domingo, 21 de outubro de 2012

Meu avô desconhecido [Graciliano Ramos]


ARQUIVO ABERTO

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Meu avô desconhecido
Rio, anos 50
Acervo Dalcídio Jurandir
Graciliano Ramos (de braços cruzados e óculos) em Moscou, em 1952
Graciliano Ramos (de braços cruzados e óculos) em Moscou, em 1952

RICARDO RAMOS FILHO

Muitos me perguntam, já perdi a conta de quantas vezes respondi, mas não conheci Graciliano. Vim ao mundo no começo do ano seguinte à sua morte, primeiro nascimento na família após a partida do autor alagoano (1892-1953).
Dizem que foi grande a alegria, festejaram bastante a minha chegada. Entusiasmo por pouco não transformado em tragédia; fardo dificílimo carregaria para o resto de minha pobre vida se me batizassem como pretendiam.
No início, aventaram a possibilidade de me homenagear com o nome de vovô, ou o contrário, nunca entendi bem a quem seria o tributo. O fato é que, se tivesse vingado, este texto seria assinado por Graciliano Neto. Felizmente minha mãe preferiu presentear o marido -nasci no dia do aniversário de meu pai e virei Ricardo Filho.
Minha avó Heloísa Ramos, recém-viúva, afeiçoou-se demais a mim. Parentes maldosos, versados em Freud, apressaram-se em diagnosticar tanto carinho como transferência. Nunca me importei, até porque só fui precisar do psicanalista austríaco bem mais tarde. Aproveitei ao máximo o convívio com vó Lozinha. O velho Grace, embora avô desconhecido, acabou por tornar-se íntimo, pois vovó falava nele o tempo todo.
Para mim, era um herói igual aos encontrados nos gibis. Tinha muito do Fantasma, a cadela Baleia era o seu Capeto. Imaginava-o um Tarzan nordestino, encontrava-o no Príncipe Valente e no Robbin Hood. Só imaginando-o em uma Sherwood alagoana, aliando-se aos pobres contra os ricos, consegui entender por que tinha sido preso. Da mesma forma que o Popeye não largava o cachimbo, meu avô não desgrudava do cigarro: era assim que o via em todas as fotos.
Como acontece com a maioria das pessoas, cresci. E, ao entrar em contato com a obra de Graciliano Ramos, mudei minha relação com ele. É claro que fiquei impressionado. Como é que alguém podia assinar um texto sem assinar?
Seu jeito característico de arranjar palavras, tão pessoal na maneira de dizê-las, permitia-me encontrá-lo com facilidade em qualquer página avulsa escrita por ele, mesmo sem identificação.
De certa forma, aquele herói tão próximo afastou-se. O respeito instalou-se e virou reverência. Embora tivesse muito carinho pelo primeiro, o segundo transformou-se em exemplo importante, matéria de estudo, referência.
Ao olhar a foto presente na edição de "O Velho Graça", de Dênis de Moraes, que está saindo pela Boitempo, vejo o escritor. Recupero misturadas informações lidas e familiares. Ouço minha mãe referindo-se ao mau humor dele nas vésperas de partir para o estrangeiro, provavelmente inseguro ante perspectiva tão assustadora.
Lembro-me do início de "Viagem", onde ele conta que em abril de 1952 embrenhou-se em uma aventura singular. Foi a Moscou e a outros lugares. Para ele, homem sedentário, resignado ao ônibus e ao bonde quando o movimento era indispensável, não deve ter sido fácil.
Sair de sua toca e entrar em um avião, aparelho assassino, atravessar o oceano e conviver com pessoas diferentes, tendo a necessidade de entendê-las e precisando de intérpretes, encontrar uma polícia que, em vez de levá-lo para a cadeia, como lhe parecia natural, ajudava-o, todas essas experiências novas me parecem marcadas em sua silhueta magra de braços cruzados.
Atento, curioso, divertindo-se com o discurso da menina de sobrancelhas "lobatianas". Vejo no corpo frágil o esforço físico necessário para estar ali. Talvez por eu conhecer seu destino -em menos de um ano, 20 de março de 1953, estaria morto.
Imagino-o mergulhado em seu humor característico ácido, irônico, inteligente, atento ao que ocorria a seu entorno e tirando suas conclusões. Não encontro o cigarro em seus dedos e sei o quanto deve estar sentindo falta.
Um Dalcídio Jurandir empertigado à sua direita e o amigo Sinval Palmeira, o primeiro à esquerda na foto, também não me parecem confortáveis. Ao vê-lo nessa antiga fotografia em preto e branco, recupero o meu avô desconhecido.
Com carinho e respeito.

O Mapa da Cultura


DIÁRIO DE TÓQUIO
O MAPA DA CULTURA
O dia
Uma ideia na cabeça e 200 câmeras na mãoANGELO ISHI

"Japan in a Day", produzido por Tony e Ridley Scott e pela Fuji TV, abriu o 25º Festival Internacional de Cinema de Tóquio, ontem.
O longa é inspirado em "Life in a Day", também produzido por Scott, que reuniu imagens captadas no mundo todo em um mesmo dia. "Japan in a Day" traz cenas colhidas no último 11 de março, um ano após o tsunami causado pelo terremoto na costa leste do país.
A Fuji TV criou um site onde qualquer um poderia postar o que filmou. E distribuiu 200 câmeras entre habitantes de Tohoku, a região afetada por tremores, ondas e pânico nuclear. Uma equipe da Fuji também colheu imagens no dia.
O material foi editado por Philip Martin (documentarista vencedor do Emmy) e Gaku Narita (diretor de novelas). A obra é anunciada como "social movie", criação coletiva que seria "o autorretrato do Japão atual, filmado por você".
Amanhã, haverá uma exibição simultânea no Roppongi Hills, quartel-general do Festival de Tóquio, e na Universidade de Tohoku, na região atingida no 11 de março. As salas estarão interligadas por sistema de videoconferência -a exibição será seguida de uma mesa-redonda virtual.
Com estreia comercial em novembro, o filme tem potencial para causar catarse. Será a primeira vez que uma obra sobre a tragédia ocupará as telonas de todo o Japão.

JAPÃO VERSUS CHINA
O conflito territorial sino-japonês vem atingindo o intercâmbio cultural e artístico entre os dois países. A Federação Empresarial Japonesa cancelou em setembro a Green Expo, que seria em Xangai. A 6ª Feira de Animes e Mangás, marcada para este mês em Guangzhou, foi adiada "por tempo indeterminado". Em Pequim, exposição sobre o personagem de anime Doraemon, que começaria no dia 15, também foi postergada.
Estima-se que, entre setembro e novembro, 50 mil chineses terão deixado de vir ao Japão, obrigando as empresas aéreas japonesas a reduzirem voos da e para a China.
O cantor Shinji Tanimura, cujo show comemorativo dos 40 anos de relações Japão-China foi cancelado pelo lado chinês, lamentou: "Não podemos permitir que cesse o intercâmbio entre as pessoas."
NEONS E TIJOLOS
Dizer que o cenário urbano de Tóquio está em constante mutação pode soar óbvio. Mas quem visitar a metrópole notará mudanças radicais em dois cartões-postais: o bairro de Shinjuku e a estação ferroviária de Tóquio.
Em Shinjuku, cujos neons inspiraram Ridley Scott a conceber "Blade Runner", a tradicional loja de departamentos Mitsukoshi fechou e deu lugar ao Bicqlo, mistura das iniciais de Bic Camera com as letras finais de Uniqlo.
Bic Camera é uma famosa loja de eletrônicos do país. A Uniqlo virou uma popular grife de roupas casuais. O objetivo da parceria seria atrair turistas, em especial asiáticos, que poderão saciar no mesmo prédio a sede pela tecnologia e pelas roupas "made in Japan".
Já o edifício da estação de Tóquio, ponto inicial do trem-bala Shinkansen, acaba de ser reinaugurado, após cinco anos em que se restaurou a arquitetura de 1914. O prédio, que já era registrado como patrimônio cultural nacional, virou museu aberto, com seus tijolos vermelhos como marca registrada.
o verdadeiro talento
Será em fevereiro a estreia da peça "Horowitz to No Taiwa" (diálogo com Horowitz), sobre o pianista Vladimir Horowitz. Ela marca a volta do hollywoodiano Ken Watanabe aos palcos após 12 anos.
"Quero que Clint Eastwood e Christopher Nolan venham ver", convida o diretor Koki Mitani (Eastwood dirigiu Watanabe em "Cartas de Iwo Jima", e Nolan, em "A Origem"). E desafia: "Eles verão que não conheciam nem metade do talento de Watanabe."

Poesia cinquentona


ENTREVISTA - AL ALVAREZ
Crítico rememora 50 anos de verso e prosa 

MARINA DELLA VALLE

RESUMO
Editor e crítico, Al Alvarez revelou nomes hoje canônicos na poesia de língua inglesa, como Ted Hughes e Sylvia Plath, e movimentou a cena literária a partir do pós-guerra com seus ensaios, entre eles um manifesto contra o "excesso de gentileza" na lírica britânica, e a antologia "New Poetry", publicada há 50 anos.

