domingo, 29 de março de 2015

MARTHA MEDEIROS - Decolagem autorizada

ZERO HORA 29/03/2015

É um impulso natural: abrir-se para novas oportunidades, alargar o campo de visão

Dias atrás escrevi uma coluna que repercutiu. Eu falava do sentimento de ver uma filha levantando voo, saindo de casa para construir sua própria vida fora do país, sem data para regressar. Na ocasião, recebi e-mails de pais e mães relatando experiências semelhantes, contando como foi importante para o amadurecimento de seus filhos essa decolagem rumo à própria independência.

Não foram três ou quatro, foram dezenas de mensagens, provando que essa debandada é mais comum do que se imagina e que só traz benefícios, tanto para quem vai quanto para quem fica muitos comentaram que o relacionamento com os viajantes só melhorou depois que eles partiram.

Estava eu entretida com as histórias que cada um contava quando entrou um e-mail de um pai que assim iniciava seu relato: “Tua coluna me levou às lágrimas”. Pensei: mais um que acaba de voltar do aeroporto depois de se despedir do seu moleque. Mas não. Ele contou que tinha um filho de 38 anos que ainda morava em casa e não dava sinal de querer levantar a bunda do sofá (palavras dele).

Imaginava que, a essa altura, o filho já teria vivido suas aventuras pelo mundo, aprendido um pouco sobre a vida, feito escolhas, mas que, ao contrário disso, criara raízes e não pretendia cortá-las. O garoto (garoto??) trabalhava, era um bom menino (menino??), mas nada de se movimentar.

À medida que o texto progredia, a frustração desse pai ficava mais evidente. No final, já estava insultando o guri (guri??). E eu, que gosto de um humor negro, não contive o riso diante deste “pai às avessas”, como ele próprio se definiu: inconformado por não ver seu filho também levantando voo.

Dei total razão a ele. Quando os filhos saem de casa, a gente se preocupa, sente saudades e tal, mas, no fundo, sabemos que esse rompimento está escrito e que é salutar na vida de todas as famílias. Por mais que dê um aperto no peito, o sentimento que realmente impera na hora da separação é orgulho. Criamos um filho que tem determinação, autonomia, equilíbrio emocional.

Não é preciso que ele vá para Londres, Austrália ou qualquer outro lugar distante. Basta abrir mão de um amanhã previsível, mesmo que seja mudando para o bairro vizinho. É um impulso natural: abrir-se para novas oportunidades, alargar o campo de visão, encontrar-se com um eu mais autêntico. Claro que grande parte da população não conta com esse privilégio: amontoam-se todos sob o mesmo teto por não terem como se sustentar de forma avulsa. Mas quem ganha seu próprio dinheiro e ainda assim se recusa a migrar será para sempre o apêndice de uma estrutura que não foi criação sua, e sim herdada sem esforço, impedindo a formação de uma identidade mais legítima.



Ô garoto, ô menino: coragem. Bata as asas e permita que seu pai voe também.

Amor à distância - Martha Medeiros

O Globo 29/03/2015
“Com tantas solicitações, compromissos, projetos, alternativas e interferências, sobrará tempo para se dedicar a um envolvimento profundo?”

Homens e mulheres têm se deslocado cada vez mais, seja a trabalho, estudo ou aventura. Mesmo quando enfurnados em casa, não param de se comunicar com nativos de outras cidades e de outros países através das redes sociais. Logo, é natural o incremento de parcerias amorosas entre pessoas que residem a quilômetros umas das outras. O par protagonista do filme “Ponte aérea”, que acaba de estrear, é só mais um entre tantos. Ela, interpretada por Letícia Colin, mora em São Paulo, e ele, vivido por Caio Blat, no Rio. Considerando o tamanho do planeta, praticamente vivem a uma esquina de distância.

No entanto, o ótimo e delicado filme de Julia Rezende vai além deste pequeno inconveniente geográfico. O que vemos na tela é o retrato da fragilidade das relações numa era em que todos estão ocupados demais para se entregar a alguém. O casal do filme é jovem, ambos estão em início de carreira, e, segundo a diretora, são representativos de sua geração: fazem mil coisas ao mesmo tempo, atuam em todos os canais e mídias possíveis, querem engolir o mundo, mas morrem de medo de ser engolidos por ele.

Afinal, com tantas solicitações, compromissos, projetos, alternativas e interferências, sobrará tempo para se dedicar a um envolvimento profundo?

Não sei se esta é uma questão só dos jovens. Hoje, entre os avulsos de todas as idades, existe o mesmo pé atrás. Os solteiros que nunca foram casados antipatizam com a ideia de se amarrar a alguém sem antes fazer um test drive em todas as outras opções possíveis — o que levaria umas três vidas, por baixo. E os solteiros que já passaram por uma ou duas uniões estáveis e já viveram seu “eterno enquanto dure” não morrem de amor pela ideia de ter que voltar a prestar contas, negociar, conceder, programar, comprometer-se.

Virou exagero se doar. A ordem agora é se emprestar. Toma aí um pouquinho de mim, mas me devolve.

