sexta-feira, 7 de junho de 2013

"Como se constrói porcaria no Brasil", diz o arquiteto Rafael Viñoly

folha de são paulo
RAUL JUSTE LORES
DE NOVA YORK

"Nunca construí no Brasil. Os brasileiros vêm aqui, pedem mil projetos e depois desaparecem", conta o arquiteto uruguaio Rafael Viñoly, 68, que solta, com uma gargalhada: "Não dá para confiar em vocês".
Ele ri e completa. "Não que vocês precisem de mim. Sempre tiveram grandes arquitetos. Mas a arquitetura corporativa no Brasil é muito ruim. Como se constrói porcaria no Brasil!".
Não que Viñoly esteja precisando de muitas encomendas: ele tem projetos espalhados em diversos continentes.
Editoria de Arte/Folhapress
Seu mais recente é o mais alto edifício residencial do Ocidente, com 94 andares, o 432 Park Avenue, com vista para o Central Park.
Com dez coberturas de até US$ 95 milhões (cerca de R$ 202 milhões), tem apenas 104 apartamentos, além de lojas, restaurantes e academia. Deve ficar pronto em 2015.
Viñoly, que foi um dos finalistas no concurso para o novo World Trade Center, mora em Nova York desde 1978, quando migrou para os EUA.
REINVENÇÃO
Trabalhava antes em Buenos Aires, onde cresceu e estudou arquitetura, depois que seus pais trocaram o Uruguai pela Argentina, quando ele tinha apenas quatro anos.
Hoje, seu escritório tem 80 arquitetos e está instalado num antigo estábulo do início do século 20, perto do Meat Packing District.
Em Nova York, ele diz que ou se constroem prédios de luxo, ou de habitação popular ("são os projetos que me desafiam mais; estamos fazendo vários", conta).
Tem projetos na China, no Oriente Médio e em várias cidades americanas. O mais premiado é um centro de convenções no Japão, o Tokyo International Forum.
Depois de falar da beleza de seu último arranha-céu, "mas no qual certamente alguma senhora rica de Hong Kong vai fazer uma decoração interior gótica", Viñoly diz que a forma da cidade é mais importante do que a forma de qualquer prédio.

432 Park Avenue

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Divulgação/CIM Group & Macklowe Properties
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Ilustração mostra como deverá ficar o 432 Park Avenue, o sofisticado e mais alto edifício residencial das Américas, em Nova York
CONTROLAR O DESEJO?
"O grid nova-iorquino, com quadras pequenas, fáceis de serem atravessadas, calçadas largas, transporte público e muita densidade, é o grande motivo de haver tanta gente na rua aqui", diz.
"Arquitetos já quiseram controlar a maneira como as pessoas vivem e se locomovem, mas não se podem controlar as relações humanas", afirma ele.
"É como achar que casamento só pode acontecer entre homem e mulher. Quem controla o desejo humano?"
Ele também elogia a constante reinvenção nova-iorquina. "Gosto de preservar coisas boas, mas as pessoas também construíram muita merda no passado. Nem tudo o que é velho deve ser preservado", polemiza.
Ele não desperdiça a oportunidade de criticar colegas da profissão (um dos passatempos favoritos dos arquitetos, afinal).
"Quis fazer um arranha-céu com a cara de Nova York, que só pudesse ser feito aqui. Não tem graça fazer prédios sem relação com o entorno, que podem ser colocados em qualquer lugar."
Ele rabisca então em uma folha de papel os traços da Swiss Re, a torre de Norman Foster em Londres que foi apelidada de "pepino".
"Depois aquele menino francês fez algo quase igual em Barcelona, nem sei quem copiou quem", alfineta, ironizando Jean Nouvel.
PROJETO EM BRASÍLIA
Viñoly tem poucas obras recentes na América do Sul --o museu Fortabat, em Buenos Aires; o aeroporto de Carrasco, em Montevidéu, e o badalado edifício Acqua, em Punta del Este. Nos anos 1960, viveu alguns meses em Copacabana, por causa de um projeto que nunca foi construído.
Ao final da entrevista, Viñoly conta que a Corporación América, o conglomerado argentino que arrematou a concessão do aeroporto de Brasília, convidou-o para desenhar um novo terminal. Talvez seja a primeira obra do uruguaio no Brasil.
*
RAIO-X
RAFAEL VIÑOLY
VIDA
Nasceu em 1944, em Montevidéu (Uruguai). Quando tinha quatro anos, seus pais mudaram-se para a Argentina. Cresceu e estudou arquitetura em Buenos Aires. Vive nos EUA desde 1978.
CARREIRA
Seu escritório em Nova York tem 80 arquitetos. Conta com projetos espalhados por EUA, Japão, Oriente Médio e América Latina.

"Tipos de Perturbação" Lydia Davis - Noemi Jaffe


Tipos de perturbação em novos 



contos


Por Noemi Jaffe | De São Paulo

DivulgaçãoLydia reúne a dúvida inaugural e a cética
O olhar infantil sobre o mundo enxerga as coisas como se pela primeira vez: uma visada curiosa, inaugural, de quem não vê funções, utilidade, relações, mas somente formas e novidade. Seria como ter o privilégio de ver algo como uma maçã, já na idade adulta, sem nunca tê-la visto antes. Por outro lado, o olhar irônico enxerga segundas intenções, desconfia e inverte os sentidos para criar subtextos e mensagens subliminares. A dúvida infantil mantém certa inocência diante do mundo e geralmente a expressa por meio de uma linguagem repetitiva e metafórica. Já o olhar irônico se vale de uma linguagem seca, disfarçadamente protocolar. Supostamente, esses dois recortes expressivos deveriam se opor e é difícil imaginar uma forma de conciliá-los. A poeta polonesa Wislawa Szymborska, ganhadora do Nobel de 1996, é um dos raros exemplos dessa fusão sempre tensa entre confiança e desconfiança. Mas Lydia Davis faz o mesmo mostrando ao leitor que, embora pareça impossível, o novo ainda existe em literatura. Seus contos em "Tipos de Perturbação" são, exatamente, tipos de perturbação como há muito não se lia. Afinal, como reunir, na linguagem e no pensamento, a dúvida inaugural e a dúvida cética?
Sobre uma amiga com quem a narradora não consegue mais manter relações, diz o conto "Esclarecida": "Na época, não me incomodava que ela não fosse esclarecida, talvez porque eu mesma não fosse esclarecida. Acho que hoje sou mais esclarecida, e certamente mais do que ela, apesar de não ser muito esclarecido de minha parte dizer isso". Repetições entre infantis e melancólicas, surpresas e irônicas, sobre a amizade e o tempo, sem nunca mencioná-los diretamente, mas sempre a partir de um viés oblíquo, que deixa o leitor em suspenso sobre seu significado. O mundo do "bom gosto", os "reality shows", o consumo, o casamento padrão são todos ridicularizados por uma narrativa pretensamente científica, distante, mas que consegue atingir o alvo com precisão.
No conto "Com Sessenta Centavos", por exemplo, o narrador acaba chegando à conclusão de que, já que ele, ao tomar um café, também está alugando a xícara, o pires, o creme, a mesinha, os bancos, o ar condicionado, a luz, a vista e a companhia das outras pessoas, até que 60 centavos é barato. Em 15 linhas, um resumo inesquecível sobre o "Fetichismo da Mercadoria". Por outro lado, em "Coisas que Descobrimos a Respeito do Bebê", lemos o espanto e a emoção diante da criança: "Como ele é curioso, no limite de sua compreensão; como é confiante, no limite de seu conhecimento; como é habilidoso, no limite de sua competência; como impõe suas necessidades, no limite de sua força". Em "Distraída", a personagem pensa em coisas simples, sobre como é gostoso abrir a porta para um gato entrar, o que nos faz pensar sobre como é boa a condição sublime da própria distração.
Além de tudo, Lydia Davis ainda se apropria brilhantemente de recursos kafkianos, como o distanciamento burocrático, a visão científica e perversa do real, para iluminá-lo e criticá-lo. Seu conto "Kafka Prepara o Jantar" é uma das melhores definições da literatura do autor.
Para fazer a crítica de Lydia Davis, só é possível usar a ridícula expressão "é uma das melhores". Mas não há como escapar. Largue tudo e vá ler "Tipos de Perturbação".

"Tipos de Perturbação"

Lydia Davis. Trad.: Branca Vianna. Companhia das Letras, 256 págs, R$ 41,00 / AA+
AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco


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Ex-assessor do governo Obama defende respeito à privacidade