Al Alvarez, 83, DIZ não achar importante falar sobre o passado. "Isso foi há muito tempo. O que posso fazer por você hoje?", desconversa o escritor, poeta, crítico, jornalista e editor britânico à Folha ao ser questionado sobre o cinquentenário da publicação da antologia "The New Poetry" (Penguin), que reuniu poetas da cena pós-Guerra hoje entranhados no cânone literário britânico.
O passado de Alvarez, porém, fala por ele. Quando editou a "The New Poetry", aos 33, já havia passado por uma meteórica carreira acadêmica -foi a pessoa mais jovem a ministrar os importantes seminários "Charles Gauss Lectures", sobre literatura, em Princeton- e largado tudo para ser o crítico de poesia do jornal "The Observer". Também foi editor e consultor de publicações de poesia da Penguin.
Entre suas apostas, estavam Ted Hughes, Sylvia Plath, Tom Gunn, Robert Lowell, uma mescla de britânicos e americanos que viria a se tornar central na poesia de língua inglesa. "Na época, aquilo era importante para a minha vida", resume. Alvarez fala de sua trajetória, ainda com certa relutância, como uma sequência de ciclos fechados, deixados de lado conforme diminuía seu interesse por eles.
Essa característica se refletiu em seu histórico de publicações: além de poemas, críticas e ensaios, escreveu sobre suicídio ("O Deus Selvagem", 1972), divórcio ("Life After Marriage", 1982), sonhos ("Noite", 1995), a indústria petroleira ("Offshore"), uma autobiografia ("Where Did It All Go Right", 1999), dois livros sobre pôquer, uma de suas paixões e um perfil do alpinista britânico Mo Anthoine, seu colega de escaladas.
Mas foi com a crítica de poesia que alcançou influência. A primeira edição da "New Poetry" trouxe o ensaio "Beyond the Gentility Principle", um ataque ao que chamou de "excesso de gentileza" na poesia britânica, o que, para ele, tinha como resultado uma rigidez antiquada. Alvarez fundamentou suas ideias fazendo comparações com a poesia americana, representada por Robert Lowell e John Berryman, e percebendo contrastes entre o velho e o novo, exemplificados, respectivamente, por Philip Larkin e Ted Hughes.
O ensaio causou impacto e influenciou gerações de poetas. Em 1966, saiu uma edição revisada da antologia, dessa vez incluindo Sylvia Plath e Ann Sexton.
No início dos anos 60, Alvarez se aproximara do círculo poético conhecido como "confessional", que usava dificuldades pessoais como matéria-prima para a poesia. Após o fracasso de seu primeiro casamento e a subsequente tentativa de tirar a própria vida, escreveu "O Deus Selvagem" (Companhia das Letras, 1999), seu livro mais conhecido, uma reflexão sobre a relação do suicídio com a criatividade.
A popularidade do livro foi impulsionada pelo longo relato de Alvarez sobre seu último encontro com Sylvia, meses antes do suicídio da poeta -a história trágica e a violência dos poemas de seu livro póstumo, "Ariel", tornaram Sylvia popular entre a primeira geração do feminismo, no início de um interesse que segue até hoje.
A relação com Plath levou Alvares a ser retratado no filme "Sylvia" (2003), sobre o casamento de Ted Hughes (Daniel Craig) e Sylvia Plath (Gwyneth Paltrow); ele próprio foi interpretado por Jared Harris. A experiência não foi agradável. "Me colocaram como um tolo. Nunca fui daquele jeito", diz, reclamando dos diálogos cheios de clichês.
Aparentemente, a fuga do óbvio foi o fator preponderante de trajetória cheia de curvas bruscas. Leia a seguir trechos da entrevista que o autor concedeu à Folha, por telefone, de sua casa em Londres:
Folha - Neste ano a primeira publicação da "New Poetry" faz 50 anos. Como o sr. vê o papel da revista na cena literária da Inglaterra?
Al Alvarez - Isso foi há muito tempo. O que posso fazer por você hoje? Já não acompanho poesia, é uma parte da minha vida que acabou. Não saberia dizer como essa cena literária se desenvolveu.
Na época, o sr. era uma figura central na revista e na cena poética inglesa. Poetas o procuravam para saber sua opinião sobre o que produziam. Seu papel como crítico extrapolou o âmbito da publicação?
Aconteceu de autores me mostrarem seus trabalhos em busca de opinião. Naquela época, queria publicar os poetas dos quais gostava, e muitos desses eram meus contemporâneos, uma grande parte nada conhecida no momento da publicação.
E acho que deu certo. Muitos poetas publicados na antologia se tornaram nomes conhecidos, então acho que saiu tudo bem.
Seu ensaio sobre o "excesso de gentileza" na poesia inglesa causou impacto e continua relevante. O sr. imaginava essa repercussão?
Na verdade, sim. Eu era jovem, passei anos como editor de poesia do "Observer", e poesia era algo central na minha vida. Consequentemente, também era importante escrever e fazer as pessoas pensarem sobre ela.
O sr. desenvolveu uma carreira acadêmica importante ainda muito jovem, mas logo a deixou de lado e nunca mais voltou. Por quê?
Gosto muito de dar aulas, mas não gostava do ambiente. Não falo isso em relação aos alunos, o que eu não gostava era do ambiente nos departamentos. Então resolvi deixar aquilo de lado e procurar meu próprio caminho.
Foi em busca desse seu próprio caminho que resolveu escrever sobre assuntos não relacionados à literatura, como pôquer e alpinismo?
Você leu meus livros sobre pôquer? Sempre procurei escrever sobre os assuntos que fazem parte da minha vida, e o pôquer teve um papel importante nela (risos).
Escrevi um livro sobre Mo Anthoine [o alpinista britânico Julian Vincent Anthoine, companheiro de escalada de Alvarez], uma pessoa interessante, inteligente, engraçada. Você leu esse livro ["Feeding the Rats: Profile of a Climber"]? Não? É interessante, acho que ficou bom.
Ao menos internacionalmente, seu livro mais conhecido é "O Deus Selvagem". A que credita isso?
Pois é, faz 40 anos, mas ainda é meu livro mais conhecido. Acho que é por causa do tema, o suicídio. Ninguém escrevia sobre isso, o que tornava o assunto importante.
Boa parte do interesse se deve à descrição de seu último encontro com Sylvia Plath, não acha?
Sim, também há o interesse em Sylvia. Foi importante escrever sobre ela e sua morte. De repente, ela estava morta, mas ao mesmo tempo continuava tão viva... Quis escrever sobre essa poeta que passou por tempos difíceis e que usou a força disso em seus poemas.
Naquele tempo, Sylvia não era tão conhecida em Londres, mas sua morte foi significativa para diferentes pessoas por diferentes motivos. Escrever sobre ela foi importante para mim mesmo. Desde então, fiz o que pude para demonstrar que o que importa é o que ela escreveu, e não a maneira como perdeu a vida.
Ela virou um nome conhecido, e acho que contribuí para isso. Fico feliz em pensar que sim.
Você aparece como personagem do filme sobre Sylvia Plath. Como foi essa experiência?
Ah, estranha. O ator que me interpretou veio me encontrar antes das filmagens. Mas a maneira que fui retratado... Me colocaram como um tolo, falando como um tolo, e nunca fui daquele jeito. Posso dizer que não foi uma experiência agradável (risos).
E qual sua opinião sobre o filme?
Em relação a Sylvia, acho que é razoável. O que me incomoda é que se trata de um filme sobre poetas, e poetas são fascinados por palavras, pela linguagem. Isso não se reflete nos diálogos, que são cheios de clichês.
Essa paixão pelas palavras poderia ter sido demonstrada na fala, mas isso não acontece.

Antes do Millenium Stieg Larsson e a gênese da trilogia

INÉDITO

JAN-ERIK PETTERSSON
tradução MARIA LUIZA NEWLANDS


RESUMO
A série de textos que a "Ilustríssima" apresenta em primeira mão traz trecho da biografia do sueco que virou fenômeno póstumo do romance policial com a trilogia "Millennium". "Stieg Larsson" sai pela Companhia das Letras em 5/11. Neste trecho, são narrados os últimos dias de Lasrsson, morto em 2004.

