Trinta anos do MST
Crianças de famílias do MST se manifestam em frente ao Ministério da Educação em Brasília: o futuro em ação
João Paulo
Estado de Minas: 15/02/2014
O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, o MST, está completando 30 anos. Ontem, foi encerrado em Brasília o 6º Congresso Nacional da entidade, com o tema “Lutar, construir reforma agrária popular”, com mais de 15 mil pessoas de 23 estados brasileiros, entre elas mil crianças, unidas em torno das ações dedicadas aos “sem-terrinha”. Você, provavelmente, não sabia que o movimento estava completando 30 anos, nem que reuniu tanta gente esta semana em Brasília. E não é por acaso.
A estratégia de silenciamento, quando não de demonização, dos movimentos populares no Brasil tem no MST o mais destacado alvo. As razões são muitas, todas elas ligadas a interesses no campo político, econômico e ideológico, mas o que mais chama a atenção é o acúmulo em torno do esforço de encobrimento da verdade. Não se trata de combater ideias divergentes, mas de desqualificar sua presença na arena pública. A relação com os movimentos sociais no Brasil, neste sentido, há muito deixou de ser política para ser policial.
O caso da terra é o mais exemplar. A posse da terra no Brasil parece ir além da defesa da propriedade privada para ser um dos esteios da constituição do nosso modelo de país, quase de caráter (ou falta dele), marcado em sua origem pela concentração das propriedades nas mãos de poucos. Talvez por isso os vergonhosos índices de desigualdade social pareçam tão naturais à elite, ela é a continuidade de um processo de dominação política que foi traduzida em diferenças naturais de origem. A sentença de Jean-Paul Sartre sobre o burguês (que dizia que era possível tirar tudo dele, menos a condição de burguês) pode ser reescrita no Brasil pelo apego atávico às grandes glebas rurais.
Não é também por um acaso que as reformas liberais, que perpassam a história de todos os países do mundo ocidental a partir do século 18, nunca vingaram por aqui, exatamente pela incapacidade de aceitação da reforma agrária. O grande proprietário brasileiro nunca foi capaz de se imaginar perdendo terras. Perdeu escravos, perdeu poder, perdeu prestígio, mas defende a terra à bala, como mostra a triste contabilidade que vem sendo registrada no país.
Esse “instinto de propriedade” não pode ser traduzido como defesa do modelo capitalista liberal, já que, até por questões de racionalidade econômica, historicamente jogou contra ele em vários momentos de nossa trajetória. Mesmo o golpe militar de 1964, que está completando 50 anos, tem um de seus pilares na condenação das reformas de base pretendidas por João Goulart, especialmente a reforma agrária. Ditadura e concentração de propriedade são irmãs siamesas cinquentonas.
Se o passado parece acorrentar as perspectivas de mudanças, a trajetória do MST, no entanto, vem demonstrando capacidade de articulação e reação que reafirmam os propósitos do movimento de luta pela terra, pela reforma agrária e pela justiça social. Além disso, num momento de crise das estruturas clássicas de representação e descrédito da política tradicional, o movimento traz elementos próprios de organização interna e participação social que irrigam o campo da política.
O mais respeitado e consequente movimento social brasileiro, com reconhecimento inclusive internacional entre entidades supranacionais e intelectuais de todo o mundo, precisa ser mais bem conhecido e sair do círculo de desinformação que se formou em torno dele. O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra é patrimônio do povo brasileiro. E como tal merece ser considerado, mesmo entre os que dele discordam em termos de ideias, visões de mundo e estratégias. O primeiro terreno do embate político deve ser sempre a verdade.
1) Um novo ator
A primeira característica distintiva do movimento é sua base, o trabalhador rural sem terra. A expressão designa sua origem no processo de produção (trabalhador rural) e sua posição de exclusão no sistema de propriedade. Sob esse perfil estão diversas experiências de vida, quase sempre marcadas pelo mesmo sentido de não pertencimento em termos de direito e acesso à propriedade. Durante os anos 1990, o movimento recuperou a categoria de camponês, com sua semântica mais internacionalista e de reafirmação de valores ligados à preservação ambiental e cultural de defesa de novos modelos de produção.
2) Outra organização
Num cultura política como a brasileira, marcada pela centralização e tendência ao presidencialismo em todas as esferas (há sempre a valorização do chefe, do dono, do cabeça), o MST inaugura um novo modelo. Não há instrumentos de filiação (o militante se faz no trabalho diário) ou hierarquia a ser galgada. O movimento se identifica por suas bandeiras, adaptadas às lutas locais. A organização parte sempre da base, em processo continuado de alianças e ampliações, com comando local e sem subordinação automática a lideranças predeterminadas. O sutil equilíbrio entre bandeiras gerais e protagonismo local é mantido com a valorização das instâncias de participação. Quem procurar o “dono” do MST vai encontrar uma teia múltipla de militantes.
