sábado, 27 de outubro de 2012

Rodrigo Gurgel, o jurado 'C', pagou o pato das gambiarras do regulamento


Opinião:


PAULO WERNECK
EDITOR DA "ILUSTRÍSSIMA"


Ao anunciar os vencedores, há dez dias, o curador do Jabuti, José Luiz Goldfarb, se disse "chocado e desnorteado" com os votos do jurado "C", que levaram o prêmio da Câmara Brasileira do Livro a um resultado inesperado --o que, em tese, até seria bom para um prêmio relevante.
Sem poder demonizar o jurado "C", que agiu dentro das regras, o curador engoliu o sapo mas deu a deixa para que o jurado fosse demonizado. Como pode o curador de um prêmio se "chocar" com um comportamento previsto no regulamento?
Sob o risco de melar de vez o Jabuti, só lhe restava tapar o nariz e acolher os votos de Gurgel. Fazer dele um "Pedro de Lara" literário, como foi dito no Twitter, soa como tentativa de desviar o foco das críticas (e desmerece o vencedor).
Rodrigo Gurgel, o controverso jurado "C", vem pagando o pato das misérias do Jabuti. Jurado nas últimas quatro edições, ele se orientou, ao que parece, por suas legítimas convicções críticas --sejam elas quais forem--, ainda que, na segunda fase, tenha implodido notas que dera ao livro de Wilson Bueno.
Parece ser Goldfarb, há 22 anos no comando do Jabuti, o curador das gambiarras do regulamento, esgarçando ano após ano a credibilidade do frágil quelônio.
A CBL age como um PMDB editorial: acomoda interesses inconciliáveis e promove reformas cosméticas para que tudo siga como antes. Em resposta às críticas, soltou nota que ressalta a "pujança do setor editorial com obras de qualidade inquestionável".
As inconsistências do regulamento vão do ridículo (a categoria romance se chama "melhor livro 'de' romance --alô, "Sabrina"!) ao surreal.
Basta ler o item que dispõe sobre os jurados: eles "não poderão ter vínculos com editoras nem livros inscritos em qualquer categoria".
Como compor um júri tão restritivo sem os intelectuais que publicam livros e participam da vida editorial do país? Veremos em 28/11, quando o júri será divulgado.
Enquanto isso, o mercado se moderniza rápido, com a vinda de "players" globais (conglomerados editoriais e, especula-se, a Amazon), dança das cadeiras nos cargos executivos de editoras e a homenagem ao Brasil na Feira de Frankfurt de 2013.
Imagina em Frankfurt!
Carolina Daffara/Editoria de Arte
ENTENDA A POLÊMICA VOTAÇÃO DO JABUTI conhecidos

Líder feminista da 'gangue pink' vem ao Brasil para seminário


IARA BIDERMAN

DE SÃO PAULO

Seu uniforme é um sari (vestimenta feminina indiana) rosa-choque. Sua arma, um "lathi", bastão de bambu usado em artes marciais na Índia. Seu objetivo: combater a injustiça social, a corrupção e a violência contra a mulher, incluindo o casamento de meninas.
Essa é a indiana Sampat Pal Devi, 54, fundadora da Gulab Gang (gangue rosa-choque), um movimento feminista fora dos padrões.
Devi estará no dia 30 no Rio de Janeiro para participar do seminário "Mulheres reais que transformam", um projeto da jornalista Ana Paula Padrão e da empresária Tatianna Oliva.
Pawan Kumar/Reuters
Em uma vila no norte da Índia, integrantes da Gulab Gang (gangue rosa-choque) seguem sua líder, Sampat Devi, armada com bastão
Em uma vila no norte da Índia, integrantes da Gulab Gang (gangue rosa-choque) seguem sua líder, Sampat Devi

COM AS PRÓPRIAS MÃOS

Bem antes de as militantes do Femen causarem furor com seus métodos pouco convencionais de protesto, Devi surpreendeu a população do vilarejo onde mora, no Estado de Uttar Pradesh, norte da Índia, ao enfrentar com as próprias mãos e um bastão um homem que espancava sua mulher -prática habitual na região, uma das mais pobres do país.
Devi pediu ao sujeito que parasse de maltratar a esposa, mas não foi atendida. Reuniu então um pequeno grupo de mulheres. Juntas, elas deram uma surra no agressor.
Estava formada a gangue e sua estratégia de ação, que é pedir o fim de algo considerado abusivo ou injusto e, se a reivindicação não for ouvida, levantar seus bastões -e usá-los, se necessário.
"Não usamos os 'lathies' para praticar a violência. É só para mostrar nossa desaprovação e a nossa coragem. Mas, se for para salvar alguém ou nos proteger, vamos usar", disse Devi à Folha.
A líder da gangue rosa-choque, filha de camponês, não teve quem a socorresse quando foi dada em casamento aos 12 anos. Aos 15 nasceu seu primeiro filho e, aos 20, já era mãe de cinco crianças.
Para ajudar a criá-las, Devi começou a trabalhar no serviço público de saúde. Abandonou o emprego para batalhar por sua causa -e a das outras mulheres.
A estreia oficial da gangue, contra o marido violento, foi em 2006, com pouco mais de uma dezena de mulheres. Em 2008, o movimento tinha 500 militantes. Hoje, são cerca de 20 mil, incluindo homens.
Além de simpatizar com o movimento das mulheres, os homens estão lá porque a gangue tornou-se ativa na defesa dos direitos de toda a população contra corrupção, abuso de autoridade etc.
"Há dois tipos de injustiça: a do governo e a da sociedade. Se for do governo, a gangue vai mostrar seus bastões para quem for a maior autoridade, até conseguir uma resposta", diz Devi.
Entre outras coisas, o grupo sequestrou um caminhão com doações de comida que estavam sendo desviadas por funcionários do governo para serem vendidas no mercado.
A participação de Devi deve causar impacto no seminário "Mulheres reais que transformam".
"Quando você traz uma mulher que radicaliza a maneira de lutar por seus direitos como a Sampat Devi, você chacoalha o público. As pessoas precisam sair de sua zona de conforto e começar a agir", diz a jornalista Ana Paula Padrão, da TV Record.
Mulheres Reais que Transformam
Quando: 30/10, das 9h às 14h
Onde: Sheraton Rio, av. Niemeyer, 121, Rio de Janeiro
Contato: tel.: 0xx/11/3038-0160
e-mail: mulheresreaisquetransformam@crossnetworking.com.br

O lado B das drogas


O antropólogo Luiz Eduardo Soares adverte: o debate sobre drogadicção deve deixar mitos de lado em prol de nova política para lidar com usuários, viciados e traficantes 



Andréa Máris Campos Guerra e Regina Teixeira da Costa
Estado de Minas - 27/10/2012 
Em Brasília, jovem participa de manifestação em favor da legalização da maconha

Tempos modernos, satisfações imediatas, urgências subjetivas e violência urbana afastam o cidadão da vida tranquila, pacífica e desejável. Muitos são os mitos e preconceitos que o cercam: entre eles, vastas confusões permeiam crenças a respeito da drogadicção. Preconceito, vício e criminalização são alguns temas abordados pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares nesta entrevista.

Ex-secretário nacional de Segurança Pública, ex-coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Rio de Janeiro, ex-assessor especial de Segurança Pública da Prefeitura de Porto Alegre e ex-secretário de Valorização da Vida e Prevenção da Violência de Nova Iguaçu (RJ), Soares lançou vários livros e teve papel destacado na equipe que idealizou o filme Tropa de elite. O intelectual fluminense é um dos convidados do 1º Fórum de Orientação Lacaniana, que organizou o debate Drogas: para além da segregação. O evento faz parte da programação da 17ª Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – Minas Gerais, que será encerrada hoje, no Espaço Cento e Quatro, em BH.


Drogas ilícitas e preconceito


» “Há muita fantasia, muito preconceito e pouco conhecimento da complexidade das questões relativas às drogas ilícitas. Em primeiro lugar, elas são diferentes entre si, as modalidades de consumo são distintas, as experiências que suscitam são incomparáveis, suas implicações sociais, culturais e fisiológicas são diversas, os comportamentos e valores aos quais mais frequentemente se associam são diferentes. Portanto, não faz sentido falar em drogas como se a palavra, ainda que no plural, se referisse a uma única entidade ou carregasse um único sentido.”

» “Em segundo lugar, não tem cabimento a suposição generalizada no senso comum de que de uma droga o usuário passa a outra – evolução inexorável entre progressivos patamares de gravidade e risco, dos pontos de vista da saúde e da ordem social, como se ambas, a saúde e a ordem, se espelhassem. O universo das drogas não é um território contínuo e homogêneo. O que transmite a impressão artificial de unidade e univocidade é o fato político da criminalização do uso e do comércio. O estigma e a ilegalidade unificam um conjunto heterogêneo de fenômenos. Paira sobre esse conjunto a sombra da desordem social e fisiológica, sociológica e biológica, cultural e natural, política e clínica.”