A morte de uma jovem curdo-sueca, Fadime Sahindal, em 2002, assassinada pelo próprio pai, havia desencadeado um debate acalorado. Ela apareceu na televisão e falou abertamente do pai e do irmão, que desaprovavam seu estilo de vida independente, vigiando-a, fazendo-lhe ameaças e maltratando-a. Chegou a falar no Parlamento sobre sua situação, num seminário sobre a violência contra as mulheres em 2001. Então, quando foi visitar a família em Uppsala, o pai a matou.
Houve um tremendo clamor na Suécia inteira sobre o conceito de crimes de honra e sobre a violência relacionada à honra, muitas vezes dando margem a generalizações toscas sobre culturas estrangeiras e sobre a atitude dos curdos e dos muçulmanos no trato com as mulheres. Formou-se uma associação para difundir informações sobre crimes de honra que se chamou "Nunca esqueçam Pela e Fadime".
Feminismo e antirracismo estavam ligados, Stieg Larsson havia afirmado, mas na realidade o debate público que se seguiu ao assassinato de Fadime parecia insinuar o oposto. Mulheres jovens, muitas de famílias de imigrantes, se manifestaram para criticar as atitudes e códigos morais de certos grupos de imigrantes.
Antropólogos sociais escreveram artigos sobre as origens culturais do conceito de honra. Stieg mostrou-se ao mesmo tempo indignado e preocupado à medida que as discussões revelavam que algumas feministas eram também racistas, e antirracistas eram acusados de relutância em se opor à violência contra as mulheres.
Junto com sua colega da revista "Expo", Cecilia Englund, ele imediatamente encomendou uma antologia na qual nove escritores analisavam a questão dos crimes de honra. [...]
A antologia foi um exemplo típico da maneira como Stieg reagia às questões sociais. Seu impulso era mergulhar na discussão, sem subterfúgios, assumir uma posição firme e identificar a oposição. A antologia como um todo contribuiu pouco para esclarecer as coisas. Crimes de honra e violência em nome da honra de fato existiam ou seriam uma construção puramente mental para macular a imagem dos imigrantes e encobrir a verdade sobre o quanto estava realmente disseminada a violência contra as mulheres na Suécia?
Stieg Larsson não é perfeitamente claro sobre esse ponto. Mas seu pensamento parece inequívoco: o debate sobre os crimes de honra dava carta branca aos homens suecos. Stieg rejeitava inteiramente as tentativas de explicar o assassinato de Fadime em termos de antropologia cultural. A explicação era muito mais simples: "A verdade é que em sociedades dominadas pelos homens as mulheres são mortas por homens".
FRENÉTICO
O ano de 2004 foi frenético para Stieg Larsson, para dizer o mínimo. O livro sobre crimes de honra saiu em janeiro; ele estava trabalhando numa contribuição para outra antologia, "O partido Democrata Sueco visto por dentro", organizada por um colega da "Expo", Richard Slätt; e precisava produzir seu "Manual para Democratas", com Daniel Poohl, para o Museu Malmö até o fim do ano.
No verão, ele participara da Conferência de Segurança Europeia, representando o Ministério do Exterior da Suécia.
Poohl lembra-se de Stieg estar extraordinariamente estressado naquele outono. Assediavam-no de tudo que era lado. Diversas instituições e escolas vinham telefonando para convidá-lo a dar palestras ou falar em salas de aula. Stieg sempre considerou as preleções uma parte importante de suas atividades, mas então já começava a se cansar e esperava ansiosamente que diminuíssem.
Também tinha, porém, razões para ficar alegre. A essa altura já sabia que seus romances seriam publicados e que poderia continuar a escrever ficção policial. Só o que tinha a fazer era apresentar novos manuscritos e eles seriam aceitos. Em outubro, foi entrevistado por Lasse Winkler, editor-chefe da revista de comércio livreiro "Svensk Bokhandel". O artigo começava assim: "Tomem nota do nome de Stieg Larsson. Ele não é igual aos outros autores".
Deve ter ocorrido a Stieg na ocasião que o estilo de vida anônimo que ele escolhera estava chegando ao fim, que daí em diante ele estaria sob os holofotes, não tanto como antirracista mas como escritor de romances policiais. Talvez até tivesse de ser entrevistado naqueles programas de bate-papo na TV que ele tanto detestava.
Também pressentiu que ganharia dinheiro com os livros. Os editores davam todos os sinais de terem farejado um best-seller em formação. E isso de maneira nenhuma o contrariava; garantiria não só sua própria segurança financeira como o futuro da "Expo", além de lhe dar dinheiro para outras causas que considerava essenciais, como os abrigos para mulheres vítimas de violência.
Ao tomar um táxi certo dia naquele outono, descobriu que o motorista era um antigo colega da [agência de notícias] TT. Stieg contou-lhe, entusiasmado, sobre seus livros e como o editor acreditava neles. "Imagine só, parece até que vou ser mais importante do que [o norueguês Henning] Mankell!"
Para a equipe de uma revista antirracista como a "Expo", o dia 9 de novembro era uma data significativa, de associações sombrias. Os acontecimentos da noite de 9-10 de novembro de 1938 vieram a ser conhecidos como Noite dos Cristais. Nas cidades da Alemanha inteira as pessoas ouviram o barulho dos vidros quebrados e viram as labaredas das sinagogas incendiadas.
O que estava acontecendo e não se via era ainda pior: surras, linchamentos, o transporte de milhares de judeus para os campos de concentração. A Noite dos Cristais foi o início da escalada irreversível da perseguição aos judeus: o 9 de novembro foi o arauto do Holocausto. Era uma data em que a equipe da "Expo" costumava sair para encontros pelo país, o que ocorreu naquele dia, 9 de novembro de 2004.
O próprio Stieg deveria comparecer naquela noite à Associação Educacional dos Trabalhadores [ABF-huset], em Estocolmo, com Kurdo Baksi. Durante o dia, iria trabalhar no escritório da redação. Sua companheira, Eva Gabrielsson, viajara a trabalho para Falun, no condado de Dalarna, e Stieg foi de ônibus de casa para o escritório em Kungsholmen.
PÁLIDO
Quando chegou, o elevador estava com defeito, de modo que não teve opção a não ser subir os sete andares de escada até a redação. Cumprimentou os colegas ao chegar e tudo parecia normal. Mas em seguida eles notaram que algo não ia muito bem. Stieg estava incrivelmente pálido, e de repente se curvou em cima de sua escrivaninha e caiu no chão.
Os colegas acorreram, não conseguiram fazê-lo reagir e perceberam que era sério. Telefonaram na mesma hora para uma ambulância, que chegou em minutos e o levou às pressas para o hospital St Göran, perto dali.
Mikael Ekman estava naquele dia a caminho de Umeå, cidade natal de Stieg, para dar uma palestra sobre o neonazismo sueco e participar de um comício para rememorar a Noite dos Cristais. Iria também visitar o pai de Stieg, Erland, como Stieg lhe pedira. No aeroporto, Mikael recebeu um telefonema de Ulrika Svensson, da "Expo", contando que Stieg perdera os sentidos e estava sendo levado para o hospital. Ele ligou para Eva Gabrielsson e para David Lagerlöf, seu colega na revista. Depois desligou o telefone e entrou no avião. Ao chegar a Umeå, não o religou. Sabia que a situação de Stieg parecia ruim, mas decidira cumprir seus compromissos.
"Quando acabei de dar a palestra e estava a caminho do comício, liguei meu telefone e encontrei uma porção de mensagens, todas dando a mesma notícia: Stieg tinha morrido." Eva Gabrielsson apanhou um avião de volta para Estocolmo assim que recebeu a ligação em seu celular, apesar das informações vagas. Ao chegar ao hospital naquela noite, recebeu a notícia arrasadora.
Erland Larsson estava indo para casa depois de ir à biblioteca local para fazer pesquisas sobre história familiar quando sua companheira, Gun, veio a seu encontro e contou que Stieg perdera os sentidos. Ele conseguiu um número de telefone do hospital, mas era um celular e o médico com quem falou "não disse coisa com coisa e não sabia de nada". Erland também apanhou o primeiro avião disponível para Estocolmo a fim de ficar à cabeceira do filho. "Mas quando cheguei lá me disseram que ele tinha morrido. Nessa hora a gente só tem vontade de morrer também."
À noite, Mikael Ekman saiu para tomar uma bebida com Fredrik Malm, presidente da Liga da Juventude do Partido Liberal, e Alexander Bengtsson, da Liga da Juventude do Partido Esquerdista, entre outros. Esses dois haviam se encontrado naquele dia mais cedo num debate e ambos haviam feito trabalhos para a "Expo". A atmosfera estava estranha, triste, mais parecia um velório.
"Ficamos sentados conversando sobre o que acontecera e chegamos à conclusão de que de fato éramos um bando danado de esquisito", conta Ekman. "Lá estava eu, que trabalhava para a TV Strix, que pertence ao Grupo MTG, um bastião do capitalismo, acompanhado de liberais e esquerdistas. Todos nós sentados juntos ali. É algo que diz muito sobre Stieg."
De manhã, Mikael tomou o primeiro avião de volta. Encontrou Eva e Erland no elevador, subindo para a "Expo". Diz que na véspera se manteve firme depois das notícias, mas assim que passou pela soleira da porta de entrada no escritório, "desatou a chorar como uma criança", porque estava tão vazio. O futuro também parecia incerto. O que aconteceria com a "Expo" agora? Àquela altura, quase não se pensava nos romances de Stieg, ainda não publicados. A noção de que tudo mudaria, de que tudo iria virar de cabeça para baixo por causa daqueles livros, não era nem sequer um vislumbre no horizonte.


Ilustríssima Semana


ILUSTRÍSSIMA SEMANA
O MELHOR DA CULTURA EM 6 INDICAÇÕES

BRASILEIRO
EXPOSIÇÃO | LIVRO E CAIXA
Setenta obras de artistas brasileiros de destaque na segunda metade do século 20 e no início do século 21, como Cildo Meireles, Hélio Oiticica, Jac Leirner e Mira Schendel, compõem "Aberto Fechado". A curadoria é do britânico Guy Brett, que, em seu primeiro trabalho para um museu brasileiro, propõe uma análise sobre o uso das formas do livro e da caixa na arte contemporânea brasileira.
Pinacoteca do Estado | ter. a dom., das 10h às 18h, até 13/1 | R$ 6 (grátis aos sábados)
LIVRO | OU ISTO OU AQUILO
"Não sei se brinco, não sei se estudo,/se saio correndo ou se fico tranquilo": este clássico da poesia brasileira para crianças, publicado no ano de morte de Cecília Meireles (1901-64), ganha novas ilustrações, por Odilon Moraes. Org. Walmir Ayala 66 págs. | R$ 42

ERUDITO
LIVRO | FERNANDO PESSOA
A imortal Cleonice Berardinelli condensa seis décadas de leitura do modernista português nesta "Antologia Poética", que reúne 202 poemas do ortônimo (Fernando Pessoa) e seus heterônimos (Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos), além de reproduzir seis ensaios da professora emérita da UFRJ sobre o "drama em almas" que é a obra do autor de "Mensagem". A edição chega a propor nova versão para um verso do poema "Fúria no noite o vento...", com base em pesquisas de Cleonice na Biblioteca Nacional de Portugal.
Casa da Palavra | 336 págs. R$ 42,90

ESTRANGEIRO
LIVRO | O TERCEIRO REICH EM GUERRA
Depois de abordar o surgimento e a chegada do regime nazista ao poder em dois livros anteriores, o historiador britânico Richard J. Evans encerra a trilogia sobre o Terceiro Reich. O foco central do livro é "a Alemanha e os alemães" durante a Segunda Guerra (1939-45) e não uma história do conflito, como diz o autor no prefácio do volume.
trad. Lúcia Brito e Solange Pinheiro Planeta | 1042 págs. | R$ 129,90

POP
HQ | BABY'S IN BLACK
A história da fotógrafa alemã Astrid Kirchherr é indissociável da dos Beatles, que ela conheceu em 1960, quando eles ainda eram cinco e tocavam num pé-sujo em Hamburgo. A paixão por Astrid foi central para que "o quinto beatle", Stuart Sutcliffe, deixasse a banda, e, embora a fotógrafa não goste da fama, a ela é creditado o corte de cabelo tigelinha com os quais os Fab Four ficaram famosos. A HQ assinada por Arne Bellstorf acompanha dois anos dessa convivência pelo olhar cauteloso e fascinado da alemã, o que resulta numa bela narrativa feita de silêncios e sutilezas. (Raquel Cozer)
trad. Augusto Paim e Cássio Panteleoni | 8Inverso 208 págs. | R$ 51
LANÇAMENTO | MARIO QUINTANA
A editora Alfaguara promove debate e leitura de textos do poeta gaúcho (1906-94) para marcar o lançamento da obra completa do autor com o curador das edições, Italo Moriconi, e a professora Viviana Bosi. Para o ano que vem, a editora prevê o lançamento de títulos como "Caderno H" e "Quintana Essencial", antologia inédita organizada por Moriconi.
Livraria Cultura Conjunto Nacional amanhã, às 20h | grátis

Menina do Rio


REPORTagem

A "Ilustríssima" gasta a sola do sapato na avenida Brasil

FABIO BRISOLLA


RESUMO

A avenida que deu nome ao mais recente fenômeno da TV brasileira passou de promessa de modernização do país a um retrato da degradação de nossas grandes cidades. Personagens anônimos e históricos se cruzam na avenida que atravessa o subúrbio carioca, à margem da classe média idílica retratada na novela.


