Dirigindo do lado errado
Estávamos eu e meu marido na Escócia para o TEDGlobal e tínhamos um único dia livre antes do evento. Resolvemos então dar uma volta desde o litoral até o começo das Highlands, aproveitando que nessa época do ano o Sol brilha até depois das 22h. Um único e pequeno porém: lá se dirige "do lado errado" da estrada.
O aluguel de um carro com transmissão automática custava o triplo do carro básico, o que acabou enterrando definitivamente a alternativa mais fácil.
Mas o que eu queria era mesmo a transmissão manual. Afinal, por que perder a oportunidade de colocar nosso cérebro duplamente à prova: ter que usar a outra mão (e portanto o outro lado do cérebro) para trocar as marchas e ainda ter que dirigir do outro lado da rua?
Meu marido se aventurou primeiro, antecipando a visita a destilarias que me colocaria ao volante dali em diante.
Enquanto ele dirigia os primeiros minutos usando todo seu acervo de expletivos para expressar o esforço cognitivo de repetir mentalmente "ficar à esquerda, ficar à esquerda", usar braço e mão esquerdos para fazer movimentos nunca dantes feitos e ainda negociar o GPS comandando intermináveis sequências de rótulas na rua, eu não conseguia parar de rir.
Para meu cérebro, estava tudo errado, desde ver meu marido dirigindo no que deveria ser o banco do carona até me ver perto demais da calçada esquerda --que ele atropela algumas vezes no caminho.
Logo chegou minha vez ao volante, e descobri que usar o outro lado do cérebro para trocar as marchas até que não é problemático.
A essa altura, também já tinha entendido a lógica das rótulas e os comandos do GPS (muito educados, por sinal: "por favor, vire à direita"), então eu tinha um problema a menos para resolver.
Entrar com o carro na estrada, contudo, faz meu córtex cingulado anterior soar todos os alarmes, como numa piada de português: "Mas são uns loucos, estão todos dirigindo na contramão!".
Quando meu cingulado parou de antecipar a catástrofe e aceitou como a nova realidade dirigir do lado esquerdo da rua, é que me dei conta do verdadeiro desafio de dirigir do outro lado --e que explica a atração de meu marido pela calçada.
Quando meu cingulado parou de antecipar a catástrofe e aceitou como a nova realidade dirigir do lado esquerdo da rua, é que me dei conta do verdadeiro desafio de dirigir do outro lado --e que explica a atração de meu marido pela calçada.
No Brasil, nós nos acostumamos a ver a estrada do seu terço esquerdo atrás do volante. No Reino Unido, o motorista tem que ficar no terço direito da estrada.
O desafio, na estrada, assim como na vida, é aceitar um novo ponto de vista.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, professora da UFRJ, autora do livro "Fique de Bem com o Seu Cérebro" (Editora Sextante) e do blog www.suzanaherculanohouzel.com
O desafio, na estrada, assim como na vida, é aceitar um novo ponto de vista.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, professora da UFRJ, autora do livro "Fique de Bem com o Seu Cérebro" (Editora Sextante) e do blog www.suzanaherculanohouzel.com
Suzana Herculano-Houzel, carioca, é neurocientista treinada nos Estados Unidos, França e Alemanha, e professora da UFRJ. Escreve às terças, a cada duas semanas, na versão impressa de "Equilíbrio".