoneros, principal foco de resistência ao regime militar, Calveiro foi sequestrada no dia 7 de maio de 1977. Num primeiro momento, levaram-na à Mansão Seré, centro clandestino de tortura da Aeronáutica. No ano e meio que se seguiu, ela passou pela delegacia de Castelar (centro pertencente à polícia) e pela temida ESMA (Escola Superior Mecânica da Armada), base da Marinha sobre a qual o temido almirante Emilio Massera (1925-1974), um dos três membros da primeira junta militar, tinha forte ascendência.
    Como se não bastasse, seu marido foi sequestrado durante uma investida no Brasil da Operação Condor (sistema de repressão e inteligência coordenado entre governos ditatoriais do Cone Sul) e nunca mais apareceu.
    "Minha experiência pessoal é fundamental nas escolhas intelectuais que fiz, mas não quis me apoiar somente nela. Usei-a para entender que a memória é formada de várias vozes e que era preciso ouvir mais de uma, não se apoiar na dor pessoal."
    A busca dessa polifonia gerou uma reflexão teórica que parte do que a autora e outras testemunhas vivenciaram nos campos de concentração para discutir os conceitos políticos e filosóficos em que a máquina da repressão se ancora.
    São colhidos os relatos de Graciela Geuna, prisioneira do centro La Perla (Exército), Martín Gras (ESMA), José Carlos Scarpatti (Campo de Mayo, Exército), Claudio Tamburrini (Mansion Seré) e Ana Maria Careaga (Atlético, Polícia Federal). "Achava importante ter na amostra tanto homens como mulheres, e gente que havia passado por centros administrados por distintas forças. Os que estiveram nos locais comandados pelo Exército passavam pelos interrogatórios mais elaborados, enquanto as torturas na Marinha eram bastante sofisticadas. Fica impossível dizer qual era mais cruel, mas não investigar as distintas formas de aniquilação das pessoas que conformaram a política sistemática do regime", conta Calveiro.
    A obra alterna testemunhos de momentos de "prazer" dos prisioneiros, principalmente relacionado às refeições, e de terror, como o experimentado durante as "transferências" (quando presos eram levados de um centro a outro ou simplesmente enviados à morte) e as sessões de tortura.
    É aí que o conceito de "desaparecimento" toma vulto no estudo de Calveiro. Desaparecer, em tempos de ditadura, não era simplesmente morrer, mas ter estruturas física e psíquica destruídas por correntes imensas de eletricidade ou outros suplícios. Nos centros de La Perla ou na ESMA, há relatos de presos obrigados a correr vendados ou com capuzes e coleiras. Na Mansão Seré, havia coação a lutas corporais às cegas que não raro resultavam em mortes. Já na delegacia de Castelar, passava-se fome até a capitulação, ao passo que na de Banfield, mulheres davam à luz nuas em meio a insultos e gritos de repressores.
    "Não busquei um relato que vitimizasse ou heroicizasse, mas sim que explicasse teoricamente como a repressão se impõe numa sociedade", conta Calveiro.
    Para tanto, ela se valeu da formação obtida no México durante seu exílio, a partir de 1979. Foi lá que se formou em ciência política. Depois de "Poder e Desaparecimento", Calveiro seguiu na trilha da violência perpetrada pelo Estado. Seu mais recente trabalho é "Violencias de Estado "" La Guerra Antiterrorista y la Guerra contra el Crimen como Medio de Control Global", de 2012.
    Neste e em outros títulos novos de sua lavra, Calveiro volta o foco para os direitos humanos na atualidade. É preciso atentar, diz ela, para as minorias que sofrem discriminação, os mortos pelo crime organizado, o elo entre o narcotráfico e o poder democrático e o uso abusivo da força policial para lidar com crises na sociedade. "É claro que um crime de lesa-humanidade regularizado, como ocorreu nos anos 1970 na Argentina, possui especificidades. É algo muito grave e condenável. Mas, de um modo geral, a questão da violência ilícita ou abusiva cometida pelo Estado está presente em vários países da América Latina hoje. O Brasil não é uma exceção", afirma.
