Todo grande romance é uma tentativa de encontrar uma maneira de mostrar alguma coisa nova. As invenções técnicas e formais, as inovações temáticas, as constantes reinvenções do gênero romance... tudo serve, nos melhores casos, para um escritor dar a ver coisas que a tradição, até aquele momento, deixava de lado ou não conseguia elaborar plenamente. O romance cresce, acompanha, e até abre caminho.
Mas nem sempre. Mas nem todos.
Agora, frisando, todo grande romance é uma porta nova. Uma lente. Mas escrever um grande romance é coisa, claro, que depende de talento, depende da capacidade do autor. Só que depende, também (e cada vez mais eu me convenço disso), de uma decisão prévia, de como que um ato original de orgulho trágico, de soberba, de desejo de encarar aquele algo-novo. O sujeito precisa, antes de mais nada, querer grande. E precisa, para isso tudo não ser só orgulho vazio, ter uma leitura nova, assim, da vida, do universo, de tudo.
Excelentes romances já foram escritos sem essa pretensão. Péssimos romances já surgiram dessa mesma pretensão. Agora, quando esse diagnóstico novo, a coragem de tentar e a capacidade de dar cabo do projeto se juntam, o que acontece muda a literatura. Ah, muda. E muda os leitores.
Foi o que aconteceu em 1996, quando um carinha de 34 anos publicou um romance diferente de quase tudo, fruto de talvez dez anos de tentativas, abordagens variadas e todo tipo de desenvolvimento. Um sujeito tímido, de bandana, bermudão e óculos.
Quando David Foster Wallace publicou Graça Infinita ele era tudo menos um desconhecido. Já tinha publicado, em coautoria com um colega de universidade, um livro sobre rap (um dos primeiros tratados acadêmicos sobre o assunto) e, sozinho, um volume de contos e um romance filosófico-anárquico,que nada mais era que a sua monografia de conclusão do curso universitário de escrita criativa. (Ele se formou também em filosofia, e essa outra monografia viria a ser publicada depois da sua morte.
Mas pouca gente esperava do escritor nitidamente brilhante que já aparecia nesses primeiros textos o impacto de um livro como Graça Infinita. Aliás, pouca gente esperava de qualquer escritor, naquela altura do segundo tempo do jogo, um pancadão como aquele romance.
Sim, ele sempre escreveu (assim, no miúdo, no nível da frase, da invenção verbal) melhor que quase todo mundo. Sim, é verdade, ele já dava mostras de querer abraçar o mundo e, muito especialmente, a plena sensação de viver nos Estados Unidos dos anos 80/90. Sim, todo mundo esperava muito do rapaz.
Mas Graça Infinita tinha uma escala (1 079 páginas, com centenas de notas de rodapé), uma inventividade e uma abrangência que ninguém podia prever. Mesmo que essa abrangência e o seu impacto tenham vindo à tona meio devagar.
Porque assim de cara o que as pessoas viram, por assim dizer, foi a superfície reluzente do livro. O foguetório verbal, a infinidade de vozes e de personagens, a imaginação sem fim e, muito especialmente, aquele jeito meio bizarro de ele escrever uma prosa cheia de interrupções autoconscientes, cheia de apartes, bifurcações, dúvidas, ramificações múltiplas, correções e arrependimentos eternos, que parecia, para muitos críticos, representar bem demais o que poderia ser a “voz” interna da sua geração. O barulho do mundo que a gente interioriza e verbaliza quase sem querer. O som de uma geração criada num mundo entupido de informação, que encontrava ali o sujeito capaz de transformar aquele ruído permanente numa forma de arte, em prosa literária encantadora exatamente à medida que era incômoda, exatamente à medida que nos mostrava coisas que a gente não queria ver, de um jeito absolutamente delicioso.
Mas, com o passar do tempo (e inclusive com a publicação dos outros livros de contos de Wallace, que nunca mais terminou um romance), foi ficando cada vez mais claro para toda uma geração de leitores americanos, e para toda uma geração de escritores americanos, que Graça Infinita era muito mais do que isso...
David Foster Wallace cometeu suicídio em 2008. Ninguém entende os motivos de um suicida. Ninguém. A única pessoa talvez capaz de entendê-los é morta pelo ato. Nem mesmo quase suicidas que quase morreram dão relatos muito racionais e organizados. Eu? Nem tento.
Mas no mundo literário há de sempre restar a sombra de que o projeto talvez impossível do romance com que ele vinha lidando (The Pale King) talvez tivesse alguma coisa a ver com isso tudo. Agora, que tipo de escritor pode se envolver tanto assim com um projeto de romance, a ponto de deixar fãs aloprados pelo mundo pensando se por acaso não foi o livro?
E, acima de tudo, o que esse tipo de envolvimento teria a ver com hamsters selvagens, a Estátua da Liberdade usando fralda, catapultas de lixo nuclear, teatro de bonecos, fascismo nas quadras de tênis, baratas asfixiadas, reconfiguração cartográfica, ONANismo, assassinos cadeirantes e outros temas bizarros de Graça Infinita?
O livro não é engraçado? O livro não é até meio bobo?