O debate e o combate

» “Está difundida a ideia de que o debate sobre política de drogas é uma discussão sobre o potencial destrutivo das substâncias psicoativas, colocando-se a favor da proibição aqueles que o reconhecem e contra os que, supostamente, o negariam. Como se a divergência fosse médica ou científica, ou técnica, ou biológica. Essa ideia é falsa. O que está em jogo não são as drogas; o que está em jogo é a proibição: quem e com que autoridade discursiva – ou relativa ao saber – tem legitimidade para estabelecê-la e a que preço o faz? Parte-se da equivocada pressuposição de que seria possível impedir o acesso às drogas. Bastaria que a legislação proibisse e que as instituições policiais atuassem com eficiência. O equívoco está mais do que demonstrado pelos dados empíricos amplamente conhecidos. Os países que declararam guerra às drogas e investiram bilhões de dólares, justamente aqueles que dispõem das polícias mais eficientes e aparelhadas, não conseguiram impedir o acesso às drogas, ao longo das últimas décadas. O consumo não caiu, o preço não subiu e o tráfico internacional vai muito bem, obrigado. Não resta dúvida de que, quando há demanda individualizada intensa e oferta ampla, essas pontas inventarão um meio de encontrar-se, a menos que se construa um Estado totalitário.”

» “As consequências dessa política têm sido trágicas: a população carcerária cresceu vertiginosamente (o foco da repressão tem sido negros e pobres), a corrupção de policiais e de autoridades se intensificou dramaticamente, os usuários que abusaram do consumo e que vivenciaram dependência relativamente a algumas das drogas ilegais não contaram com ajuda, as drogas não se submeteram a qualquer controle de qualidade e esse mercado não sofreu nenhuma regulamentação. Ou seja, paradoxalmente, o pretenso controle do Estado gerou a indisciplina mais extrema. Morre-se mais pela ingestão de substâncias que adulteram a cocaína do que pelo consumo da própria. O crack é um derivado venenoso e barato da pasta base da coca, induzido pela proibição. A violência do tráfico também é vicária da proibição.” 

Drogas e crime


» “Esta é uma imagem construída com os ingredientes perversos e letais do racismo e do preconceito de classe: de um lado, o usuário, definido como um pobre coitado, a vítima, ‘o viciado’, que deve ser protegido pelo Estado contra o assédio de traficantes, vistos como figuras monstruosas, que desencaminham os consumidores, abusando de sua suposta ‘vulnerabilidade moral e psicológica’. Esse caso extremo, essa polaridade maniqueísta pode existir. Como pode existir o contrário: o consumidor que induz um jovem vulnerável a participar da dinâmica comercial do tráfico para servi-lo, levando e trazendo a droga em troca de recompensa. Mas os casos singulares não correspondem ao processo, em seu conjunto. O que caracteriza o processo é a presença de dois atores sociais que trocam entre si, por exemplo, um cigarro de maconha por determinada importância em dinheiro. Em geral, com frequência, dois jovens, um branco, outro negro, um de classe média, outro mais pobre, um morador de bairros que contam com serviços públicos, outro residente em vilas, favelas ou periferias, áreas menos atendidas pelo Estado, um com mais chances de se beneficiar de um grau mais elevado de escolaridade do que o outro. Eles trocam entre si um produto por dinheiro. Quem vende pode jamais ter pegado em uma arma na vida. Pode não ter essa prática como profissão ou pode adotá-la, temporariamente. Quem vende pode também, em outro momento, comprar para si. Quem compra pode vender a amigos.”

» “Chamar um de criminoso hediondo e outro de ‘vítima’ da manipulação de terceiros ou da própria fraqueza não faz nenhum sentido, ou melhor, só faz sentido para quem não olha a realidade nos olhos e apenas enxerga os próprios preconceitos – que se radicam, profundamente, em nossa história. Por isso, parece-me perverso, a despeito das boas intenções e de alguns ganhos tópicos que promova, o movimento recente de grupos progressistas e esclarecidos, tendente a descriminalizar o consumo da maconha, por exemplo, mas ao preço de lançar ao inferno o ‘traficante’, destinado a concentrar sobre si os males e os efeitos do processo de criminalização.” 
» “A ligação entre drogas e crime decorre da criminalização do uso e do comércio das drogas. Os casos extremos do álcool, na violência doméstica contra mulheres, e do crack, na microcriminalidade urbana contemporânea, nos mostram como é nocivo o estabelecimento dessa ligação no imaginário coletivo e na consciência de gestores. Quando se atribui ao álcool o lugar de causa da violência doméstica, perde-se de vista a responsabilidade individual e a ação de um sujeito, formado por uma cultura machista que autoriza (psicológica, simbólica e culturalmente) a violência contra a mulher. O álcool é consumido como parte de uma dinâmica, geradora de condições que favorecem a emergência de uma brutalidade previamente autorizada. Por outro lado, a dependência do crack estimula ações desesperadas, voltadas para a obtenção de meios que viabilizem o uso repetido da droga. Mas a prevenção do estabelecimento dessa dependência e a atenção terapêutica apropriada não podem se realizar, em sua plenitude, quando todo esse universo de práticas, relações, experiências e sentimentos aparece sob o véu obscurantista de uma maldição, cuja fonte é a criminalização. A própria substância não existiria, nem seria comercializada, não imperasse a lógica econômica, política e social da criminalização e da repressão, abrindo a brecha para derivados das substâncias matriciais.”

O vício e a ‘experiência’

» “Minha interpretação sugere que procuremos o lado B do mundo das drogas, o lado ignorado da relação com as drogas, o lado que explica por que, afinal de contas, a despeito de todos os riscos para a saúde e apesar de tantas ameaças de punição e de tantos estigmas, a droga continua a ser desejada. É preciso reconhecer a dimensão do prazer, do desejo, de um movimento autêntico de busca, aquém e além das compulsões ou dependências, que constituem o lado A da problemática, isto é, a face conhecida, sempre focalizada, tematizada, destacada. Analiticamente, diríamos: o lado B que precisamos conhecer é a positividade do fenômeno, no sentido lógico da palavra. O consumo de drogas é algo que precisa ser estudado, interpretado, compreendido, sem que se neguem todas as outras questões destrutivas, negativas. Até mesmo para que se estabeleça alguma comunicação digna desse nome com os usuários. Pagando-se tantos preços, o que é que se busca, quando se busca a droga? O fenômeno é plural e heterogêneo.”

» “Quando não estamos no terreno da dependência, quando ainda se preserva o poder da escolha, da decisão, do investimento relativamente autônomo do desejo, parece-me que o que se busca é o que chamo ‘a experiência’. O que seria isso? Um passeio por si mesmo ao redor dos outros; um passeio pelos outros, ao redor de si mesmo; um percurso pelos sentidos, para além da linguagem e dos parâmetros culturais e sociais. Um tour desmapeado surpreendente que force limites e explore possibilidades remotas do humano. Uma viagem que, por alguns momentos, instaure um objeto, no caso, uma memória, um conjunto de sensações e emoções, vislumbres, enfim, um repertório irredutivelmente singular e, portanto, diferente, mas, sobretudo, refratário à troca. Vejamos o que significa, aqui, muito precisamente, ser refratário à troca. Significa não ser passível de conversão em valores intercambiáveis, não ser traduzível por uma medida comum, por uma moeda. Em um mundo regido pela mercantilização de (quase) tudo, riscar o círculo de giz em torno de si, inscrever no chão comum um recorte insular, marcar para si uma diferença irredutível corresponde a um movimento que talvez não signifique nada, em si mesmo, mas que talvez torne possível, para o sujeito, a significação da significação, ou melhor, o sentido de existir como pessoa em sociedade, como ser de linguagem, em um contexto reificador e fetichista, no qual a alienação é não só inexorável como constitutiva dos sujeitos. O que digo não implica ou pressupõe qualquer idealização das relações com as drogas, até porque a contrapartida da singularização proporcionada pela experiência, à qual me refiro, é a finitude, a morte. Meu propósito é chamar a atenção para a importância de oferecer uma escuta e valorizar a busca subjacente a ações de risco.”