3) O que quer o MST
A primeira identidade do movimento é com a redistribuição da terra. No entanto, com o tempo e a incorporação do capitalismo industrial ao campo, a simples posse da propriedade rural não é capaz de mudar o panorama de desigualdade social do país. O movimento, neste sentido, ampliou seus objetivos em torno da chamada reforma agrária popular, que incorpora, além do campo, todos os problemas estruturais da sociedade brasileira. Dentro do projeto está a mudança da concepção de produção de commodities em direção à produção de alimentos; transformação da matriz energética; condenação do uso extensivo de venenos na agricultura; defesa e preservação da biodiversidade. Não se trata de devolver “pobres” ao campo (essa desfaçatez dos que apóiam uma reforma agrária higienista), mas de distribuir riqueza sustentável.
4) Mais que terra
Uma das características mais importantes do movimento tem sido seu investimento em educação. Como se trata de luta continuada, o esforço para educar crianças e jovens não pode ser pensado em etapas estanques. É preciso educar a todo momento, inclusive nos acampamentos. A história do MST registra números impressionantes: foram alfabetizados pelo movimento cerca de 50 mil trabalhadores e formados 8 mil educadores. Cerca de 200 mil crianças estudam em escolas ligadas ao movimento, em assentamentos e acampamentos. A prática educativa tem ainda experiências de incentivo ao estudo e formação política (algo que sempre fracassa nos partidos políticos) e até de construção de uma escola para formação de militantes, com programas de pós-graduação. O movimento tem ainda convênios com universidades e editoras, ampliando seus programas educativos.
5) Força da mística
Quem já participou de uma reunião ou evento do MST certamente ficou conhecendo o que os militantes chamam de mística. Trata-se de uma manifestação que sempre abre as reuniões, de modo a convocar a emoção e o sentido de fé, independentemente da religião. Pode ser uma dinâmica, uma canção, uma peça de teatro, uma oração. O que caracteriza a mística (que certamente traz a origem dos ritos católicos dos seguidores da teologia da libertação, presentes nas primeiras horas do movimento) é o alargamento da participação além da pura racionalidade, com o fortalecimento da identidade básica com as bandeiras do MST. Durante a mística, a realidade é transfigurada em símbolos. Além disso, as místicas contribuem na narração de uma história que não tenha como ponto de partida apenas a versão dos vencedores.
6) Soberania alimentar
Se o conceito de segurança alimentar foi incorporado por parte da sociedade brasileira, que não aceita conviver com a fome de seus semelhantes, o MST tem avançado para o modelo de soberania alimentar. Não se trata apenas da produção, mas do tipo de alimentos produzidos no país. O modelo hegemônico, do agronegócio, prioriza poucos produtos, voltados para necessidades externas, que se tornam quase fetiches: não são plantas e grãos, mas commodities, uma espécie de tradução financeira dos produtos. A produção de commodities canibalizou as áreas que deveriam estar voltadas para o plantio de alimentos condizentes com nossas necessidades e cultura, no sentido amplo da palavra. De 1990 para cá, as áreas destinadas ao plantio de arroz e feijão, por exemplo, encolheram em mais de 30% em favor da soja e outros produtos que alimentam porcos e carneiros na Europa, EUA e China.
7) Sem veneno
Uma das bandeiras mais presentes nas ações do MST tem sido o combate à produção com uso intensivo de agrotóxicos. O volume de veneno na mesa (e no corpo) dos brasileiros tem crescido em escala assustadora. O Brasil é o campeão no uso de agrotóxicos em todo o mundo, consumindo em torno de 20% de todo o veneno produzido no planeta. Para quem gosta de saber o que está comendo e bebendo, pode anotar: cada brasileiro consome 5,12 litros por ano. Além da saúde, o país paga caro em grana pelo envenenamento voluntário: US$ 8,5 bilhões. O uso de defensivos não é uma opção apenas técnica, ele se articula economicamente com as indústrias químicas internacionais, muitas delas detentoras de grandes propriedades rurais e institutos de pesquisa de transgênicos. Sem falar da contaminação do solo, dos lençóis freáticos e dos danos à biodiversidade.