NELSON DE SÁ
DE SÃO PAULO
Alec Ross, 41, deixou o cargo de assessor para inovação do Departamento de Estado americano, onde ficou quatro anos, no dia 11 de março. Antes, havia sido peça-chave na campanha que elegeu Barack Obama em 2008.
Passados três meses, não esconde a crítica aos ataques que o governo Obama faz à privacidade. "Precisamos ser autocríticos", diz, questionado sobre o mais recente. "É importante que nós não deixemos a tecnologia tomar a frente dos nossos valores."
*
Folha - Seu amigo Jared Cohen, que foi também seu colega no governo Obama e hoje está no Google, acaba de publicar "The New Digital Age", com Eric Schmidt, presidente-executivo do Google. O livro foi criticado no "New York Times" do último domingo por...
Alec Ross - Por Julian Assange. Eu não considero isso crítica. Crítica vindo de Julian Assange é grande elogio. Julian Assange é um idiota.
Folha - Mas há um questionamento também por críticos como Evgeny Morozov.
Ross - Até aqui, não me comove. (risos) Com esses críticos, não me comove. Há 7,2 bilhões de pessoas no planeta Terra. Se os dois críticos mais proeminentes do livro são Assange e Morozov, então o livro está se saindo muito bem.
Folha - A crítica central de ambos e de outros é quanto à privacidade.
Ross - Eles discordam da visão sobre privacidade, eles têm uma outra visão. Eric Schmidt já afirmou que nós precisaríamos de uma borracha para a internet para sermos capazes de proteger a privacidade das pessoas. Parte do que Schmidt e Cohen fazem no livro é explicar às pessoas que haverá uma perda significativa de privacidade no futuro.
Folha - Não que eles a defendam, é isso?.
Ross - Sim. Eles são, na verdade, muito realistas sobre isso.
Folha - De qualquer maneira, tem havido muitas críticas ao desrespeito à privacidade, em ações do governo dos EUA. Houve até uma hoje, sobre a Verizon...
Ross - Sim, eu sei.
Folha - Você identifica um problema aí?
Ross - Sim. Eu penso duas coisas. Primeiro, há 196 países no mundo. Os EUA estão entre os cinco mais livres. Nós desfrutamos um nível maior de liberdade do que 190 países no resto do mundo. Mas eu penso também que nós precisamos ser muito autocríticos. A coisa com que precisamos nos preocupar é que, conforme a tecnologia se torna mais sofisticada, isso na verdade torna mais fácil examinar os dados de todas as pessoas. São ferramentas muito fortes para o empoderamento do indivíduo, mas elas também podem ser usadas para oprimir as pessoas.
O que eu acho importante é que nós não deixemos a tecnologia tomar a frente dos nossos valores. Nós temos que reconciliar nossos valores com a tecnologia. E neste exato momento tem havido uma reconciliação muito difícil entre valores e tecnologia. A tecnologia não quer outra coisa a não ser se tornar mais sofisticada, mas ela pode crescer de uma maneira que trabalhe contra valores de longa data. Isso está provando ser um problema para governos ao redor do mundo hoje.
Folha - Um problema que vai crescer.
Ross - Que só vai crescer. No meu caso, tenho três filhos, de seis, oito e dez anos. Eles vão crescer num mundo com muito menos privacidade do que eu tive. Quer dizer, eu fico muito contente de não existir Facebook quando estive na universidade, eu me diverti muito na faculdade. (risos) Mas os garotos hoje vão crescer com suas vidas sendo gravadas de maneira muito mais transparente, e eu acredito que isso é muito preocupante. Preocupante para mim como líder de políticas públicas e como pai.
Folha - A "Economist", num especial sobre a internet na China, destacou que a previsão de que ela traria democracia não se confirmou. A mídia social chinesa é usada para o controle da insatisfação popular. Censores identificam a insatisfação, que é apagada com a destinação de recursos. A internet reforça o Estado autoritário?
Ross - Eu acredito que a internet reduziu significativamente o autoritarismo na China. Existe hoje meio bilhão de usuários de internet na China, mais de metade com menos de 25 anos. Eles estão se expressando em questões culturais, sociais e políticas de uma maneira que seus pais nunca puderam. Basta olhar o que aconteceu com Bo Xilai, olhar o combate à corrupção local. O governo central tem sido sofisticado na maneira como usa a internet, mas você pode reduzir isso a uma pergunta muito simples: A internet tornou a China mais ou menos livre? Muito mais livre. Mais livre econômica, social, cultural e politicamente.
É um erro que muitos comentaristas ocidentais fazem. Eles não entendem a China e, portanto, pensam que o que virá dessa conectividade é uma forma ocidental de democracia. Mas quem quer que estude os milhares de anos de história chinesa sabe que o futuro da China é determinado pelos próprios chineses e não de fora. Acredito que a internet vai criar mais abertura na China, mas seria um erro imaginar que a abertura será o modelo ocidental de democracia. Ou seja, penso que muitos dos comentários sobre a China vêm de gente que não estudou sua cultura e sua história.
Folha - Você conhece o jornalista Moisés Naím?
Ross - Sim, é um amigo.
Folha - Ele escreveu um livro...
Ross - "The End of Power."
Folha - Isso. Ele diz que a mídia social não foi tão importante na Primavera Árabe e em outros movimentos recentes como a maioria das pessoas costuma pensar. Você concorda com ele?
Ross - Tenho escrito bastante sobre isso. Foram cinco os principais condutores da revolução: falta de oportunidades econômicas, falta de participação democrática, raiva contra a corrupção, raiva contra as famílias no poder e o alto preço dos alimentos. Esses foram os condutores das revoluções árabes, não a mídia social.
Mas a mídia social fez três coisas. Primeiro, acelerou os movimentos. Segundo, enriqueceu o ambiente de informação, tornando mais difícil para os regimes sufocar o que acontecia e mais fácil para as pessoas trocar informação. Terceiro, facilitou redes sem líderes. Não existiu um líder cujo rosto você pudesse colocar numa camiseta. Não houve figuras carismáticas revolucionárias individuais, inspirando e organizando as massas lá de cima. Em lugar disso, a estrutura das revoluções lembrou a própria internet, mais rede do que pirâmide. Portanto, a internet não foi uma das razões pelas quais as pessoas fizeram a revolução, mas suas ferramentas foram instrumentos da revolução.
Folha - Você vê o mesmo quadro na Turquia, agora?
Ross - Na Turquia, [o primeiro-ministro] Erdogan está cometendo os mesmos erros que líderes no Oriente Médio cometeram. Ele precisa entender que, se tentar conter o fluxo livre de informação, se tentar controlar a informação, vai ser alvo da raiva de muitas pessoas do seu povo. Erdogan está cometendo um grande erro.
Folha - Ele é primeiro-ministro eleito, mas não tem abertura...
Ross - Se você olhar a conta de Twitter de Erdogan, ele tem mais de dois milhões de seguidores, mas ele segue zero. Parte dessa tensão é geracional. Líderes mais velhos não compreendem, eles não entendem que os mais jovens acreditam ter o direito de usar essas ferramentas como eles quiseram. Que acreditam ter o direito de poder postar o que quiserem, discutir o que quiserem. Se algum velho líder diz, "não, vocês não podem fazer isso", então tudo o que ele consegue é trazer a raiva de uma geração inteira de pessoas.
Folha - Você está escrevendo um livro sobre globalização para a editora Simon & Schuster.
Ross - O que eu penso, basicamente, é que muitos livros de qualidade foram escritos sobre globalização, de 1995 a 2010. Mas não existe um livro escrito para as pessoas comuns sobre a globalização de 2010 até 2025. Muito do que vou escrever é sobre o impacto do próximo estágio da globalização, em educação, energia, nas indústrias do futuro. Muitas pessoas pensam no impacto da globalização em termos de ICT [tecnologias de informação e comunicações, na sigla em inglês], mas no futuro haverá indústrias como a de ciências da vida ou a robótica.
Coisas que, eu acredito, serão as partes mais proeminentes da próxima onda de globalização.
Folha - Você não vai focar mais em internet ou comunicações?
Ross - Não será um livro sobre tecnologia, mas sobre liderança empresarial e paternidade. Vou escrever muito da perspectiva do pai de três filhos pequenos, do que significará, para os pais, serem bons administradores do futuro de suas crianças.
Folha - Você participou da primeira campanha de Obama para presidente. Você tem contato com a campanha de Hillary Clinton, se é que ela já existe?
Ross - Não tem uma campanha ainda.
Folha - Você pretende se afastar da política?
Ross - Eu não era um político. Só me envolvi em 2008 por causa de Obama. Mas, se Hillary concorrer em 2016, se fizer essa opção, então eu farei seja lá o que ela me pedir. Bater de porta em porta, qualquer coisa que ela quiser.
Folha - Há uma crítica insistente em relação à política externa americana e sua relação com as empresas de tecnologia. Pessoas saem do governo para as empresas e vice-versa. Como você responde a essa crítica?
Ross - Acredito que nós precisamos de mais disso, não menos. É uma coisa boa.
Folha - O Google é uma empresa planetária, mas que tem muitos elos com o governo americano. Isso não torna a empresa e o governo parceiros em política externa?
Ross - Não. Se muitas das pessoas mais inteligentes estão trabalhando em empresas de tecnologia, eu as quero no governo. Se podemos trazer algo do empreendedorismo do Vale do Silício para o governo, para fazer o governo funcionar melhor, é bom. E se as pessoas no governo, que entendem de geopolítica, são capazes de tornar essas empresas do Vale do Silício mais inteligentes, também é bom. Essas empresas muitas vezes têm mais poder do que governos. Se você trouxer uma pessoa que entenda de geopolítica, cultura e história para essa comunidade de engenheiros, é bom. Ou seja, acredito que é preciso mais troca, não menos.
Agora, quanto à questão de isso unir o Google à política externa americana, eu diria que, tendo estado no meio disso por quatro anos, há coisas em que concordamos e coisas em que discordamos. Mas isso é normal em qualquer relação aberta e honesta. Mesmo sendo amigos, se duas pessoas concordam em tudo, só uma delas está pensando. Se houve algum efeito, o fato de eu conhecer os CEOs das grandes empresas de tecnologia tornou mais fácil, para mim, dizer não para eles.
Muito disso tem a ver com o nível pessoal. Se eles algum dia me pediram algo que eu pensava ser contra o interesse público... Primeiro, eles me conhecem bem o bastante para saber que provavelmente não deveriam perguntar, porque eles sabem qual seria a resposta. Seria não. Acredito que um bom governante compreende as fronteiras entre o que é de interesse corporativo e o que é de interesse público. Algumas vezes eles são os mesmos, mas algumas vezes eles são diferentes. Se você trabalha com integridade no governo, não importa se não faz sempre o que as empresas querem. Se houver algum efeito, é que as empresas vão respeitá-lo mais.

Energia = precariedade ambiental? - Moisés Naím

folha de são paulo
Energia = precariedade ambiental?
Encarecer o consumo de fontes que emitem CO2 e investir em tecnologias limpas são objetivos óbvios
Em minha coluna anterior ("A Revolução Mais Importante"), descrevi as transformações profundas no mundo da energia. A explosão do consumo energético na Ásia, liderada pela China; a irrupção das Américas como possível fonte principal de petróleo e gás para o mundo; a nova hiperconcorrência entre países e empresas e a iminente autossuficiência energética dos EUA são algumas das mudanças que nos alertam para o surgimento de uma nova ordem energética mundial.
Talvez o mais inesperado tenha sido que as discussões entre especialistas passaram da ênfase sobre a escassez de energia para a abundância. Um estudo do Citigroup conclui que o consumo de energia chegará ao nível mais alto em 2020, passando a declinar a partir daí.
Tudo isso, que pode passar uma impressão muito boa para os consumidores de energia, é também devastador para o planeta. Como nós, consumidores, somos habitantes do planeta, também é devastador para nós e nossos descendentes.
Nesta nova ordem energética reinam o carvão, o gás e o petróleo, enquanto a energia solar, nuclear, eólica e as outras que provêm de fontes renováveis e não são tão prejudiciais ao ambiente ficam em desvantagem.
Isso significa que as emissões de gás carbônico que contribuem para o aquecimento global causado pela atividade humana não só não vão diminuir, como seria desejável, como, pelo contrário, vão aumentar.
(Se você não acredita que as mudanças climáticas sejam causadas pelas emissões de CO2 produzidas pelos humanos, leia os 11.944 artigos científicos publicados entre 1991 e 2011 por 29.083 autores; 98,4% concluem que o aquecimento global é produzido por nós.)
Parece inevitável que continuemos a emitir CO2 a uma velocidade que levará a temperatura média do planeta a subir ao menos 2ºC. Esse aumento mudará o mundo tal como o conhecemos. E não para melhor. A que se deve tanta complacência?
Existem várias razões. Ignorância. Desconfiança em relação aos "especialistas" e ceticismo quanto à validade das pesquisas.
Prazos aparentemente muito distantes para que os efeitos se façam sentir em toda sua magnitude e que, com isso, criam a ilusão de que o aquecimento global não é uma emergência.
Crise econômica e outras urgências que não deixam espaço, dinheiro ou capital político para problemas que não sejam imediatos.
Insuficiente solidariedade intergeracional (os adultos não temos mostrado muita disposição em fazer sacrifícios para legar aos jovens um mundo mais habitável). Sensação de impotência e resignação diante da informação de que as tendências são irrefreáveis.
O que fazer, então? Não existem soluções mágicas, mas sim uma série de esforços que podem, se não reverter, ao menos desacelerar a marcha rumo ao desastre.
Encarecer o consumo de energia que emite CO2 e investir maciçamente em novas tecnologias são dois objetivos óbvios. Mas o problema não é o que fazer, e sim ter a disposição de fazê-lo. É isso o que falta.
@moisesnaim

