Só no gogó
Grupos vocais brasileiros se dedicam ao
canto a cappella e adotam novo estilo, imitando sons de instrumentos
musicais. Os Cariocas, Boca Livre e MPB 4 mandam novidades para as lojas
Ailton Magioli
Estado de Minas: 21/11/2013
|
|
O sexteto carioca BR 6 tem formação inusitada: uma cantora e cinco vozes masculinas |
Tradição
que fez escola no país graças a pioneiros como Anjos da Lua, Quatro
Ases e Um Coringa, Bando da Lua e Demônios da Garoa, os grupos vocais
estão em plena atividade. Que o digam MPB 4, Os Cariocas e Boca Livre,
que acabam de lançar, respectivamente, os discos Contigo aprendi,
Estamos aí e Amizade.
Depois da adesão à performance teatral, que
nos anos 1980 transformou grupos como o Garganta Profunda em fenômeno
de crítica e público, a última tendência é o canto a cappella. Lançado
pelo norte-americano Take 6, o estilo ecoou no Brasil via BR 6, Be Bossa
e Gó Gó Boys (Rio de Janeiro), Perseptom (São Paulo), Banda de Boca
(Salvador) e Laugi (Brasília), entre outros conjuntos em atividade.
“Volta
a prática do coro puro, com a música vocal a cappella”, atesta Neil
Teixeira, integrante de Os Cariocas. Por uma década, ele deteve o título
de o mais jovem integrante do clássico grupo, posto perdido para Fábio
Luna. “O molde agora é o sexteto: um cantor faz a percussão vocal e
outro a linha do baixo, enquanto o quarteto restante fica responsável
pela harmonia”, explica. Além de resgatar o canto coral, embora em
formato reduzido, os novos grupos trazem o inusitado: as vozes imitam
instrumentos como a bateria e o baixo.
Recém-chegado da sexta
turnê europeia, o BR 6 é adepto de uma formação pouco usual no país,
ressalta a cantora Crismarie Hackenberg. “Somos uma mulher e cinco
homens. Um deles se responsabiliza pela percussão vocal, motivo do nosso
diferencial”, explica ela, ressaltando que a percussão, essencialmente
brasileira, inspira-se nos sons de pandeiro, cuíca, ganzá e bumbo.
“Enquanto
na música a cappella americana o diferencial está nos arranjos – com
uma veia vinda da street dance, do rap e do beat box, imitando a bateria
–, o nosso reside exatamente na percussão vocal”, reforça Crismarie. A
vocalista diz que essa mudança de concepção tem influenciado artistas de
todos os continentes. “O próprio Swingle Singers se adaptou à nova
realidade”, observa. Formado em 1962, esse grupo francês foi
reconstituído posteriormente em Londres, com novos integrantes.
Crismarie
Hackenberg afirma que o BR 6 é diferente. “Fazemos música brasileira,
mesmo cantando repertório internacional”, diz, garantindo que o
abrasileiramento se dá pelo ritmo. Formado por Deco Fiori (tenor),
Marcelo Caldi (tenor), André Protasio (barítono), Symô (baixo), Fabiano
Salek (percussão vocal) e Crismarie Hackenberg (mezzo), o grupo é
produto do encontro de professores, músicos e arranjadores que cantam
sem ajuda de instrumentos.
Com 13 anos de carreira e quatro
álbuns – BR 6 for all será lançado em dezembro –, o grupo é detentor de
vários prêmios The Contemporary a Cappella Recording Award, considerado o
Grammy do setor e concedido pela The Contemporary a Cappella Society.
“Trabalhamos sempre com o conceito fusion, mesclando a tradição
brasileira a influências latino-americanas, mas com visão cosmopolita”,
explica Crismarie. O conjunto reúne três gerações de cantores, que têm
de 30 a 50 anos.
Um dos principais problemas desse tipo de formação é a falta de apoio das gravadoras, observa Neil Teixeira, d’Os Cariocas.
|
|
Criado em 1942, o grupo Os Cariocas chega renovado ao século 21
|
Renovação Integrante
do Boca Livre desde a criação do conjunto, no fim da década de 1970, o
cantor Zé Renato admite certa renovação na música vocal. Esse fato vem
sendo constatado por ele como jurado em festivais realizados no país.
“Trata-se de uma tradição brasileira. Por mais que não apareça para o
grande público, ela tem continuidade por meio de grupos como o Laugi, de
Brasília, liderado pelo maestro Paulo Santos”.
