sábado, 13 de abril de 2013

Homofobia - Arnaldo Viana‏

Estado de Minas: 13/04/2013

Anos 1970. O telefone toca na seção de contabilidade da grande empresa. Uma funcionária atende.

– Seu Hélio, telefone para o senhor. É a Sílvia!

Chefe da seção, Hélio se levanta e vai até o telefone.

– Alô! Oi, Silvinha, meu amor. Sim, sim. Pego você às nove. Um beijo!

Volta à mesa, com um leve sorriso nos lábios. Meia hora depois, no café, o Chico, um dos contadores subalternos de Hélio, se aproxima.

– E aí, chefe? Feliz, né? A Sílvia faz muito bem a você.

– É verdade. Sem ela, não sei o que seria de mim…

– Gosto desse tipo de relacionamento. Cada um no seu canto e se amando.

– Quisemos assim. Quando pelo menos um está com saudade ou com vontade, nos encontramos. Saímos, namoramos, essas coisas…

– Parece uma forma mais duradoura, sem muita possibilidade de conflito.

– É verdade.

– Há gente na empresa que tem até inveja do amor de vocês. Mesmo não conhecendo a Sílvia, a quem você nunca nos apresentou. Nem nas nossas festas de fim de ano aparece...

– Quis assim. É muito reservada, na dela, sabe? Tem poucos amigos e amigas. Não gosta de se enturmar. Entendo e aceito. Aliás, na nossa relação há muito de aceitação. E lá se vão quase duas décadas de romance.

Cinco anos depois, a aposentadoria. Hélio ganha uma caneta da empresa e uma placa dos colegas agradecidos pelo compreensivo chefe que tiveram. No dia seguinte, Hélio entra em um hotel da Rua São Paulo. No segundo andar, bate à porta do quarto 21. Uma mulher beirando os 50 anos, olhos fundos e tristes, abre a porta e sorri.


– Oi, Hélio. Entre, por favor. O que o traz aqui a esta hora? Ainda é dia. Não é hora de trabalho?
– Estou aposentado, Sílvia. Vim aqui dizer que não precisa mais telefonar para o escritório. Não é mais necessário. Sou muito agradecido a você.

– Que isso? Foi até divertido. Vou até sentir saudade. Além do mais, você foi sempre muito bom para mim. Quando a coisa apertou aqui, me emprestou dinheiro e nunca quis receber.

Conversam por mais meia hora. Despedem-se. Hélio prometeu aparecer de vez em quando. Cinco dias depois, ele liga para o Chico.

– Preciso falar com você. Que tal amanhã, no Lucas, lá no Maletta, às oito? Certo. Espero-o lá.

 O ex-colega de trabalho chega ao bar e restaurante 15 minutos depois das oito.

– E aí, Hélio? Como vai a vida de aposentado? E a Sílvia?

– É sobre ela que quero falar. O que eu disser, prefiro que fique entre nós.

– O que aconteceu? Acabou o romance?
– Nunca houve romance.

– Uai, e quem é a Sílvia?

– É uma conterrânea. Encontrei-a por acaso aqui em BH. É prostituta e a propus se passar por minha namorada porque sou homossexual, Chico.

– Precisava disso?

– Precisava. Você sabe. Como homossexual, jamais chegaria aonde cheguei na empresa, que tem padrões rígidos, conservadores. Talvez, nem continuasse no emprego quando descobrissem.

– Isso é verdade. Houve casos de colegas demitidos sem explicação.

– Pois é, a Sílvia e eu nos sentimos iguais quando nos encontramos e ela não se opôs em me ajudar.

Beberam cerveja, falaram sobre outros assuntos e se despediram com aquele frase clássica: “A gente se vê por aí”.

Em tempo: parodiando de novo o amigo Carlos Herculano, esta crônica é para o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, Fel… Fel… Ah, como diz a música dos Beatles, banda de John Lennon (que não morreu a mando de Cristo), “let it be”.