    Esther Williams levou o balé subaquático ao cinema - Ruy Castro

    folha de são paulo
    ANÁLISE
    Uma estrela que recheava maiôs como ninguém
    RUY CASTROCOLUNISTA DA FOLHAPara Esther Williams, a MGM construiu no estúdio uma maravilha de engenharia --uma piscina que comportava complicados cenários e ângulos de câmera debaixo d'água, equipada com obeliscos lança-chamas e trampolins, trapézios e argolas dos quais ela se atirava a 20 metros de altura no centro de um alvo humano.
    Por causa de Esther, Hollywood criou um subgênero: o musical de piscina, que rendeu quase 20 filmes entre 1944 e 1955, alguns dos quais --"Escola de Sereias", 1944; "A Filha de Netuno", 1946; "A Rainha do Mar", 1952; "Salve a Campeã", 1953; "Fácil de Amar", 1953; e "A Favorita de Júpiter", 1955-- renderam muito dinheiro e eram deliciosos de assistir. Os críticos ignoravam Esther, claro, sem se dar conta de que suas evoluções de balé subaquático ou os caleidoscópios humanos que ela presidia à flor da água equivaliam em dificuldade ao que Fred Astaire e Gene Kelly faziam sobre assoalhos encerados.
    É verdade que todos aqueles filmes, exceto talvez "A Rainha do Mar" --em que Esther, no papel da pioneira da natação Annette Kellerman, morre tragicamente no fim--, só valiam por ela e pelo criador das inacreditáveis coreografias, Busby Berkeley. Inacreditáveis mesmo, sabendo-se que não contavam com os efeitos especiais de hoje --Esther e os demais tinham fazer de verdade, dentro d'água, o que se via na tela.
    DECLÍNIO
    Em meados dos anos 1950, a Lei Antitruste obrigou os grandes estúdios a vender suas cadeias de cinemas e, para piorar, milhões de espectadores passaram a ficar em casa assistindo à TV. Com Hollywood sangrando de morte, Esther tornou-se uma extravagância impraticável até para a ex-rica MGM. Ela foi dispensada e, nos poucos filmes que fez fora dali, teve de trocar os maiôs inteiros (que recheava como ninguém) pelos tailleurs com que o público não a identificava. Com pouco mais de 30 anos, Esther Williams deixava de existir.
    Mas a Esther pessoa física ainda viveria o dobro disso e se revelaria uma brava mulher. Em sua autobiografia, "The Million Dollar Mermaid", de 1999, ela fala de como foi estuprada aos 13 anos; de seus muitos namoros dentro e fora do cinema (Johnny Weissmuller, o Tarzan, não podia vê-la sem sua tanga ficar alterada); e de como, em 1959, tomou LSD como parte de um tratamento psiquiátrico. Para concluir que, pela vida toda, só se sentia em casa quando estava dentro d'água --como se nunca devesse ter deixado o útero materno.

      Tiro ao alvo - Painel - Vera Magalhães

      folha de são paulo
      Tiro ao alvo
      Os recentes episódios de violência em São Paulo, com grande exposição na TV e nos jornais, mexeram nos ponteiros das pesquisas que medem a aprovação do governo de Geraldo Alckmin (PSDB). Desde maio, sondagens feitas pelo Palácio dos Bandeirantes mostram queda na avaliação da administração estadual na área da segurança pública --considerada um dos focos de debate para a campanha de 2014, e já sob mira de potenciais adversários, como Gilberto Kassab (PSD).
      -
      Viral A queda na avaliação era esperada, mas aliados de Alckmin ficaram surpresos com a rapidez do efeito que tiveram nas pesquisas os casos de latrocínio e arrastões. Os auxiliares atribuem o impacto à divulgação de vídeos de câmeras de segurança com imagens dos crimes.
      Vacina A segurança está na pauta dos comerciais de TV do PSDB paulista nos dias 21, 24, 26 e 28, principalmente na capital. Os spots vão mostrar ações de combate ao tráfico de drogas de Alckmin e criticar a entrada de armas pelas fronteiras, responsabilidade do governo federal.
      Blindagem Tucanos de SP dizem que Alckmin não interfere nas avaliações jurídicas e políticas sobre o acúmulo de cargos de Guilherme Afif, como sugeriu o ex-governador Cláudio Lembo.
      Linha de frente "O ex-governador, na tentativa de defender seu colega de partido, tenta explicar o inexplicável: um vice-governador eleito em aliança contra o PT, agora serve a um governo petista", diz o presidente do PSDB, Duarte Nogueira.
      Ação... Do vice-presidente da Câmara, André Vargas (PT-PR), sobre a possibilidade da Procuradoria-Geral da República contestar a criação dos novos Tribunais Regionais Federais: "Se eles quiserem aprovar a PEC 37, entrarão com a ação".
      ... e reação A proposta de emenda, que está na pauta de votações da Câmara para o dia 26, retira poder de investigação do Ministério Público.
      Dono da casa O presidente da Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN), vai receber na segunda-feira os líderes partidários da Casa no Planalto, quando vai ocupar interinamente na Presidência.
      Palanque 1 Um dos responsáveis pela costura de 2014 para Dilma Rousseff, Fernando Pimentel tem discutido eleições no próprio Ministério do Desenvolvimento, no horário do expediente. Anteontem, recebeu Rebecca Garcia (PP) às 17h para tratar da disputa no Amazonas.
      Palanque 2 Segundo relatos, o ministro disse à candidata ao governo que a presidente vê com bons olhos novas lideranças, sobretudo mulheres, e que não haveria veto a ter dois candidatos da base no Estado. Além de Rebecca, o líder do governo no Senado, Eduardo Braga (PMDB), postula a vaga.
      Outro lado A assessoria do ministério diz que Pimentel recebe deputados, senadores, prefeitos e governadores toda semana. Segundo a pasta, Pimentel e Rebecca, que é secretária de governo, trataram de temas ligados à Zona Franca e à Suframa.
      Azarão Além de Aécio Neves (PSDB), Marina Silva e Eduardo Campos (PSB), pesquisas que chegam ao governo registram intenções de voto para Marco Feliciano (PSC-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, à Presidência.
      Prévia Luís Roberto Barroso visitou ontem o STF pela primeira vez depois de indicado para a corte. Além de assistir a sessão e confraternizar com os colegas no cafezinho, visitou seu futuro gabinete para tomar pé da pilha de processos que o espera.
      com ANDRÉIA SADI e BRUNO BOGHOSSIAN
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      TIROTEIO
      "Ficou claro que, no dicionário do governo federal, a palavra acordo' significa mentira'. É desonesto firmar pacto e depois rasgá-lo."
      DO DEPUTADO PAULINHO DA FORÇA (PDT-SP), criticando os vetos da presidente Dilma a artigos acordados na Medida Provisória dos Portos.
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      CONTRAPONTO
      Quem avisa amigo é
      O presidente da Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN), se encontrou com Guido Mantega (Fazenda) na quarta-feira e pediu ampliação do crédito para a dívida agrícola.
      --É melhor ampliar, pois senão pode haver problema na segunda-feira -- arrematou.
      O peemedebista repetiu a advertência três vezes, até que Mantega perguntou o que aconteceria na segunda.
      --Eu vou ser presidente da República, e algum ministro pode ser demitido...
      --Nesse caso, melhor eu ir para Portugal com a presidente --respondeu rapidamente o titular da Fazenda.

        O patrimônio invisível - Nadia Somekh;Para esclarecer o óbvio - Ives Gandra[Tendências/debates]

        folha de são paulo
        NADIA SOMEKH
        TENDÊNCIAS/DEBATES
        O patrimônio invisível
        A demanda pela proteção do patrimônio histórico não vem sendo valorizada, e o resultado disso são ações fragmentadas e, às vezes, invisíveis
        Folha vem publicando reportagens sobre problemas de preservação do nosso patrimônio cultural, como a falta de recursos para a manutenção de casarões e a intermitência e mesmo paralisação do programa Adote uma Obra Artística.
        A falta de interesse das empresas reflete o distanciamento entre a população da cidade de São Paulo e o seu patrimônio histórico. Tal retrato, certamente, é fruto de uma política de preservação equivocada, reproduzida ao longo dos anos.
        Mas o patrimônio histórico retrata a relação da sociedade com a sua história. A demanda por sua proteção não vem sendo valorizada, e o resultado disso são ações fragmentadas e, às vezes, invisíveis.
        A proposta desta administração municipal é a formulação de uma gestão territorial da cultura e de uma política de preservação do patrimônio histórico compreensiva e vinculada ao plano diretor, ora em processo de revisão participativa.
        Para dar visibilidade à nossa história, é necessário superar a ideia de monumentos e imóveis públicos isolados. Precisamos proteger conjuntos urbanos que traduzam a nossa identidade de forma coletiva.
        Desde 2004, a população foi inserida no processo, podendo indicar imóveis a serem preservados. É um avanço, mas demanda reformulação de novos critérios.
        Atualmente, o Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) estuda a formulação dessa política de preservação efetiva e desfragmentada. Os altos custos de preservação do patrimônio deverão ser objeto de articulações de fontes de financiamento: desde a legislação de incentivos até a articulação com operações e projetos urbanos a serem incluídos no plano diretor.
        O tombamento deverá ser melhor entendido pela sociedade. Não se trata de congelamento e, sim, de atribuição de valor coletivo. É o primeiro passo para a preservação.
        Para a articulação das três esferas de governo que, hoje, aparentemente, complicam e burocratizam a vida do cidadão que tem um imóvel tombado, está sendo proposta a criação de um escritório de gestão compartilhada de Iphan (nacional), Condephaat (estadual) e Conpresp (municipal).
        Seu objetivo será a definição comum das áreas envoltórias dos bens tombados. Assim, facilitará a vida dos contribuintes que resistem a enfrentar a burocracia necessária para preservar o seu patrimônio.
        Projetos especiais poderão ser definidos, buscando a identidade da cidade. Não se pode entender São Paulo sem reconhecer seus caminhos históricos e o seu patrimônio industrial e ferroviário.
        A proclamação da independência do país ocorrida no Ipiranga localiza a área como patrimônio das três esferas, devendo o Monumento do Ipiranga ser federalizado, o que potencializaria os investimentos estaduais e municipais.
        O DPH e o Conpresp deverão ser reorganizados para atender ao passivo existente e ampliar a participação da sociedade civil. O Conpresp deverá gerir os recursos que serão potencializados pela reorganização dos fundos que investem em recuperação de patrimônio histórico (Funpatri e Funcap).
        Só assim conseguiremos valorizar e dar visibilidade ao nosso patrimônio, herança da população de São Paulo.
          IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
          TENDÊNCIAS/DEBATES
          Para esclarecer o óbvio
          O Ministério Público ser parte (acusação) e juiz (condutor da investigação) no inquérito policial é reduzir a ampla defesa à sua expressão nenhuma
          A meu ver, não haveria necessidade de um projeto de emenda constitucional para assegurar aos delegados de polícia a exclusividade para presidir os inquéritos policiais.
          Já a têm na Constituição Federal, pois o § 4º do artigo 144 está assim redigido: "Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de Polícia Judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares".
          O Ministério Público não é polícia judiciária. Tem o direito de requisitar às autoridades policiais diligências investigatórias (artigo 129, inciso VIII), assim como a instauração de inquérito policial aos delegados, que, todavia, serão aqueles que os instaurarão.
          O exercício do controle externo da atividade policial (inciso VII do artigo 130) de rigor é controle semelhante ao que exerce sobre todos os poderes públicos (inciso II), para que não haja desvios de conduta.
          Não há que confundir a relevante função de defesa da sociedade e de zelar pelo bom funcionamento das instituições com aquela de dirigir um inquérito, que é função exclusiva da Polícia Judiciária.
          À evidência, com o direito de requisição, o Ministério Público pode pedir aos delegados todas as investigações de que precisar, como também o tem o advogado de defesa, que se coloca no inquérito judicial no mesmo plano do Ministério Público. Não sem razão, o constituinte definiu a advocacia e o Ministério Público como "funções essenciais à administração de Justiça" (artigos 127 a 135).
          O direito de defesa, a ser exercido pelo advogado, é o mais sagrado direito de uma democracia, direito este inexistente nas ditaduras. Não sem razão, também, o constituinte colocou no inciso LV do art. 5º, como cláusula pétrea, que aos acusados é assegurada a "ampla defesa administrativa e judicial", sendo o adjetivo "ampla" de uma densidade vocabular inquestionável.
          Permitir ao Ministério Público que seja, no inquérito policial, parte (acusação) e juiz (condutor da investigação) ao mesmo tempo é reduzir a "ampla defesa" constitucional à sua expressão nenhuma. Se o magistrado, na dúvida, deve absolver (in dubio pro reo), o Ministério Público, na dúvida, deve acusar para ver se durante o processo as suas suspeitas são consistentes.
          Pelo texto constitucional, portanto, não haveria necessidade de um projeto para explicar o que já está na Constituição. Foi porque, todavia, nos últimos tempos, houve invasões nas competências próprias dos delegados que se propôs um projeto de emenda constitucional para que o óbvio ficasse "incontestavelmente óbvio".
          Eis por que juristas da expressão do presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Ivan Sartori, do presidente do Comissão de Ética Pública da Presidência da República, Américo Lacombe, de Márcio Thomaz Bastos, Vicente Greco Filho, José Afonso da Silva, José Roberto Batocchio, Luiz Flávio D'Urso e Marcos da Costa colocaram-se a favor da PEC 37.
          Com todo o respeito aos eminentes membros do parquet, parece-me que deveriam concentrar-se nas suas relevantes funções, que já não são poucas nem pequenas.
          Uma última observação. Num debate de nível, como o que se coloca a respeito da matéria, não me parece que agiu bem o Ministério Público quando intitulou a PEC 37 de "PEC da corrupção e da impunidade", como se todos os membros do Ministério Público fossem incorruptíveis e todos os delegados, corruptos.
          Argumento dessa natureza não engrandece a instituição, visto que a Constituição lhe outorgou função essencial, particularmente necessária ao equilíbrio dos Poderes, como o tem a advocacia e o Poder Judiciário, em cujo tripé se fundamenta o ideal de justiça na República brasileira.