    Calveiro menciona como exemplos destacados desse fenômeno o México, onde a guerra entre o governo e os cartéis da droga, iniciada em 2006, já cobrou mais de 60 mil vidas e resultou em mais de 100 mil desaparecimentos, e a Colômbia, onde pactos entre poder e guerrilha permitiram a sobrevivência das Farc, atuando até agora em territórios em que há um vácuo de poder oficial.
    HEROÍSMO A antropóloga elogia a ação do Estado argentino na rubrica dos direitos humanos, mas tece críticas ao papel heroico que o kirchnerismo reserva aos que lutaram contra a ditadura nos anos 1970. Para ela, um olhar agudo deveria dispensar categorias épicas.
    "A heroicização daquela época é contraproducente e atrapalha a discussão, porque não permite fazer a análise crítica e pensar na responsabilidade dos distintos atores. Não penso na política como forma de exclusão da violência. Creio que nela há sempre um núcleo violento. O que é preciso ver é que lugar esse núcleo violento ocupa, quais são as formas da violência e como operam em relação ao poder instituído", explica.
    Em sua obra, Calveiro evita apelos sentimentais. Prefere esmiuçar a linha tênue que geralmente separa os bons dos maus e mostra o que os dois lados da contenda tinham em comum em termos de métodos, crenças e ações. Dá notícia das alianças e formas de convivência entre algozes e vítimas, casos de amor, cumplicidade e vínculos fortes de amizade que se formaram naqueles anos.
    Em dado momento, trata a questão da "forma divina" que a personalidade dos repressores ganhava. Se por um lado eles se viam com poderes de matar ou deixar viver suas vítimas, também essas se lembravam com filtros quase divinos de casos em que determinado agente lhes salvara a vida ou as poupara de sofrimentos atrozes.
    A estudiosa comenta com otimismo o fato de o Brasil ter instituído recentemente uma Comissão da Verdade para investigar seu passado violento. "Não é tarde, cada sociedade tem seu tempo. Na Argentina, os julgamentos foram possíveis ainda nos anos 1980 por conta do modo como os militares deixaram o poder", avalia.
    Derrotados na Guerra das Malvinas (1982), eles saíram do governo desmoralizados, o que abriu espaço para que o líder eleito democraticamente, Raúl Alfonsín, iniciasse o histórico Julgamento das Juntas, levando à cadeia inclusive repressores dos altos escalões.
    De lá para cá, a Argentina atravessou várias fases. O próprio Alfonsín, pressionado pelos militares, lançou mão das leis de Ponto Final e Obediência Devida para anular condenações. Seu sucessor, o peronista Carlos Menem, concedeu amplo e generoso indulto, que libertou desde Videla até o líder montonero Mário Firmenich, hoje exilado na Espanha. A anistia foi sustada nas gestões de Néstor e Cristina Kirchner. Estavam dadas as condições para o julgamento amplo de quase todos os envolvidos em crimes do Estado.
    "Não basta julgar, é preciso entender, esclarecer. Qualquer sociedade que se comprometa com isso está no caminho certo. É o caso do Brasil agora", conclui Calveiro.
      Livros devolvem ex-tupamaro ao front
      O uruguaio Carlos Liscano esteve preso dos 22 aos 35 anos de idade. No cárcere, foi de guerrilheiro tupamaro a escritor. Ao reconquistar a liberdade, em 1985, considerou-se deslocado num Uruguai democrático que se negava a investigar os crimes da ditadura militar (1973-1985) que o mantivera preso por tanto tempo. Fez então as malas e partiu.
      A primeira opção era Curitiba, mas a ideia não vingou. Optou por um pouso mais distante e embarcou para a Suécia. Ali, inserido numa grande comunidade de exilados das ditaduras latino-americanas, passou mais de dez anos. Só em 1996 sentiu-se à vontade para voltar à terra natal.
      Na última quarta-feira, Liscano recebeu a Folha para uma entrevista no histórico prédio da Biblioteca Nacional, da qual hoje é o diretor.
      "A biblioteca me devolveu à política, mas por uma outra porta. Desde que entrei para o mundo dos livros, em 1981, quando escrevi meu primeiro romance dentro da cadeia, sabia que esse seria o meu foco de atuação no futuro", diz.
      Liscano recorda celas escuras e a peleja com algozes para que lhe fornecessem papel, lápis e luz. Da insistência nasceu seu romance de estreia, "La Mansión del Tirano", que escreveu duas vezes, pois o primeiro manuscrito foi roubado e jogado no lixo pelos militares.