Crianças viram escritoras; saiba como publicar seu livro

folha de são paulo

ANDRÉA LEMOS
DE SÃO PAULO

Um garoto acorda no meio da noite e percebe que seu quarto está cheio d'água. Peixes, polvos e outras criaturas do mar começam a entrar pela janela e pela porta.
Francesco Yunes, 7, sonhou com isso quando tinha cinco anos. Assim que acordou, contou tudo para a mãe, que digitou o que ouviu. Três meses depois, a história ganhou nome, "O Quartário", e virou livro. No final do ano passado, o novo escritor teve até tarde de lançamento, em que escreveu nos livros que autografou a mensagem "espero que goste".
Lucas Lima/Folhapress
Francesco Yunes, 7, já lançou seu primeiro livro
Francesco Yunes, 7, já lançou seu primeiro livro
Publicar um livro é o desejo de muita gente, pequena e grande. Para uns é mais fácil. O pai de Francesco é dono da Companhia Editora Nacional, que publicou "O Quartário" (R$ 37,90). Para outros, porém, é preciso entrar na fila das editoras na tentativa de ter a história aceita.
Fabiana Medina, editora-assistente da PubliFolha, conta que essas empresas costumam receber vários textos novos todos os dias. Mas muitos são reprovados porque são mal escritos, não combinam com o tipo de livro que a editora faz etc.
Olivia Muniz, 12, foi uma das que conseguiu ter sua história escolhida. Aos seis anos, a menina encucou com a ideia de desenhar coisas vistas de cima.
O pai adorou os desenhos e, cinco anos depois, em 2012, ele mostrou os rabiscos da filha a um amigo ilustrador, Fábio Yabu, que fez mais ilustrações como as da garota. Com o trabalho pronto, Fábio bateu na porta da PubliFolha, que gostou e resolveu publicar.
Assim nasceu "As Coisas Vistas de Cima" (R$ 14), que leva na capa o nome de Olivia e de Fábio.
Alexandre Severo/Folhapress
Junto ao ilustrador Fábio Yabu, Olivia Muniz lançou o livro "As Coisas Vistas de Cima"
Junto ao ilustrador Fábio Yabu, Olivia Muniz lançou o livro "As Coisas Vistas de Cima"
Outra opção é pagar para ter seu livro nas mãos.
Foi assim que Ana Luisa Borba Silva, 12, conseguiu estrear no mundo das letras. "Club Pink" (R$ 20), que conta a história de um colégio só de meninas, já está no segundo volume. Os dois livros foram publicados pela Scortecci Editora --que cobra a partir de R$ 1.000 para uma tiragem mínima de 50 exemplares.
"Escolhi o ilustrador e aprovei os desenhos. Adorei", diz Ana Luisa. Mas a melhor parte foi assinar Analu, seu apelido, no autógrafo. Ela fez lançamentos em uma livraria pequena e na Saraiva, que tem seus livros na prateleira.
A internet é também um bom caminho para virar escritor (veja quadro abaixo).
Editoria de Arte/Folhapress
+ CANAIS

Quadrinhos

folha de são paulo

CHICLETE COM BANANA      ANGELI
ANGELI
PIRATAS DO TIETÊ      LAERTE
LAERTE
DAIQUIRI      CACO GALHARDO
CACO GALHARDO
DAIQUIRI      CACO GALHARDO
CACO GALHARDO
PRETO NO BRANCO      ALLAN SIEBER
ALLAN SIEBER
QUASE NADA      FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ
FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ
HAGAR      DIK BROWNE
DIK BROWNE