          Aborto e casamento gay elevam tensão social no Brasil


          Francho Barón
          No Rio de Janeiro


          • Roberto Jayme/UOL
            Criança participa de manifestação em frente ao Congresso Nacional, em Brasília, a favor da liberdade religiosa e contrária ao casamento gay e ao aborto Criança participa de manifestação em frente ao Congresso Nacional, em Brasília, a favor da liberdade religiosa e contrária ao casamento gay e ao aborto
          O aborto e o casamento homossexual abriram um intenso debate no seio da sociedade brasileira, uma das mais religiosas do planeta, embora também uma das mais liberais na concepção do casal e da sexualidade.
          Na terça-feira (4) manifestaram-se em Brasília cerca de 5.000 pessoas contra a reforma do Código Penal que tramita no Senado e que contempla a legalização do aborto em qualquer hipótese, desde que praticado nos primeiros três meses de gravidez. E, na quarta-feira (5), também na capital, mais de 40 mil pessoas participaram de uma concentração em defesa do que chamaram de "família tradicional".

          Assim, contra a interrupção da gravidez e o direito a casar-se no civil reivindicado pelos coletivos de gays e lésbicas, uniram-se as igrejas evangélica e católica, ambas com ampla penetração na sociedade (quase 90% dos brasileiros se declaram cristãos) e no Legislativo.

          O Senado decide neste momento o que fazer com a proposta de enterrar a antiga lei do aborto, que permite somente a interrupção da gravidez em três casos: quando for o resultado de uma violação, quando coloque em risco a vida da mãe ou nos casos em que o feto sofra de anencefalia (ausência parcial ou total do cérebro e do crânio). Com a nova lei, qualquer mulher teria direito a abortar em centros médicos públicos e privados, independentemente dos motivos que a levem a tomar a decisão. A única condição seria que ocorra nos primeiros três meses de gestação.

          Para colocar mais lenha na fogueira, o Conselho Federal de Medicina (CFM), que representa 400 mil médicos brasileiros dos 27 Estados, se pronunciou no último dia 21 de março a favor da abertura da lei do aborto. "Não somos a favor do aborto, mas sim da autonomia da mulher e do médico na hora de decidir", informou ao Senado.

          Desde o mês passado, os casais homossexuais podem se casar diante de tabeliães. É o resultado de uma longa e intensa batalha que, na prática, estende o direito ao casamento civil, mas que ainda carece do aval do Congresso, controlado tradicionalmente por grupos de ampla penetração católica e evangélica.
          Nos últimos anos, qualquer concessão aos direitos da comunidade homossexual colidiu frontalmente com a bancada religiosa. Esse bloco ganhou tanto destaque que nos últimos dias se discute na Comissão de Direitos Humanos um decreto rocambolesco sobre a possibilidade de que os psicólogos possam tratar a homossexualidade como uma doença. O bloqueio também ficou patente em maio de 2011, quando a presidente Dilma Rousseff, sob pressão, vetou o chamado kit anti-homofobia criado pelo Ministério da Educação para fomentar entre os estudantes secundaristas a aceitação da diversidade sexual.

          O grande avanço ocorreu em 14 de maio, quando o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) aprovou, por 14 votos contra 1, a obrigação de todos os cartórios realizarem casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo e equipararem as uniões estáveis homoafetivas aos matrimônios civis. A decisão do CNJ representou um passo além na linha do decidido em 2011 pela STF (Supremo Tribunal Federal), que equiparou os direitos dos casais de fato homossexuais e heterossexuais.

          Em uma espécie de efeito dominó, juízes claramente progressistas de 12 Estados se apoiaram no Supremo para dar luz verde a centenas de casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo. A onda de uniões homossexuais acabou precipitando o pronunciamento do CNJ que acaba com a disparidade entre Estados e legitima ainda mais a legalidade do novo direito. Entretanto, os coletivos de gays e lésbicas continuam exigindo que o Congresso se pronuncie de uma vez no mesmo sentido.

          Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
                          

          Diário da Dilma - Em lagoa que tem piranha, macaco bebe água de canudo‏


          Diário da Dilma - Em lagoa que tem piranha, macaco bebe água de canudo


           

          1º de maio-_Todo mundo de folga e eu na labuta, morrendo de sono! Acabei meu imposto de renda no último minuto. Para ficar acordada me entupi de café, depois não consegui dormir. E hoje passo o dia discursando. Tive que caprichar no laquê porque nem o cabelo conseguia ficar de pé.
          Ainda não peguei direito essa coisa da tevê. Faço um esforço hercúleo para falar e sorrir ao mesmo tempo. Regravei seis vezes.
           
          2 de maio_Gleisi veio me lembrar que a MP dos Portos vai perder a validade. Fiquei tão traumatizada com essas caxirolas que acabei me esquecendo.
           
          3 de maio_Não queria fazer nada no fim de semana, mas vou ter que me mandar para uma tal de Expozebu. Vou dizer uma coisa: às vezes tenho saudade da clandestinidade.
           
          4 de maio_Almoço com Lula e café com Aécio. Afe! Comi que nem um bezerro premiado. Quando eu fico irritada, é batata! Afogo as mágoas na comida. Mandei fazer umas calças novas com um tecido misto de lycra e algodão. Assim dá aquela ligeira esticada quando passo um pouquinho do ponto.
          Voltei para Brasília podre. Tomei um banho de banheira e fiquei jogando sudoku no iPad para distrair a cabeça.
           
          5 de maio_Lula viu meu desempenho no pontapé inicial da Arena Fonte Nova e sugeriu ressuscitar as peladas na Granja do Torto. Disse que eu sei bater na bola de chapa e daria um bom volante. Sei não. Do jeito que o homem é espaçoso, vai acabar dormindo no sofá e interferindo na minha segunda-feira. E depois é volanta.
          Perguntei para o Aldo Rebelo o que é “bater de chapa” e o ministro dos Esportes não sabia. Demiti-lo ia atrapalhar o cronograma da Fifa. Melhor contar até onze.
           
          6 de maio_Chamei o Afif para o lado vermelho da força. Ele pediu para acumular. Se o Lula concilia esquerda com jatinho de empreiteira, por que não? Deus está morto, vale tudo.
           
          7 de maio_Que pedaço é esse Roberto Azevêdo da OMC! Esses candidatos ninguém me apresenta...
           
          8 de maio_Com tanto estádio para inaugurar, MP para aprovar, licitação para o Eike ganhar, me inventam de receber o presidente do Egito. Francamente. Mandei o homem visitar a múmia do Sarney. Que ele entenda como uma homenagem à civilização egípcia. Tenho mais o que fazer.
           
          9 de maio_O Maduro, com aquela cara de Coca litro com bigode, me trouxe um retrato descomunal do Chávez. Diz que é presente da República Bolivariana. Isso só pode ser quadratura de Plutão com Saturno! E por que ele não deu para o Lula? Os dois me deixaram duas horas plantada enquanto conversavam sei lá o quê. Fiquei com a pulga atrás da orelha. Em lagoa que tem piranha, macaco bebe água de canudo.

          10 de maio_Renan veio dizer que vai ser difícil aprovar a MP dos Portos. Para bom entendedor, pingo é letra. Desesperada, liguei para o Azevêdo para ver se tinha alguma vaga na OMC. Nadica de nada. Virei uma headhunter do PMDB.
           
          12 de maio_Afif veio pedir para acumular uma diretoria da Ancine. Fiquei de pensar.
           
          13 de maio_Maior saia justa essa MP dos Portos! Não sei se a Gleisi e a Ideli dão conta do recado. A Eleonora, para variar, veio com umas ideias malucas. Queria que eu convocasse aquelas ucranianas que protestam peladas para um manifesto no Congresso. Me garantiu que as loiras matariam do coração metade do PMDB. Fiquei tentada. Ainda bem que comentei com o Mercadante. Sereno, ele argumentou que o ato poderia ser considerado ingerência externa em assuntos brasileiros. Um Bismarck, esse Mercadante. Daí o bigode, talvez.
           