      Trinta e dois anos depois, Liscano se transformou em autor de uma ampla obra de teatro, romances e ensaios sobre os tempos da ditadura. No Brasil, ainda não foi traduzido, mas na França tornou-se um escritor cultuado e tem suas peças encenadas, enquanto no Uruguai seus livros são disputados em sebos. Em Paris, ele acaba de publicar "Memórias de la Guerra Reciente" e "La Impunidad de los Verdugos" (a impunidade dos carrascos, em tradução livre).
      Enquanto isso, a Universidade Federal de Santa Catarina escolheu "El Lector Salteado" (o leitor intermitente, em tradução livre)para lançar Liscano no mercado brasileiro. O próprio esteve no país, em abril passado, para uma tertúlia em torno de livros, política e memória com o escritor argentino Martín Kohan.
      "O trânsito de livros na América Latina é muito falho. Aqui [no Uruguai] é difícil comprar livros colombianos, venezuelanos, mesmo argentinos. Os grandes selos monopolizam contratos por país e atravancam o intercâmbio. Com relação ao Brasil, há ainda o obstáculo da língua", observa.
      Cortês e articulado, Liscano não se acanha em descrever o sofrimento nos anos de cárcere nem escamoteia seu inconformismo em relação a governos que, na visão dele, chancelaram a não investigação dos crimes de Estado --notadamente o de Julio Maria Sanguinetti, presidente entre 1985 e 1990, e novamente entre 1995 e 2000. "Sanguinetti protegeu os militares e encobriu os crimes deles. Foi o principal responsável pela defesa da anistia que faz com que até hoje a sociedade uruguaia não enfrente seu passado."
      ANISTIA Para o escritor, José Pepe Mujica, atual presidente e companheiro de fileiras na guerrilha Tupamaros, também é indolente no que se refere à investigação de episódios de violência ocorridos durante o regime de exceção. A ditadura militar uruguaia é considerada responsável pelo desaparecimento de 174 pessoas.
      Liscano deixa claro que não gosta do papel de oprimido. "Não sou uma vítima. Era guerrilheiro, portanto, responsável pela minha escolha. Há, sim, vítimas. Essas têm de ser compensadas pelos abusos da violência de Estado", diz, antes de comentar, não sem ironia, a incorporação da pauta dos direitos humanos à agenda da esquerda.
      "Não era um assunto que estivesse em seu radar no fim dos anos 1970. O tema foi incorporado ao discurso esquerdista, mas na verdade surgiu nas comunidades no exílio e foi apenas absorvido pelos governantes da democracia. Não se trata de uma solicitação originária da esquerda revolucionária."
      O autor é a favor da investigação dos crimes de Estado, mas reconhece que há pouco a fazer se boa parte da sociedade se opuser à revisão do passado. Atualmente, transcorre no Uruguai, tanto na esfera civil quanto no Congresso, um amplo debate sobre a necessidade de revogar ou não a lei de anistia promulgada em 1986.
      Assim como a antropóloga argentina Pilar Calveiro , Liscano acredita que o discurso dos direitos humanos precisa incluir reprimendas aos crimes cometidos na atualidade. "O que dizer dos mortos nos acidentes de trem na Argentina, por obra do narcotráfico no Brasil, nos tantos meninos e meninas abandonados em toda a América Latina?", provoca.

      Entrevista Luciano Coutinho BNDES

      folha de são paulo

      Governo de Dilma não apostou sozinho em Eike, diz presidente do BNDES

      VALDO CRUZ
      DE BRASÍLIA
      RAQUEL LANDIM
      DE SÃO PAULO

      Presidente do BNDES, Luciano Coutinho diz que a aposta do governo Dilma Rousseff em Eike Batista foi "uma expectativa compartilhada por todo o mercado".
      À frente do banco que emprestou R$ 10,4 bilhões ao empresário, Coutinho afirmou àFolha que a exposição do banco a Eike é "baixíssima" e se concentra nas empresas com ativos para equacionar financeiramente o grupo: "Quem estiver apostando no caos vai se frustrar".