Carandiru, um fato sem domínio - Maria Cristina Fernandes

valor econômico


Secretário de Segurança Pública de São Paulo até novembro do ano passado, o coronel da Polícia Militar Antonio Ferreira Pinto foi a fonte de inspiração da pesquisadora Marta Machado. Ao justificar a nomeação para o comando da Rota de um dos réus do processo que apura o maior massacre em presídio já registrado no mundo, Ferreira Pinto declarou: "O Carandiru é coisa do passado".
Professora da Fundação Getúlio Vargas, Marta foi instada por aquela frase a empreender a mais completa reconstituição dos fatos que sucederam à morte de 111 presos no presídio do Carandiru, em São Paulo. O julgamento começa segunda-feira, 20 anos, 6 meses e 13 dias depois do ocorrido.
Na companhia de duas outras pesquisadoras da FGV, Maíra Machado e Luísa Ferreira, Marta deu início a levantamento que incluiu a fotografia de cada página dos 50 volumes do processo. O primeiro produto da trinca é um artigo publicado no final do ano passado pela Novos Estudos (Cebrap).
Entre 79 réus do julgamento, há um único oficial
São 29 páginas a mostrar como truculência policial, incúria governamental, prepotência judicial e descaso político reunidos podem erigir um monumento à impunidade.
Entre os réus há um único oficial, o tenente coronel da Polícia Militar Luiz Nakaharada que, em função da origem japonesa, foi reconhecido por várias testemunhas como o policial que entrou numa cela e metralhou cinco presos.
O outro oficial arrolado no processo era o coronel Ubiratan Guimarães, morto em 2006. No intervalo de seus dois mandatos, Ubiratan submeteu-se a um júri que o condenou a 632 anos de prisão. Um desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo acabaria absolvendo o coronel. A possibilidade de recurso se esgotou com o assassinato, ainda não esclarecido, de Ubiratan.
Numa demonstração de que não era voz isolada, outro desembargador daquele tribunal, anos depois, negaria pedido de indenização da mãe de um dos presos mortos sob a justificativa de que a culpa era das vítimas que haviam iniciado a rebelião.
No último grande julgamento acompanhado pela opinião pública, a tese do "domínio do fato" pautou grande parte das discussões.
No do Carandiru as três maiores autoridades na hierarquia do sistema penitenciário do Estado da época, o governador Luiz Antonio Fleury Filho, o secretário de Segurança Pedro Franco de Campos e seu assessor para Assuntos Penitenciários, Antonio Filardi, nem sequer foram incluídos na denúncia.
A responsabilização dos três chegou a ser cogitada pela Justica Militar. O inquérito lá conduzido traz depoimentos em que o secretário de Segurança da época relata telefonema ao coronel Ubiratan, que chegara ao Carandiru na companhia do assessor de assuntos penitenciários. O secretário diz ter autorizado por telefone a invasão sem ter falado com o governador no interior do Estado.
Uma das epígrafes do trabalho traz uma frase com que o ex-governador um dia resumiu os acontecimentos: "Quem não reagiu está vivo". Duas semanas antes do aniversário de 20 anos do massacre, o atual governador, Geraldo Alckmin (PSDB), voltaria a usar a mesma frase para justificar a morte, pela Rota, de nove suspeitos num sítio da região metropolitana.
O inquérito acabaria remetido à Justiça comum, onde caberia ao procurador-geral de Justiça fazer a representação contra a cúpula do governo. O atual vice-presidente, Michel Temer, cumpria, no dia do massacre, sua última semana no cargo. Três governos e seis procuradores-gerais depois, nenhuma denúncia foi oferecida.
"Toda a jurisprudência internacional mostra que a responsabilidade aumenta quanto mais longe se está de quem pegou nas armas; o Carandiru vai na contramão", diz Marta Machado.
A instrução do processo teve dificuldade de atribuir responsabilidades individuais aos policiais porque os vestígios do massacre foram apagados do pavilhão 9. "O local dava nítidas demonstrações de que fora violado, tornando-o inidôneo para a perícia", diz o inquérito conduzido pela PM. Nos depoimentos dos policiais os detentos aparecem munidos de armas de fogo, facas contaminadas com sangue de aidéticos e sacos plásticos com urina. Mas no confronto não houve baixas policiais. O IML constatou que a maior parte dos 111 mortos foi atingida por mais de cinco tiros.
Se na Justiça o inquérito levou 20 anos de recursos, protelações e prescrições, na esfera administrativa a impunidade é ainda mais gritante.
Com base na Lei de acesso à informação, as pesquisadoras pediram os processos administrativos que tramitam na Polícia Militar. Receberam dezenas deles: um policial fora punido porque a farda estava incompleta e outro porque se atrasara na hora de se apresentar ao quartel. Não havia um único processo sobre o que acontecera naquele 2 de outubro de 1992.
O desdobramento mais concreto daquele massacre até o momento parece ter sido o PCC. No livro que escreveu sobre a organização ("Junto e Misturado", 2010), a antropóloga Karina Biondi recupera o depoimento à CPI do Tráfico de Armas em que Marcos Camacho, o Marcola, situa o massacre como determinante para o surgimento da facção criminosa que passou a liderar.
Ao propor, a um ano e meio da reeleição, que menores infratores tenham punições ampliadas Alckmin parece ver potencial eleitoral no discurso do endurecimento penal.
O médico Dráuzio Varella, que trabalhou no Carandiru, escreveu um artigo intitulado "Não haverá justiça sem punição do mandante". Recebeu três comentários no UOL, todos criticando sua posição. Num deles, uma leitora resume o espírito de parte do eleitorado que assistirá ao julgamento: "Pensava eu que encontraria aqui algo relacionado à corrupção. Esta frase salta do meu coração e do de milhões de outros brasileiros que perderam entes queridos, nas ruas, dentro dos seus lares, por esses mesmos bandidos citados na reportagem. E esses mandantes, na maioria desconhecidos, quem irá puni-los?"
Quando a demanda por justiçamento aparece assim, embaralhada, favorece um Estado policial, sem que este ofereça garantia de mais transparência e menos violência.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras
E-mail: mcristina.fernandes@valor.com.br