8) Relação tensa
Outra característica do movimento tem sido sua independência em relação ao Estado, o que não significa a ausência de reconhecimento do papel do setor público. O MST estabeleceu uma relação sempre tensionada, quase no limite, de modo a ampliar a gama de direitos que vêm sendo historicamente negados a grande parte dos brasileiros. Nesse processo, a estratégia mais conhecida tem sido as ocupações de terras aptas à reforma agrária. O movimento tem mostrado que a semântica também é política: invasão é apropriação indébita de terra para proveito próprio, como se fez historicamente no Brasil com terras indígenas e de pequenos produtores familiares; ocupação é mobilização legítima em torno de terras que não cumprem a determinação constitucional de valor social, de modo a pressionar para sua desapropriação para fins de reforma agrária. A pressão pela terra se estende também à mobilização por conquista de políticas públicas populares.
9) Disputa ideológica
O movimento dos sem-terra não se dá no vazio. Há um embate de ideias que foi estabelecendo lados, posições, visões de mundo. O MST tem tido seus propósitos completamente deturpados, o que obrigou a profissionalizar sua própria comunicação, gerando um debate ancorado por publicações e participações em eventos em todo o país e em fóruns internacionais. Os adversários da reforma agrária, além da hegemonia dos meios de comunicação, se articulam em organizações suprapartidárias e frentes parlamentares. Só a chamada bancada ruralista conta com mais de 160 deputados e 11 senadores, que patrocinam demandas que vão muito além do combate à reforma agrária, com bandeiras como o bombardeamento do Código Florestal, o questionamento permanente da demarcação de áreas indígenas e a liberação de transgênicos, entre outros.
10) Solidariedade internacional
Se a globalização está na raiz de vários problemas vividos hoje em todo o mundo, com os países ricos cada vez mais próximos de posturas protecionistas e chauvinistas, talvez a saída também passe por valores transnacionais. Em termos de articulação política à esquerda, o MST tem demonstrado a mais fértil das iniciativas. São ações com movimentos como a Via Campesina, entre outras organizações, que demonstram a possibilidade de mudanças de teor planetário em torno da defesa do meio ambiente, da preservação das culturas locais, de novos modelos de produção e distribuição. O internacionalismo e as novas alianças, ao contrário do que querem fazer parecer os adversários da reforma agrária, têm se mostrado caminho importante para ações que demandam mobilização mundial.
O MST completa 30 anos com conquistas e desafios. Próprios de sua natureza, os desafios estão sempre em primeiro lugar. Ainda há muito a ser feito.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, o MST, está completando 30 anos. Ontem, foi encerrado em Brasília o 6º Congresso Nacional da entidade, com o tema “Lutar, construir reforma agrária popular”, com mais de 15 mil pessoas de 23 estados brasileiros, entre elas mil crianças, unidas em torno das ações dedicadas aos “sem-terrinha”. Você, provavelmente, não sabia que o movimento estava completando 30 anos, nem que reuniu tanta gente esta semana em Brasília. E não é por acaso.
A estratégia de silenciamento, quando não de demonização, dos movimentos populares no Brasil tem no MST o mais destacado alvo. As razões são muitas, todas elas ligadas a interesses no campo político, econômico e ideológico, mas o que mais chama a atenção é o acúmulo em torno do esforço de encobrimento da verdade. Não se trata de combater ideias divergentes, mas de desqualificar sua presença na arena pública. A relação com os movimentos sociais no Brasil, neste sentido, há muito deixou de ser política para ser policial.
O caso da terra é o mais exemplar. A posse da terra no Brasil parece ir além da defesa da propriedade privada para ser um dos esteios da constituição do nosso modelo de país, quase de caráter (ou falta dele), marcado em sua origem pela concentração das propriedades nas mãos de poucos. Talvez por isso os vergonhosos índices de desigualdade social pareçam tão naturais à elite, ela é a continuidade de um processo de dominação política que foi traduzida em diferenças naturais de origem. A sentença de Jean-Paul Sartre sobre o burguês (que dizia que era possível tirar tudo dele, menos a condição de burguês) pode ser reescrita no Brasil pelo apego atávico às grandes glebas rurais.
Não é também por um acaso que as reformas liberais, que perpassam a história de todos os países do mundo ocidental a partir do século 18, nunca vingaram por aqui, exatamente pela incapacidade de aceitação da reforma agrária. O grande proprietário brasileiro nunca foi capaz de se imaginar perdendo terras. Perdeu escravos, perdeu poder, perdeu prestígio, mas defende a terra à bala, como mostra a triste contabilidade que vem sendo registrada no país.