      Eduardo Knapp/Folhapress
      O presidente do BNDES, Luciano Coutinho, dá entrevista em São Paulo
      O presidente do BNDES, Luciano Coutinho, dá entrevista em São Paulo
      Leia a entrevista:
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      Folha - Duas apostas do BNDES --Marfrig e grupo EBX-- estão com problemas graves. Houve equívoco nas escolhas?
      Luciano Coutinho - Não posso falar de casos específicos, mas são companhias que têm ativos altamente atraentes. Tiveram problemas de gestão ou de endividamento, que naturalmente se resolvem. Não é um insucesso.
      O banco divulgou que aprovou empréstimos de R$ 10,4 bilhões para Eike Batista. No pior cenário, qual o prejuízo?
      Baixíssimo. Tanto do BNDES como dos bancos privados. A exposição está concentrada nos ativos de alta qualidade do grupo, principalmente na MPX, que já mudou de controlador e hoje é uma empresa sob liderança alemã. Outro ativo de maior exposição dos bancos é a MMX, que também é cobiçada publicamente. A exposição direta do BNDES ao grupo é pequena.
      O governo Dilma apostou em Eike. Foi uma aposta errada?
      Foi uma expectativa compartilhada por todo o mercado privado em um conjunto de projetos --a maioria, meritórios e consistentes. Houve um negócio específico que foi frustrante, e essa frustração provocou uma crise profunda de credibilidade em relação ao investidor. Mas o conjunto de ativos gerados é suficiente para equacionar financeiramente e patrimonialmente o grupo e propiciar uma saída organizada. Quem estiver apostando no caos vai se frustrar.
      Os empresários estão preocupados com o ritmo da economia, sinalizando risco de redução de investimento. Esse pessimismo vem de onde?
      Estamos vivendo um momento de mudança, com a perspectiva de uma política monetária americana mais apertada [juros mais altos]. Esse movimento teve efeito muito forte não só no Brasil, mas no mundo todo, e gerou ansiedade em muitos setores. Porém, esse processo tende a se ajustar em algum momento. No médio e longo prazos, teremos apenas um pequeno soluço e vamos retomar o crescimento.
      O soluço não está longo?
      Começou há seis semanas. Tivemos um primeiro trimestre fraco, mas o investimento foi forte. Apesar dos efeitos das manifestações, vamos ter um primeiro semestre de bons resultados. Essa mudança teve impacto, mas quero chamar a atenção para oportunidades nos investimentos em infraestrutura, energia, óleo e gás, agronegócio e manufatura. Depois desse ajuste, o quadro é benigno. Teremos um câmbio estimulante para vários setores.

      RAIO-X LUCIANO COUTINHO
      OCUPAÇÃO
      Presidente do BNDES
      FORMAÇÃO
      Doutor em economia pela Universidade de Cornell (EUA)
      CARREIRA
      Foi secretário-executivo do Ministério de Ciência e Tecnologia (1985-1988) e sócio da LCA Consultores
        BNDES oculta reuniões de Coutinho com empresários
        Ao contrário dos representantes do setor privado, encontros com pesquisadores, jornalistas e políticos são listados
        Banco diz querer evitar oscilações no mercado; "[BNDES] aplica recurso público sem controle", diz Ministério Público
        FERNANDO MELLODE BRASÍLIAEnquanto Dilma Rousseff promete transparência em resposta aos protestos, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) esconde encontros do seu presidente, Luciano Coutinho, e dos principais diretores com empresários.
        Nos últimos anos, o BNDES financiou grandes negócios, em prática que foi chamada de escolha de grupos para serem "campeões nacionais".
        Para o banco, esconder as agendas é uma exigência da lei, pois sua divulgação pode gerar oscilações no mercado.
        Folha teve acesso a elas pela Lei de Acesso à Informação. Compromissos públicos, seminários, encontros com políticos, ministros ou com ONGs são descritos com detalhes, incluindo o nome dos participantes e seus cargos.
        Em 4 de maio de 2011, por exemplo, está descrito o encontro com os deputados João Paulo Cunha e Candido Vacarrezza, do PT de São Paulo.
        São nominais também encontros com pesquisadores, economistas e presidentes de associações como a Abdib (Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base) e a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo). Entrevistas a jornalistas também são identificadas.
        Mas a maior parte da agenda é composta de "reunião com empresários do setor privado". De 2010 e 2013, a descrição apareceu quase 800 vezes na agenda de Coutinho.