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O RISO PARA DEMOLIR IDEOLOGIAS E TABUS


O ESTADO DE S.PAULO -13/04/2013

MOACIR AMÂNCIO

O motivo da arte literária de HowardJacobson é provocar o leitor, isto é, não permitir que este passe indiferente pelas páginas do seu grande romance A Questão Finkler. O recurso mais eficiente para isso é o humor que demole ideologias, presunções, suposições, ideias feitas,pensamentos e fantasias ocultas, tabus em geral, etc. Verve e o senso crítico inesgotáveis transformam a leitura numa experiência eletrizante. A trama é muito simples: um homem de meia-idade, Julian, sofre um assalto ao sair da casa de amigo sem Londres e a possível ladra, sim, a ladra, além de surrupiar celular e cartões de crédito, enfia-lhe um prego nos miolos com esta frase incompleta: “Seu Ju...” Poderia ser o nome da personagem ou a pronúncia inglesa para jew, judeu.

Como ele não era judeu, mas seus dois grandes amigos e dos quais se torna um êmulo obcecado, Libor e Finkler, eram, ele não consegue mais se livrar daquilo.Começa então a procurar significados para a palavra ou meia palavra, enveredando poruma crise de personalidade divertida e dilacerante. Julian era do tipo tão comum que se parecia com todo mundo. Sem nada melhor para fazer, emprega-se como sósia de personalidades diversas numa empresa e assim ganha a vida, após demissão da BBC, que então passa a odiar. Como também não tinha um caráter muito definido,se é que isso existe,a transferência foi quase imediata :na hipótese de que a assaltante o havia chamado de judeu, num momento em que a Europa vive nova onda de antissemitismo e o conflito entre Israel e os palestinosmaisa polêmica generalizadae cheia de equívocos da desinformação ou da manipulaçãose acirra, elecomeçaa explorar as facetas daquilo que pensa ser um judeu.

Julian busca estereótipos para captaruma suposta essência em seus amigos.Libor,nascido na então Checoslováquia, jornalista de fofocas hollywoodianas, com idade para ser pelo menos seu pai,um boa praça muito sofrido e generoso, e o cínico Finkler, parceiro de infância, filósofo da televisão, um tanto rico graças ao sucesso com seus livros de auto ajuda e que não perde a oportunidade para cutucar os melindresdosdemais –sobretudodos outrosjudeus. Ele,porexemplo,participade uma sociedade de judeus “mortificados”, que se opõem ao Estado de Israel, são laicos e praticam todo tipo de ridicularias.Umdeles furtaprodutosisraelensesdossupermercados, outro expõe na internet suas pesquisas para tentar reverter a circuncisão. Ninguém escapa do ridículo. Julian é um tanto ingênuo e assim, talvez contaminado pela atividade profissional, passa deummoment para outro a se considerar judeu, mas influenciado pelo que vira na internet fica em dúvida quanto à circuncisão, pois teme que isso não seja lá tão benéfico para sua vida sexual.Emmeioatrapalhadasgerais,deparasecomolabirinto da personalidadehumana indefinível e fugidia, impossível de ser delineada em termos claros ou lógicos.