          14 de maio_Vou ter que tirar o siri do bolso para aprovar essa MP. Se não der uns caraminguás para emendas, não sai a votação. Para dizer a verdade, já nem sei o que é para votar. Só sei que o Eduardo Cunha está me enchendo o pacová.
          Só Lobão mesmo para lançar um raiozinho de luz nessa semana negra. Duas bilhas nos cofres do Guido com essa 11ª rodada do petróleo. O homem é a encarnação da bem-aventurança. Fica mal eu convidá-lo para uma primeira rodada de Cointreau lá em casa?
          Fiquei solidária com a Angelina. Que moça corajosa!
           
          15 de maio_Mamãe, titia e eu pegamos umas panelas e fomos acordar os deputados. Acorda, Maria Bonita/ Levanta pra votar a PEC/ Que o dia já vem raiando/ E a polícia já está de pé. No final, gritamos “Alvorada!” no quengo daquele bando de indolentes. Um deles, cujo nome não faço ideia, mas pela idade deve ser do DEM, quase enfartou.
           
          16 de maio_Ufa! As meninas deram nó em goteira. Convidei um pessoalzinho para uma comemoração íntima em homenagem à Ideli e à Gleisi. Enchemos a cara de cerveja e nos acabamos num escondidinho de carne seca que a Edilene deixou no forno. Terminamos a noite cantando guarânia. Tenho um amigo que toca muito bem violão e conhece o repertório do Paraguai inteiro. Todo mundo relaxou.
           
          18 de maio_Afif ligou perguntando se poderia acumular a Coordenadoria de Planejamento da Pesca Artesanal.
           
          19 de maio_Desde a semana passada, empresário que fala mal da política econômica recebe um telefonema anônimo avisando que se o Guido cair entra o Arno Augustin. Tiro e queda. Metade do pibjá está se mobilizando para indicar o italiano para Homem do Ano.
           
          21 de maio_Nossa, a novela mal começou e já me apeguei. Não aguentava mais Salve Jorge. O Fagundes está um gatão, e fazendo papel de médico, então, é covardia! O Mateus Solano de bicha má está um espetáculo! Só acho que alguém podia trocar aquela música de abertura.
           
          22 de maio_Bye,bye, Hillary. Agora, só falta a Merkel, que a Forbesinsiste em dizer que ainda é mais poderosa do que eu. Não há de ser nada. Mando o Guido passar um tempo em Berlim e em menos de três meses a inflação de lá fica tipo Weimar. Auf Wiedersehen, Angela. Dilminha is bad! Por ora, resta a satisfação de ver que a Cristina K. caiu dez posições e ficou atrás até da Gracinha Foster, com aquele cabelo e tudo.
           
          23 de maio_O Patriota reabriu a agência de viagens dele. Aquela que manda você para onde ninguém mais quer ir. Nem vai. Pois é, eu vou. Dessa vez é a Etiópia. Acho que nem a Angelina Jolie adota filho por lá.
           
          24 de maio_Até eu já estou cheia dessa novela do Neymar. Vai logo, criatura!
           
          25 de maio_Se todo jornalista fosse como esse Moreno, não seria necessário exercer controle social da mídia. Entrevista linda, de página inteira, só pergunta fina, delicada. Falamos de tudo um pouco: fogão, novela, ser avó, aquela fominha que bate de madrugada. Ele foi incisivo – chegou a dizer que minha fama de cozinheira é ruim –, e eu fui relevante. Elogiei o Sai de Baixo, Tapas e Beijos, Amor à Vida, os artistas da Globo. Todo mundo saiu ganhando. O Moreno fez um bonito com os patrões, eu ganhei uns pontinhos com os Marinho e o leitor ficou sabendo da minha famosa sopa de beterraba.
           
          27 de maio_Afif me passou um telegrama perguntando se podia acumular a Superintendência de Recursos Hídricos Fronteiriços.
           
          28 de maio_Vou aproveitar o feriadãopara terminar a segunda temporada de The Good Wife. 

          Como vive Kátia Rabello, a ex-bailarina mineira que herdou o Banco Rural e foi condenada no julgamento do mensalão por KARLA MONTEIRO


          Revista Piauí 


          A banqueira

          Como vive Kátia Rabello, a ex-bailarina mineira que herdou o Banco Rural e foi condenada no julgamento do mensalão
          por KARLA MONTEIRO

          Fazia calor intenso no Pantanal na manhã de 12 de novembro de 2012, uma segunda-feira. Era cedo quando Kátia Rabello pulou da cama, o sol mal havia raiado. Estava no Mato Grosso do Sul, em uma fazenda que pertencia ao Banco Rural, instituição fundada por seu pai, o mineiro Sabino Rabello, quando ela tinha apenas 3 anos de idade. Com o namorado, um empresário do setor do agronegócio, e a sobrinha de 27 anos, seguiu para Cuiabá. Foram direto para um congresso da Organização Latino-Americana de Plantadores de Teca, assunto do interesse da família. Depois de algumas horas, já no fim da tarde, se dirigiram ao hotel, para descansar. Naquela noite, Kátia teria um jantar com um grupo de empresários também dispostos a investir na árvore nativa da Ásia que virou moda no ramo do reflorestamento.
          Assim que entraram no quarto, o iPhone da banqueira apitou. Era um torpedo de uma amiga que morava no Rio de Janeiro, com quem ela não se encontrava havia alguns anos. O texto dizia o seguinte: “Tenho grande admiração e carinho por você. Se soubessem do seu coração, da artista sensível que você é, teriam sensibilidade na questão em curso. Lembro-me da minha filhota na sua escola, tão feliz. Conte com a minha amizade, querida.”
          Ao exibir, meses depois, a mensagem de solidariedade que guardou na caixa de entrada, Kátia recordou que, naquele instante, o alarme soou na sua cabeça. Até então ré no processo do mensalão, ela havia se refugiado no Mato Grosso do Sul para ficar bem longe do julgamento no Supremo Tribunal Federal, que já se arrastava por quase quatro meses. “Eu estava procurando administrar desta forma: entrava no assunto, tratava o que tinha que tratar com os meus advogados, e saía. Senão, enlouqueceria”, comentou Kátia. Ao ver o torpedo, seu namorado correu para o computador. Pela expressão dele, ela teve a sensação nítida de que algo grave havia acontecido. “Saiu a pena?”, perguntou. Ele balançou a cabeça afirmativamente. Kátia leu a notícia: condenada a dezesseis anos e oito meses de prisão.
          “Momento ruim, né?” Kátia suspirou, parou alguns segundos para pensar e sorveu um demorado gole de água. Estávamos na sala de sua cobertura no Sion, bairro da Zona Sul de Belo Horizonte, numa manhã de março. Era nosso segundo encontro. Vestida com calça e camisa em diferentes tons de bege, sandálias de salto baixo, ela se mexia na cadeira o tempo todo, ajeitando uma almofada atrás das costas: “A última novidade é que eu vou ter que operar a bacia. É uma esperança. Sinto dores agudas e ninguém me diz o que é.” Sobre a mesa de jantar de oito lugares, ainda repousava um farto café da manhã, com bolo de maçã feito por ela: “Meus avós eram italianos, aqui em casa a gente adora comer e cozinhar.”
          Depois de insistir para que eu provasse um pedaço, ela retomou o assunto da condenação: “Eu foco no presente. Só isso me deixa sã. A minha vida foi tão surpreendente, tudo aconteceu tão diferente do que eu imaginei que só posso acreditar no presente. Acordo e penso: O que eu tenho hoje? Isso é uma prática de sobrevivência”, disse.
          “Mas é claro que tenho medo”, emendou, sem desviar o olhar. “Tem horas que eu sinto muito medo e muita solidão. É uma solidão tão intensa que não existe uma palavra adequada para definir a fundura. A expectativa de uma privação de liberdade desse tamanho é inimaginável para mim.”
           
          lém de Kátia, ex-presidente e herdeira do banco, mais três executivos do Rural – José Roberto Salgado, Vinícius Samarane e Ayanna Tenório – compunham o chamado núcleo financeiro entre os réus do julgamento mais longo e mais esperado da história do STF. Foram 138 dias, 53 sessões e 204 horas de funcionamento do plenário, que resultaram em 25 condenações, 12 absolvições e um acórdão de mais de 8 mil páginas.
          O maior escândalo de corrupção do governo Luiz Inácio Lula da Silva veio à tona em junho de 2005, quando o então deputado Roberto Jefferson disse à Folha de S.Paulo que havia um esquema de compra de parlamentares da base aliada, patrocinada pela cúpula do Partido dos Trabalhadores com o aval do ministro da Casa Civil, José Dirceu, mais tarde qualificado pelo procurador-geral da República como “chefe da quadrilha”. O publicitário Marcos Valério, figura carimbada da política mineira, mas até então desconhecido da opinião pública, aparecia como intermediário entre o tesoureiro do PT, Delúbio Soares, e os políticos agraciados com o dinheiro. Sócio das agências de publicidade SMP&B Comunicação, DNA Propaganda e Graffiti Participações, Valério fazia a função de “homem da mala”. O Rural entrava na história como o dono do cofre que alimentou o valerioduto. Da cúpula do banco, só Ayanna Tenório foi absolvida. Vinícius Samarane foi condenado a oito anos e nove meses de prisão. José Roberto Salgado amargou a mesma pena de Kátia Rabello.
           Para o Supremo, ela cometeu quatro crimes: gestão fraudulenta (condenada por unanimidade), evasão de divisas (9 votos a 1), formação de quadrilha (6 a 4) e lavagem de dinheiro (unanimidade). Todos os delitos derivaram de um fato: o Banco Rural emprestou 32 milhões de reais ao esquema, sendo 3 milhões diretamente ao PT e 29 milhões para duas empresas de Marcos Valério, a Graffiti (10 milhões) e a SMP&B (19 milhões).
          O ministro Joaquim Barbosa, relator do caso, sustentou a tese e convenceu seus colegas de que os empréstimos eram fictícios, isto é, meros repasses de dinheiro. Entre os indícios, citou o fato de que o Rural aceitou de bom grado sucessivos pedidos de renovação dos empréstimos, realizados a cada noventa dias. Foram dezenove renovações no total.
          Na sessão de 3 de setembro de 2012, a 36ª do julgamento, Barbosa falou durante mais de duas horas a respeito do comportamento do banco. Em pé e debruçado sobre o espaldar da cadeira, como de hábito, brandia papéis no ar enquanto enumerava os vestígios de que o Rural emprestara o dinheiro para cobrar a conta em favores políticos: o banco ocultou documentos, ignorou a avalanche de saques vultosos na boca do caixa, atribuiu uma classificação de risco de crédito incompatível com a situação real dos devedores, entre outras coisas.
           