"Mais um chifrudo. Puta que o pariu! Será que esse autor pensa que no Brasil só tem chifrudo? É brincadeira, mermão!"
"Agora ferrou. Vão sair na mão!"
"Russo, me dá uma cerveja!"
"Todo mundo quer ver a Carminha, né?"
O assunto obrigatório debaixo do viaduto, bem em frente à rodoviária Novo Rio, é a programação da surrada CCE de 21 polegadas, turbinada por uma caixa de som, numa barraca metálica de camelô. Ao redor, 15 pessoas mesmerizadas, os olhos fixos na tela, só se mexem para tomar cerveja.
A poucos metros dali, na zona portuária, fica o marco zero (uma pequena placa verde) da via expressa que a Globo conseguiu transformar em obsessão nacional com a última novela das nove, que terminou anteontem.
Na novela, a avenida foi, como na tragédia grega, a senda que fez a família Tufão descarrilar no início da trama: na única cena da novela gravada na avenida, morreu Genésio, o pai da heroína Nina.
Vista em perspectiva, às 18h, é um caleidoscópio de fumaça e luz, uma paisagem turva e colorida como a que se congelava diariamente na cena final de cada capítulo.
Vista de helicóptero ou no mapa, é o braço sul do Y que se forma na confluência com via Dutra e deságua no centrão do Rio, depois de passar pelas favelas Te Contei, Paraibuna, Joana Nascimento, Ponto Chique, Batan, Vila Cariti etc.
Para o arquiteto Guilherme Wisnik, é uma "cicatriz na cidade". Para o urbanista Renato Gama-Rosa, a avenida "uniu e dividiu ao mesmo tempo". Para o sambista Marquinhos, "tinha um encanto por estar sempre associada às viagens, a momentos felizes da minha infância". Para João Emanuel Carneiro, o autor da novela, "é um grande emblema do subúrbio". Já o rebocador Valdeci, que dá expediente na Brasil há dez anos, sintetiza "A gente trabalha com um olho no padre e outro na missa."
Búzios e Cartas, amarração para o amor. Forrozão Karkará, 13 OUT., Feira de São Cristóvão. Saída Linha Vermelha. Área militar. Refinaria de Manguinhos. KM 3. Fiocruz. Saída Linha Amarela.
Com 58 km, a Brasil vai margeando a baía de Guanabara pela zona norte; perto da ilha do Governador, onde fica o aeroporto do Galeão, descreve uma longa curva à esquerda e então vai reto para se dissolver na zona oeste. Atravessa quase 30 bairros, até chegar a Santa Cruz, um cenário rural.
Símbolo do progresso industrial dos anos 40, a avenida logo se tornou um emblema da deterioração dos subúrbios brasileiros. Fora das prioridades da revitalização urbanística do Rio, a avenida talvez receba o seu quinhão. A prefeitura já começou a trocar placas de sinalização, plantou 1.800 palmeiras e recapeou seus 17 km iniciais.
A prefeitura pretende implantar ali um corredor de ônibus, o BRT Transbrasil, a um custo de R$ 1,3 bilhão. "A prefeitura vai bancar 10% dos recursos, e os outros 90% virão de financiamento federal, por meio da Caixa Econômica ou do BNDES. Ainda não está definido", diz Alexandre Pinto, secretário municipal de Obras.
Na avaliação do urbanista Sérgio Magalhães, o investimento é alto demais para uma linha de ônibus: "A cem metros da Brasil existe uma linha paralela de trens urbanos que está sucateada. Transformar os trens em metrô seria um gasto muito menor e traria um resultado bem mais efetivo".
Nesses dias, a refinaria de Manguinhos entrou no foco do governador Sérgio Cabral, que planeja construir conjuntos habitacionais ali. Para se tornar habitável, no entanto, o local precisa ser descontaminado, o que pode levar até duas décadas, segundo especialistas.
"Há uma contradição na avenida. Ela funcionou como estrada ao integrar o território. Foi feita para valorizar aqueles bairros. Ao mesmo tempo, seccionou uma região, criou barreiras. É preciso recorrer a passarelas para superar os obstáculos", avalia o urbanista Renato Gama-Rosa, autor de uma tese de doutorado sobre o tema. "Quem quer morar em beira de estrada?"
São mais de 50 favelas, incluindo as 16 que integram o complexo da Maré, onde moram mais 150 mil pessoas. O Brasil tomou conhecimento do lugar com uma canção composta em 1985 pelo estudante de arquitetura Herbert Lemos de Souza Vianna. "Eu via a Maré do ônibus, ao chegar e sair da UFRJ", lembra o líder dos Paralamas.
Até hoje, em muitos trechos da avenida, as casas e barracos chegam a lamber o acostamento. Na última campanha eleitoral, as paredes à beira do caminho ostentaram milhares de anúncios políticos. O rosto impresso do prefeito reeleito Eduardo Paes (PMDB) talvez superasse em número os 4.703 pontos de iluminação pública existentes ao longo da via.

PASSARELA 9. Favela da Maré. Bonsucesso. Stop Time, apartamentos a partir de R$ 51,90. Piscinão de Ramos. Perigo: material cortante. Base de Abastecimento da Marinha. Aqui tem GNV!
Diariamente, 237 mil veículos passam pela avenida, mas um deles jamais sai de lá: a picape branca de Valdeci da Silva, 45, com o logotipo da CET-Rio (Companhia de Engenharia de Tráfego). Morador de Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense, ele trabalha há dez anos na avenida como operador de tráfego. Usa uniforme azul-marinho e colete amarelo fluorescente, realçando seus 130 quilos distribuídos em 1,85 metro.
"A Brasil é o coração do Rio de Janeiro, entendeu?", diz ele. "Quando estou na pista é uma responsa. Não é fácil, não, entendeu? Aqui passa de tudo, carro, carreta, caminhão, coletivo, cachorro. Entendeu? Lá pra cima, às vezes aparece até porco e cavalo pela pista. Aí tem de fechar o trânsito e tentar espantar os bichos. Entendeu?"
O bicho pega, no entanto, até nos horários de menor movimento. "De madrugada tem muito carreteiro doido, cheio de veneno na mente. Se deixar, eles passam por cima." Valdeci conhece como poucos a rotina do trânsito na avenida, por onde passam 321 linhas de ônibus municipais e intermunicipais. Chegou a presenciar até mesmo um atropelamento cujo culpado e a vítima eram a mesma pessoa.
"O caminhão estava saindo da Linha Amarela para entrar na avenida Brasil, quando o cara caiu da cabine e acabou embaixo das rodas", lembra. Ele especula sobre as causas do acidente: a porta se abriu na alça de acesso da Linha Amarela, o sujeito tentou fechá-la, mas, sem cinto de segurança, perdeu o equilíbrio, caiu e foi atropelado pelo próprio caminhão.

BÚZIOS E CARTAS. Ricardo de Albuquerque, Deodoro. Compro Carro, batido ou inteiro. KM 29. Motel Fina Flor, Motel Saint Moritz, Motel L'Amour. KM 30. Bariloche Motel, apartamentos a partir de R$ 35,99. Primeira Igreja Batista da Avenida Brasil! Somos um Rio, Eduardo Paes. Karibe Motel.
Em todo o percurso da avenida, apenas a favela do Batan recebeu uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), o programa de ocupação territorial do governo estadual, presente em 28 comunidades.
Diretor da ONG Observatório das Favelas, o sociólogo Jaílson de Sousa crê no potencial da favela para "ressignificar a cidade": "Nosso desafio é fazer com que a avenida Brasil deixe de ser um território de circulação e de medo para ser vista como um território de encontro". Sua ONG criou, dentro da Maré, uma agência de propaganda, uma oficina de fotografia e um centro de artes, entre outras iniciativas. A próxima meta é criar uma faculdade de comunicação.
No entanto, por ora os encontros são mais viáveis nos 12 motéis da avenida ou nos shoppings que vão pipocando às suas margens -só em 2011, foram inaugurados dois deles, o Via Brasil, em Irajá, e o Jardim Guadalupe, no bairro de mesmo nome, somando 458 lojas e R$ 420 milhões em investimento.
Para o arquiteto e crítico Guilherme Wisnik, a Brasil é típica do período entre os anos 50 e 70, quando o modelo das cidades dos EUA, com grandes conexões viárias, era visto como solução. "O argumento de ligação é a acessibilidade, mas, na prática, uma avenida como a Brasil separa, cria uma cicatriz na cidade. Esteriliza a vivência cotidiana", define Wisnik.
A paisagem de galpões e instalações industriais em abandono corrobora suas palavras. Houve um tempo, porém, em que a presença de grandes empresas, de uma universidade federal e de instituições como a Fiocruz faziam crer que a modernização do país, além de apenas passar por ali, talvez também ficasse.
Em 1954, no auge da campanha "O petróleo é nosso", foi inaugurada a refinaria de Manguinhos, a primeira do país, que chegou a atender a 90% do consumo diário da cidade. No fim da década de 70, o "Jornal do Brasil" inaugurou sua sede no número 500 da Brasil.
"A construção demorou anos, vários estudos foram feitos, porque aquela área era um pântano. Foi preciso aterrar muita coisa", diz Wilson Figueiredo, veterano do "JB" que viveu a mudança da avenida Rio Branco, no centro, para a Brasil.
Às margens da avenida já vicejaram fábricas de carrocerias para ônibus, tecelagens, confecções, a metalúrgica multinacional Rheem e a fábrica do Sabão Português -que deixava no ar um marcante cheiro de sabão em pó. Hoje, no prédio do "JB" fica a sede do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia. O galpão da Rheem foi demolido há dois meses. A fábrica desativada do Sabão Português aguarda a mesma sorte.