WALTER CENEVIVA


Receitas democráticas

Exemplo de democracia é o Brasil de hoje. Tem defeitos, mas exibe instituições escolhidas em eleições livres

HOJE, REIVINDICAÇÕES do povo grego ameaçam a quebra do sistema democrático de seu país, na dureza da crise econômica. A perspectiva é ruim, ante a ameaça ditatorial na terra na qual a palavra democracia nasceu. A Síria vive o oposto, com violências para sustentar, pelas armas, o poder central dominante. São fatos desagradáveis, mas de todos os tempos.
A Atenas de Péricles e Aspásia, 400 anos antes de Cristo, brilhou entre as cidades-estado. Tinha elite minoritária (políticos, religiosos e militares) que decidia, democraticamente, mas no debate entre os iguais. A maioria numérica não governava. Escravos compunham boa parte dos habitantes. Ainda assim foi o exemplo do exame dos interesses gerais, pelos criadores do termo em que "demo" é povo e "cracia" é poder ou governo. Na realidade de seu tempo, afirmaram a liberdade para reivindicar o exercício do direito de todos, atentos à convicção coletiva na defesa de seus interesses.
A rememoração da história leva a pensar que, por ser difícil de atingir e manter, a democracia e sua continuidade tendem a encontrar resistências, mas cabe enfrentá-las com a consciência da liberdade preservada pelo direito. Aqui não temos os bilhões de habitantes da China, com ditadura e progresso material, ou da Índia, com indústria moderna ao lado de costumes tradicionais, castas e animais sagrados.
Períodos ocasionais de maior liberdade de escolha acontecem na dinâmica das existências nacionais. Permanência ampla e duradoura da liberdade na tomada das decisões impõe atenção aos democratas, para assegurar o funcionamento das instituições e a plena liberdade de escolha de governantes, substituídos em espaços temporais certos. Lembremos que a democracia estadunidense, mesmo depois da independência, teve quantidade crescente de escravos, comprados ou presos na África, em empreendimentos marítimos e financeiros de grande vulto. Idem para nosso país: muitas de nossas figuras históricas tinham escravos. Recentemente, o leste da Alemanha levava o nome de República Democrática, sendo infiel a esta denominação.
Exemplo de vida democrática é o Brasil de hoje. Tem defeitos, mas exibe instituições escolhidas pelo povo em eleições livres. O exemplo da campanha do segundo turno está aí, para marcar o caminho do futuro. Em mais da metade dos lares, o homem não é mais o controlador exclusivo da sociedade conjugal. Aqui, um torneiro mecânico de restrita cultura formal foi bem-sucedido presidente da República, eleito pelo povo. Um negro presidirá o Supremo Tribunal Federal, nicho sacrossanto da elite jurídica deste país, sem perder para ninguém em matéria de qualidade, com bela participação das mulheres, uma delas presidindo as eleições.
Grande parte da população mundial vive sob ditadores. Outras se ligam a organismos religiosos, nos quais a mulher é um ser de segunda classe. Milhões e milhões de pessoas não têm o suficiente para comer nem o grau de conforto necessário. Nesse quadro o Brasil vive a experiência do voto, depois de consolidar a ocupação integral do território no século passado. É o espaço do povo a repercutir, com força, no planeta. Na imprensa mundial, já repercutiu. A receita de democracia está fazendo bem à nação.

Leitura total do DNA para diagnóstico chega ao país


Custo é de R$ 23.900; indicação é para doença genética de difícil detecção

"Soletrar" o genoma, porém, pode não trazer pista para tratamento e não elucida doenças com causa multifatorial
Zé Carlos Barretta/Folhapress
Wagner Braga, que tem doença genética, com a mãe, Neusa
Wagner Braga, que tem doença genética, com a mãe, Neusa


GIULIANA MIRANDA

DE SÃO PAULO

Esmiuçar o DNA humano em busca da origem genética de várias doenças já não é exclusividade de universidades e centros de pesquisa. Há cerca de um mês, o sequenciamento completo do genoma passou a ser oferecido também na rede laboratorial privada no Brasil.
Os R$ 23.900 cobrados pelo serviço ainda são proibitivos -embora o valor seja uma bagatela perto dos US$ 2 bilhões investidos para que o genoma humano fosse rascunhado pela primeira vez.
Conhecer os detalhes do código genético, no entanto, não significa poder fazer previsões confiáveis sobre doenças complexas, como alzheimer e parkinson.
Já para outras, especialmente as que afetam um único gene, o genoma acessível representa um passo importante no diagnóstico.
"O genoma é recomendado para casos muito específicos, especialmente para pessoas que já estão doentes e têm dificuldade para obter um diagnóstico", explica o médico geneticista David Schlesinger, fundador da Mendelics, a empresa que está oferecendo o serviço.
Em moléstias com forte componente genético, como a surdez, há dezenas de mutações que podem causar o problema. Nesses casos, o procedimento comum seria fazer um teste genético para cada uma dessas alterações.
"Isso pode ser demorado, trabalhoso e até mais caro do que o sequenciamento do genoma", diz Schlesinger.
O procedimento para o genoma é similar ao de um hemograma. Depois que o sangue é coletado, ele é enviado para laboratórios terceirizados. Passada essa etapa,os dados são agrupados em uma sequência lógica que permita uma análise objetiva.
Nos EUA e na Europa, vários laboratórios já oferecem o serviço de sequenciamento genético. E, embora a qualidade do sequenciamento seja muito relevante, o maior desafio está na interpretação dos resultados da verdadeira sopa de letrinhas do DNA. Cada cópia do genoma humano -nós herdamos uma do pai e uma da mãe- tem 3,2 bilhões de "letras" químicas.
Além de Schlesinger, outros nomes de peso da genética no Brasil também estão por trás do projeto.
"Não é brincar de caçar probabilidades genéticas de ter uma doença no futuro. É algo que pode trazer benefícios concretos para muitos pacientes que ainda não conseguiram um diagnóstico seguro", avalia Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP e membro do conselho científico do laboratório.
CURA
Embora as doenças genéticas carreguem o estigma de incuráveis -e muitas de fato o são-, o diagnóstico rápido pode fazer a diferença.
Por mais de um ano, Wagner Braga peregrinou por médicos e laboratórios sem identificar o que fazia seus movimentos e força progressivamente se deteriorarem.
Foi só ao chegar ao departamento de genética do HC que conseguiu o diagnóstico de xantomatose cérebro-tendínea, uma doença neurodegenerativa rara e paralisante, mas que tem tratamento.
"Ele não está como antes, mas já melhorou muito", diz Neusa Braga, mãe de Wagner.
"Com o genoma, temos condições de começar o tratamento correto imediatamente", explica Schlesinger.

'Bombeirinho' faz transplante de medula


Menino com leucemia que quer ser bombeiro virou sensação no PR e estimulou doações


ESTELITA HASS CARAZZAI

DE CURITIBA

Cinco anos após receber o diagnóstico de leucemia, João Daniel de Barros, 6, conseguiu um doador de medula óssea e fez nesta semana o transplante que pode garantir a cura da doença.
O menino ficou conhecido como João Bombeirinho, por seu sonho de ser bombeiro, e foi adotado como "mascote" da corporação em sua cidade, Maringá (PR).
Como "bombeirinho", ele protagonizou campanhas para estimular a doação de medula óssea na região, o que fez aumentar em 35% o número de doadores.
O transplante foi realizado no Hospital de Clínicas do Paraná, na quarta-feira. As chances de cura são de 70%, segundo o hematopediatra Lisandro Lima Ribeiro.
"Ele só me diz: 'Eu tenho dois aniversários agora, mãe'. Ele renasceu", conta a mãe, Ana Paula Estevam.
O garoto está num quarto isolado e deve ficar internado por mais 30 dias, realizando tratamento imunossupressor para evitar a rejeição da nova medula. Enquanto isso, tem a companhia de quatro caminhõezinhos de bombeiro -todos esterilizados.
"Já estou com a cabeça doendo de tanto 'vrum-vrum' no quarto", diz Ana Paula.
Segundo a mãe, João já faz planos de "nadar, pescar, acampar e fazer piquenique". Nenhuma das atividades era aconselhada antes, devido à baixa imunidade do garoto. "Agora ele vai ter uma infância de verdade", diz.
João Daniel faz sessões de quimioterapia desde que tinha um ano e 11 meses, quando a doença foi diagnosticada. Desde então, ele convivia com as reações colaterais do tratamento: febre, alergias, coceira e enjoo.
Em 2010, quando passava por mais uma crise internado no hospital, João pediu a visita dos bombeiros. Ao deixar o local, ele foi "resgatado" pelo caminhão da corporação, içado pela janela. Virou sensação em Maringá.
O menino conseguiu um uniforme feito sob medida, já desfilou em carro aberto pela cidade e faz visitas frequentes ao quartel.
A cura da leucemia só pode ser confirmada cinco anos após o procedimento.

XICO SÁ



Só a baixaria salva e revela

SÓ NA baixaria se diz a verdade em política. A peleja eleitoral de SP que o diga. Nas faixas, nos panfletos e toda sorte de dizeres apócrifos. Como nas cartas anônimas que denunciavam os amantes de antigamente.
Nunca houve jogo limpo em política. Nem aqui nem em Tegucigalpa ou na China. Sei que você, amigo, gosta de discutir loucamente programa de governo, como se eles fossem algum dia seriamente cumpridos.
Ao rés do chão, porém, é que se faz a real-politik.
Programa de governo é tão falso quanto uma promessa de amor depois de uma D.R., a mitológica discussão de relação. Não leva a nada. A gente até sabe o que é proposta falsa e o que é proposta mais ou menos verdadeira.
Confesso que gosto de baixaria em política. Como se fosse a única lente possível para a gente vislumbrar uma suposta verdade. Gosto quando vira uma espécie de luta livre na lama. Baixaria é transparência. O mais é falso. O mais é neutralidade suspeita. Aqui incluindo nosso mundo midiático.
É na baixaria que se revela o homem e o animal agonizante sob o desespero da derrota. Acho isso humanamente bonito.
O resto é Bilhete Único, o grande fetiche da eleição paulistana. Foi ele, este direito de ir e vir minimamente democrático, que decretou o fim do Celso Russomanno (PRP), por exemplo. O cara foi mexer com o direito consolidado.
Em uma cidade que não anda, o ir e vir tornou-se sagrado, bíblico, afinal de contas o corredor do ônibus ainda é mais rápido do que o impossível mundo dos automóveis.
Cada vez tem menos importância a campanha que se faz oficialmente. Vale mais o apócrifo -nem tão apócrifo assim- e a luta do gel do boca a boca, aí incluídas as redes sociais. Eu quero o sangue do velho "Notícias Populares". Não acredito em manchete carregada de boas intenções e carne branca de barata.
Não há limite para a baixaria, como vimos agora. E não apenas em São Paulo, obviamente.
Como se diz no futebol de várzea, do gogó para baixo é canela. Política partidária é a quarta divisão da moral e dos bons costumes.