          u coloco isso como a maior derrota na minha vida profissional, cinquenta anos de advocacia”, lamentou-se José Carlos Dias, representante de Kátia no processo. Ocupando a cabeceira da mesa de reunião do escritório Dias e Carvalho Filho, no Edifício Itália, Centro de São Paulo, ele explicou seu inconformismo: “Gestão temerária seria aceitável, embora ela não tenha participado de nenhuma das operações de crédito. Kátia só participou de duas renovações do empréstimo do PT, que, aliás, veio a ser pago. [O PT quitou o empréstimo de 3 milhões de reais em 34 parcelas, a última paga em 28 de junho de 2011. O valor final foi de 11 milhões.] Por ela estar no cargo de presidente poderia até se dizer que tinha domínio do fato. Mesmo aceitando isso, foi um ato de condenação exagerado e, a meu ver, absurdo.”
          Além de José Carlos Dias, ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, a cúpula do Rural contratou Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça de Lula, que ficou responsável pela defesa de Salgado, vice-presidente do banco à época dos empréstimos. Nem Kátia nem Dias revelam os valores envolvidos. Mas, apenas com sua defesa (que inclui um serviço de assessoria de imprensa contratado pelo escritório de advocacia), a banqueiracomentou com amigos ter gasto 10 milhões de reais.
           O revés sofrido por nomes do pelotão de elite da advocacia criminal brasileira saiu muito maior que a encomenda. Até o início do julgamento, ninguém esperava uma derrota desse quilate. Os advogados questionam principalmente dois pontos: a fixação das penas e a condenação por lavagem de dinheiro.
          “A denúncia é muito ruim. É fraca tecnicamente. Eles [os executivos do Banco Rural] são acusados dos mesmos fatos, ora gestão fraudulenta, ora lavagem de dinheiro, e, de repente, evasão de divisas”, disse Thomaz Bastos, sentado na sala de reunião do seu escritório, na avenida Brigadeiro Faria Lima, uma das regiões mais nobres de São Paulo. “Para existir crime de lavagem de dinheiro é preciso haver intenção específica de colocar dinheiro sujo na legalidade. Não houve isso.” De acordo com o advogado, “o julgamento foi feito sob muita pressão midiática. Tinha gente que assistia a Vale a Pena Ver de Novo e, depois, o mensalão. Virou programa de tevê”.
          Além dos aspectos técnicos levantados pela defesa, seu entorno acreditava que a biografia de Kátia funcionaria como atenuante no julgamento. Desde sempre ligada ao mundo das artes, bailarina e dona de uma companhia de dança, ela assumiu o comando do banco após uma sucessão de fatalidades trágicas – e teria feito isso contra a sua vontade, praticamente à véspera do escândalo e já no curso dos acontecimentos que levaram à sua condenação.
          O enredo segundo o qual Kátia Rabello seria uma espécie de presidente decorativa e pouco informada do que se passava abaixo dela esbarra num fato: em 2004, ela, já no comando do Banco Rural, encontrou-se duas vezes com José Dirceu. O primeiro encontro aconteceu no Palácio do Planalto. E o segundo, no restaurante do Ouro Minas, hotel cinco estrelas de Belo Horizonte. O ministro todo-poderoso do governo Lula abalou-se até Minas Gerais para falar de um assunto que interessava ao Banco Rural.
          O objetivo de Kátia Rabello era apressar a suspensão da liquidação do Banco Mercantil de Pernambuco. A decisão envolvia “vontades políticas”, disse ela em depoimento à Polícia Federal sobre as conversas com Dirceu.
          Insolvente, o Mercantil sofrera intervenção do Banco Central nos anos 90. O Rural, em seguida, comprou 22% das ações em liquidação. Desde 2001, o banco mineiro e outros acionistas alegavam que os ativos do Mercantil já eram suficientes para saldar as dívidas. No julgamento, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, afirmou que o ganho esperado pelo Rural com o fim da liquidação “superava a casa do bilhão de reais”. Quando a intervenção no Mercantil foi finalmente suspensa, no início de 2012, o banco de Kátia Rabello recebeu 96 milhões de reais. Thomaz Bastos diz que houve “terrorismo” da Procuradoria. Esta sustenta que o Rural não levou o que esperava porque não houve tempo de o esquema se completar.
           
          "Já disse tudo. Fui muito transparente o tempo todo.” Logo de saída, Kátia avisou que não falaria nada diretamente relacionado ao processo. Estávamos numa tarde de março de céu azul quando ela aceitou conceder sua primeira entrevista pessoalmente desde que fora apontada como ré no julgamento do mensalão, em 2007. Trajava um vestido preto de malha, cobrindo os joelhos. Não usava nenhuma maquiagem nem esmalte nas unhas. Os cabelos curtos se ajeitavam com dificuldade num minúsculo rabo de cavalo.
          A conversa começou com um esclarecimento: “Em cada jornal saiu uma idade diferente. Não gostei de 58. Acho que vou adotar 41, 41 é bom, né? Na verdade, eu tenho 51 anos. Faço 52 em junho.” Com pouco mais de 1,70 metro, Kátia tem o corpo ao mesmo tempo farto e alongado. É uma mulher grande. O sotaque é mineiríssimo e sua fala vem entremeada por expressões como “uai”, “bom demais da conta” e sucessivos “né?”.
          Ela mora sozinha numa cobertura duplex. Os móveis do apartamento também são do estilo mineiro, de madeira pesada. Um estandarte do Divino Espírito Santo, com fitas azuis acetinadas, no topo da escada que leva ao terraço, chama a atenção. E, mais uma vez como boa mineira, Kátia não resistiu a uma citação filosofante de Riobaldo: “Tem uma frase de um personagem do Guimarães no Grande Sertão de que eu gosto muito: ‘Não percoocasião de religião.’ Eu não perco ocasião de religião. Tenho uma crença muito forte de que existe um sentido maior”, disse. À religião, depois do processo, Kátia juntou a autoajuda. Leu três livros recentemente: O Poder do Agora, de Eckhart Tolle, A Paz é Possível, de Prem Rawat, e o clássico hippie Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas, de Robert Pirsig.
          Em casa, a banqueira é assessorada por três empregados: uma cozinheira, com ela há mais de duas décadas, uma faxineira e um motorista. Sempre andou cercada por guarda-costas. O pai, ela contou, tinha “uma coisa com segurança”. “Por questões óbvias não me permitem falar sobre quem ou quantas pessoas me acompanham”, disse, mudando de assunto. Os dois filhos, com 26 e 21 anos, vivem fora de Belo Horizonte. O caçula é músico; o mais velho, empresário de futebol.
           
          esde que deixou a presidência do Rural para responder ao processo, Kátia divide o tempo entre cuidar de si – faz várias sessões de RPG e massagens por semana para aliviar as dores nas costas – e da própria defesa. “Para os advogados, é só mais uma causa. Para mim, é a minha vida”, comentou. “Também tenho uma vida, como todo mundo, mãe, filhos, amigos... Não estou deitada na cama, me consumindo em lágrimas. Já tive esse momento.” Kátia não faz terapia, mas passou a tomar remédios para dormir.
          Não é difícil encontrar no ambiente artístico e cultural da capital mineira quem esteja disposto a sair em defesa da banqueira. Mulher forte! Boa mãe! Guerreira! Amiga! Generosa! Sensível! Ingênua! Artista! Ao longo de meses, ouvi todas essas qualificações a seu respeito. Para alguns, a condenação parece soar quase como uma ofensa pessoal. Numa noite de meados de março, no restaurante preferido de Kátia, A Favorita, o produtor cultural Afonso Borges, uma figura popular na cidade, idealizador do projeto “Sempre um Papo”, que há 27 anos promove encontros com escritores nos palcos mineiros, fez o seguinte comentário: “Não é a gente que consola a Kátia, é a Kátia que nos consola. Ela é uma mulher muito forte. Outro dia me disse, em tom de brincadeira, que vai aproveitar o tempo na cadeia para ler todos os livros que nunca leu. Kátia adora ler. É uma pessoa muito erudita.”
          Da elite política, ela afirmou nunca ter recebido afago. “Meu pai convivia com parentes e com as pessoas que trabalhavam com ele. Só teve um amigo na vida. Júnia [a irmã mais velha, de quem herdou o cargo de presidente do banco] não era uma pessoa simpática. Participava dos eventos, mas sempre no plano formal. Eu venho de outro mundo. Não temos relações pessoais com políticos”, insistiu.
          No “plano formal”, Aécio Neves já manifestou publicamente a sua admiração pelo Banco Rural. Na cerimônia de 40 anos da instituição, em outubro de2004, meses antes do estouro do mensalão, disse em discurso no Palácio das Artes que Minas devia uma palavra de agradecimento ao Rural. “O Banco Rural é o orgulho dos mineiros”, destacou o então governador, entre elogios superlativos. Um ex-consultor do banco que preferiu ter sua identidade preservada afirmou que Aécio e Andréa Neves, responsável pela distribuição da verba publicitária no governo do irmão, telefonaram para Kátia por ocasião do indiciamento para prestar solidariedade à banqueira. “A Kátia não contaria isso. É muito discreta e procura não envolver ninguém. Mas eu mesmo atendi telefonemas deles, mais de uma vez”, disse.
           