SAÍDA WASHINGTON LUÍS. KM 13,5. Penha. Estação Parada de Lucas. Frank Aguiar, 11 OUT., Passarela 22. Entrega o teu caminho ao senhor, confia nele e o mais ele fará, Salmo 37 - V5. Motel Champion. Saída Via Dutra. KM 17. Área militar. Somos um Rio, Eduardo Paes. Alexandre Pires, 14 OUT., Campo da Vila do João.
Nascido em Madureira, espécie de modelo real do fictício Divino, bairro onde a novela é ambientada, o sambista assumiu o nome de seu bairro de adoção: Marquinhos de Oswaldo Cruz. Ele é autor de canções inspiradas na zona norte, como "O que os Olhos Não Podem Ver", parceria com Carlos Bezerra e um mito da Portela, Candeia.
"É um retrato do trabalhador, que consegue sorrir, enxergar a beleza em seu cotidiano, mesmo levando uma vida dura", explica -e cantarola: "Nesta marmita, carrego os meus versos/ Que alimentam de emoção meu dia a dia".
Nem sempre foram os versos na marmita, no entanto, que alimentaram seu dia a dia. "Minha mãe sempre levava farofa", conta. "Ia a família toda, o carro velho do meu pai lotado. A avenida Brasil tinha um encanto por estar sempre associada às viagens". Hoje, ele diz, "passa a sensação de que não existe vida em sua margem. Quem passa rápido pela Brasil não consegue perceber que ali existe vida."
É de estranhar que tão árida avenida tenha dado nome ao universo festivo que se viu na tela da Globo. João Emanuel Carneiro, o autor do folhetim, esclarece: "Todo suburbano se guia pela avenida Brasil. É uma artéria do Rio. Por isso, escolhi este nome. A avenida Brasil é um grande emblema do subúrbio. Os bairros em sua margem têm muito a ver com a novela".
O autor ressalta que buscou inspiração também na obra de Nelson Rodrigues, que tematizou a região em peças e romances. "Ajudou muito a formar a minha visão do subúrbio". Na infindável galeria de tipos da zona norte, está, por exemplo, Engraçadinha, a heroína de "Asfalto Selvagem", evangélica de fechar o comércio que atrai o juiz Odorico Quintela até as lonjuras de Vaz Lobo, bairro situado nos arredores da Brasil.
Búzios e Cartas, trago a pessoa amada. Valéria Bandida, 13 OUT., Lona Cultural da Ilha. KM 18. Bar Gata de Irajá. Ceasa. Jardim Guadalupe, O Shopping da Avenida Brasil. Aqui tem GNV! Academia de Bombeiro Militar Dom Pedro II. Aqui se aprende a defender a pátria. Saída 27: Centro Nacional de Tiro Esportivo.
A chance de um morador do Rio encerrar sua história na avenida gira em torno de 60%. De 2.400 sepultamentos registrados mensalmente nos 13 principais cemitérios da cidade, 1.500 entram na conta do São Francisco Xavier, às margens da via, no bairro do Caju.
Morador da Penha, Firmino Bispo Pereira, 43, é coveiro no maior cemitério da cidade há 12 anos, já tendo enterrado o próprio chefe: o administrador do cemitério, em 2010. "Ele ficou na quadra 28", lembra Pereira, resignado. "Ruim mesmo é enterrar parente ou criança. Criança é complicado."
Numa jornada de 12 horas, ajuda a sepultar 25 corpos. "Isso quando está tranquilo. No verão, enterro mais de 50 por dia. Morre muita gente. No verão é brabo".
Ele mistura cimento num latão enquanto conta sua história: "Eu era do mundo virado. Não esquentava com porra nenhuma. Gastava tudo com bebida e droga. Muita cocaína. Só na farinha."
No processo de recuperação da dependência, iniciado há cinco anos, virou evangélico. "E já desvirei. Não tenho frequentado mais a igreja", diz o maranhense. "Mas ainda sigo o caminho que Deus me mostrou." Separado da primeira mulher há 14 anos, criou as duas filhas, Layanne Regina, 22, e Rayanne Marley, 16. ("O pessoal no Maranhão gosta muito de reggae. Aí resolvi fazer essa homenagem ao Bob Marley.")
Na esquina do cemitério do Caju, uma placa indica a direção da Casa de Banho Dom João 6º. A construção colonial, branca e de janelas verdes, no fim de uma rua sem saída teria uma sensacional vista para a baía de Guanabara, não fosse o muro erguido em frente e a estrutura da ponte Rio-Niterói.
Nos anos 1810, a construção era usada por dom João 6º para tomar banho de mar. Membros da família imperial eram figurinhas fáceis por ali. Carlota Joaquina, mulher do imperador, mantinha uma casa de campo no local que originou o bairro Engenho da Rainha. Hoje, a rua da Casa de Banhos do imperador português é um estacionamento das carretas da zona portuária,
Segundo o geógrafo Nélson da Nóbrega Fernandes, o botânico e viajante francês Auguste Saint-Hilaire (1779-1853), que ali passou nos idos de 1820, considerou o panorama muito agradável e estimou a existência de 200 residências, na maioria chácaras e casas de campo, cinco engenhos e uma população de 600 adultos. Escreveu Saint-Hilaire em sua correspondência: "Próximo do Rio de Janeiro, podemo-nos julgar nos arredores de uma das maiores cidades da Europa."
Búzios e Cartas, todo tipo de trabalho. Mocidade Independente, a estrela da zona oeste. KM 31. Somos um Rio, Eduardo Paes. Bangu, Vila Kennedy, Santíssimo. Motel Oklahoma. KM 42. Queijaria Santa Edwiges. Salão das Testemunhas de Jeová. Vendo galpão. Compro carro. Santa Cruz. Saída Rodovia Rio-Santos. Caldo de cana e coco. Borracharia. KM 58.
"Conserto o pneu e arrumo a vida da pessoa", diz Reginaldo Ferreira, 43, borracheiro que às margens da Brasil acabou se especializando também na recauchutagem de almas. Chegou a fundar sua própria igreja, a Assembleia Tradicional do Evangelho Genuíno, bem em frente ao trevo que marca o fim da avenida.
"É a última igreja da Brasil. Não tem como errar", rejubila-se o pastor-borracheiro. "Mesmo quando estou consertando o pneu fico atento à minha volta, sempre pronto para salvar uma alma."
Então ele se detém, intrigado.
"Tá sentindo o cheiro?", pergunta, como quem fareja a oportunidade de salvar mais uma alma. "É maconha! Tem um maconheiro aqui por perto!" Ele escaneia o espaço em redor e detecta um rapaz fumando um baseado debaixo de uma árvore. Decide abordá-lo para explicar que "maconha não agrada a Deus", mas o maconheiro se eclipsa rapidamente.
Em meio ao mar de favelas, desponta uma construção extravagante e algo megalomaníaca: a sede da Fundação Oswaldo Cruz, verdadeiro castelo em estilo eclético, grande moda no Brasil do começo do século 20. O médico sanitarista Oswaldo Cruz decidiu que ali ficaria seu pioneiro laboratório para fabricação de soros e vacinas. Dominados por manguezais, os arredores da Fiocruz ganharam o nome de Manguinhos.
Já se pensava em ligar o cais do porto à zona norte com a "avenida do Norte", esboçada em 1910 mas logo esquecida. A integração viária só veio em 1939, por ordem do presidente Getúlio Vargas, e a pavimentação dos primeiros 15 km só foi concluída oito anos depois.
"Havia uma expectativa grande em torno da abertura da avenida. Seria a grande porta de entrada da capital federal. Por sua importância, a Brasil chegou a ser chamada de BR 01, sendo considerada a principal estrada do país", diz o urbanista Renato Gama-Rosa.
O asfaltamento selou também o início da favelização por ali: desvalorizadas, as áreas de mangue acabaram atraindo os operários recém-chegados à cidade, contratados para as obras de pavimentação. Foi assim, sobre palafitas, que se alastrou a favela da Maré, a partir do morro do Timbau, com vista da Baía de Guanabara.
"Aos poucos, os próprios moradores começaram a aterrar as áreas ao redor do Timbau. A população da Maré criou literalmente o seu próprio chão", diz o historiador Edson Diniz, diretor da ONG Redes da Maré. Nos anos 80, o emaranhado de palafitas contrastava com a vizinha ilha do Fundão, onde fica o campus da UFRJ.
As tentativas de urbanizar o lugar nunca deram conta da expansão populacional, que só fez criar novas favelas. Vila do João, que fica ali perto, deve seu nome ao presidente João Figueiredo, que inaugurou um conjunto habitacional na Maré, segundo Edson Diniz.
O conjunto habitacional Fazenda Botafogo, no km 19, vizinho à favela de Acari, foi construído com recursos do extinto BNH (Banco Nacional de Habitação) e inaugurado no fim dos anos 70, com 3.440 apartamentos de 35 a 44 metros quadrados. Em 2010, os irmãos Picciani, ambos candidatos a deputado pelo PMDB -Rafael a estadual e Leonardo a federal- patrocinaram a pintura dos 86 prédios em tons verde-água. Elegeram-se, e Rafael hoje é secretário estadual de Habitação.
Ex-funcionária da Petrobras, a aposentada Dayse Martins Ramos, 61, mora há mais de 30 anos no segundo andar do edifício Kennedy, à beira da avenida. Diz que não troca a vida no Fazenda Botafogo por nada: "Sabe aquela menina [da novela] Monalisa, que comprou um apartamento na zona sul e não se adaptou? É isso mesmo! Aqui tem pagode dia de domingo, todo mundo conversa comigo, bom pra caramba. Em Copacabana não é assim, não!".