Esse “instinto de propriedade” não pode ser traduzido como defesa do modelo capitalista liberal, já que, até por questões de racionalidade econômica, historicamente jogou contra ele em vários momentos de nossa trajetória. Mesmo o golpe militar de 1964, que está completando 50 anos, tem um de seus pilares na condenação das reformas de base pretendidas por João Goulart, especialmente a reforma agrária. Ditadura e concentração de propriedade são irmãs siamesas cinquentonas.
Se o passado parece acorrentar as perspectivas de mudanças, a trajetória do MST, no entanto, vem demonstrando capacidade de articulação e reação que reafirmam os propósitos do movimento de luta pela terra, pela reforma agrária e pela justiça social. Além disso, num momento de crise das estruturas clássicas de representação e descrédito da política tradicional, o movimento traz elementos próprios de organização interna e participação social que irrigam o campo da política.
O mais respeitado e consequente movimento social brasileiro, com reconhecimento inclusive internacional entre entidades supranacionais e intelectuais de todo o mundo, precisa ser mais bem conhecido e sair do círculo de desinformação que se formou em torno dele. O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra é patrimônio do povo brasileiro. E como tal merece ser considerado, mesmo entre os que dele discordam em termos de ideias, visões de mundo e estratégias. O primeiro terreno do embate político deve ser sempre a verdade.
1) Um novo ator
A primeira característica distintiva do movimento é sua base, o trabalhador rural sem terra. A expressão designa sua origem no processo de produção (trabalhador rural) e sua posição de exclusão no sistema de propriedade. Sob esse perfil estão diversas experiências de vida, quase sempre marcadas pelo mesmo sentido de não pertencimento em termos de direito e acesso à propriedade. Durante os anos 1990, o movimento recuperou a categoria de camponês, com sua semântica mais internacionalista e de reafirmação de valores ligados à preservação ambiental e cultural de defesa de novos modelos de produção.
2) Outra organização
Num cultura política como a brasileira, marcada pela centralização e tendência ao presidencialismo em todas as esferas (há sempre a valorização do chefe, do dono, do cabeça), o MST inaugura um novo modelo. Não há instrumentos de filiação (o militante se faz no trabalho diário) ou hierarquia a ser galgada. O movimento se identifica por suas bandeiras, adaptadas às lutas locais. A organização parte sempre da base, em processo continuado de alianças e ampliações, com comando local e sem subordinação automática a lideranças predeterminadas. O sutil equilíbrio entre bandeiras gerais e protagonismo local é mantido com a valorização das instâncias de participação. Quem procurar o “dono” do MST vai encontrar uma teia múltipla de militantes.
3) O que quer o MST
A primeira identidade do movimento é com a redistribuição da terra. No entanto, com o tempo e a incorporação do capitalismo industrial ao campo, a simples posse da propriedade rural não é capaz de mudar o panorama de desigualdade social do país. O movimento, neste sentido, ampliou seus objetivos em torno da chamada reforma agrária popular, que incorpora, além do campo, todos os problemas estruturais da sociedade brasileira. Dentro do projeto está a mudança da concepção de produção de commodities em direção à produção de alimentos; transformação da matriz energética; condenação do uso extensivo de venenos na agricultura; defesa e preservação da biodiversidade. Não se trata de devolver “pobres” ao campo (essa desfaçatez dos que apóiam uma reforma agrária higienista), mas de distribuir riqueza sustentável.
4) Mais que terra
Uma das características mais importantes do movimento tem sido seu investimento em educação. Como se trata de luta continuada, o esforço para educar crianças e jovens não pode ser pensado em etapas estanques. É preciso educar a todo momento, inclusive nos acampamentos. A história do MST registra números impressionantes: foram alfabetizados pelo movimento cerca de 50 mil trabalhadores e formados 8 mil educadores. Cerca de 200 mil crianças estudam em escolas ligadas ao movimento, em assentamentos e acampamentos. A prática educativa tem ainda experiências de incentivo ao estudo e formação política (algo que sempre fracassa nos partidos políticos) e até de construção de uma escola para formação de militantes, com programas de pós-graduação. O movimento tem ainda convênios com universidades e editoras, ampliando seus programas educativos.
5) Força da mística
Quem já participou de uma reunião ou evento do MST certamente ficou conhecendo o que os militantes chamam de mística. Trata-se de uma manifestação que sempre abre as reuniões, de modo a convocar a emoção e o sentido de fé, independentemente da religião. Pode ser uma dinâmica, uma canção, uma peça de teatro, uma oração. O que caracteriza a mística (que certamente traz a origem dos ritos católicos dos seguidores da teologia da libertação, presentes nas primeiras horas do movimento) é o alargamento da participação além da pura racionalidade, com o fortalecimento da identidade básica com as bandeiras do MST. Durante a mística, a realidade é transfigurada em símbolos. Além disso, as místicas contribuem na narração de uma história que não tenha como ponto de partida apenas a versão dos vencedores.