Ele não percebe que esse é o mesmo dramados seus amigos e de todos os demais. Se judeus, ou “finklers”, como Julian pensa, no seureducionismomeio infantiloutantã,são resultado de suas circunstâncias, e se eles foramedemaneira intermitentecontinuam a ser agredidos, se reagem desta ou daquela maneira, bastaria detectar a especificidade das reações, por exemplo, para que fossem resolvidos na sua cabeça. Quer dizer, um imenso e imaginário problema que parece resolver o enigma da experiência humana. Sóque nãoresolve, apenas acrescenta novas dúvidas e interrogações. Como ele não tem personalidadeeosamigosjudeusteriampersonalidade de sobra, então sua saída só podia ser a que escolhera, torna-seumaesponja que lhe permite viver nele mesmo de modo vicário, sem nenhuma certeza, mas com todas as dúvidas próprias e alheias.


Não estamosdiantedeumlivro “inofensivo”. Jacobson jamais deixa, como disse, o leitor intacto. O riso que provoca é uma autoironia que envolve completamente o leitor nas emoções, no patético e nomuito que as personagens têm de patetas – o romance recupera a eficiência do humor “popular” e erudito, livre do gravíssimo perigo representado por esse freio da inteligência chamadocensuraouautocensura.Ouocarnavalé risonho e franco ou não é. A certa altura, o leitor pode perguntar de maneira mesquinha e nas águas do pseudocriticismo: mas o romancista não se prenderia de maneira demasiada aos fatos do dia, pondo em risco a durabilidade do seu romance? Entre várias respostas podemos escolher a seguinte:sea questãodomomentoéoantissemitismo, algo quecomeçouhá muitos séculos e continua no presente, não parece mesmo que tudo continuará igual no futuro, com judeus ou outra minoria? Quer dizer, não há saída desse túnel de equívocos, horrores e um monte de bobagens pelas quais as pessoas simplesmente sofrem no eterno jogo do ser e do não ser. Azar o nosso, judeus, cristãos,muçulmanos,ateusdessas religiões, de outras religiões e sem religiãonenhuma. Comespírito demolidor, esgrimindoparadoxos, oautorconseguerealizar a proeza de escrever 400 páginas, todas criativas, inspiradoras, provocadoramente incansáveis e provarqueoromance,gênero literário, continua vivo e eficaz,emcem páginas de Juan Rulfo (Pedro Páramo) ou em 800 páginas de Howard Jacobson.


MOACIR AMÂNCIO É PROFESSOR DE LITERATURA
HEBRAICADA USP E AUTOR DE ATA (REUNIÃO DE LIVROS
DE POEMAS, RECORD), E YONA E O ANDRÓGINO,
NOTAS SOBRE POESIA E CABALA (NANKIN/EDUSP)

“QUAL O MISTÉRIO DESSA MULHER?”


O ESTADO DE S. PAULO - 13/04/2013

Cronista do Caderno 2 narra casos saborosos envolvendo ambos e diz: “Quero envelhecer como ela, de bem com a vida”

IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO


Sim, quero envelhecer
como ela. De
bem com a vida, de
bom humor. Escrevendo
com estilo,
elegância. Lygia está
sempre cuidando
de seus livros, a cada
reedição. Sem
desprezar os outros,
a Academia Paulista de Letras não seria
a mesma sem ela. Ela é riso do início ao
fim. É riso quando se atrapalha, quando se
esquece. É riso quando rememora seu ingresso
na Faculdade de Direito do Largo de
São Francisco. “Éramos apenas seis mulheres.
Todas virgens”, acentua. Ela é riso
quando rememoraumepisódio passado na
Alemanha,20anosatrás.Lembracomdetalhes,
até imita a maneira como os alemães
pronunciavam nomes brasileiros sem o til.
Se já contei o episódio, reconto. Porque é
a prova de que Lygia é iluminada, transcendental.
Estávamos em Colônia, falando em
um centro cultural. Lygia, João Ubaldo,
Márcio Souza, eu. Não era uma fala com
tradução consecutiva (quando se diz algumas
frases e o intérprete traduz) e sim simultânea(
falamoseosintérpretes nascabines
vão traduzindo diretamente para os fones
de ouvidos), o que é melhor para se
concentrar, não se perder o fio da meada.