Painel


PAINEL
VERA MAGALHÃES - 



Canal interrompido

Diante da escalada na criminalidade em São Paulo, Dilma Rousseff enviou emissários para conversas com o secretário de Segurança do Estado, Antonio Ferreira Pinto, há cerca de 40 dias. Segundo interlocutores do Planalto, foi oferecida ajuda na capital, além de informações de inteligência, mas o diálogo não prosperou. Representantes de Geraldo Alckmin acusam o governo federal de omissão no combate ao narcotráfico e contrabando de armas nas fronteiras, suas prerrogativas.


Low profile A vigília anti-salto alto segue a todo vapor no QG de Fernando Haddad. A quem pergunta sobre preparativos para a eventual festa da vitória, os petistas dizem que a única coisa programada é café da manhã do candidato com apoiadores e acompanhamento da apuração no Hotel Intercontinental, como no primeiro turno.
Vai que é sua No entanto, ministros e petistas graúdos preparam desembarque em massa em São Paulo amanhã. Sondada para vir à cidade, Dilma Rousseff tem dito a assessores que prefere não aparecer ao lado do ex-ministro, pois, caso se confirme o prognóstico das pesquisas, seria ''sua vez de brilhar''.
Vistoria Apesar da blitz contra o "já ganhou", petistas já miram as subprefeituras. Beto Custódio, ex-vereador, visitou a de Guaianases, acompanhado de assessor.
Turma dos 3% Partidos que aderiram ao petista na época das vacas magras, apresentam a fatura. O PP de Paulo Maluf quer ter assento no primeiro escalão e usa o "cheque em branco" que deu a Haddad como garantia para manter o Ministério das Cidades, cobiçado por outras siglas de maior peso eleitoral.
Dobradinha A exemplo do primeiro turno, José Serra colará em Geraldo Alckmin no último dia da campanha. A agenda conjunta terá início na zona noroeste, onde o tucano teve recuperação nas últimas pesquisas, pela manhã.
Passando... Chefe da Casa Civil de Geraldo Alckmin, Sidney Beraldo reuniu ontem 55 assinaturas para postular vaga de conselheiro do TCE-SP. Em tese, o tucano atingiu a maioria dos votos na Assembleia para o cargo. A lista de apoiamentos será publicada hoje no "Diário Oficial".
... a régua Adversário de Beraldo na disputa pelo posto, Jorge Caruso (PMDB) havia recolhido 63 adesões. Após intervenção de líderes partidários e secretários de Estado, 24 deputados que o apoiavam subscreveram a indicação do articulador politico de Alckmin, o que revoga as decisões anteriores.
Dois em um A saída do secretário deve acelerar a reforma na estrutura administrativa do Bandeirantes. Pelo desenho em gestação, a Casa Civil ficará incumbida apenas da articulação política, delegando a outra pasta o controle sobre subsecretarias e órgãos hoje sob responsabilidade de Beraldo.
Devolução O deputado estadual Flávio Bolsonaro (PP-RJ), filho de Jair Bolsonaro, entrou com pedido na Assembleia Legislativa para retirar de José Dirceu a medalha Tiradentes, maior comenda do Estado, concedida em 2003. O motivo é a condenação do petista no mensalão.
Grades Pelas contas de advogados de mensalão, o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares deverá ser condenado a dez anos de reclusão, o que significa que deverá cumprir pena em regime fechado.
Luz de velas Imperatriz (MA), cidade do ministro Edison Lobão (Minas e Energia), internado em São Paulo desde a semana passada, ficou no escuro duas vezes em menos de 30 dias atingida por apagões. A cidade é porta de entrada da Amazônia Legal.

TIROTEIO
"Ex-ministra de Minas e Energia, Dilma inaugurou gigantesco sistema 'Vagalume' com seu novo marco regulatório."

CONTRAPONTO
Castidade acadêmica
Durante encontro, anteontem, com Fernando Haddad (PT) e Gabriel Chalita (PMDB) na Academia Paulista de Letras, a escritora Lygia Fagundes Telles pediu a palavra para relatar que havia estudado no Largo de São Francisco, mesma faculdade frequentada pelo candidato. Ela brincou que, na época em que cursou direito, eram apenas seis meninas na turma.
-Todas virgens! E o professor perguntou: vocês vieram aqui para casar?
Diante da gargalhada geral, ela arrematou:
-Também! E casei com o professor!

João Montanaro


Charge

TENDÊNCIAS/DEBATES


ANTONIO CLÁUDIO MARIZ DE OLIVEIRA

A jurisprudência do mensalão cria precedentes perigosos na segurança processual e nos direitos do acusado?

SIM

O destino do "in dubio pro reo"

Alvo de televisionamento, contendo o envolvimento de figuras proeminentes do mundo político, financeiro e publicitário. Colocado como um julgamento do comportamento ético de um partido político e dos seus governos. Posto como teste da imparcialidade do STF, pois a maioria dos seus integrantes foi nomeada pelos dois últimos governos. Envolvendo a sedimentada ideia de que no país as classes privilegiadas não são punidas.
O julgamento do chamado mensalão, com tudo isso, deixará marcas profundas no comportamento dos que operam o direito, como nos tribunais inferiores, e no próprio (in)consciente coletivo. Assim, certos aspectos de maior repercussão podem ser apontados, sem embargo de outros e dos efeitos do julgamento que só o futuro mostrará.
Para alguns ministros, nos crimes de difícil comprovação, o juiz não precisa de provas cabais, bastando indícios ou até a sua percepção pessoal para proferir uma condenação.
Em outras palavras, permite-se que o magistrado julgue por ouvir dizer, com base na verdade tida como sabida, mas não provada. Estará assim, na verdade, julgando com os sentidos e não com as provas.
É da tradição do direito penal dos povos civilizados a necessidade da certeza para uma condenação. Caso o juiz não tenha a convicção plena da responsabilidade do acusado, deverá absolve-lo. Trata-se do consagrado "in dubio pro reo" -na dúvida, absolve-se. Mais do que jurídica, essa máxima atende ao anseio natural de liberdade e de justiça. Não é justo punir-se com dúvida.
Alguns ministros, porém, pregaram a responsabilidade objetiva, com desprezo ao comportamento e à vontade do acusado.
Autoria criminal implica em um comportamento comissivo ou omissivo e na vontade dirigida à prática criminosa. Exemplificando para explicar: a condição pessoal, digamos, do dirigente de uma empresa, por si só, não o torna culpado por crimes cometidos em prol de tal empresa.
Utilizou-se a teoria já antiga do domínio do fato para justificar punições incabíveis. No entanto, ao contrário do propalado, essa teoria exige justamente que o autor vincule-se ao crime pela ação e pela vontade de agir criminosamente.
Alguns pronunciamentos trouxeram preocupante imprecisão ao conceito de lavagem de dinheiro. Consiste na conduta utilizada para emprestar aparente licitude ao produto de um crime, ocultando e dissimulando a sua origem. Há a necessidade de uma ação concreta, diversa do crime anterior.
No entanto, alguns julgadores, de forma imprecisa, parecem querer considerar lavagem a mera utilização do produto do outro delito.
Usar o dinheiro sem a simulação de sua origem não é lavagem, mas natural decorrência do crime patrimonial. Considerar o mero uso como outra figura penal é admitir crime sem conduta própria e permitir dupla punição a só uma ação.
A sociedade não ficou inerte e nem apática. Reagiu ao julgamento, em regra aplaudindo condenações e criticando absolvições. Conclui-se que a expectativa é pela culpa e não pela inocência. Isso é fruto da disseminação de uma cultura punitiva, de intolerância raivosa e vingativa, que tomou conta da nossa sociedade, fazendo-a apenas clamar por punição, sem pensar em prevenir o crime, combater suas causas.
Não pode passar sem registro um outro aspecto extraído ou confirmado pelo julgamento do mensalão: o poder da mídia para capturar a vaidade humana e torná-la sua refém.
Nesse sentido, um alerta: todos nós, integrantes da cena judiciária, deveremos administrar as nossas vaidades, para que ela não se sobreponha às responsabilidades que temos para com o seu principal protagonista, o cidadão jurisdicionado.
ANTONIO CLÁUDIO MARIZ DE OLIVEIRA, 67, é advogado criminalista. Foi presidente da OAB-SP (1987-1990) e defende Ayanna Tenório no julgamento do mensalãoAbus


JANAINA CONCEIÇÃO PASCHOA

TENDÊNCIAS/DEBATES

A jurisprudência do mensalão cria precedentes perigosos na segurança processual e nos direitos do acusado?