Com Maurício
Maestro morando atualmente nos Estados Unidos, o Boca Livre tem feito
poucos shows. A agenda foi retomada para lançar o disco Amizade, que
chega ao mercado 18 anos depois do último CD do grupo, Americana.
Quem
também está de volta ao mercado é o ex-MPB 4 Ruy Faria, que se uniu a
Afonso Machado (Galo Preto) e aos filhos de ambos, Chico Faria e Tiago
Machado, para gravar Bate bola, disco em homenagem ao futebol
brasileiro.
Tradição mineira
|
|
Ernani Maletta questiona preconceito |
Apesar da renovação constante – surgiram os grupos Voz & Companhia,
A Quatro Vozes, Carona Brasil, Boca Frouxa, Amaranto e Cobra Coral –, o
canto vocal mineiro anda ausente dos grandes shows. “Isso tem a ver com
o tipo de música que a gente faz. No nosso caso, em busca da
valorização da polifonia e da multiplicidade vocal”, assegura Ernani
Maletta, cantor e regente do Nós & Voz – atualmente “adormecido”,
segundo ele.
“Vincular elaboração musical com coisa chata é
preconceito”, reage Maletta à alegação de que o gênero não atrai o
grande público. “Muitas vezes ouvi de patrocinadores que esse tipo de
música é elitizado. Trata-se, na verdade, de uma acusação falsa.
Lembro-me da turnê que o Nós & Voz fez em 2003 e 2004 pelo interior
do estado – do Triângulo Mineiro à Região Central. Fomos muito bem
recebidos, as pessoas ficavam encantadas com os shows”, relembra.
O
surgimento de espaços em BH, como o Centro Cultural Banco do Brasil
(CCBB) e o Cine-Theatro Brasil Vallourec, faz o artista vislumbrar dias
melhores para a música vocal mineira. O Nós & Voz é formado por
Valéria Braga, Márcio Santanna, Mateus Braga, Maurílio Rocha e Gláucia
Quites, além de Malleta.
saiba maisO fenômeno
O
cantor carioca Neil Teixeira explica que, até os anos 1940, o vocal
brasileiro era feito intuitivamente, usando a harmonia com apenas três
vozes. “Curiosamente, quem revolucionou o meio foi Ismael Neto”, lembra o
vocalista, referindo-se a um dos fundadores de Os Cariocas, cujo irmão,
Severino Filho, é o único remanescente da formação original. “Ismael
era um fenômeno de ouvido. Ele escutava em 78 rotações, tinha
conhecimento intuitivo”, relembra o empolgado Neil.
Ao surgir,
em 1942, Os Cariocas revolucionou o cenário vocal brasileiro, trazendo
para a música popular a condução harmônica a quatro vozes e tornando
audição e harmonização mais próximas da música erudita. Com a morte
prematura de Ismael (1925-1956), Severino Filho, que estudou com o
musicólogo alemão Hans-Joachim Koellreuter (1915-2005), passou a liderar
o conjunto.
Do lado esquerdo
O grupo vocal Boca Livre, maduro e
consciente do prazer de cantar junto, lança o álbum Amizade. Disco
destaca a qualidade musical dos temas, que vão de Gismonti a Edu Lobo
Kiko Ferreira
|
|
Em seu novo disco, o veterano grupo vocal Boca Livre vai da guarânia pop a clássico do Clube da Esquina
|
“Amigo é coisa pra se guardar do lado
esquerdo do peito.” E para soltar a voz nas estradas. O quarteto vocal
Boca Livre demonstra não ter perdido a cumplicidade, que costuma crescer
com quem convive muito tempo, no primeiro CD de repertório novo desde o
bem resolvido Americana, de 1995. Amizade, com apenas oito faixas,
apresenta quatro senhores grisalhos ostentando a sintonia de sempre, com
bons arranjos e os vocais mais agradáveis da música brasileira recente.
Maurício Maestro hoje mora nos Estados Unidos. Zé Renato tem
carreira solo de lançamentos com repertórios e objetivos diversificados.
David Tygel segue a carreira de autor de trilhas sonoras. Lourenço
Baeta, apesar de ter menos visibilidade, mantém seus projetos
individuais.
Depois de dois anos dedicados à escolha de
repertório e à discussão e definição de arranjos, eles entraram no
estúdio da gravadora Biscoito Fino, no Rio de Janeiro, para gravar
apenas nove faixas. Uma ficou de fora por falta de liberação de
herdeiros dos autores. O CD traz oito canções, entre inéditas e
conhecidas por quem acompanha a MPB mais sofisticada.