Um sucesso para ninguém botar defeito


ELIO GASPARI

Um sucesso para ninguém botar defeito

De 1997 a 2011, quintuplicou o número de negros e pardos nas universidades

A notícia pareceu uma simples estatística: entre 1997 e 2011, quintuplicou a percentagem de negros e pardos que cursam ou concluíram o curso superior, indo de 4% para 19,8%. Em números brutos, foram 12,8 milhões de jovens de 18 a 24 anos.
Isso aconteceu pela conjunção de duas iniciativas: restabelecimento do valor da moeda, ocorrido durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, e as políticas de ação afirmativa desencadeadas por Lula.
Poucos países do mundo conseguiram resultado semelhante em tão pouco tempo. Para ter uma ideia do tamanho dessa conquista, em 2011 a percentagem de afrodescendentes matriculados em universidades americanas chegou a 13,8%, 3 milhões em números brutos. Isso depois de meio século de lutas e leis.
Em 1957, estudantes negros entraram na escola de Little Rock escoltados pela 101ª Divisão de Paraquedistas.
Pindorama ainda tem muito chão pela frente, pois seus negros e pardos formam 50,6% da sua população e nos Estados Unidos são 13%.
O percentual de 1997 retratava um Brasil que precisava mudar. O de 2011, uma sociedade que está mudando, para melhor. Por trás desse êxito estão políticas de cotas ou estímulos nas universidades públicas e no ProUni.
Em seis anos, o ProUni matriculou mais de 1 milhão jovens do andar de baixo, brancos, pardos, negros ou índios. Deles, 265 mil já se formaram. Novamente, convém ver o que esse número significa: em 1944, quando a sociedade americana não sabia o que fazer com milhões de soldados que combatiam na Europa e no Pacífico, o presidente Franklin Roosevelt criou a GI-Bill.
Ela dava a todos os soldados uma bolsa integral nas universidades que viessem a aceitá-los. Em cinco anos, a GI-Bill matriculou 2 milhões de jovens. Hoje entende-se que a iniciativa foi a base da nova classe média americana e há estudiosos que veem nela o programa de maior alcance social das reformas de Roosevelt.

ARQUIVO

José Roberto Arruda, ex-governador de Brasília e ícone do mensalão do DEM, voltou a falar: "Só digo uma coisa: não apareceu nem metade da missa".Como diria Camila Pitanga: "Fala, Arruda".

O CONTRADITÓRIO

A revista "Retrato", dirigida pelo repórter Raimundo Rodrigues Pereira, chegará às bancas nesta semana com uma capa intitulada "A vertigem do Supremo". Ela afirma que os ministros do STF deliraram ao aceitar a tese segundo a qual houve um desvio de R$ 76,8 milhões do Banco do Brasil para a turma do mensalão. A reportagem sustenta que não há trabalho contábil de fé que ampare essa acusação e coloca no site da revista 108 documentos (cada um com cerca de 200 páginas) da auditoria feita pelo banco.
Com mais de 40 anos de carreira e obsessões investigativas, Raimundo já contrariou a sabedoria convencional em duas ocasiões. Há dois anos, provou que o banqueiro Daniel Dantas foi satanizado pelo delegado Protógenes Queiroz na Operação Satiagraha. Nenhum dos fatos que mencionou foi desmentido.
Em 1996, ele investigou as denúncias de má conduta profissional feitas contra a cientista brasileira Teresa Imanishi. Tinha do outro lado um Prêmio Nobel e o governo americano. Prevaleceu e depois de dez anos a cientista foi inocentada, com pedidos de desculpas do "New York Times" e do "Washington Post".
AVISO AMIGO
Quando o ministro Joaquim Barbosa assumir a presidência do Supremo deverá ter uma preocupação. Ele sabe que não é estimado pelos colegas. O que talvez não saiba é que muitos deles não pretendem levar desaforo para casa.
PESADELO AMERICANO
Sempre que a eleição americana marcha para um final apertado ressurge o fantasma do empate no colégio eleitoral.
Desta vez existe a remota possibilidade de Barack Obama e Mitt Romney empatarem, cada um com 269 votos, no colégio eleitoral.
Nesse caso, a escolha irá para uma assembleia de 50 eleitores (um para cada Estado) e tudo indica que Romney saia vitorioso, pois os republicanos tendem a manter a maioria na Câmara dos Representantes.
Se esse cenário improvável ocorrer, a crise de 2000, quando George Bush 2º prevaleceu sobre Al Gore, será vista como uma mixaria, sobretudo se o companheiro Obama conseguir mais votos populares.
A democracia americana sairá mal da foto. Olhando-se para seus últimos oito presidentes, três passaram por processos anômalos. Bush 2º ganhou a Casa Branca na Corte Suprema, Richard Nixon foi obrigado a renunciar, e John Kennedy foi assassinado.
(A possibilidade do empate e a discussão do processo eleitoral estão descritos no site "Sabato's Crystal Ball". Apesar de ter escolhido nome bobo, o professor Larry Sabato, da Universidade da Virgínia, é um respeitado estudioso das eleições americanas.)

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota e muda de opinião a cada dia.
Às segundas, quartas e sextas é favorável ao "kit anti-homofobia". Às terças, quintas e sábados é contra.
Em todos os casos, por idiota, acredita que essa discussão criará mais escolas, creches e hospitais na cidade de São Paulo. Por quê? Eremildo não sabe, mas está procurando quem saiba.

MANGUINHOS, JOIA DA COROA OU GUARDANAPO

A desapropriação dos 500 mil metros quadrados da refinaria de Manguinhos pode se tornar uma das joias da coroa da administração do governador Sérgio Cabral. Tudo bem se a indenização tiver que cobrir os impostos que a empresa deve (só de ICMS são R$ 675 milhões, bem como seu passivo trabalhista).
Se os donos de uma refinaria obsoleta que contamina o ambiente e envenena o solo embolsarem algo como R$ 200 milhões, será um caso de guardanapo na cabeça. Essa decisão, contudo, caberá ao Poder Judiciário.
Manguinhos fica dentro da cidade e degradou a região de tal forma que está cercada por comunidades miseráveis.
A ideia de usar seu terreno para recuperar a região poderá resultar na pacificação urbanística do que hoje é a favela de Ramos. Seria uma intervenção do tamanho da revitalização da zona portuária, mesmo sem o seu charme.
Não se deve subestimar os poderes da turma de Manguinhos, estabelecida quando o presidente Getúlio Vargas alavancou seu primeiro dono, o empresário Peixoto de Castro. Recentemente, os novos controladores tiveram novos anjos da guarda, os comissários Marcelo Sereno e José Dirceu, mais a bancada dos precatórios do PMDB.
Nos anos 50, a turma do refino privado foi incomodada no Conselho Nacional do Petróleo por um economista e um coronel. Deram um trato ao economista (Jesus Soares Pereira) cassando-o em 1964. Ao coronel, ofereceram a presidência da Petrobras no governo JK, desde que ficasse quieto. Como ele não ficou, derrubaram-no.
Faltou-lhes a sorte. O coronel Ernesto Geisel tornou-se presidente da Petrobras e da República. Ele gostava de contar como foi atrás deles.

Marcelo Gleiser




Quão rara é a Terra?

A semelhança de tamanho com o nosso planeta é só um dos atributos que talvez sejam necessários à vida

Agora que temos a certeza de que existe um número enorme de planetas com características físicas semelhantes à Terra, vale perguntar se esses astros têm, de fato, a chance de abrigar formas de vida e, se tiverem, que vida seria essa.
Antes, alguns números importantes. Os melhores dados com relação à existência de outros planetas vêm de um satélite da Nasa, o Kepler, que anda buscando planetas como a Terra ao fazer um mapeamento de 100 mil estrelas que estão na nossa região cósmica.
Pelo projeto da missão, a identificação dos planetas usa um efeito chamado de trânsito: quando um planeta passa na frente de sua estrela (por exemplo, Vênus passando na frente do Sol), o brilho da estrela é ligeiramente diminuído. Marcando o tempo que demora para o planeta passar em frente à estrela, a diminuição do brilho e, se possível, o período da órbita (quando o planeta retorna ao seu ponto inicial), é possível determinar o tamanho e massa do planeta.
Com isso, a missão estima que cerca de 5% dos planetas na nossa galáxia têm massas semelhantes à Terra e, possivelmente, estão na zona habitável, o que significa que a temperatura na sua superfície permite a existência de água líquida (se houver água neles).
Como sabemos que o número de estrelas na nossa galáxia é em torno de 200 bilhões, a estimativa da missão Kepler implica que devem existir em torno de 10 bilhões de planetas com dimensões semelhantes às da Terra. Nada mal, se supormos que basta isso para que exista vida. Porém, a situação é bem mais complexa e depende em detalhe das propriedades da vida e, em particular, da história geológica do planeta.
Aqui na Terra, a vida surgiu 3,5 bilhões de anos atrás. Porém, durante aproximadamente 3 bilhões de anos, a vida aqui era constituída essencialmente de seres unicelulares, pouco sofisticados. Digamos, um planeta de bactérias. Só bem depois que a atmosfera da Terra foi "oxigenada", e isso devido à descoberta da fotossíntese por certas bactérias (cianobactérias, na verdade), é que seres multicelulares, bem mais tarde, surgiram.
A mudança gerou outra coisa importante: quando o oxigênio sofreu a ação da radiação solar, formou-se a camada de ozônio que acaba por proteger a superfície do planeta. Sem essa proteção, a vida complexa na superfície seria inviável.
Fora isso, a Terra tem uma lua pesada, o que estabiliza o seu eixo de rotação -a Terra é como um pião que está por cair, rodopiando em torno de si mesma numa inclinação de 23,5 graus. Essa inclinação é a responsável pelas estações do ano e por manter o clima da Terra relativamente agradável.
Sem nossa Lua, o eixo de rotação teria um movimento caótico e a temperatura variaria de forma aleatória. Juntemos a isso o campo magnético terrestre, que nos protege da radiação solar e de outras formas de radiação do espaço, e o movimento das placas tectônicas, que funciona como um termostato terrestre e regula a circulação de gás carbônico na atmosfera, e vemos que são muitas as propriedades que fazem o nosso planeta ser especial.
Portanto, mesmo que existam outras "Terras" pela galáxia, defendo ainda a raridade do nosso planeta e da vida complexa que nele existe.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita". Facebook: goo.gl/93dHI


