domingo, 21 de setembro de 2014

Eduardo Almeida Reis - Ranking

Nem tudo na vida tem explicação. Exemplo: o brasileiro de 16 anos, que pode votar para escolher o presidente da República, é inimputável quando comete um crime hediondo


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 21/09/2014


Ranking

Puristas ficam furiosos com o anglicismo ranking, formação ou listagem (de pessoas, órgãos etc.), classificação ordenada de acordo com determinados critérios. No ranking dos países, por exemplo, os especialistas recorrem a critérios tais como IDH, PIB, renda per capita, homicídios por 100 mil habitantes, escolaridade, universidades importantes, liberdade de expressão, eleições democráticas e outras complicações, quando seria muito mais fácil avaliar uma nação pelo nível de seu ministério.
Nesse terreno ninguém nos leva a palma, locução que significa alcançar vitória ou distinção. Que outro país teve, tem ou terá uma ministra como Ideli Salvatti, nascida em São Paulo no dia 18 de março de 1952, licenciada em física pela Universidade Federal do Paraná e radicada em Santa Catarina desde 1976. Foi casada com Euclides Luiz Mescolotto, hoje presidente da Eletrosul e pai de Felipe Salvatti Mescolotto e Mariana Salvatti Mescolotto, cavalheiro de bom gosto, que deve ter conhecido momentos de intensa felicidade em tão doce companhia.
Em tudo e por tudo, pelo conjunto de suas ideias, pela vastidão do seu gênio, pela confiança que inspira e por sua admirável aparência, a ministra paulistana, sozinha, vale mais que todos os PIBs e IDHs do planeta.

News
Na arte de bem informar, com a classe que lhe é peculiar, nosso Fontana deve ter sofrido para escrever o nome de H. E. Mr. Pitchayaphant Charnbhumidol, embaixador do Reino da Tailândia no Brasil. País de 66 milhões de habitantes, a Tailândia ainda recentemente teve uma primeira-ministra, Yingluck Shinawatra, muito bonitinha, deposta por implicância dos militares. Soldados e oficiais das forças armadas têm dessas coisas: de vez em quando tentam consertar as coisas, quase sempre sem sucesso. O que não invalida a boniteza da ex-primeira-ministra. Outra que é um pitéu é a presidente da Coreia do Sul. Deve ser uma bênção para o povo ver na tevê uma dirigente bonita. Cristina Elisabet Fernández de Kirchner, 30 anos atrás, deve ter sido palatável; bagulhou, tadinha. Bagulharam ela e a Argentina, que também não vai lá bem das pernas.
Tenho amigos trabalhando na Tailândia e sei que alguns dos meus livrinhos andaram circulando por lá entre moradores que falam português. Através deles, comentando o nome do embaixador H. E. Mr. Pitchayaphant Charnbhumidol, fiquei sabendo que os nomes tailandeses são complicados. Bangcoc, a capital e maior cidade do reino, oficialmente se chama Krungthepmahanakhon Amonrattanakosin Mahintharayutthaya Mahadilokphop Noppharatratchathaniburirom Udomratchaniwetmahasathan Amonphimanawatansathit Sakkathattiyawitsanukamprasit.
Em inglês, algo assim como: City of angels, great city of immortals, magnificent city of the nine gems, seat of the king, city of royal palaces, home of gods incarnate, erected by Visvakarman at Indra's behest. Mil vezes a gloriosa BH conhecida como a Capital Mundial dos Bares. Tenho dito.