        Há dias, como 27 de maio de 2011, em que a agenda é toda tomada por esses encontros, entre as 10h e as 19h, quando foram dez reuniões com diferentes empresários.
        O mesmo acontece nas agendas das diretorias do banco. Há descrição de encontros com embaixadores e delegações de outros países, interessados no financiamento de obras no exterior. Mas encontros com empresários brasileiros são registrados como "reunião com setor privado".
        No mês passado, o Ministério Público Federal no Distrito Federal recorreu ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região para garantir transparência aos financiamentos realizados pelo BNDES.
        A Procuradoria tenta reverter decisão da 20ª Vara Federal de Brasília, que negou pedido provisório para que os dados sobre empréstimos do banco nos últimos dez anos (e todos os contratos no futuro) sejam divulgados na internet.
        Para o MP, "o vetor a ser perseguido não é o do sigilo --geralmente empregado-- mas, sim, o da transparência. É urgente que o BNDES divulgue seus investimentos, uma vez que são feitos com recursos públicos federais que estão sendo livremente aplicados sem qualquer tipo de transparência ou controle".
          OUTRO LADO
          Para banco, sigilo evita oscilações nos mercados
          DE BRASÍLIAPor meio da sua assessoria de imprensa, o BNDES afirmou que o sigilo na reunião com empresários é uma determinação da Lei de Acesso à Informação. De acordo com a assessoria, "toda e qualquer informação que esteja protegida por qualquer outro tipo de sigilo está excluída da aplicação" da legislação de acesso à informações públicas.
          "Então, divulgar nome da empresa, nome do empresário que teve reunião com o presidente do BNDES é informação que entra na regra geral do sigilo empresarial."
          O BNDES afirmou que divulgar encontros entre seu presidente, diretores e empresários "são informações relacionadas ao setor privado, que, se divulgadas, podem gerar oscilações no mercado, oscilações nos ativos da empresa etc.".
          Diz que no caso de autoridades públicas e entidades empresariais "não há esse tipo de sigilo porque estão todos sujeitos à publicidade".

            Para ocupar vagas, cidades do Rio Grande do Sul contratam doutores uruguaios sem validar diploma

            folha de são paulo
            Hospital de cidade de fronteira sobrevive com médico uruguaio
            Contratação de estrangeiros sem diploma válido no Brasil foi decidida pela Justiça para suprir a falta de profissionais
            Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul se opõe à medida e fala em exercício ilegal da profissão
            FELIPE BÄCHTOLDENVIADO ESPECIAL A QUARAÍ (RS)Enquanto o governo federal compra briga com a classe médica --devido ao plano de flexibilizar a contratação de estrangeiros--, cidades gaúchas na fronteira com o Uruguai enfrentam a falta de profissionais de saúde contratando médicos do país vizinho sem diploma revalidado.
            Municípios e hospitais ganharam na Justiça o direito de contar com médicos uruguaios e dependem deles para formar equipes mínimas.
            Em Quaraí, cidade de 23 mil habitantes, a maioria dos 20 médicos do Hospital de Caridade, o único do município, é do país vizinho. O hospital tem há anos vagas abertas para diversas especialidades.
            Com salários na faixa dos R$ 7.000, não consegue atrair profissionais de grandes centros do Rio Grande do Sul.
            Assim como Quaraí, outras quatro cidades da fronteira que apelaram para a alternativa e tiveram aval da Justiça são pouco populosas, sem faculdades de medicina por perto e com orçamento limitado.
            Um perfil muito próximo dos municípios que o governo pretende beneficiar com a contratação de médicos estrangeiros --projeto que virou bandeira da presidente Dilma Rousseff na saúde após as manifestações de junho.
            EXERCÍCIO ILEGAL
            O Conselho Regional de Medicina do RS, no entanto, se opõe à contratação de uruguaios sem registro e fala em exercício ilegal da profissão.
            Hoje, para que um médico estrangeiro atue no Brasil, ele precisa ser aprovado no Revalida, considerado difícil.
            Mas o CRM vem sofrendo derrotas. O hospital de Quaraí, mantido por fundação filantrópica e com atendimento voltado ao SUS, já ganhou em segunda instância o direito de contar com os uruguaios.