Ao
contrário do álbum de estreia, de 1978, primeiro LP independente a ter
sucesso de vendas no país com um conjunto de canções de pegada pop e
radiofônica, desta vez priorizou-se a qualidade musical. O grupo nem se
preocupou com uma sequência de faixas comerciais. Basta notar que a
primeira, Baião de acordar, era a música de encerramento do lado B do LP
Corações futuristas, lançado por Egberto Gismonti em 1976. A segunda,
Tempestade, de Chico Pinheiro e Chico César, com influência oriental
marcada pelo duduk tocado por Zé Nogueira, tem quase seis minutos – e só
começa a brilhar no segundo minuto.
Depois da delicada Terra do
Nunca, feita por Edu Lobo e Paulo César Pinheiro para uma montagem
teatral de Peter Pan nos anos 1990, o disco fica radiofônico com
Mistério do prazer (Zé Renato, Cláudio Nucci e Juca Filho), que Zizi
Possi havia gravado em 1986, e volta à densidade com Rio Amazonas (Dori
Caymmi e Paulo César Pinheiro), que abria o denso Brasilian serenata, um
dos melhores discos de Dori, e foi relida por Zé Renato e Renato Braz
em 2010.
Do Clube da Esquina 2 saiu Paixão de fé, o clássico de
Tavinho Moura e Fernando Brant, aqui com feliz e discreta intervenção da
guitarra de Jr. Tostoi e do acordeom de João Carlos Coutinho. As
maiores novidades dessa pirâmide invertida ficam para o final. Água
clara, de Maurício Maestro, é uma guarânia pop arrebatadora. E Amizade,
inédita parceria de Maestro e Marcos Valle (que comparece ao piano), é
como uma Canção da América suingada e leve, como a sólida relação dos
quatro cavaleiros do pós-calipso vocal da MPB.
|
|
Em seu novo disco, o veterano grupo vocal Boca Livre vai da guarânia pop a clássico do Clube da Esquina
|
Clássicos com balançoPra
que discutir com madame? Enquanto existir o espírito da bossa nova,
cada vez mais imortal, haverá espaço para um disco do grupo vocal Os
Cariocas. Mesmo que, 65 anos depois da estreia em 78rpm, e com apenas um
integrante da formação original (Severino Filho), eles não soem como no
princípio ou no auge da carreira, nos anos 1960.
Estamos aí é o
primeiro álbum do quarteto com a formação atual, a décima, e conta com
Neil Teixeira, Eloi Vicente e Fábio Luna dividindo microfones com
Severino, irmão do líder e fundador Ismael Netto. Enfeitado por
convidados especiais, o CD foi produzido pelos próprios artistas e
apresenta sonoridade capaz de agradar até aos que antes se incomodavam
com alguns agudos herdados da influência dos grupos americanos dos anos
1930 e 1940.
Aberto com Madame quer sambar, samba suingado
composto por Joyce Moreno, Roberto Menescal e Carlos Lyra como uma
espécie de continuação do clássico Pra que discutir com madame? (Janet
de Almeida e Haroldo Barbosa), o CD traz vários standards brasileiros.
Transformado em quinteto com a participação do ex-integrante Hernane
Castro, o grupo soa clássico na leitura de Eu e a brisa (Johnny Alf) e
faz bela homenagem a Magro, do MPB 4, dialogando com um contido Chico
Buarque e sua Januária. Depois do clima de night club com Que maravilha
(Jorge Benjor e Toquinho) e da bela versão a cappella de Marina
(Caymmi), o quarteto faz leitura quase solene de Vera Cruz (Milton e
Márcio Borges) e esbanja delicadeza em A noiva da cidade (Chico e Hime),
com Francis Hime ao piano.
A felicidade (Tom e Vinicius), com
uníssono de baixo e piano abrindo caminho diferenciado para o clássico
da bossa nova, surge antes do flerte bem-equacionado com a harmonia
mineira em O amor em movimento, de Chiquito Braga e Ronaldo Bastos, com
direito à guitarra imortal de Chiquito.
Para fechar o
“espetáculo”, Leny Andrade aparece com o pique costumeiro para duelar
com o grupo em seu maior sucesso, Estamos aí, prova de que os veteranos
ainda marcam presença com consistência e elegância. (KF)