NÃO

É infundado enxergar inovações penais

Propala-se que o caso do mensalão constitui julgamento de exceção, quando, na verdade, revela-se um dos mais circundados por garantias, pela transparência e pelo fato de os magistrados mais preparados da nação terem efetivamente se debruçado sobre os autos.
Todas as questões foram objeto de intenso debate. Em nenhuma oportunidade se verificou o comodismo de seguir o relator ou o revisor. Cada julgador se dedicou à causa com esmero digno de quem julga isoladamente.
A alegação de que o ministro que presidiu o inquérito não poderia relatar o feito não procede, pois, em todas as megaoperações, o juiz que autoriza quebra de sigilos é o mesmo que recebe a denúncia e profere a sentença final.
A pretensão de recorrer a cortes internacionais chega a ser hilária, pois a comunidade internacional tem justamente cobrado do Brasil rigor com a corrupção. Intrigará ver o mundo noticiando que membros do poder Executivo compraram membros do poder Legislativo, com dinheiro público, e ainda se entendem vítimas de violação de direitos fundamentais.
Ademais, a garantia do duplo grau se deve ao temor de uma única mente humana decidir a vida de alguém, sem possibilidade de recurso. No julgamento do mensalão, os magistrados de mais elevado saber decidiram, em colegiado, mediante profunda reflexão. Se o foro privilegiado fere direitos, altere-se a legislação que vigora para todos.
Falar em inovações penais resta ainda mais infundado.
Os mais básicos manuais de direito penal, quando tratam do concurso de agentes (situação em que mais de uma pessoa comete um crime), adotam como teoria central a do domínio do fato - tem o domínio do fato quem tem o poder de interromper a execução de um crime.
Estabeleceu-se infundada confusão com a chamada teoria do domínio da organização, pela qual os líderes do grupo haveriam de responder, automaticamente, por todos os crimes perpetrados: peculato, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro e corrupção. Justamente por adotar a teoria do domínio do fato, o STF não condenou os líderes da quadrilha por todos esses crimes.
Vale, no entanto, esclarecer que, mesmo na sistemática do Código Penal vigente, a punição seria possível, tendo em vista que o artigo 62, inciso I, prevê até que a pena de quem dirige a atividade criminosa dos demais será agravada.
Ora, dado que foi criada verdadeira estrutura criminosa, com engrenagens bem definidas, especialmente destinadas à prática de crimes, com o fim último de corromper parlamentares, evidente que a punição por quadrilha fica até aquém do que a lei permite.
A corrupção já é deletéria quando praticada com recursos privados. No caso, os parlamentares foram corrompidos com recursos, em grande parte, públicos. Essa particularidade não pode passar despercebida.
Os poderosos condenados, apesar de insistirem em ver como elite apenas quem não está ao seu lado, também devem sofrer as consequências da lei. O cárcere não serve apenas para o infeliz que atenta contra o patrimônio, muitas vezes, sem violência. Ninguém pode ser considerado criminoso por ser político. No entanto, a política não pode servir de escudo para livremente delinquir.
A quadrilha foi instituída, no centro do poder, para a prática de crimes que, separadamente, já seriam muito reprováveis; em conjunto, vulneraram a própria democracia.
Um golpe não necessariamente se dá por meio de armas, pode ocorrer mediante pagamentos institucionalizados. O STF não só está aplicando a lei prevista para todos os mortais. Está fazendo valer a divisão de poderes, cumprindo seu papel de guardião da Constituição Federal.
JANAINA CONCEIÇÃO PASCHOAL, 38, advogada criminalista, é professora livre-docente de direito penal na USP

RUY CASTRO



Inventa-línguas
RIO DE JANEIRO - 

Amanhã, fechada a última urna, a Justiça Eleitoral não somará os votos -"procederá à totalização". Quem quer que tenha imposto essa forma pedante e engomada de dizer algo tão simples conta agora com a adesão da televisão, que se encarrega de fixar na língua os modismos mais bobos.
É assim também que, no futebol, ninguém mais entra em campo, mas "vem pro jogo", e ninguém mais joga bem, mas "faz um bom jogo" -expressões que ficamos a dever ao jargão pretensioso e oco de alguns treinadores. E onde foram parar os antigos estádios e ginásios, substituídos pelas "arenas", embora seus pisos de grama ou cimento ainda não tenham sido substituídos pelos de terra, próprios das touradas?
A explicação para tudo isso deve ficar "por conta" -não mais por causa- de alguém que, um dia, resolveu falar difícil e havia um pascácio escutando. Ou que julgou estar dando sua contribuição à língua, como na recente campanha de uma cerveja, louvada nos anúncios por ter "praiabilidade" e "churrascabilidade" -por que não "futebolidade"?
Guimarães Rosa vivia inventando palavras, necessárias ao que ele queria dizer. Muitas poderiam ter tido uma sobrevida na língua, como "ensimesmudo", "infinilhões" ou "sussurruído". Mas nem ele conseguiu que elas respirassem fora dos seus livros. Hoje, qualquer um pode ser um inventa-línguas -basta afixar à fachada de seu negócio uma placa anunciando sua "brinquedaria", "chicletaria" ou, credo, "olfataria".
Está bem, a língua não é imexível, como disse o outro. Mas, antes de submetê-la a um vale-tudo de gratuidade e exibicionismo, por que não recuperar palavras já existentes e com pouco uso? Nesta semana, por exemplo, uma delas, que vivia quieta no seu canto e só era usada em textos jurídicos, saiu às ruas com grande pompa e circunstância: "dosimetria".

FERNANDO RODRIGUES


Política em transição
BRASÍLIA - 

É inexorável em democracias estáveis -e em países idem- que parte da população se desinteresse pelos previsíveis processos eleitorais. Nos EUA, mesmo na atual crise, mais da metade dos cidadãos aptos a votar não dá bola para a escolha do presidente do país.
Uma eleição é parecida com uma reunião de condomínio. Vários moradores de um edifício simplesmente se recusam a participar desses encontros. Preferem imaginar que os outros farão a coisa certa. A tendência do ser humano à abulia é algo terrível, porém indisputável.
No Brasil, o voto é obrigatório. Essa anomalia sempre maquiou o tamanho da democracia do país. Só que parte dos eleitores já aprendeu a usar uma flexibilidade do sistema. O valor da multa para quem não vota é irrisório. Em geral, a cifra fica próxima de R$ 3,50. Para muitos, é um preço justo em troca de um domingo livre de filas em seções eleitorais.
Essa relativização da obrigatoriedade do voto no Brasil deve ser colocada na equação que explica as taxas recordes de abstenção registradas neste ano.
Há também uma assimetria entre o comportamento do eleitor e o destaque conferido às eleições municipais nas TVs e nas primeiras páginas dos jornais. Não é assim em outros países. Mesmo quando há disputa pelo comando de Nova York, o jornal "The New York Times" é parcimonioso ao abordar o assunto.
É um erro, entretanto, achar que o eleitor brasileiro está mais despolitizado. Na realidade, está mais exigente. A prova são as 50 cidades que amanhã realizam segundos turnos. É um recorde. As pessoas estão preferindo dar um calor nos políticos em vez de eleger alguém logo na primeira rodada.
Em suma, a política brasileira está em transição. Menos eleitores parecem se engajar no processo eleitoral. Mas quem fica dentro do debate demonstra estar mais atento.
E isso é muito bom.
fernando.rodrigues@gupofolha.com.br

HÉLIO SCHWARTSMAN



Política e saúde
SÃO PAULO - 

Democracia é bom e eu gosto. Mas isso não significa que ela não tenha problemas. O fato de governantes se verem obrigados a buscar a chancela da população a cada quatro anos frequentemente conspira contra políticas e investimentos de longo prazo. Não deveria ser assim, mas infelizmente é.
A situação da saúde em São Paulo é um bom exemplo. Todo prefeito que chega já sabe de antemão que não conseguirá resolver os graves problemas estruturais do setor no horizonte de tempo de que dispõe.
Assim, a solução preferida por sucessivas administrações tem sido a de deixar a espinha do sistema mais ou menos como está e lançar novos produtos que permitem aos titulares não só colher frutos de marketing como ainda desvincular seus nomes da ineficiência da máquina antiga. A saúde é uma droga, mas nas XXXs do candidato Y é diferente, diz a propaganda. É assim que proliferaram PAS, AMAs, AMEs, PSF, OS, UPAs.
Se a estratégia faz sentido do ponto de vista do político, é contraproducente para o setor como um todo. Concebidos para funcionar de forma mais ou menos autônoma, esses serviços não se integram tão bem como deveriam ao sistema, resultando em desencontros e baixa resolutividade.
Pior, a fim de fazer com que seus lançamentos sejam um sucesso, prefeitos capricham. Médicos e funcionários são contratados com salários generosos, não faltam equipamentos etc. Isso seria ótimo, se não introduzisse distorções no conjunto, incluindo a autoconcorrência predatória.
As velhas unidades, onde se encontra parte significativa dos serviços vitais, como atendimentos terciários, salas de emergência etc., estão perdendo profissionais para as novas. A fim de não fechar as portas, gestores recorrem a acertos informais e gambiarras nas escalas.
O resultado final é, numa palavra, o caos. Para dar certo, a saúde teria de ser pensada e tratada como questão de Estado, não de gestões.
helio@uol.com.br