          átia Rabello nasceu em 1961, em Belo Horizonte. A mãe, Jandira, hoje com 90 anos, assumiu a função que lhe cabia: dona de casa. O pai, Sabino Rabello, de temperamento atrevido e cabeça voltada para os negócios, pertencia a uma família tradicional, influente no cenário político mineiro. O seu pai, o empresário Ajax Rabello, foi um dos amigos mais próximos de Juscelino Kubitschek – de acordo com Kátia, o único político de quem a família foi realmente próxima.
          Advogado de formação, doutor Sabino, como era conhecido, logo enveredou para a construção civil. Abriu estradas, ergueu pontes, progrediu. Fundou duas construtoras, a Tratex e a Servix. No caso Collor, a primeira ganhou má fama ao ser flagrada como uma das fontes do dinheiro que alimentou o esquema PC Farias. Sabino não se deu ao trabalho de negar as relações promíscuas. Na época, admitiu publicamente: “O Paulo César estava precisando de recursos para liquidar dívidas. A proposta, levada à diretoria da Tratex, foi aceita pelo interesse da empresa em manter um bom relacionamento com o governo, diga-se de passagem, recém-empossado.”
          Foi em 1962 que o empreiteiro ingressou no mercado financeiro. Comprou a carta-patente do minúsculo Banco Manoel de Carvalho e, mais tarde, em 1964, o rebatizou de Banco Rural. Não porque tivesse gosto ou interesse particular pela vida no campo. A razão era outra: era apaixonado pelo automóvel Rural Willys.
          É possível contar uma parte da história dos escândalos políticos desde a redemocratização seguindo os passos do Rural. Ele apareceu na Comissão Parlamentar de Inquérito do PC, que desaguou no impeachment de Collor. Era uma das instituições financeiras em que o esquema mantinha contas fantasmas. E já foi citado em outras quatro cpis: do Orçamento (1993), dos Títulos Públicos (1996), do Futebol (2000) e do Banestado (2003).
          Os olhos de Kátia brilham quando ela se lembra dos “sabinismos”. “Papai era um homem fora do comum. Excêntrico. Não frequentava a sociedade. Dinheiro para ele tinha duas funções: segurança e conforto. Nunca deu bola para status”, disse.
          E soltou uma boa risada antes de começar a contar a história de uma das invenções paternas, que gostava, segundo ela, de bancar o Professor Pardal: “Quando eu era criança, ele inventou a churrasqueira vertical, a VertGrill. A gente saía pelas feiras... Eu, com 10 anos, de garota propaganda da VertGrill, imagina?”
          Sabino e Jandira tiveram três filhas: Júnia, Nora e Kátia, a caçula. A diferença de idade entre as três era de quatro anos quase cravados uma da outra. Júnia, a primogênita, foi preparada para ser a sucessora nos negócios. Antes mesmo de terminar a faculdade de engenharia, já trabalhava na financeira que pertencia ao Banco Rural.
           “A Júnia era o sucessor. Ela brincava que o papai a batizou assim porque estava esperando o Júnior”, comentou Kátia. A irmã teve que cumprir todos os papéis. Casou-se com as honras e pompas das famílias mineiras tradicionais: cerimônia na Basílica Nossa Senhora de Lourdes, vestido do costureiro Gerson, o chique da época, e recepção para mil convidados no Automóvel Clube.
          Ainda nos anos 80, Júnia assumiu a presidência do banco, tendo como braço direito o executivo José Augusto Dumont. Os dois trabalharam na financeira e seguiram juntos para o Rural. Nas mãos da dupla, a fortuna da família floresceu. O banco chegou a ter um patrimônio líquido de 700 milhões de reais, ocupando o posto de quinta maior instituição financeira privada do país, com uma carteira de ativos (investimentos) de 5 bilhões de reais.
          Na rabeira da linha de sucessão do império Rabello, Kátia se deu ao luxo de seguir a vida que bem quis. Aos 12 anos, foi fazer balé na escola do Palácio das Artes, o correspondente mineiro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Ficou lá dois anos até migrar para a escola do Grupo Corpo, uma das mais renomadas companhias de dança contemporânea do país, onde permaneceu por mais de cinco anos. “Ela não se destacava individualmente. Mas fez parte de uma turma de alunas que se dedicava muito ao estudo da dança. Era uma pessoa correta, simpática, envolvida”, lembra Carmen Purri, a Macau, diretora da escola e assistente de coreografia do Corpo.
          Quando chegou a hora de ir para a universidade, Kátia optou por biologia. “Eu saía da faculdade às cinco da tarde, trocando de roupa dentro do carro, e chegava ao Corpo pontualmente às seis. Fazia aulas até onze da noite”, recordou. Com 19 anos, resolveu estudar inglês em Londres e, depois, dança numa escola de ponta alemã, a Universidade de Artes Folkwang, na cidade de Essen, frequentada pela turma de Pina Bausch. Na volta ao Brasil, em 1981, juntou-se à amiga e bailarina Suely Machado, também do Grupo Corpo, e criou sua própria escola, o Primeiro Ato.
           
          o escolher o marido, Kátia também não seguiu o figurino tradicional. Casou-se com um pianista que tocava na noite, José Namen. A festa aconteceu num sítio, no estilo “coisa de artista”, como Kátia a descreve. “Ela sempre foi artista. Nasceu velha e foi ficando jovem. Tem uma relação muito profunda com a vida, com a família”, disse Suely, a grande amiga de Kátia. São tão próximas que a ex-bailarina amamentou o filho de Suely. Foram mães ao mesmo tempo.
          Hoje Suely dirige sozinha a escola e a companhia. Nos anos 80–90, o Primeiro Ato ocupou posto importante no cenário da dança contemporânea, com espetáculos marcantes como Isso Aqui Não é Gotham City, em que misturava teatro, história em quadrinhos e dança. “Nos primeiros anos não tínhamos patrocínio. A gente sobrevivia das aulas”, lembrou Suely. Em 1989, o grupo ganhou a Concorrência Fiat para a dança, um prêmio da empresa para as artes. O dinheiro deu fôlego até que, em 1992, com o surgimento da Lei Rouanet, o Primeiro Ato passou a ser patrocinado pelo Banco Rural. “Júnia foi assistir Gotham City e, no final, falou: ‘Gostei. Isso eu quero patrocinar.’”
          As irmãs, que eram distantes, começaram a se aproximar. Sentavam-se à mesa da presidência do Rural, cada uma de um lado, para discutir a parceria. O Rural punha dinheiro no grupo. Em troca, o grupo se apresentava para clientes do banco em ocasiões especiais. Na época, os bancos começavam a apostar em marketing cultural. “Júnia era uma pessoa muito dura. As pessoas diziam que era arrogante. Eu também achava. Hoje vejo que era até mansa, pela dificuldade de ser uma mulher nesse cargo. Você não consegue nem um cafezinho se você não se colocar. Até a copeira vai te desprezar”, disse Kátia. E continuou elogiando a irmã: “Desenvolvi uma enorme admiração pela Júnia. Quando eu a via tomando decisões, nossa... Era impressionante. Ela sabia o que queria, fazia observações pontiagudas. Costumava falar quando não entendia um relatório: ‘Não tem bom-senso nisso. Não consigo ler.’ Mas era montando a cavalo que ela ficava mais à vontade.”
           Nora, a irmã do meio, havia estudado psicologia e vivia boa parte do tempo na Bahia. Em 1994, Júnia fez o convite que seria o começo da virada do destino de Kátia.
          Ela se remexe na cadeira, olha o relógio, pede licença e vai até a cozinha. Volta com uma jarra d’água. E diz que precisamos interromper a entrevista “daqui a pouquinho”. As dores nas costas a incomodam. Não consegue ficar sentada por muito tempo. Também tem um compromisso. Precisa passar na casa da mãe.
          “Bom”, prosseguiu Kátia, “um belo dia, do nada, a Júnia chegou para mim e disse que queria que eu assumisse a superintendência de marketing e comunicação do Banco Rural. Eu, claro, ouvi e deletei aquilo da minha cabeça.” No ano seguinte, a irmã renovou o convite. “Ela disse que precisava de mim. Fazia dramas, dizia que se sentia muito sozinha. E se sentia mesmo. Hoje eu compreendo.”
          A bailarina, enfim, aceitou. Conversou com a sócia e, em meados de 1995, foi trabalhar no banco da família. Organizava festas e eventos, cuidava da imagem institucional. Mas continuou dançando. “Ela chegava no Primeiro Ato antes de todo mundo. Entrava na sala de aula com uma pilha de CDs e ficava lá estudando movimentos”, recorda Suely, a amiga. Só quando as dores nas costas aumentaram ela parou.
           
          ra o dia 26 de fevereiro de 1999. Kátia e o então marido, José Namen, tinham acabado de se sentar para almoçar. Ela se recorda do cardápio: carne assada com batatas. “A gente estava bem ali, naquela mesa”, conta, apontando o dedo para uma mesinha de quatro lugares do outro lado da sala. Antes de darem a primeira garfada, o motorista entrou correndo para avisar que o helicóptero do Banco Rural havia caído. “Eu me lembro de olhar para o prato e jogá-lo no chão”, diz Kátia. Quase ao mesmo tempo, o telefone tocou. A pessoa do outro lado da linha, alguém da direção do banco, anuncia: “Júnia morreu.”
          “Saí trombando pelas paredes. Completamente cega. Meu marido atrás de mim, gritando para eu parar. Entrei no quarto e fechei a porta. Estava fora, totalmente fora de mim. Isso demorou uns cinco minutos.” Então, prosseguiu Kátia, “eu me lembrei da minha sobrinha Renata,  sozinha em Londres”. [Júnia teve duas filhas, Renata, hoje com 33 anos, e Vitória, que estava ao lado da tia no dia em que o STF definiu sua sentença.] “Ela estava lá na Inglaterra, estudando moda. Me baixou uma frieza. Sou assim: quando preciso funcionar, fico fria. Isso, aliás, tem me ajudado muito. Só sei que comecei a tomar todas as providências, desde mandar buscar a minha sobrinha até as flores do caixão.”
          O acidente que matou Júnia Rabello aos 45 anos causou grande comoção. O helicóptero teve que fazer um pouso forçado na zona rural de Sabará, região metropolitana de Belo Horizonte, às 11h40, quando retornava da fazenda da família em Lagoa Santa. O piloto Luís Francisco Belculfine conseguiu pousar na mata, depois de bater em dois coqueiros e perder a cauda. Mas, ao descer do aparelho, Júnia teve a cabeça decepada pela hélice e morreu instantaneamente. O instrutor de equitação da banqueira também foi atingido pela hélice, mas sobreviveu. O piloto sofreu ferimentos leves. “Até hoje as pessoas falam do acidente. Foi tão, tão chocante”, Kátia olhava para o teto enquanto falava.
          Passados os ritos fúnebres e o primeiro impacto da morte de Júnia, Kátia viu cair no seu colo... o Banco Rural. Até então, Júnia ocupava a presidência. José Augusto Dumont era o vice, com função executiva – quem, de fato, tocava o dia a dia. O pai, Sabino, na época com 79 anos, presidia o Conselho de Administração. Mas já sofria com uma microisquemia e, a cada dia, perdia mais funções do corpo. Só a cabeça seguia funcionando bem.
          “Eu não queria continuar no banco sem a Júnia. Mas, não sei se por pressão ou não, comecei a sentir uma obrigação com a minha irmã. Eu precisava conduzir aquele projeto. Eu conhecia a visão da Júnia, como ela achava que as coisas deviam ser.” Na dança das cadeiras, doutor Sabino reassumiu a presidência executiva. Manteve José Augusto na vice-presidência. E nomeou Kátia presidente do Conselho de Administração. “Dois anos depois, eu e meu pai trocamos de posição. Havia muitos compromissos sociais de um presidente de banco dos quais papai não dava mais conta. Ele estava debilitado, na cadeira de rodas”, ela falou.
          Kátia havia traçado um plano: quando o pai faltasse, ela retornaria à presidência do conselho, e José Augusto subiria para a presidência executiva. Enquanto isso não acontecia, decidiu colocar a mão na massa: “O banco tinha um modelo de gestão antigo, personalista, centralizador. Eu estava lendo muito sobre o assunto, sabia que tínhamos que avançar.” José Augusto continuou administrando a máquina. E ela, como presidente, fazia a interface entre os executivos, os diretores e o pai: “Eu era uma pessoa de representação. Precisei assumir a vida institucional e social do banco. Banco médio e pequenotêm essa coisa do dono...”  Voltado para  o chamado middle market, especializado em dar crédito a quem não possuía credenciais suficientes para contrair empréstimos nos grandes bancos, o Rural chegou a ter 100 agências e vivia seu auge em 2004.
          Foi nesse mesmo ano que o destino de Kátia sofreria a segunda guinada. José Augusto Dumont morreu num acidente de carro no mês de abril. O paide Kátia ainda estava vivo. “Eu falei: agora chega. A vida inverteu tudo. Decidi sair do banco. Para mim, era uma traição. Sem o José Augusto não dava” – ela se exaltou, mantendo o olhar firme, sem piscar. “Por outro lado, como eu podia chegar no dia seguinte da morte do futuro presidente e dizer: Tchau, gente, estou indo para o meu balé?”
          O contador Plauto Gouvêa passou mais de duas décadas no Rural e está aposentado há dois anos. Homem que cuidava do back office do banco e fiel escudeiro do doutor Sabino, ele relata que estava em Brasília quando a mulher lhe telefonou avisando do acidente. Para Gouvêa, foi ainda pior do que a morte da irmã de Kátia. “Júnia e José Augusto faziam uma dobradinha. Ela era durona, de trato não muito fácil. Ele era simpático, amável.” Uma cena ficou gravada em sua cabeça: “Eu me lembro da primeira coisa que a Kátia disse quando eu cheguei ao velório do José Augusto. Ela olhou para mim e falou: ‘E agora, Plauto? O que é que eu vou fazer?’”
          Em novembro de 2004, a quebra do Banco Santos deflagrou uma corrida para os bancos grandes – apelidada fly to big– e provocou um abalo no Rural. Em meados de 2005, veio o mensalão e afundou o banco numa crise sem precedentes. O Rural viu sua carteira reduzida de 5 bilhões para 800 milhões de reais. Os acionistas injetaram 750 milhões de reais para mantê-lo vivo. (Hoje, com 23 agências e 700 funcionários, a instituição está reduzida a um terço do tamanho que tinha antes da crise.)
           