Lygia falava havia meia hora, quando a
plateia começou a retirar o fone do ouvido,
a sacudir, amexernosbotões.Achavamque
havia um problema técnico. A tradução tinha
sido interrompida. Ray-Gude Mertin,
nossa anjo da guarda, correu e descobriu
que a intérprete de Lygia tinha desmaiado
na cabine. Corre, corre, não havia substituta.
Os alemães não são tão eficientes. Foi
anunciado ao público que Lygia encerraria
sua fala dado o incidente. No entanto, a
plateia protestou. Exigiuqueela continuasse
a falar até o finalemportuguês mesmo.E
Lygia falou pormais meiahora, porque gosta
de falar, tem emoção e poesia naquela
voz musical. Ninguém entendia nada, mas
quando ela terminou, aplaudiram de pé.
Qual a magia? Qualo mistério? Seria aquela
aura que ela sempre carregou e que nos encanta
na Academia ou nos palcos deste
País?Deondeela tira tanta força, tanta poesia,
tanta dramaticidade, tanto humor?

Até pouco tempo atrás, passados os 80
anos, ela continuava a participar da Viagem
Literária da Secretaria de Cultura, de cidadeemcidade.
“Precisodo dinheirinho”, explicava.
Mais do que isso, é a paixão. Tendo
se aposentado como procuradora do Estado,
poralgumaquestão burocráticaoupolítica,
viu seu salário ser cortado radicalmente
pelo governador Mário Covas, certa época.
O dela e o de todos os procuradores.
Sempre viajou sem uma queixa, sem cansaço
do falar, viajar, dormir, e viajar e falar e
seguir uma semana inteira.

Certa vez,emBerlim, JoãoUbaldo Ribeiro
e eu saímos, fazendo o tour das papelariasembusca
de cadernetas e canetas. Voltamos
carregados, demos com Lygia. Ela
viu nossas compras e, ciumenta e umpouco
invejosa, (no bom sentido) pediu o endereço
e saiu imediatamente. Passou o
tempo, estava na hora de partirmos para
as palestra e nada de Lygia. Desesperados,
sem sabermos o que fazer, porque conhecemos
a distração de nossa amiga, não sabíamos
se íamos à policia ou o quê. Em
Berlim, sem falar alemão, onde estaria?
Eis que ela vira a esquina e chega sorridente.
Tinha se perdido, mas não deu conta.
Achou a papelaria fez as compras e andou,
andou, andou, até reencontrar o caminho,
conduzida porumsanto protetor.Nãodissemos
nada, embarcamos e, como sempre,
ela nos deu um banho ao falar.

Foi ela quem deu o apelido de Raynha, à
nossa Ray Gude Mertin saudosa. A cada livro
novo, ou reedição, Lygia leva um bocado
de exemplares à Academia e distribui
comdedicatórias afetuosas.Hámbomtempo
não faz mais sessão de autógrafos. Na
Academia, exige sempre um copo de bom
vinho tinto, antes da sessão. Nunca deixou
de fazer uma intervenção nas reuniões.
Sempre que me encontra, me saúda: Ignácio
de Loyola Fagundes Telles.

Em Aracaju, na última noite de uma bela
feira, onde havia de Osman Lins a Nélida
Piñon, de João Antonio a Antonio Torres,
ela veio comunicar que haveria um jantar
na casa do gerente do Banco do Brasil, um
dos patrocinadores. O homem tinha pedido
a ela que transmitisse o convite. Estávamos
cansados, mas deveríamos ir, por educaçãoe
cortesia. “Afinal,umgerentedebanco,
que se interessa por autores e livros e dá
umjantar,temde ser atendido”, disse ela.E
fomos. Na casa, Lygia e o gerente sumiram.
Logo depois, ela voltou, encantada. “Precisam
ver a biblioteca do homem. Tem todos
os meus livros. Tem todos os livros de todos
que estão falando aqui na semana.Tem
livros autografados de todos os escritores
importantes do Brasil.”