Sem perguntas, candidato


OMBUDSMAN

SUZANA SINGER ombudsman@uol.com.br@folha_ombudsman

Sem perguntas, candidato

Imprensa deveria ditar a pauta do debate eleitoral em vez de ficar a reboque dos marqueteiros

O único consenso que parece haver neste segundo turno da eleição para prefeito de São Paulo é a necessidade de subir o nível do debate.
Vários colunistas já pediram aos candidatos que discutam políticas públicas e foi esse o tema do editorial de domingo passado ("São Paulo quer saber"), no qual a Folha elenca questões que considera fundamentais para o futuro da cidade.
Só que o jornal tem contribuído pouco para isso. As páginas de "Poder" estão tomadas por declarações sobre o "kit anti-homofobia" (erroneamente chamado de "kit gay"), a influência do mensalão, a possibilidade de José Serra renunciar e as visitas dos candidatos às igrejas.
Nas entrevistas feitas com os prefeituráveis depois do primeiro turno, não havia perguntas sobre a cidade. Era só macropolítica.
A pauta da eleição está nas mãos das campanhas, os jornalistas se ocupam em repercutir o que foi dito na televisão na noite anterior. Não se trata de ignorar o tiroteio entre candidatos, mas de dedicar a isso o espaço devido e impor uma agenda de assuntos que dê substância ao debate. Cobrar, por exemplo, que se vá além das promessas quantitativas do tipo "Se eleito, farei mais trocentas creches, centenas de quilômetros de metrô e tantas vagas em escolas técnicas".
A passividade diante do eficiente aparato de marketing das campanhas não é um problema exclusivo da Folha. Assessores, alimentados por pesquisas qualitativas, ditam como o candidato deve se vestir, o que deve dizer, que assuntos evitar. A reportagem de todos os veículos, mesmo que inconscientemente, segue essa agenda, que parece cada vez mais regressiva.
A submissão fica evidente quando se negociam os termos dos debates entre os candidatos. As campanhas conseguem proibir que jornalistas façam perguntas -ou impõem uma série de condicionantes que esterilizam o encontro.
O brilhante Boris Casoy poderia ter sido substituído pela Gisele Bündchen na quinta-feira passada na Bandeirantes, já que seu papel era apenas dizer "Haddad pergunta", "réplica do Serra" e "silêncio na plateia, por favor".
Foi Boris que perguntou, em 1985, a Fernando Henrique Cardoso se ele acreditava em Deus, o que enfureceu o então candidato a prefeito de São Paulo. Era um debate com a participação de cinco jornalistas, editado em dez páginas daFolha.
Já passou da hora de as empresas de comunicação se unirem e dizerem aos candidatos que o papel da imprensa não é montar o palco, zerar os cronômetros e deixar a conversa rolar solta. Quem se recusasse a participar teria suas "razões" expostas no "Jornal Nacional", no "Jornal do SBT", nas capas da Folha e do "Estado", na home do UOL... Quem resistiria?
RONALDO NO PAINEL FC
Fazendo gracinha com o peso do Ronaldo, a coluna "Painel FC" publicou, no último dia 12, que o ex-jogador cobrou R$ 6 milhões para emagrecer no "Fantástico".
A nota atribuía a informação a "pessoas próximas ao ex-atacante" e calculava que ele faturaria R$ 333 mil por quilo perdido na dieta.
A notícia bombou na internet. No dia seguinte, um "erramos" enviesado dizia que a nota "deu a entender que a TV Globo pagaria essa quantia". No Painel FC, informava-se que o dinheiro viria de "acordos publicitários".
A TV Globo e a assessoria de Ronaldo negam que qualquer patrocínio tenha sido vendido. A editoria de "Esporte" afirma que só errou ao informar que o dinheiro era da emissora.
Tudo indica que o jornal está mal informado. Errar faz parte do jogo, mas não assumir a bola fora é falta grave na Folha, que prega a importância de "retificar, sem eufemismos, os erros que comete".

"Salve Jorge" leva moradores do Alemão para sua favela ficcional




Habitantes da comunidade carioca serão consultores e atores na nova novela das 21h da Globo
Nova trama de Glória Perez, reúne cenas reais e gravadas que reconstituem ocupação do complexo em 2010

FABIO BRISOLLA

DO RIO

Com uma voz estridente que ecoa pelas vielas do Complexo do Alemão, a vendedora Adriana de Souza, 34, canta aos berros suas próprias versões dos funks mais tocados nas rádios cariocas.
Costuma alterar as letras para encaixar a palavra "empadinha" e assim chamar a atenção da clientela.
Figura conhecida nas favelas do Alemão, na zona norte do Rio, Adriana vai vender suas empadinhas também na próxima novela das 21h da Globo, "Salve Jorge", que estreia amanhã.
Um núcleo da história, criada pela autora Gloria Perez, será ambientado em uma versão do Complexo do Alemão. Como a intenção é misturar realidade e ficção, moradores estão sendo escalados para participações especiais em algumas cenas.
Adriana já fez parte de uma gravação na favela cenográfica construída no Projac (sede dos estúdios da emissora em Jacarepaguá).
"Levei meu isopor, minha roupa de vendedora, e fiquei anunciando as empadas como no Alemão de verdade", disse Adriana, que usa um jaleco branco com a identificação "a moça da empadinha".
Com base em mais de mil fotos do Alemão feitas pela equipe de produção da novela, a cenógrafa Erika Lovisi recriou, em 1.800 m², casas e barracos, lojas e botecos, becos e ruas que remetem às favelas daquela região.
"Não é uma reprodução do Alemão, não replicamos pontos específicos. Mas criamos uma favela com as características que encontramos por lá", explicou Lovisi, que ergueu no Projac 14 prédios com dois ou três andares.
"Uma característica marcante do Alemão é a verticalidade", justifica.
Na nova trama de Gloria Perez, a protagonista Morena (interpretada pela atriz Nanda Costa) é uma moradora da região. Mãe solteira, ela luta para criar o filho, com a ajuda dos pais.
Um dos momentos mais emblemáticos da história recente do Rio -a ocupação do Complexo do Alemão por polícias e pelas Forças Armadas- é o ponto de partida para a aproximação entre a mocinha e o mocinho da trama -ele, Théo (Rodrigo Lombardi), é capitão da cavalaria do Exército.
Formado por 13 comunidades, o Complexo do Alemão era o quartel-general da facção criminosa Comando Vermelho. Imagens reais somadas a cenas de ficção vão reconstituir a ocupação das favelas, em novembro de 2010.
"Eu me emocionei com o resgate de uma parcela da população que vivia amedrontada, sob o domínio de leis paralelas, e quis dar visibilidade a ela. Por isso, situei a protagonista, a trama central, neste universo", disse Glória Perez, em entrevista no lançamento da novela.
O jornal "A Voz da Comunidade", feito por jovens do Alemão, também está na trama. "A Glória criou um personagem que será um repórter do 'A Voz da Comunidade'. Mas eu também vou participar, sendo eu mesmo, fazendo o mesmo trabalho da minha vida real", disse René Silva, 18, o criador do jornal.
Espécie de consultor da autora nos assuntos relacionados às favelas da região, René Silva ganhou fama ao narrar, via Twitter, a ocupação do complexo. "Eles já gravaram cenas em vários pontos do complexo. Os moradores estão ansiosos para ver como vai ser a favela da novela", conta o rapaz.
CONFRATERNIZAÇÃO
Durante a preparação de "Salve Jorge", a direção da novela organizou um encontro da equipe, incluindo o elenco, com os moradores.
Na lista, além de René e Adriana da empadinha, estava a professora de balé Rita Serpa, 50, uma mulher de cabelos ruivos e olhos azuis, que gesticula sem parar e circula com desenvoltura pelas ruas do Alemão cumprimentando moradores pelo nome.
Há 32 anos ela ensina balé clássico a crianças e adolescentes da região.
"Cheguei aqui antes de existir tráfico de drogas, acompanhei todas as mudanças ao longo do tempo", disse Rita, fundadora da ONG Projeto Luar.
"Minha foto já apareceu em uma das chamadas da novela. Todo mundo viu."
A foto faz parte de um seleção de 25 imagens produzidas por fotógrafos da própria Globo para a exposição "Guerreiros da Vida Real", que será inaugurada hoje, a partir das 16h30, na estação Bonsucesso do teleférico que cruza as favelas do Alemão.
Seguindo a linha de temas sociais recorrentes em suas tramas, Glória Perez vai abordar também o tráfico internacional de mulheres.
Um dos ambientes onde ocorrem as ações desse núcleo será a Turquia, repetindo modelo de "Caminho das Índias" (2009) e "O Clone" (2001), novelas da autora ambientadas na Índia e no Marrocos.
"Salve Jorge", dirigida por Marcos Schechtman, traz ainda, no elenco de 90 pessoas, as atrizes Flávia Alessandra, Cláudia Raia e Carolina Dieckmann -essa, numa curta participação especial, inadvertidamente revelada por Vera Fischer, também no elenco, na festa de lançamento da trama.
Ao ser entrevistada, Fischer contou que o personagem de Dieckmann sofre um estupro e, alguns capítulos adiante, morre. "Ela é uma bocudinha", divertiu-se Dieckmann ao saber que a amiga havia revelado uma das surpresas do início da trama.