          xiste uma máxima para elucidar o jeito mineiro: “Em Minas tudo pode, menos o escândalo.” O jornalista Lucas Figueiredo, nascido em Belo Horizonte, gosta de repeti-la. Em 2006, ele lançou O Operador: Como (e a Mando de Quem) Marcos Valério Irrigou os Cofres do PSDB e do PT. Ele me recebeu numa manhã ensolarada em sua casa, pouco depois de chegar da corrida matinal em volta da lagoa da Pampulha. Foi logo falando: “Numa família de industriais, tem o filho que é criado para trabalhar no chão da fábrica. E tem o outro criado para ser cantor de ópera. O destino trai e o cantor de ópera se revela um excelente industrial.”
          Figueiredo defende a tese de que Kátia Rabello se tornou uma “banqueira tarja preta”. Ou seja, numa analogia mais explícita, ela seria a versão mineira de Michael Corleone, o personagem de Al Pacino no Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola.
          “Kátia não foi criada para ser uma criminosa, mas, quando ela é colocada dentro de um esquema criminoso, age como criminosa. Isso não exclui o fato de ela ser sensível, uma grande bailarina, uma excelente mãe, uma amiga fiel, uma pessoa adorada na sociedade”, enumerou Figueiredo. E concluiu: “É isso que as pessoas aqui não entendem. A banqueira tarja preta e a bailarina sensível são a mesma pessoa. A vida não é vilão contra mocinho. As pessoas são mais complexas do que isso.”
          Para o jornalista, encontrar alguém de peso disposto a falar do Banco Rural ou de Kátia em Belo Horizonte é uma missão impossível. “Aqui em Minas você não vai encontrar ninguém pichando a Kátia. O Banco Rural sempre foi amigo de todo mundo. Sempre ajudou todos os projetos políticos. Minas se protege. Vivemos na calmaria dos pântanos.” E disparou: “Ela foi condenada. Em algum momento vai para a cadeia. A banqueira vai para a cadeia. Existe um movimento muito grande em Minas para jogar água de colônia no currículo dela.”
          O Operador traça em detalhes o fio da meada do esquema de Marcos Valério, que desembocou no julgamento do mensalão petista. O Banco Rural aparece logo nos primeiros capítulos. Em 1998, o publicitário cedeu o nome da DNA – e por conseguinte o seu e o de seus sócios, Cristiano Paz e Ramon Hollerbach – para empréstimos no banco então presidido por Júnia Rabello e José Augusto Dumont. Conforme a denúncia, eles assinaram as promissórias, pegaram o dinheiro e repassaram para a campanha de Eduardo Azeredo e Clésio de Andrade, a dobradinha que disputava o governo de Minas pela coligação liderada pelo PSDB. O primeiro empréstimo foi de 2 milhões de reais. E o segundo, de 9 milhões. No caso em questão, os empréstimos também seriam fictícios. O Banco Rural não contava receber a dívida. Não em dinheiro, pelo menos.
          Azeredo perdeu a eleição para Itamar Franco. Mas Valério ganhou: a SMP&B e a DNA deixaram de ser as agências que atendiam ao governo de Minas e foram recompensadas com novas contas no governo FHC: além do Banco do Brasil e da Fundacentro, as empresas de Valério passaram a atender o Ministério do Trabalho, o Ministério dos Esportes e a Eletronorte. O Banco Rural, por sua vez, deixou barato. Emprestou 11 milhões de reais e recebeu 2 milhões, cinco anos depois. O restante seria pago em contratos publicitários, conforme o banco declararia posteriormente. O mensalão mineiro, como ficou conhecida a primeira fase do valerioduto, foi citado por Joaquim Barbosa como o início do que chamou de “quadrilha”. O caso está sendo julgado em Minas Gerais. Apenas Eduardo Azeredo e Clésio Andrade, que têm foro privilegiado, serão julgados no STF. O desmembramento da perna mineira e tucana do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal foi um dos pontos questionados pelos advogados de Kátia Rabello. Por que a diferença de tratamento, se o esquema era o mesmo?
           
          alando de São Paulo, via Skype, o ex-diretor do Banco Central, Nelson Carvalho, atualmente consultor e professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, saiu a campo na defesa de Kátia Rabello. Ele estava na sala de reuniões do Banco Rural quando o escândalo do mensalão estourou. Permaneceu ao lado de Kátia até 2009. Fazia parte de um grupo de consultores pessoais, que incluía ainda Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central; Paolo Zaghen, ex-presidente do Banco do Brasil; e o advogado mineiro Caetano Vasconcelos.
          Carvalho foi o primeiro a chegar. Fora contratado para assessorar Kátia após a morte de José Augusto Dumont. A memória do professor sobre o “dia fatídico” está viva: “Tínhamos acabado de comer, na sala de reunião mesmo, e ligamos a televisão. Naquele momento, apareceu a foto do Banco Rural de Brasília com as primeiras informações, ainda desencontradas, do que se tornaria o mensalão.”
          Ele convocou uma reunião e avisou Kátia do risco: poderia haver uma fuga de depositantes. “Eu disse a ela: você só tem uma possibilidade de parceria, a autoridade monetária. O Banco Central tem que estar a seu lado. Ele é o supervisor, ele é o regulador. Não interessa ao BC a quebra de um banco, na medida em que isso imprime o risco de um efeito sistêmico, gera metástase.” Carvalho ligou para o Banco Central e pediu uma reunião de emergência com o então presidente do BC, Henrique Meirelles. O chefe de gabinete marcou para o dia seguinte, sexta-feira, em São Paulo, onde o ministro estaria despachando. “O Meirelles agiu como eu acho que um presidente do BC tem que agir. Depois que expusemos o caso, ele saiu da sala. E meia hora depois voltou com a solução. Disse: ‘Estejam segunda-feira com o doutor Antonio Carlos Bueno, do Fundo Garantidor de Créditos.’”
          No retorno a Belo Horizonte, Kátia, assessorada por Carvalho e pelos outros consultores então contratados, iniciou a “operação salvamento” do Banco Rural. “Fechamos, acho, quase oitenta agências. Demitimos e indenizamos um número enorme de pessoas. Readequamos os produtos. Eu acompanhei o banco durante todo esse processo”, relatou Carvalho.
          Ao recordar esse período, ele afirma: “Eu conheci a Kátia. Houve dias em que vi dentro do banco, ao mesmo tempo, Polícia Federal, Ministério Público, Banco Central, auditores independentes. Isso causava um estresse inexplicável, mas a Kátia tinha uma habilidade incomum para manter o autocontrole. Em muitas reuniões, eu a ouvi dizer com muita sinceridade que também havia sido pega de surpresa. Tenho pena da Kátia. Ela está pagando pelos pecados que outros cometeram.”
           
          átia ajeitou-se mais uma vez na cadeira, à frente da mesa da sala de jantar. “Quando eu conto toda essa história, eu pulo a morte do papai. Era tanta confusão. O José Augusto tinha morrido há poucos meses. Logo depois veio a crise do Banco Santos, gerando um tsunami. Papai morre em janeiro de 2005. E, em seguida... o mensalão. Eu não havia superado ainda nem a morte da Júnia. Não há metáfora para abarcar o tamanho do que eu vivi”, ela diz, sorvendo um café preto. “Eu estava sozinha. E fui radical. Se o banco tem que encolher, vai encolher. Se o acionista tem que botar dinheiro, vai botar dinheiro. E a imprensa em cima. Eu tinha uma demanda de trinta entrevistas por dia.”
          O pior, porém, ainda estava por vir: o julgamento e a sentença. Kátia bebeu mais um gole de café e relatou as providências que havia tomado naquele dia, em Cuiabá, ao ler na tela do computador “condenada a dezesseis anos e oito meses de prisão”: chamou seu namorado e sua sobrinha, mandou que fossem para o jantar combinado com os empresários do ramo da teca, e ficou sozinha no hotel. Passou algumas horas na cama, olhando para o vazio. “Quando ficou tarde, senti fome. Aqui em casa a gente não perde a fome. Peguei um táxi e fui para um rodízio de peixes que eu amo em Cuiabá.” No dia seguinte, despediu-se do namorado, com quem estava havia nove anos. E seguiu para o aeroporto sozinha. A sobrinha também ficou. Na sala de embarque, escreveu um e-mail para ele, terminando a relação. “Qual o sentido? Qual o plano de vida? Qual a expectativa de construção? Nenhuma, né? Eu queria que ele se sentisse livre.”
          Dois meses depois, ela recebeu um e-mail do ex-companheiro. Era a letra de uma música: Esse Cara Sou Eu. Kátia leu e não reconheceu. Talvez fosse a única pessoa no país que não ouvira ainda o sucesso do Roberto Carlos, trilha sonora da novela das oito, Salve Jorge. Como ele mora em Mato Grosso do Sul, pensou que fosse um sucesso sertanejo. Naquele mesmo dia, embarcou para São Paulo para uma reunião com os advogados. No aeroporto, ouviu um flash da música. Ao chegar à capital paulistana, pegou um táxi e a música tocou mais uma vez. “Perguntei ao motorista: de quem é essa música, moço? Ele então me falou que era a música da novela. Quando voltei para Belo Horizonte, meu namorado veio me ver e reatamos. Eu não podia escolher por ele.” Kátia ri da piada de que tudo no Brasil acaba – “mesmo, né?” – é em Roberto Carlos.
          Seus advogados continuam trabalhando com recursos junto ao Supremo na expectativa remota de ainda livrá-la da prisão. “A gente sempre tem esperança”, ela diz.