Acho que ele se chamava Carvalho, era
grande e gordo, com uma mulher gorda e
afetuosa. Ambos tomavam uma caixa de
cerveja por dia. E liam. Leitores contumazes,
muitas vezes viajavam para Recife, Salvador,
João Pessoa para ouvir uma palestra
ou para uma noite de autógrafos. O jantar
foi debaixo de mangueiras imensas, num
dos mais belos quintais que vi pelo Brasil.A
comida típica sergipana rodou sem cessar
até a alta madrugada quente de Aracaju.
“Não ganhamos dinheiro, mas comemos e
bebemos e conhecemos gente por este Brasil”,
disse Lygia. “Quer coisa melhor?”

Ela ri dos outros, mas ri dela também.
Tempos atrás, quebrou o fêmur, passou
um tempo no estaleiro e ao voltar se apoia
em uma bengala. Há pouco recebeu convite
para ir a Feira de Frankfurt em outubro,
quando o Brasil será o homenageado. Respondeu
ao Manoel da Costa Pinto, um dos
organizadores: “Não posso ir, quebrei o
fêmur.” Ri muito e acrescenta: “Sempre
dizia quebrei a perna, até que meumédico
meaconselhou: é mais elegante dizer, quebrei
o fêmur, dá mais status. Perna ou fêmur,
está difícil de andar, de viajar”.

O mundo flutuante - José Castello


O Globo - 13/04/2013

O ROMANCE DE NAGAI KAFU ME LEVA A PENSAR EM OUTRO TERRITÓRIO MARGINAL: O DA ARTE E DA LITERATURA


Tenho um tio, Mário Guimarães,
que desapareceu. Se ainda estiver
vivo, terá seus 90 anos. Trabalhou,
durante longo tempo, no almoxarifado
de O GLOBO. Aposentouse.
Por motivos diversos, afastouse
de quase toda a família. Nunca se casou, ou —
que eu saiba — teve filhos. Um dia, no fim dos
anos 1970, simplesmente desapareceu. É uma
história antiga e turva. Meu pai lutou para encontrá-
lo. Fracassou. Seu desaparecimento, ainda
hoje, é um mito que perturba o espírito da família.
Fingimos aceitar a perda sem sentido. A
todos, porém, ela ainda esmaga um pouco.

Não me lembro por que razão contei essa história
durante uma oficina literária. Uma aluna
pediu a palavra. Seu pai também havia desaparecido.
Os anos se passaram. Depois de revirar
Curitiba em sua busca, a família decidiu que ele
estava morto. Só podia estar morto. Até que um
dia, o correio entregou na casa de minha aluna
uma caixa lacrada. Vinha sem o registro do remetente.
Minha aluna a abriu. Nela encontrou
os óculos de seu pai, o pente, os documentos de
identidade, fotografias pessoais, a carteira, o
chaveiro ainda com a chave da casa. Tudo o que
tinha de mais íntimo. Objetos que agora e enfim
ele devolvia, sem nenhum bilhete, nem uma palavra,
só para dizer que continuava vivo. Ou talvez
não: para enfatizar que não o esperassem
mais, que havia trocado sua vida por outra vida.
Que agora, para eles, estava definitivamente
morto.

Os dois episódios me voltam à mente enquanto
leio “Histórias da outra margem”, romance do
japonês Nagai Kafu (1879-1959), publicado pela
Estação Liberdade, com tradução de Andrei Cunha
e delicadas ilustrações originais de Shohachi
Kimura. Tento explicar a inesperada conexão.
O romance de Kafu é, na verdade, um relato
duplicado, isto é, uma história dentro de outra
história. Uma demonstração incontestável da
complexidade da ficção. Passa-se em Tóquio, algum
tempo depois do Grande Terremoto de
1923. Trata da vida de um homem solitário, Tadasu
Oe, que escreve um romance chamado justamente
“O desaparecimento”. Seu livro (o livro dentro
do livro de Nagai Kafu) conta a história de Junpei
Taneda, um cinquentão, pai de três filhos e
que vive um casamento infeliz — de conveniência
— com certa Mitsuko.
Um dia, Taneda também desaparece.
Assim Nagai Kafu resume
as circunstâncias: “Na primavera
de seus 50 anos, veio a
ordem da aposentadoria compulsória.
No dia em que foi buscar
o dinheiro da pensão, Taneda
não voltou para casa. Desapareceu
sem deixar traço”. Seu
personagem-escritor, Tadasu
Oe, o criador de Taneda, sabe,
porém, que, tempos antes, e por
acaso, o desaparecido conhecera uma mulher
chamada Sumiko, que trabalhava em um bar de
Komagata. “Taneda passara então a frequentá-lo
esporadicamente, para se embebedar de cerveja”.
Supõe Tadasu Oe — sem saber o motivo do desaparecimento
de seu personagem — que ele tenha
algo a ver com a mulher do bar.