Vencedor do Jabuti diz que prêmio causou desconforto


Paranaense Oscar Nakasato lamenta votação controversa que selou sua premiação


Vitória do romancista de primeira viagem foi beneficiada por jurado que distribuiu notas baixas para favoritos

MARCO RODRIGO ALMEIDA

DE SÃO PAULO

Oscar Nakasato estava em um supermercado de Apucarana, interior do Paraná, quando recebeu uma ligação informando que era o vencedor do prêmio Jabuti na categoria romance.
O professor universitário paranaense de 49 anos ganhou no dia 18 o mais tradicional prêmio literário do Brasil com seu romance de estreia, "Nihonjin", mas mal teve tempo de comemorar.
Quando chegou em casa, outras ligações, de jornalistas e amigos, já avisavam que estava envolvido em uma grande controvérsia.
"Esse prêmio devia me proporcionar apenas alegria, mas me causou um desconforto muito grande. Em muitos momentos, um desconforto maior que a alegria", diz.
A vitória de Nakasato foi favorecida pelas notas extremamente baixas que um dos jurados, identificado à época apenas como "C", concedeu a alguns dos nomes favoritos, como Ana Maria Machado.
A identidade dos jurados só será conhecida em 28/11, mas aFolha revelou na última quarta que "C" é o crítico e editor Rodrigo Gurgel.
Embora não tenha contrariado o regulamento, Gurgel foi acusado de manipular o resultado para favorecer autores menos conhecidos.
"Essa especulação de que houve manipulação para eu ganhar tem me incomodado além da conta", afirma.
Nakasato diz não conhecer Gurgel. Não leu os livros finalistas, mas acha que "as notas dadas a Ana foram muito estranhas. Se fosse comigo, também acharia estranho".
Ele ainda defende mudanças no regulamento. "Como o júri é pequeno, possibilitou que um jurado tivesse um poder muito grande."
Matuto do interior, como gosta de se definir, Nakasato é daqueles que sempre fazem de tudo para escapar de uma polêmica. Encarar as dezenas de jornalistas que o procuraram depois do anúncio do prêmio foi um tormento ao qual ainda não se acostumou.
Os próximos dias podem trazer mais turbulências. O ganhador da categoria romance é geralmente um dos favoritos ao prêmio de livro do ano, principal do Jabuti.
O vencedor será conhecido no dia 28/11. Se ganhar novamente, já antevê novas entrevistas e questionamentos sobre o resultado.
"Se tivesse ficado apenas entre os dez finalistas, sem ter ganhado, talvez tivesse sido melhor", imagina.
PERCALÇOS
Até chegar ao centro da polêmica no Jabuti, o romance de Nakasato passou por uma série de percalços.
"Nihonjin" nasceu da pesquisa de doutorado do escritor sobre personagens nipo-brasileiros na literatura nacional. Não achou mais que 15, quase todos secundários às tramas, estereotipados e com pouca profundidade.
Frustrado, resolveu em 2002 contar a saga de imigrantes japoneses que chegaram ao Brasil no começo do século 20.
Embora sua própria família seja um exemplo -os avós de Nakasato chegaram a São Paulo em 1913-, ele garante que quase nada há de autobiográfico no romance.
Nakasato dedicou quatro anos ao projeto. Outros quatro passou tentando publicar o livro. Não lembra o número exato, mas diz ter sido recusado por todas as grandes editoras do país.
A sorte mudou em 2010, ao vencer o Prêmio Benvirá. O júri era composto por Ana Maria Martins, Nelson de Oliveira e José Luiz Goldfarb, curador do Jabuti. Nakasato ganhou R$ 30 mil e viu seu livro finalmente publicado.
"No romance, destaca-se a competente reconstrução histórica, numa linguagem transparente, sem afetação", disse Oliveira àFolha.
Até a publicação do título, ele era autor de alguns contos e levava uma vida tranquila como professor de literatura na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, em Apucarana, onde vive há cinco anos.
Nakasato reconhece a visibilidade que o Jabuti traz para para um autor desconhecido, mas, se pudesse, transferiria a atenção para seus livros e permaneceria "bem quietinho no meu canto".
Enquanto não pode, prepara sem pressa o próximo romance. De prêmios, não quer saber por enquanto.

Coletânea de ensaios traz ideias e cartas de Barthes


CRÍTICA TEORIA LITERÁRIA

Livro de Leyla Perrone-Moisés estuda peculiaridades de semiólogo francês


MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Dois meses depois da morte de Roland Barthes, em 1980, a ensaísta Leyla Perrone-Moisés escreveu artigo em que, recusando as "autópsias acadêmicas", afirma que seu desaparecimento "não foi uma catástrofe para as letras francesas".
E isso "porque Barthes, cujo traço fundamental era a discrição, nunca se inseriu no panorama literário como um escritor de impacto e de polêmica, mas, segundo uma maneira que era a sua, sutil, insinuante, mais subversiva do que revolucionária".
O texto está em "Com Roland Barthes", reunião dos ensaios que a crítica literária escreveu sobre ele e das cartas que o autor de "Mitologias" lhe enviou, ao longo de uma convivência que se estabeleceu a partir de 1968.
Relação que hoje perdura em seu trabalho como coordenadora da edição das obras do escritor no Brasil.
As cartas, reproduzidas em fac-símile com transcrição em português, pontuam as três partes do livro.
Inicialmente cerimonioso em mensagens datiloscritas, Barthes logo passa a escrevê-las a mão -gesto prenhe de significados para um autor atento às conotações de cada acontecimento de linguagem- e invariavelmente termina declarando sua "fidelidade" à interlocutora.
Por ironia, o volume inclui um ensaio intitulado "Roland Barthes, o Infiel" (1970), que destaca o caráter pouco ortodoxo de sua semiologia.
O ensaio trata de sua teoria dos signos, que vai se plasmando e anexando novos territórios não apenas do conceito, mas sobretudo de uma sensibilidade refratária às coagulações de sentido.
Por trás dessa volubilidade teórica, porém, há uma fidelidade a certas obsessões.
Em "Escrita ou Escritura?" e "Deslocamentos da Noção de Escritura", a escritora paulistana discute as modulações do termo francês "écriture", que aparece no título "O Grau Zero da Escrita".
A tradução em português permite aprofundar a distinção barthesiana entre o texto do escritor (escritura) e a linguagem instrumental, ordinária (escrita) -distinção, porém, inexistente no idioma original.
O mesmo se dá com o termo "gozo", que aparece na célebre definição da escritura, em "O Prazer do Texto", como "ciência dos gozos da linguagem" -levando Leyla a afirmar, em outros momentos, que em Barthes "a fronteira entre a escritura arte e a escritura crítica desapareceu definitivamente".
COM ROLAND BARTHES
AUTORA Leyla Perrone-Moisés
EDITORA WMF Martins Fontes
QUANTO R$ 38,80 (216 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

Álvaro Pereira Júnior



Voto de silêncio

O universo da jovem banda xx é o dos corações em chamas, do menos que significa mais