Resultado? Um sem número de relacionamentos à distância. Os dois sentados à mesma mesa, mas cada um teclando seu smartphone. Os dois saindo de férias, mas cada um para um destino diferente. Os dois com problemas, mas sem disposição para conversar a respeito, já que a ordem é pegar leve. Os dois com muitos planos, mas sem nenhuma intenção de abrir mão do seu sonho em função do sonho do outro. Os dois com dúvidas, mas sem reparti-las para não ter que se explicar muito. Os dois juntos, mas não por inteiro, que nada mais é inteiro, tudo é fragmentado. 

É uma contingência dos novos tempos, o que não impede que a relação evolua. Que deixe de ser um namorico, uma ficada, um rolo, um lance, um caso, uma pegação, uma historinha para, aleluia, virar amor. E amor a gente não empresta, entrega de bandeja. Distância? Que distância? Não importa onde estivermos, será suprimida por uma palavra que não é moderna nem antiga e que sempre nos unificará: vínculo.      

EM DIA COM A PSICANáLISE » A pulsão de morte Tendemos a cristalizar hábitos e pagamos caro por isso

EM DIA COM A PSICANáLISE » A pulsão de morte Tendemos a cristalizar hábitos e pagamos caro por isso


Regina Teixeira da Costa
Estado de Minas: 29/03/2015 



É preciso mudar sempre que as coisas vão de encontro a nossos interesses. Quando não estamos felizes. Quando perdemos o sono à noite e, preocupados, passamos a resolver mentalmente pequenos ou grandes problemas com os quais ainda não conseguimos romper. Ou que não enfrentamos à luz do dia. Tendemos a repetir padrões aprendidos na célula familiar, e os repetimos a vida toda sem pensar se refletem aquilo que desejamos ou se atendem ao tipo de vida que queremos. Raul Seixas cantou: prefiro ser uma metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.

Tendemos a certo engessamento de hábitos. Até maus hábitos são difíceis de abandonar. E como!!! Aceitar o sintoma e defendê-lo com unhas e dentes é um gozo indigesto ao qual o sujeito se apega e, frequentemente, pretende fazer o outro engolir...

Tendemos a cristalizar hábitos e pagamos caro por isso. Numa família, por exemplo, podemos ver como pais abusivos, por seus problemas particulares e de casal, ensinam aos filhos a submissão, o respeito irrestrito, a honestidade inquestionável, a bondade demasiada. Uma falsa moral alienante, um tipo de cegueira, uma ingenuidade que embaça a verdade sobre a própria incapacidade deles como educadores tomados pelos próprios problemas.

O que será da criança assim doutrinada é coisa que os pais talvez não alcancem devido a suas dificuldades pessoais, possivelmente recobertas pelo narcisismo. Provavelmente, os filhos se tornarão infantilizados e indefesos para lidar com seus próprios interesses por vergonha de serem julgados egoístas e mesquinhos. Sacrificados pelo bem dos pais, entendem o bem como dedicação ao outro. Tentarão a vida toda salvar esses pais amados. Passarão a existência atendendo a interesses alheios sem questionar os rumos da própria vida, além de favorecer terceiros, que, mais espertos e focados em si próprios, vão nadar de braçada. Repetir padrões, então, torna-se uma prática indesejável. É preciso quebrar as regras aprendidas para assumir desejos – e isso nenhum de nós conseguiria sem um pouco de egoísmo.
É fácil? Não. A cada vez que o sujeito age em benefício próprio, estaria “supostamente” traindo os preceitos sagrados da família de origem. Estaria, desculpe se exagero, desonrando pai e mãe. A questão é que, adultos, precisamos rever nossos sistemas – uma reforma imprescindível. Não é traição reconhecer que o melhor não foi ensinado ou compreender que não há pai e mãe perfeitos. E que, apesar das imperfeições, podemos amá-los.

Portanto, todo sujeito precisa encontrar o seu desejo. É a única forma de sair da demanda do outro que o esmaga e abrir mão das velhas posições que o impedem de alcançar seu desejo. Fora do desejo, qualquer coisa é questionável. Não estou tratando aqui de caprichos infantis e vontades passageiras, mas do desejo. Algo importante e sério capaz de guiar o sujeito para uma vida construída cuidadosa e respeitosamente. Uma vida estável em que sejamos, no mínimo, contentes.
Quando falamos de reformas íntimas e particulares, é preciso mover verdades alheias impostas, é preciso não ser objeto, e sim sujeito. É importante se escutar, fazer valer aquela vozinha que sempre deixamos escapar. Porque o desejo fala constantemente conosco. Para muitos, é impossível atendê-lo, porque está ligado a perigos indizíveis.
Penso que as reformas são difíceis, mas imprescindíveis. Quando analiso isso no nível individual e vejo como é difícil quebrar padrões, não consigo evitar pensar o Brasil.

Há anos falamos de reformas necessárias aos sistemas político, administrativo, judiciário, prisional, educacional e de saúde. Quanto autoritarismo será necessário quebrar. Quantos ditadores teremos de enfrentar. Ministérios a derrubar, impotências a remover, bandidos a exonerar... Assim é (ou deveria ser) a vida: cheia de constantes e bem-vindos cortes e reformas. Mas tendemos ao repouso, queremos o descanso, mesmo no colo da pulsão de morte...

No caminho tinha uma pedra, disse Drummond. Não há caminho sem pedras e perdas. É da natureza das roseiras bravas rasgar a carne... Fique longe das sarças, dizem-nos. Não se pode viver e ficar longe das sarças, lembrou o poeta americano William Carlos Williams.