Chega a decidir que, depois de receber a aposentadoria,
Taneda, com o dinheiro no bolso, dirigiu-
se ao bar de Komagata para se encontrar com
Sumito. Teriam passado a noite juntos — mas ele
parece não ter muita certeza disso. Só consegue
chegar até aí: nada mais sabe dizer a respeito do
sumiço de Taneda. “Daí em diante, ainda me falta
descobrir como continuar a história”, admite o escritor-
personagem. Admito
também eu: esse momento da
leitura produziu em minha
mente um pequeno golpe. Imediatamente,
revi o semblante
sombrio de meu Tio Mário, espantado
como o Rei Lear. Revi,
ainda, a face branca de minha
aluna enquanto relatava, aos
trancos, o desaparecimento de
seu pai. Muitos leitores não imaginam
os fatos imprevisíveis que
surgem durante as oficinas literárias.
A ficção tem o poder atordoante de arrastar
consigo memórias perdidas e recordações desagradáveis.
Ela é uma espécie de máquina que faz a
mente se mover — e não podemos controlar a direção.

O título do romance de Nagai Kafu, “Histórias
da outra margem”, não fala apenas na Tóquio marginal
— simbolizada pelo antigo bairro de
Yoshiwara, separado do resto da cidade por um
canal e ao qual só se tinha acesso através de uma
entrada, o Grande Portão. É o lendário bairro
dos bordéis, das gueixas e dos prazeres proibidos.
Desde a Idade Média, nos lembra Nagai Kafu,
passou a ser conhecido como “ukiyo” — isto
é, “mundo flutuante”. Mundo em que atracam
todas as coisas que a vida civilizada despreza e
quer esconder. Último esconderijo, onde a vida
se passa à meia luz e flutua sem destino. Mundo
dos objetos perdidos, que traz em seus fundamentos
a garantia de que eles jamais serão reencontrados.

O delicado romance de Nagai Kafu me leva a
pensar em outro território marginal: o da arte e
da literatura. Tudo aquilo que não pode se expressar
claramente emerge, de súbito, e só por
um breve instante, através delas. Tudo o que parece
expulso, ou perdido, nelas resiste. Não sei o
que minha aluna pensa a respeito — não a vejo
há muitos anos e sequer recordo seu nome. Ela
é, para mim também, um objeto (um ser) que
desapareceu e, no entanto, resiste em minha
memória não através de sua face, ou de seu nome,
mas da história que me relatou. Também
meu Tio Mário, ao sumir para sempre, parece ter
atravessado o Grande Portão de Yoshiwara, rumo
a um mundo inacessível, mais mentiroso,
mas também mais livre, que o real.

Penso que ambos — assim como Taneda, o
personagem de Tadasu Oe, por sua vez o personagem-
escritor de Nagai Kafu — perderam-se,
para sempre, na esfera longínqua da ficção. Como
chegar até ela? As pessoas costumam acreditar
que a ficção é “qualquer coisa”. Que a fantasia
é arbitrária, gratuita e prepotente. Esquecem-se,
assim, de seu elo misterioso com a memória.
Ficção não é memória — não é história, tampouco
confissão —, mas é algo que se passa, em parte,
só em parte, em sua esfera e sob seu comando.
Algo que transcorre em um limite, um “limite
flutuante” (como o “ukiyo” japonês), a que só
temos acesso através de um portão muito estreito.
É lá que o pai de minha aluna se perdeu. É por
lá que perambula, vivo ou morto, meu Tio Mário.
É lá que se escondem as melhores histórias
que temos para contar.