Em harmonia com o clima desta véspera de eleição municipal em São Paulo, começo a coluna falando de um velório.
Mais precisamente, um velório-show, o de Michael Jackson, Los Angeles, 2009. Na cerimônia, em um ginásio de basquete para 20 mil pessoas, Berry Gordy, fundador da Motown, relembrou o primeiro teste de Michael na gravadora. O artista escolheu uma canção de dor: "Who's Loving You", de Smokey Robinson.
Gordy, malandro velho de Detroit, descreveu em seu discurso: "Ele cantou com a tristeza e a paixão de um homem que tinha vivido uma vida inteira de 'blues' e desilusões amorosas". Na época, Michael era uma criança de dez anos.
Impossível não lembrar disso ao ouvir "Coexist", o novo álbum (nem tão novo assim, dirão os indies mais aguerridos) da banda londrina xx. É tudo adulto e profundo demais para ser criado por gente tão jovem.
Apesar de fazer rock, gênero de origem estridente, o xx habita uma dimensão de silêncios. Aqui e ali, materializam-se pontilhismos de guitarra, uma linha simples de baixo, teclados minimalistas, vocais que são quase sussurros. Mas é nos interstícios, nos momentos em que nada parece acontecer, que a música do xx ganha plenitude.
As faces visíveis do grupo são os vocalistas Romy Madley Croft (menina, provavelmente de 23 anos) e Oliver Sim (menino, acredita-se que de 23 também). Acompanha-os um "whiz kid'' das programações e batidas, Jamie Smith, ou Jamie xx, mesma faixa etária.
Romy e Oliver, tão moços, são responsáveis por versos de uma delicadeza rara. Como na faixa "Unchained", minha favorita: "Nós éramos muito mais próximos / Nós chegávamos muito mais perto / Você não sente saudades?".
"Angels", primeira canção do álbum, traz um achado digno de Orestes Barbosa, o poeta de "Chão de Estrelas": "Você anda pela sala / Como se respirar fosse fácil" (em inglês soa tão mais bonito: "You walk through the room / Like breathing was easy").
Em "Missing", outra faixa linda, os vocais são inicialmente conduzidos por Oliver. A voz de Romy aparece distante, sons que não chegam a formar palavras. Jamie xx dispara uma batida irregular, como um coração em fluxo caótico. A letra diz: "Meu coração está batendo de um modo diferente / Fiquei tanto tempo longe / Não me sinto mais o mesmo".
No meio de "Missing", uma parada brusca. Nada menos que quatro segundos de um silêncio aflitivo: 1, 2, 3, 4... A canção finalmente recomeça, e os papéis se invertem. Agora é Romy quem canta: "Você ainda acredita / Em mim e você?". A voz "de profundis" passa a ser a de Oliver Sim, um grito terminal, um estertor.
"Coexist" é o segundo álbum do xx. O primeiro saiu em 2009. Ao contrário do que sempre acontece no rock e no pop, "Coexist" é mais simples e seco que seu antecessor. Não tem orquestras (reais ou de sintetizador), nem produtor famoso. Dispensa os arranjos suntuosos. Rejeita o exibicionismo.
O grupo manteve um alto nível de controle sobre sua arte. Mesmo depois do sucesso do primeiro disco, dos festivais um em seguida do outro, das turnês intermináveis, e de uma crise interna que levou à expulsão da segunda guitarrista, Baria Qureshi, em 2010. Em meio ao tumulto, shows foram cancelados por "exaustão".
Em uma conta no Twitter, ainda ativa, Baria se diz apunhalada pelas costas, e relata ter sido demitida por mensagem de texto (twitter.com/bariaq). Um processo relativo a direitos autorais, Baria contra o xx, corre na Justiça inglesa.
Em um quadro assim, imagina-se que não foram poucas as pressões em torno deste segundo disco do xx. A banda conseguiu superá-las. Seu universo é o do menos que significa mais, dos corações em chamas, da desesperança urbana, de sentimentos expostos com um mínimo de sons e palavras.
Penso em outros álbuns igualmente adultos, que se comparem em densidade a "Coexist". "Mezzanine", do Massive Attack (1998), e "Knowle West Boy", de Tricky (2008), são candidatos. Mas estes vieram de artistas maduros no auge da forma.
"Coexist", não: foi feito por meninos. Em "Our Song", eles dizem: "Tudo o que eu fiz / Você fez também". É verdade. Parceria perfeita.

Outro Canal


TELEVISÃO - 
KEILA JIMENEZ
keila.jimenez@grupofolha.com.br / folha.com/outrocanal

Record tira "Avatar" da geladeira

Anunciado em março como a grande novidade da Record para 2012, o blockbuster "Avatar" finalmente vai sair da geladeira.
O longa abrirá a grade de fim de ano da emissora, no dia 25 de novembro, às 19h.
A espera tem um motivo: por contrato, o filme só estaria liberado para ir ao ar na TV aberta em novembro.
A Record terá ainda entre os seus especiais de fim de ano o programa "Coral de Rua", de Marco Camargo, e dois telefilmes nacionais -"O Milagre dos Pássaros", adaptação de obra de Jorge Amado, e "A Tragédia da Rua das Flores", de Eça de Queirós.

Oioioi Além de ser um dos maiores sucessos de audiência da Globo dos últimos tempos, "Avenida Brasil" congestionou o Twitter durante a exibição de seu último capítulo, no último dia 19 de outubro.

Oioioi 2 Estudo da E. Life, empresa que monitora marcas em redes sociais, aponta que mais de 300 mil depoimentos foram gerados no Twitter em apenas 1h45 do último capítulo da novela, numa média de 2.700 tuítes por minuto.

Oioioi 3 Desses, 56,9% eram sobre Carminha (Adriana Esteves). Nina (Débora Falabella) foi a segunda mais citada pelos internautas, presente em 12,7% dos tuítes, seguida por Max (Marcelo Novaes), com 10,4%. O pico das mensagens sobre a novela no microblog foi durante a volta de Carminha para o lixão.

Cisma Leitor da coluna lembrou que João Emanuel Carneiro, autor de "Avenida Brasil" (Globo), tem alguma coisa com lixões. A sua "Da Cor do Pecado" (2004), em reprise no "Vale a Pena Ver de Novo", tem cena lendária da vilã Bárbara (Giovanna Antonelli), vestida de noiva, abandonada em um lixão.

Presidente A minissérie "JK", que narra os 74 anos de vida de Juscelino Kubitschek, estreia na segunda-feira na TV Globo Portugal.

Conversas O apresentador Raul Gil (SBT) nega que esteja indo para a RedeTV!, mas, na entrevista que concedeu à Amaury Jr., ficou nas entrelinhas que está negociando o seu passe com a emissora. O papo vai ao ar na quarta-feira, no "Programa Amaury Jr." (RedeTV!).

Infantil A TV Brasil comprou da produtora francesa Cyber Group Studios duas séries animadas -"Contos de Tatonka" e "Animalia", ambas produzidas em computação gráfica. As séries estreiam na emissora em janeiro, na programação de férias.

Infantil 2 A animação "Contos de Tatonka" já foi exibida em 110 países. A produção conta as aventuras de quatro filhotes de lobo que aprendem sobre a vida fora da família nas planícies e florestas da América do Norte. "Animalia" foi lançada em 40 países.

Comercial Até o mês de agosto, o programa "Legendários" (Record), de Marcos Mion, teve um aumento de 30% de seu faturamento em relação ao ano de 2011. A partir de fevereiro de 2013, o programa passará a ser transmitido em HD.

LAERTEVISÃO



Anatomia de um mito


Biografia "Marighella - O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo" documenta vida do "inimigo número um" da ditadura militar

Arquivo Público do Estado de SP/Divulgação
Imagem do prontuário de Marighella no Deops em 1939
Imagem do prontuário de Marighella no Deops em 1939


MARIO CESAR CARVALHO
DE SÃO PAULO

Marighella morreu atirando. Marighella sofreu torturas mais de dez vezes.
Marighella fez uma prova de física em versos no colégio e tirou nota dez.
Marighella é homenageado por Gilberto Gil no final da música "Alfômega" (1969), ao grunhir seu nome ("iê-ma-ma-Marighella").
Quando começou a pesquisa que resultaria no livro "Marighella - O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo", em 2002, o jornalista Mário Magalhães, 48, sabia que tinha como matéria-prima um mito coberto por névoas criadas à direita e à esquerda.
O comunista e guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969) é uma figura onipresente na história da esquerda brasileira por quatro décadas -de 1932, quando participou das primeiras agitações estudantis em Salvador à sua morte, em São Paulo, em 1969, quando era considerado o inimigo número um da ditadura, graças às ações de guerrilha da ALN (Aliança Libertadora Nacional).
Após nove anos e meio de pesquisa, Magalhães descobriu que todas as afirmativas acima são falsas.
1) Marighella não estava armado em 4 de novembro de 1969, quando foi alvejado por quatro disparos de policiais comandados pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury;
2) Ele sofreu torturas uma única vez, em 1935;
3) Não sobrou o registro da nota da prova em verso;
4) Gilberto Gil diz que só repetia onomatopeias em "Alfômega".
Mário Magalhães desfez os mitos em torno do guerrilheiro por uma razão aparentemente simples, segundo ele: só escreve o que pode ser provado por documento ou depoimento.
"A vida real de Marighella é muito mais espetacular do que a mitologia criada por aliados ou inimigos", afirma o autor.

RAIO-X - CARLOS MARIGHELLA
VIDA
Nasceu em Salvador em 5/12/1911. Seus pais eram um imigrante italiano e uma filha de escravo. Morreu em 4/11/1969, em São Paulo, em uma emboscada policial
MILITÂNCIA POLÍTICA
Em 1932 ligou-se ao Partido Comunista. Elegeu-se deputado em 1946. Fundou em 1967 o grupo armado Ação Libertadora Nacional