É... o livro é engraçado. É, você pode chamar de bobo. Mas os bobos, desde sempre, tiveram a função de dizer o que os críticos do rei não podiam declarar sem perder a cabeça.
Thomas Pynchon, o próprio James Joyce, Machado de Assis, muita gente vem mostrando há séculos que você não precisa se fazer de sério para dar conta dos assuntos mais profundos, e às vezes mais dolorosos. E eles vêm mostrando há séculos, também, que o maior papel do romance, e da literatura, afinal, pode ser precisamente o de meter o dedo nessas partes que doem, de apontar coisas que a gente não queria enxergar. E se fazer você rir primeiro é o método mais adequado, ora, então cai na gargalhada, querida... rola de rir, amigão.
Porque depois da morte de Wallace a biblioteca dele foi doada para uma universidade. E entre seus livros, em geral anotadíssimos, apareceram romances e mais romances, poesia, filosofia e... livros de autoajuda! Ora, como é que pode um cara tão inteligente ler esse tipo de coisa? E as pessoas correram direto com uma explicação profissional: ele estava fazendo pesquisa.
Pode ser. Pode bem ser.
Mas ele era um sujeito angustiado. Angustiado para se entender, para entender os outros, para entender como cada um de nós pode tentar entender os outros, como cada um pode entender como os outros tentam entender os outros, e nós e (aaargh!) assim por diante.
Se há algo de quintessencialmente wallaceano são essas espirais, esses corredores de espelhos, esses caminhos circulares que levam para dentro depois de passar por dezenas de lugares, centenas. Mas, ao mesmo tempo, talvez o segundo tema mais profundamente típico da sua obra seja o paradoxo, o beco sem saída do claustrofóbico em crise preso na minúscula solitária do hospício e que só pode sair dali quando parar de gritar.
E lidar com esses dois processos, com a tentativa constante e o seu resultado frustrante, precisou, para ele, de livros, e de livros de tudo quanto era tipo. Não só lidos, mas escritos.
Ele praticamente reinventou a escrita de não ficção com ensaios imensos que não parecem nada que você tenha lido antes. Ele escreveu alguns dos contos mais originais, mais imaginativos, mais longos, densos e brilhantes que você pode ler em inglês. Ele escreveu um clássico sob forma de discurso de formatura! Ele foi o cara que conseguiu fazer o final “e era tudo apenas um sonho” virar uma pancada formal totalmente inédita! Ele escreveu um conto lindo sobre cocô, meu!
Mas o mais impressionante dessa abundância, dessa fertilidade aparentemente sem fim, dessa honestidade e desse total comprometimento com o “humano”, com a “empatia”, a “compassividade”, com as tentativas de entender a solidão, o amor, as faltas, os vícios, é que tudo está inaugurado e profundamente desenvolvido em um só livro. Graça Infinita tem mais de mil páginas, mas se você para e decide tentar avaliar a quantidade de coisas que ele estava tentando realizar, abarcar ali, percebe que o livro até parece pequeno.
Porque entre as muitas coisas que aquele sujeito queria fazer, que ele achava importante fazer, entre as muitíssimas coisas que o moviam e que eram fundamentalmente iguais às que moveram Dickens, Tolstói, Proust, Mann e companhia limitada, havia algo que pertencia exclusivissimamente a esse mundo dos Estados Unidos no fim do (saudoso?) século XX (e não se iluda: é o nosso mundo).
Porque ao mesmo tempo que Shakespeare, Homero, Terêncio e Cervantes fazem sentido precisamente porque escreviam sobre gente que não era fundamentalmente estranha a mim, a você, nós hoje passeamos por um mundo que joga coisas bem diversas na nossa cara. E a gente, por isso, anda meio diferente.
E exatamente como Wallace resolveu encarar o problema do excesso de informação simultânea na prosa mais veloz e onívora que você já leu (já se disse que não foi à toa que ele encontrou seu público especialmente na geração pós-internet), ele também precisou resolver um outro, digamos, probleminha do nosso mundo cínico, inteligente, letrado e sofisticado: Por que a gente precisa falar coisas como “humano”, três parágrafos atrás, entre aspas? Por que a gente deixou uma parcela tão imensamente importante do projeto de entender a nossa vida e a vida dos outros para algo tão barato como a literatura de autoajuda? O que foi que deu errado? Esse não era o grande papel da grande literatura? Onde foi que a ironia elegante do modernismo se transformou na ironia comercializada/institucionalizada e cool dos anos 80?
Por que que é tão difícil abraçar o Roy Tony?
E bem-vindos à Organização das Nações da América do Norte (ONAN) no Ano da Fralda Geriátrica Depend, na cidade semificcional de Enfield, subúrbio de Boston (existiu uma Enfield, no mundo real, mas hoje ela está embaixo de um lago...). Bem-vindos à companhia da família Incandenza (a família mais disfuncional da história); ao grupo dos internos da Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool (sic); a um mundo regido pelos Transtornos Obsessivos do presidente Johnny Gentle (a Voz de Veludo); à mente genial e enlouquecida de James Orin Incandenza, Sipróprio, como seus filhos o chamavam, criador da potencial arma terrorista/solipsista que é o filme Graça Infinita.
Sintam-se (quero ver...) à vontade.