            Um argumento considerado pela Justiça é um acordo entre Brasil e Uruguai para atendimento de saúde na fronteira. O texto não especifica o tema da contratação de médicos estrangeiros, mas, na interpretação dos juízes, autoriza o trabalho no Brasil sem revalidação do diploma.
            Em 2011, o juiz federal Belmiro Krieger afirmou em decisão que não se tratava de escolher entre brasileiros e uruguaios, mas "entre o médico uruguaio ou nenhum."
            Quaraí é ligada por uma ponte ao município uruguaio de Artigas, onde moram 40 mil pessoas. As cidades brasileiras mais próximas ficam a cerca de 100 km dali.
            A diretora do Caridade, Daniele Garcia, diz que, se não fossem os uruguaios, o hospital iria "fechar as portas".
            O hospital faz cerca de 2.000 atendimentos por mês. Sofreu intervenção da prefeitura neste ano e tem dívidas de R$ 10 milhões. Nos últimos anos, se inscreveu em um plano federal que visava atrair médicos ao interior, mas não houve interessados.
            CONTRATEMPOS
            A contratação dos uruguaios gera contratempos. Os gestores não conseguem pagar esses profissionais com repasses do Ministério da Saúde, já que eles não são reconhecidos. O dinheiro sai do caixa único da prefeitura.
            "Atrapalha demais [as finanças]. Poderia fazer obras, mas passa para a folha de pagamento", diz o prefeito Ricardo Gadret (PTB).
            Outro problema é que farmácias não aceitam receitas prescritas pelos uruguaios.
            "Quando é preciso um remédio que não está na Secretaria da Saúde, pedimos que algum médico brasileiro valide a receita", diz o médico uruguaio Santiago de León, 27, que começou a fazer plantões em Quaraí neste ano.
            Clínico geral formado em Montevidéu em 2012, ele diz que revalidar o diploma não é sua prioridade, devido à demora e porque já estuda para provas de residência médica.
            Para o médico, além da remuneração no nível da oferecida em seu país, o interesse dos uruguaios pelo trabalho na fronteira também se explica pela demografia. O Uruguai não tem grandes municípios além de Montevidéu.

              Nordeste vai buscar tecnologia em Israel para enfrentar seca

              folha de são paulo
              Ceará negocia a instalação de fazenda-modelo de país que é referência na convivência com escassez de água
              Entre as soluções está a irrigação por gotejamento, em que a água é aplicada nas raízes das plantas
              AGUIRRE TALENTODE FORTALEZAEm meio à maior seca em 50 anos, o Nordeste busca em Israel, país referência na convivência com escassez de água, tecnologias para enfrentar a estiagem.
              O governo do Ceará fecha detalhes para sediar uma fazenda-modelo de Israel. O objetivo é transferir tecnologia para produtores rurais.
              Bahia e Ceará também estudam o uso de tecnologias israelenses para tratamento de água, como estações móveis. No caso do Ceará, a iniciativa ainda esbarra na liberação de recursos federais.
              "Lá [Israel] chove muito menos do que no semiárido brasileiro, e a técnica de irrigação por gotejamento foi a solução", disse Sheila Sztutman, consultora econômica de Israel no Brasil.
              Há lugares em Israel onde chove menos de 100 mm por ano, enquanto no semiárido brasileiro as chuvas vão de 200 mm a 800 mm/ano.
              Na irrigação por gotejamento, a água é aplicada diretamente nas raízes das plantas, inclusive com fertilizantes, o que diminui o desperdício.
              O país do Oriente Médio também usa estufas com ambiente controlado para cultivo, e seu sistema de gestão de águas monitora com rigidez perdas em tubulações.
              "Enquanto no Brasil há Estados com 25% de perda de água no sistema, em Israel, quando esse índice chega a 2%, aciona-se um alarme para correção", disse Sztutman.
              A ideia da fazenda-modelo é apresentar tais tecnologias aos produtores brasileiros, adaptando os equipamentos à realidade local.
              Será a segunda fazenda-modelo do tipo em todo o mundo. A primeira foi implantada na Tailândia.
              Segundo a Adece (Agência de Desenvolvimento do Ceará), que coordena a parceria, outras tecnologias agrícolas israelenses também deverão estar presentes na fazenda-modelo, como pecuária leiteira (genética e alimentação) e aproveitamento de energias renováveis na produção.