Biógrafo rejeita tese de traição a Marighella
Mário Magalhães diz ter certeza que guerrilheiro foi morto pela ditadura e que aliados foram bodes expiatórios
Livro traz revelações saborosas, como a de que Miró e Luchino Visconti ajudaram a financiar a ALN
DE SÃO PAULO
O baú de descobertas do livro de Mário Magalhães, um catatau de 760 páginas regiamente documentado, começa pela família -Marighella era neto de uma escrava.
Passa pela religião -apesar de se dizer ateu, era filho de Oxóssi no candomblé.
E chega à sua morte -o policial que revistou o corpo diz que não havia arma na pasta que o guerrilheiro carregava.
A versão de que portava um revólver foi inventada pela polícia três semanas após a morte, segundo Magalhães.
Há ainda revelações saborosas, como a de que o artista espanhol Joan Miró (1893-1983) doou obras para ajudar a financiar o grupo. O cineasta italiano Luchino Visconti (1906-1976), de "O Leopardo", também o auxiliou.
Marighella tornou-se um mito pela história que carregava. Preso em 1932, 1935 e 1939 pelo governo de Getúlio Vargas, foi eleito deputado constituinte pelo Partido Comunista Brasileiro em 1946.
Em 1953, organizou a Greve dos 300 mil, que parou São Paulo. Nos anos 1950 e 1960, foi sempre um contrapeso à política oficial do PC.
À época, os comunistas, seguindo diretrizes de Moscou, haviam sepultado a ideia de revolução e defendiam uma união com a burguesia. Após o golpe militar de 1964, Marighella foi um dos primeiros a defender a guerrilha.
Por isso escreveu ao ditador cubano Fidel Castro, em dezembro de 1966 -uma das revelações da obra. Dizia estar "confiante nos promissores resultados do processo de intercâmbio que ora iniciamos". O Centro de Inteligência do Exército contou 85 integrantes da ALN treinados em Cuba, registra o livro.
Marighella tinha simpatia pelo levante comunista na China, no Vietnã e em Cuba e via na guerrilha rural a saída contra a ditadura.
"Ele se dizia terrorista, mas não aceitava prejuízo para inocentes", afirma Magalhães. Jamais perdoaria, segundo ele, os ataques feitos por Carlos, o Chacal, em plena Paris, ou as bombas das Brigadas Vermelhas em estações de trem, na Itália.
Apesar de defender a guerrilha rural, paradoxalmente tornou-se conhecido com um manual sobre a guerrilha urbana, de 1969. A obra compilava em 51 páginas os erros e acertos dos atentados praticados da ALN e virou referência para grupos como o alemão Baaden Meinhoff ou os Panteras Negras, dos EUA.
O maior temor de Magalhães era que o livro se tornasse mais uma obra sobre a morte de Marighella, por seu caráter trágico para a esquerda -muitos historiadores usam o episódio para marcar o começo do fim da luta armada.
Tanto setores da esquerda quanto o regime militar diziam que os dominicanos que auxiliaram Marighella foram os responsáveis pela emboscada. Magalhães rejeita com veemência essa versão e a noção de que houve um traidor. Para ele os frades foram bodes expiatórios.
A pergunta que ele faz não é por que a ditadura demorou tanto para achar Marighella, em novembro de 1969, dúvida sustentada por dois fatos:
1) A polícia sabia desde 1968 da ligação dos frades com a ALN; 2) entre o final de 1968 e maio de 1969, a CIA (central de inteligência dos EUA) infiltrara o italiano Alessandro Malavasi no grupo.
A questão mais apropriada, ele diz, é: como Marighella não foi apanhado antes, tantos eram os descuidos de seu grupo com a segurança?
Mas, para Mário Magalhães, não faz sentido buscar culpados. Após entrevistar 256 pessoas e incluir 2.580 notas para detalhar suas fontes, ele chegou a uma só conclusão: "Quem matou Marighella foi a ditadura". (MARIO CESAR CARVALHO)
MARIGHELLA - O GUERRILHEIRO QUE INCENDIOU O MUNDO
AUTOR Mário Magalhães
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 56,50 (760 págs.)


RAIO-X - MÁRIO MAGALHÃES
VIDA
Nasceu no Rio, em abril de 1964
CARREIRA
Trabalhou em jornais como "O Globo" e Folha, onde foi repórter, colunista e ombudsman. Recebeu quase 20 prêmios e menções honrosas, entre eles o Prêmio Esso de Jornalismo de 1999


CRÍTICA BIOGRAFIA
Reportagem evita tanto hagiografia quanto demonização dos personagens
MARCELO RIDENTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Esta nova biografia de Carlos Marighella (1911-1969), tido como principal inimigo da ditadura militar, era muito aguardada. Afinal, além da importância do biografado, o autor é jornalista consagrado, que dedicou mais de nove anos à pesquisa para reconstituir a trajetória do líder comunista.
Mário Magalhães consultou extensa bibliografia, realizou buscas em arquivos, entrevistou 256 pessoas.
A preocupação com o uso da fontes revela-se nas 2.580 notas que, entretanto, não atrapalham a fluência da leitura.
O livro recupera o contexto histórico em que Marighella se inseriu, de modo que pode ser lido também como uma síntese das lutas políticas de esquerda da década de 1930 à de 1960.
Não deixa de ser um acerto de contas geracional, pois o autor nasceu em 1964, ano do golpe de Estado.
RIQUEZA DE DETALHES
Seguindo a cronologia, a obra reconstitui a trajetória do mulato baiano com riqueza inédita de detalhes, ainda que corra o risco de cair na ilusão biográfica, isto é, na atribuição de sentido linear e coerente a uma vida.
Marighella era filho de imigrante italiano, ferreiro e mecânico, com uma descendente de escravos.
Mais velho de oito irmãos, cursou boas escolas em Salvador e ingressou na universidade para estudar engenharia, mas não terminou o curso.
Envolvido nas lutas estudantis contra o governo Vargas em 1932, enredou-se cada vez mais na política, aproximando-se do Partido Comunista.
Seu percurso amalgamou-se com o comunismo brasileiro: foi preso político sob o Estado Novo, deputado constituinte em 1946, cassado com a escalada da Guerra Fria.
Viveu longos períodos na clandestinidade, fez viagens à União Soviética e à China, participou da agitação política do começo dos anos 1960 e tentou em vão articular uma resistência imediata ao golpe de 1964.
Fundou em 1967 a organização guerrilheira que viria a denominar-se Ação Libertadora Nacional, influenciada pela revolução em Cuba, onde Marighella esteve.
O livro termina com relato detalhado das circunstâncias em que foi morto em São Paulo, numa emboscada policial em novembro de 1969.
A obra mais reconstitui do que explica os fatos narrados, como se espera de uma reportagem biográfica.
Vez ou outra escapam adjetivos que podem levar mais ao julgamento do que ao entendimento de personagens e fatos.
POESIA
No geral, busca evitar tanto a hagiografia como a demonização dos personagens. As citações de poemas de Marighella dão um sabor especial à leitura, indispensável para pensar os dilemas de nossa história recente.
MARCELO RIDENTI é professor titular de sociologia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de "O Fantasma da Revolução Brasileira" (Editora Unesp).
AVALIAÇÃO ótimo


CRÍTICA BIOGRAFIA
Livro desconstrói alguns mitos, mas reafirma outros
DENISE ROLLEMBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA
Para o pesquisador do tempo presente, seja ele historiador ou jornalista, o desafio de escrever uma biografia de um personagem como Carlos Marighella é enorme.
As razões são muitas. A principal envolve as confusões que embaralham história e memória, como diria o historiador Henry Rousso. Vencidas as ditaduras e restabelecida a democracia, a tendência da sociedade é lembrar o passado recente buscando, por um lado, afastar-se de qualquer relação com o regime anterior; por outro, glorificar aqueles que lutaram contra ele.
Nesse percurso, as contradições e as ambivalências próprias a indivíduos e sociedade desaparecem e as versões mitificadas prosperam, apaziguando consciências, idealizando aqueles que não se submeteram.
Nos dois casos, a memória construída pouco tem a ver com a história.
Mário Magalhães enfrentou o desafio. As mais de 700 páginas do livro são resultado de uma pesquisa de notável fôlego. Entre história e memória, desconstruiu alguns mitos, reafirmou outros.
Um avanço considerável quanto à tendência da maior parte dos estudos acerca da luta armada e de seus revolucionários refere-se à natureza do combate: ao enfrentar a ditadura teriam lutado pela democracia ou visavam à reconstrução de outra ordem que não àquela existente desde o fim do Estado Novo?
A trajetória de Marighella é preciosa para compreendê-la. Ex-militante do PCB, rompeu com o partido e somou-se aos revolucionários.
Propunha, então, o enfrentamento armado, não somente para pôr fim à ditadura, mas, substantivamente, para construir uma outra ordem. Nela, a democracia era a ditadura do proletariado.
Essa é a ruptura essencial entre o PCB aliado do trabalhismo do pré-64 e as mais de 40 organizações revolucionárias, dentre as quais a ALN, criada e liderada por Marighella. Uma vida com um pé no comunismo das alianças institucionais e outro no comunismo revolucionário. Marighella foi um e outro.
O salto de Marighella foi também o de outros antigos militantes do PCB como Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho, Mário Alves, Joaquim Câmara Ferreira, entre outros.
Se a memória os tem recuperado como engajados na luta democrática, é preciso recuperá-los como militantes da ruptura, da revolução.
O enfrentamento que assumiram não foi para retomar a ordem interrompida com o golpe, mas para construir algo novo. Nas últimas décadas, a memória conseguiu fazer do revolucionário, antes de tudo, um democrata.
Um dos méritos do livro de Mário Magalhães é retomar a história, situar as opções dos agentes históricos em seu tempo e não em função de valores e referências do presente.
Nesse acerto do foco, não se está manchando o personagem histórico; ao contrário, trata-se de compreendê-lo, respeitá-lo, num esforço para se conhecer o nosso passado recente.
DENISE ROLLEMBERG é professora de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense e autora de "O Apoio de Cuba à Luta Armada no Brasil" (Mauad).
AVALIAÇÃO bom