6) Soberania alimentar
Se o conceito de segurança alimentar foi incorporado por parte da sociedade brasileira, que não aceita conviver com a fome de seus semelhantes, o MST tem avançado para o modelo de soberania alimentar. Não se trata apenas da produção, mas do tipo de alimentos produzidos no país. O modelo hegemônico, do agronegócio, prioriza poucos produtos, voltados para necessidades externas, que se tornam quase fetiches: não são plantas e grãos, mas commodities, uma espécie de tradução financeira dos produtos. A produção de commodities canibalizou as áreas que deveriam estar voltadas para o plantio de alimentos condizentes com nossas necessidades e cultura, no sentido amplo da palavra. De 1990 para cá, as áreas destinadas ao plantio de arroz e feijão, por exemplo, encolheram em mais de 30% em favor da soja e outros produtos que alimentam porcos e carneiros na Europa, EUA e China.
7) Sem veneno
Uma das bandeiras mais presentes nas ações do MST tem sido o combate à produção com uso intensivo de agrotóxicos. O volume de veneno na mesa (e no corpo) dos brasileiros tem crescido em escala assustadora. O Brasil é o campeão no uso de agrotóxicos em todo o mundo, consumindo em torno de 20% de todo o veneno produzido no planeta. Para quem gosta de saber o que está comendo e bebendo, pode anotar: cada brasileiro consome 5,12 litros por ano. Além da saúde, o país paga caro em grana pelo envenenamento voluntário: US$ 8,5 bilhões. O uso de defensivos não é uma opção apenas técnica, ele se articula economicamente com as indústrias químicas internacionais, muitas delas detentoras de grandes propriedades rurais e institutos de pesquisa de transgênicos. Sem falar da contaminação do solo, dos lençóis freáticos e dos danos à biodiversidade.
8) Relação tensa
Outra característica do movimento tem sido sua independência em relação ao Estado, o que não significa a ausência de reconhecimento do papel do setor público. O MST estabeleceu uma relação sempre tensionada, quase no limite, de modo a ampliar a gama de direitos que vêm sendo historicamente negados a grande parte dos brasileiros. Nesse processo, a estratégia mais conhecida tem sido as ocupações de terras aptas à reforma agrária. O movimento tem mostrado que a semântica também é política: invasão é apropriação indébita de terra para proveito próprio, como se fez historicamente no Brasil com terras indígenas e de pequenos produtores familiares; ocupação é mobilização legítima em torno de terras que não cumprem a determinação constitucional de valor social, de modo a pressionar para sua desapropriação para fins de reforma agrária. A pressão pela terra se estende também à mobilização por conquista de políticas públicas populares.
9) Disputa ideológica
O movimento dos sem-terra não se dá no vazio. Há um embate de ideias que foi estabelecendo lados, posições, visões de mundo. O MST tem tido seus propósitos completamente deturpados, o que obrigou a profissionalizar sua própria comunicação, gerando um debate ancorado por publicações e participações em eventos em todo o país e em fóruns internacionais. Os adversários da reforma agrária, além da hegemonia dos meios de comunicação, se articulam em organizações suprapartidárias e frentes parlamentares. Só a chamada bancada ruralista conta com mais de 160 deputados e 11 senadores, que patrocinam demandas que vão muito além do combate à reforma agrária, com bandeiras como o bombardeamento do Código Florestal, o questionamento permanente da demarcação de áreas indígenas e a liberação de transgênicos, entre outros.
10) Solidariedade internacional
Se a globalização está na raiz de vários problemas vividos hoje em todo o mundo, com os países ricos cada vez mais próximos de posturas protecionistas e chauvinistas, talvez a saída também passe por valores transnacionais. Em termos de articulação política à esquerda, o MST tem demonstrado a mais fértil das iniciativas. São ações com movimentos como a Via Campesina, entre outras organizações, que demonstram a possibilidade de mudanças de teor planetário em torno da defesa do meio ambiente, da preservação das culturas locais, de novos modelos de produção e distribuição. O internacionalismo e as novas alianças, ao contrário do que querem fazer parecer os adversários da reforma agrária, têm se mostrado caminho importante para ações que demandam mobilização mundial.
O MST completa 30 anos com conquistas e desafios. Próprios de sua natureza, os desafios estão sempre em primeiro lugar. Ainda há muito a ser feito.