              O terreno de 1.500 hectares do governo onde funcionará a fazenda-modelo fica em Quixeramobim, cidade do sertão a 216 km de Fortaleza.
              A ideia é que o projeto, de custo ainda não definido, comece a ser implantado neste segundo semestre.
              Para Israel, a iniciativa visa elevar as vendas de suas empresas ao Brasil. Já há companhias agrícolas israelenses no Brasil, mas com presença maior no Sudeste. Há interesse no Nordeste: uma dessas empresas, a Netafim, de irrigação, inaugurou fábrica em Pernambuco em setembro.

                Vinicius Torres Freire

                folha de são paulo
                Uma fábula do protesto de junho
                'Povo das ruas' vai se olhar no espelho quando invadir o Castelo do Tudo-Que-Está-Aí
                A QUEIXA VELHA sobre impostos excessivos em troca de serviços públicos ruins tornou-se uma fórmula chocha que tentou traduzir a "voz das ruas". Fez par com a "crise de representação" ou "os políticos não me representam".
                Somados, os dois lemas sugerem que no fim desse arco-íris com sete tons de cinza ("tudo que está aí", "políticos") há um pote de ouro a ser aberto e dividido para o bem geral.
                No que vai dar um protesto que marcha para abrir as cadeias da Bastilha (o "governo") e descobre que há lá só uma dúzia de presos, em vez de milhares de vítimas dos "políticos" da corte de Versalhes?
                Talvez os impostos não sejam tantos assim. Ou melhor: os impostos não são recolhidos com o fim de prover "serviços públicos de qualidade".
                Os impostos federais pagam aposentados, salários e aposentadorias dos servidores, juros da dívida, benefícios sociais para miseráveis e coisas como seguro-desemprego. E o dinheiro acabou. O resto, para bancar "educação, saúde e transporte de qualidade", é muito pouco e já é deficit, financiado com dívida.
                Tal sistema é feito de camadas arqueológicas do conflito social, aberto ou camuflado. Servidores, que inventaram o Estado e o jeito brasileiros de desenvolvimento (1930-1985), se criaram benefícios nem tão privilegiados assim, mas muito superiores ao do padrão médio de vida (tal Estado também bancou a criação da grande empresa nacional e beneficiários dela, a velha classe média).
                Parte do INSS, benefícios para miseráveis e outras melhorias advindas, aos poucos, com a Carta de 1988 foram um remendão que mantém um mínimo de estabilidade sociopolítica num país pobre que tenta ser democrático em um regime de extrema desigualdade e violência. Sem isso, viveríamos em tumulto constante ou coisa pior.
                Os juros da dívida remuneram a poupança das famílias muito ricas, ricas e remediadas ("fundos" de banco, por exemplo. No grosso, quem tem alguma poupança recebe juros da dívida).
                De onde vem a dívida? Ficou enorme no esforço de estabilizar a economia (acabar com a hiperinflação, anos 1990) sem causar ruptura política ou social maior. Continuou a crescer com deficit para manter o sistema funcionando.
                A inflação foi um meio de acumular capital para o Brasil desenvolvimentista, de concentração de renda, de bens para a "nova classe média" dos anos 1960-70 (outro meio de acumular capital, também tirado dos pobres, foi a repressão pura, pau nos trabalhadores peões).
                Na fábula dos protestos de junho, o povo das ruas invade a Bastilha ou Versalhes e, sim, descobre que "políticos" e seus clientes (empresas e ricos) levam algum extra.
                Mas, lá no fundo do castelo, o povo das ruas vai descobrir que, no grosso, paga para si mesmo, para seus avós aposentados, para acalmar miseráveis, para o subsídio da sua casa ou bens de consumo. Vai descobrir que, enfim, recebe de volta quase tudo que paga, de modo distorcido e desigual, decerto; quem recebe menos é o povo dos cafundós de cidades e sertões.
                O povo das ruas vai descobrir que o pote de ouro é pequeno; que redividi-lo vai exigir conversa ou conflito. Talvez descubra que boa parte do ouro não está no castelo estatal.
                No fundo desse castelo do "tudo que está aí", enfim, tem um espelho.