Carteira assinada
Mulato forte, 30 e poucos anos, 1,80m, carteira de motorista profissional, ele ganha dois salários mínimos, tem casa, luz elétrica, leite, pomar de graça, cria galinhas e ceva um porquinho, mas sai do sério quando ouve falar em carteira assinada. Num país em que as pessoas nascem pensando em carteiras assinadas e os cálculos oficiais dos empregos só levam em conta as carteiras assinadas, o excelente brasileiro fica furioso quando tocam no assunto. Além de bom motorista, exerce diversas profissões com alguma eficiência: eletricista, pedreiro, tratorista, mungidor, vaqueiro, jardineiro e as mais que o leitor queira incluir.
Nem tudo na vida tem explicação. Exemplo: o brasileiro de 16 anos, que pode votar para escolher o presidente da República, é inimputável quando comete um crime hediondo. A explicação para o pavor que o cidadão de 1,80m tem da carteira assinada é a seguinte: anda próximo de inteirar o décimo casamento. Há quem diga que são dezenove, mas deve ser brincadeira. Na maioria das uniões estáveis, teve filhos. Se pagasse pensões, morreria de fome. Por isso, prefere continuar faturando seus dois salários limpinhos, casa, luz, terreiro, leite e pomar de graça, com a atual companheira, uma jovem bonita e o mais novo filhinho.

O mundo é uma bola
21 de setembro de 1621: Jaime I, rei da Inglaterra, e Jaime IV, da Escócia, cede o Canadá a Sir Alexander Stirling, que está em vermelho na Wikipédia, sinal de que não há informações sobre ele. Em 1776, houve o grande incêndio de Nova York, que pode ter destruído até 25% das estruturas da cidade. Em 1778, fundação da cidade de Corumbá (MS), de minha particular afeição porque faz um calor infernal. Lá estive uma porção de vezes.
Em 1863, a independência da Argentina é reconhecida pela Espanha. Pobre Argentina! Tinha tudo para dar certo, mas foi destruída pelo peronismo. Em 1893, circula pela primeira vez um automóvel movido a gasolina. Foi há 121 aninhos. Hoje, inúmeras prefeituras estudam a proibição da construção de edifícios de apartamentos com garagens. Em São Paulo, vi na tevê, certas ruas só podem ter uma vaga para dois apartamentos. Em BH, oito anos atrás, fui convidado para almoçar num edifício que tem seis vagas por apê e 16 para a cobertura comprada por ilustre cavalheiro, que logo se viu às voltas com a Polícia Federal. Hoje é o Dia da Árvore e do Radialista.

Ruminanças
“Rádio é mesmo uma coisa misteriosa. Começou fazendo sucesso na sala de visitas, acabou na cozinha” (Fernando Sabino, 1923-2004).

A tal correria dos dias -Martha Medeiros

O Globo 21/09/2014

“Você não tem mais tempo para nada. E isso é uma constatação tão irrefutável, tão crível, tão corriqueira que os outros não questionam”


O que é luxo para você? Já houve quem respondesse: uma bolsa Prada, um vinho Romanée-Conti, a suíte do Hotel Hermitage em Montecarlo. Aí ostentar passou a ser brega, e as respostas mudaram: levar meus filhos à escola, almoçar em casa todos os dias, encontrar os amigos uma vez por semana. Tocante, mas familiar demais. Até que se optou por algo mais contemporâneo: luxo é ter tempo. É o que dez entre dez entrevistados respondem hoje.

Quem ousaria discordar? Luxo é, de fato, ter tempo. Ainda mais nesses dias turbulentos, em que se corre de um lado para o outro vivendo contra o relógio. Estão todos megaocupados, não estão?
É o que se diz. Você tem que renovar a carteira de habilitação, tem que cortar o cabelo, tem que visitar um cliente, tem que levar a bicicleta para o conserto, ir à farmácia, ao dentista, à aula de pilates, à terapia, esperar o eletricista, levar o cão para passear, mandar um Sedex e ainda gastar oito das 24 horas do dia trabalhando. Aliás, seu dia ainda tem 24 horas? Parabéns. Eu devo ter bobeado, pois afanaram umas cinco horas do meu.

Resultado: você não tem mais tempo para nada. E isso é uma constatação tão irrefutável, tão crível, tão corriqueira que os outros não questionam, aliviando você da culpa que sente por estar sempre alegando falta de tempo quando, muitas vezes, a falta é de interesse.

Dar uma carona para sua tia tagarela até a rodoviária numa sexta-feira chuvosa às sete da noite? Você adoraria, mas está entrando numa reunião.