FRASES
"Não é uma reprodução do Alemão. Criamos uma favela com as características que encontramos por lá"
ERIKA LOVISI
cenógrafa da novela
"É muito parecido, as barracas, a ladeira, os bares. Tem muita coisa igual"
ADRIANA DE SOUZA
vendedora de empadas no Alemão
"Eu me emocionei com o resgate de uma parcela da população que estava vivendo amedrontada, sob o domínio de leis paralelas, e quis dar visibilidade a ela. Por isso, situei a trama nesse universo"
GLÓRIA PEREZ
autora de "Salve Jorge"

Acerto de cotas




Enquanto Dilma anuncia cotas raciais no funcionalismo público, Globo põe no ar três produções em que personagens negros estão em destaque
Divulgação
Camila Pitanga e Lázaro Ramos, protagonistas de "Lado a Lado"
Camila Pitanga e Lázaro Ramos, protagonistas de "Lado a Lado"
ALBERTO PEREIRA JR.
DE SÃO PAULO

"A carne mais barata do mercado é a carne negra."
Quando Elza Soares tornou famosa a música "A Carne", em 2002, a TV Globo preparava-se para lançar, dois anos depois, "Da Cor do Pecado".
Na época, a emissora fez alarde. "A trama se destacou por apresentar a primeira protagonista negra de uma novela contemporânea e urbana", diz texto ainda hoje no portal Memória Globo.
Oito anos depois, o canal terá simultaneamente no ar três produções cujos personagens negros aparecem não só em grande número mas também em papeis de destaque.
Amanhã, estreia a novela das nove "Salve Jorge", de Glória Perez. Duas semanas depois, a série "Suburbia".
Completa a lista o folhetim das seis, "Lado a Lado", em exibição desde setembro.
A tendência ocorre no momento em que a presidente Dilma Rousseff anuncia cotas para negros no funcionalismo público e que o Ministério da Cultura propõe editais exclusivos para produtores negros. Tudo vem junto da ascensão da classe C, que tem 53% de negros e pardos, segundo o Instituto Datapopular.
"É mais do que coincidência. Seguramente a Globo não arriscaria essa mudança se isso representasse um risco de perda de audiência, ou seja, de faturamento", diz Joel Zito Araújo, diretor do documentário "A Negação do Brasil", sobre o papel do negro na teledramaturgia nacional.
Pelo cálculo do Datapopular -que considera raça a partir de autodeclaração-, os negros movimentam hoje R$ 673 bilhões por ano no país. A renda dos negros que compõem a nova classe média cresceu 123,2% nos últimos dez anos.
"Os papéis de Taís Araújo na TV mostram a mudança da representação do negro. Começou como escrava, foi camelô, depois filha de senador, que afinava o nariz com maquiagem", diz Renato Meirelles, sócio do instituto.

"Daí interpretou uma top internacional com toda a beleza da mulher negra e, em 'Cheias de Charme', fez parte dessa classe C ascendente, com orgulho de sua história."
Ambientada parte no Complexo do Alemão, no Rio, parte na Turquia, "Salve Jorge" acompanhará Morena (Nanda Costa), jovem que será vítima do tráfico de mulheres.
Ao redor da protagonista, pelo menos seis intérpretes negros vão movimentar a novela. Lucy Ramos será Sheila, sua melhor amiga.
Roberta Rodrigues será Vanúbia, rival de Morena, namorada do pai do filho dela. Nando Cunha, Neuza Borges, Mussumzinho e Cris Vianna também integram o elenco.
Na antecessora, "Avenida Brasil", havia apenas dois papeis de relevo para atores negros: Zezé (Cacau Prostásio) e Silas (Ailton Graça).
Em "Lado a Lado", são nove negros em papeis de destaque, entre eles os protagonistas, Camila Pitanga e Lázaro Ramos.
Dirigida por Luiz Fernando Carvalho, a minissérie "Suburbia" mostrará, por meio de Conceição (Erika Januza), o negro e o subúrbio. Cerca de 90% do elenco é formado por atores negros. "Não será só a criminalidade, mas a música, a cultura, a religião, o trabalho. A vida sem estereótipos", diz Paulo Lins.
Autor de "Cidade de Deus", livro que inspirou o filme de Fernando Meirelles, ele é coautor da série. negro, defende o projeto de editais do MinC.
"A Globo criou cota voluntariamente porque sentiu emergência e força social", argumenta Joel Zito Araújo.
Procurada, a Globo diz que não divide elenco por cor da pele e que a escalação é por compatibilidade artística.

'Temos de seguir em frente', diz Taís Araújo
DE SÃO PAULO

Atriz há 17 anos, Taís Araújo, 33, fala da evolução do negro na TV. (APJ)
Folha - A TV tem aberto mais espaço para o negro?
*Taís Araújo - Sim e é uma conquista que vem da história do movimento negro. De atores como Ruth de Souza, Milton Gonçalves, Léa Garcia etc.
Também existe um interesse comercial?
Claro. Você ligava a TV e era uma enxurrada de pessoas que não pareciam conosco. A publicidade e a dramaturgia estão respeitando a classe C como consumidora, e o consumidor quer se ver mais.
Como vê a evolução do negro na teledramaturgia?
Conseguimos papéis importantes, mas existia o pudor do politicamente correto. Em 'A Favorita', o João Emanuel Carneiro rompeu com isso. Precisamos de liberdade artística.
Já sofreu preconceito?
Sim, na TV Manchete. Fiz teste para 'Tocaia Grandre', passei, mas antes de começar a gravar, o diretor me trocou de papel, porque 'ele não podia ser de uma negra. Era importante na história'. A personagem era uma baiana...
Como vê o plano de editais para produtores negros?
Temos poucos roteiristas e diretores negros. A classe C crescendo, vai estudar. A maioria é negra, daí podem vir escritores.
E ser a primeira protagonista negra em novela das 21h?
Quando acabou 'Viver a Vida', não queria mais ser primeira em nada. Cansei. É uma besteira, não é para comemorar. Temos de seguir em frente, trabalhar.


Mauricio Stycer




Paranoia americana

"Homeland" cativou público e crítica por lidar de forma original com um pesadelo dos EUA

Há duas maneiras de entender o sucesso de "Homeland", um dos mais premiados seriados de 2012, cuja segunda temporada começa neste domingo no Brasil (canal FX, às 23h).
Trata-se, em primeiro lugar, de uma competente história de suspense. Mais significativo, na minha opinião, é o fato de ser um exemplo ousado de transformação daquela que talvez seja, hoje, a maior paranoia americana em entretenimento de qualidade.
A primeira temporada do seriado gira em torno da suspeita de que um soldado norte-americano, preso durante oito anos no Oriente Médio, possa ter sido "convertido" e treinado pela Al Qaeda para agir "em casa", no coração do poder da América.
A ideia de um "inimigo infiltrado", real ou imaginário, capaz de roubar segredos, sabotar planos ou mesmo assassinar, não constitui novidade na mente de roteiristas de cinema e televisão nos Estados Unidos.
O atrativo de "Homeland" é sugerir ao espectador que este suposto "convertido" possa fazer algo semelhante ao que os americanos viram em 11 de setembro de 2001. Ou seja, que os EUA permanecem tão vulneráveis quanto estavam, sem saber, onze anos atrás.
A história opõe o sargento Nicholas Brody, vivido por Damian Lewis (curiosamente, um ator britânico), à agente da CIA Carrie Mathison, interpretada por Claire Danes. A atriz está colecionando prêmios com uma interpretação, a meu ver, limitada a três caretas e dois olhares "expressivos".
O roteiro não foge muito ao bê-á-bá das séries de suspense, salpicando pistas, verdadeiras ou falsas, a cada capítulo. Excesso de informação, ou falta dela, em alguns momentos, também ajudam a capturar a atenção do espectador.
Com grande habilidade, desde o programa-piloto, os roteiristas levam o público a questionar tanto o heroísmo do soldado quanto a competência da agente.
Mais interessante, "Homeland" arrisca-se numa crítica não muito sutil à burocracia e aos métodos da CIA, expõe a rivalidade do serviço de inteligência com o FBI, discute erros e atrocidades cometidas na chamada "guerra ao terror" e, por fim, ridiculariza a ambição de um político de faturar com a situação.
Barack Obama, reza a lenda, é fã do seriado. Dizem também que gosta de "Modern Family" e "Boardwalk Empire". No caso de "Homeland", a simpatia do presidente dos Estados Unidos pode ser uma maneira de dizer que não se sente atingido pelas críticas.
Uma curiosidade: "Homeland" é a versão americana de uma série israelense, chamada "Prisioneiros de Guerra", que trata da reintegração de soldados israelenses, mantidos em cativeiro por anos. Outra série israelense de muito sucesso, adaptada até no Brasil, é "Sessão de Terapia".
No final de setembro, "Homeland" conquistou o seu maior troféu, o Emmy de melhor série dramática do ano, derrotando "Boardwalk Empire", "Breaking Bad", "Downton Abbey", "Mad Men" e "Game of Thrones". Já havia ganhado o Globo de Ouro, dado pelos correspondentes estrangeiros em Hollywood, na mesma categoria.
Fosse apenas uma excelente série de suspense, "Homeland" não teria faturado estas duas estatuetas. A série está longe de ter a densidade, sofisticação ou riqueza dramática de suas concorrentes, mas cativou público e crítica justamente por lidar de forma original com este pesadelo americano.