O filho do seu vizinho vai estrear como DJ de um bar no outro lado da cidade? Você adoraria, mas está entrando numa reunião.

Churrasco do pessoal da empresa no domingo, num sítio a 170km de distância, sem sinal de internet, tendo que levar a própria bebida? Você adoraria, mas está entrando numa reunião. De condomínio, sério!

Marcaram reunião de condomínio para quarta- feira? Você adoraria, mas às quartas sempre fica doente.

Adiaram para quinta? Você acaba de baixar hospital.

Você não tem tempo para nada que não queira fazer, e ninguém lhe acusa de antipático porque estão todos na mesma situação, sem “tempo” para aquilo que antes não tinha escapatória, mas que atualmente tem, graças à abençoada agenda lotada.
Luxo mesmo é viver numa era tão esquizoide que te concede a desculpa perfeita para estar em outro lugar.
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Mas de mim você não escapa. Nesta segunda-feira, dia 22, às 19h, autografarei as antologias “Paixão crônica, felicidade crônica e liberdade crônica” na Livraria da Travessa, em Ipanema. Nem pense em alegar falta de tempo. Arranje uma desculpa mais original ou vá. Estou contando com você.      

MARTHA MEDEIROS - Obrigação

Zero Hora - 21/09/2014

Uma pesquisa revelou que 61% dos eleitores rejeitam a obrigatoriedade do voto. A desilusão com a política é apontada como um dos motivos. Sendo o voto um instrumento de transformação, eu jamais abriria mão dele, mesmo que fosse opcional, mas concordo: quem dera todos votassem por consciência em vez de fazerem uni-duni-tê em frente à urna apenas por dever cívico. Obrigação é uma palavra que me arrepia. Desde garota. Passei a infância desejando crescer porque intuía que a espontaneidade vivia no lado maduro da existência.

Sei que cada criança processa os ensinamentos que recebe através de um código muito particular, mas o fato é que eu me sentia numa camisa de força. Horário de ir para cama, ter que raspar o prato mesmo estando sem fome, a televisão racionada, o dever de só tirar notas boas. Obrigações que resultaram numa mulher responsável e bem-criada, ao contrário de tantas outras crianças que fazem o que bem entendem e viram adultos mimados e despreparados para lidar com frustrações. Só que, aos oito anos de idade, eu não sabia nada sobre pedagogia. A teoria sobre criação de filhos não fazia parte do meu repertório. Eu só sabia das minhas vontades. Eu queria ser livre porque me parecia o único jeito de ser honesta com meus sentimentos e pensamentos.

Não queria fazer nada por obrigação. Nem comer, nem dormir, nem ser feliz por obrigação. Considerava uma violência quando, ao perguntar aos adultos “por que desse jeito?”, ouvia como resposta “porque sim e pronto” ou “porque é assim que tem que ser”.

Obedecia militarmente “a hora certa” de fazer as coisas como se houvesse um relógio universal regendo uma orquestra de bons moços a serviço do andamento do espetáculo. Não que me fosse custoso cumprir. Só era custoso entender.

Pior do que me comportar como “todo mundo” era viver uma afetividade também regida por regras. Não parecia que as pessoas se encontravam por saudades, por afinidades ou para repartir calor humano. Parecia obrigação também. A obrigação das datas festivas. A obrigação dos domingos. A obrigação dos parentescos.

Ai de mim se gostasse mais de uma avó do que de outra. Ou se não quisesse sair do quarto para jantar. Ou se me recusasse a ir à missa. Ao colégio eu sabia que tinha que ir, não questionava. Só questionava o que me parecia facultativo.

Apesar dos meus “facultativos” não baterem com os dos meus pais, optei por não dar trabalho, segui a cartilha da boa menina. Fiz minha parte e eles a deles – benfeita, diga-se, ou não seria quem sou.

Mas quem eu sou mesmo? Cumpridora, pontual, educada, porém, hoje, profundamente intolerante a tudo o que não for espontâneo, ao teatro das convenções, às blindagens contra a intimidade, ao que serve apenas para manter a orquestra tocando.