quarta-feira, 1 de abril de 2015

Não pegue essa carona - Martha Medeiros

Zero Hora 01/04/2015

A atitude do copiloto que voava de Barcelona para Düsseldorf foi estarrecedora, pra dizer o mínimo. São muitas as perguntas: uma pessoa profundamente deprimida pode perder o discernimento entre certo e errado? Andreas Lubitz teria se inspirado no primeiro episódio do filme Relatos Selvagens? Ter seu nome reverberado pelo mundo é motivação suficiente para uma insanidade cuja repercussão ele nem testemunharia, já que o insano também morreu?

Conduzir um avião lotado em direção a uma montanha a fim de espatifá-lo é um caso isolado. Lamentamos, perplexos, mas não temos medo de que venha a acontecer de novo, ao menos não tão cedo. No dia seguinte à tragédia, embarquei num avião e nem por um segundo pensei que na cabine de pilotos pudesse estar alguém incapacitado para realizar sua tarefa e com ideias estapafúrdias na cabeça. Essas coisas simplesmente não se repetem com trivialidade.

Não se repetem num avião, mas e nas estradas, e nas ruas? Inúmeros ônibus de turismo despencam ribanceira abaixo porque o motorista corria demais ou porque dormiu ao volante, e por causa de sua pressa e cansaço levam várias vidas embora com ele. Não é considerado suicídio porque não foi de propósito, mas o propósito pode se esconder em camadas menos aparentes. Ausência de responsabilidade pode ser um jeito escamoteado de cair fora.

O cara que atravessa três noites sem dormir e pega um carro. O cara que pega um carro e dirige a 180 km/h. O cara que dirige a 180 km/h pelo acostamento. O cara que dirige pelo acostamento de um penhasco. São várias tentativas de se matar sem dar na vista, sem assumir nem para si mesmo o que está fazendo.

O problema é que, não sendo uma tentativa de suicídio assumida, dá-se carona.

Não foram poucas as vezes em que eu disse para um motorista destemido: quer se matar, deixa eu descer antes, não me leva junto. Soava dramático, mas funcionava. Graças a um resquício de noção, o sujeito tirava o pé do acelerador.

Há sempre alguém por perto que tem menos amor à vida. Ou menos condição psicológica. Ou menos sensatez, menos senso de dever, menos tolerância a seguir regras – vá saber. E, uma vez que não se preocupa com o perigo que corre, envolve outras pessoas que poderão ser passageiros de uma viagem com destino indesejado.



Então, abandone os táxis que voam pelas avenidas. Assuma o volante de carros de namorados que estão sem condição de dirigir. Denuncie motoristas de ônibus que estão pisando fundo. Não ande com gente armada. Afaste-se de quem é muito estourado. As inocentes vítimas do voo da Germanwings não tiveram nenhuma dessas prerrogativas porque existia uma cabine trancafiada e um propósito consciente. Mas sejamos sensíveis aos propósitos inconscientes.

EDITORAS DE BOLSO

Cresce em BH o número de selos editoriais que trabalham de modo quase artesanal, mas movimentam o setor com bons lançamentos e conquistam espaço além de Minas Gerais


Ailton Magioli
Estado de Minas: 01/04/2015 



Depois de cursar filosofia, Maíra Nassif Passos fundou a Relicário Edições, que trabalha com rede de amigos %u201Cque têm habilidades a oferecer%u201D e tem 10 volumes lançados (Jair Amaral/EM/D. A Press
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Depois de cursar filosofia, Maíra Nassif Passos fundou a Relicário Edições, que trabalha com rede de amigos %u201Cque têm habilidades a oferecer%u201D e tem 10 volumes lançados
Por pouco, o clima bucólico interiorano de Cidadezinha qualquer, de Carlos Drummond de Andrade, não cai perfeito à Rua Capuraque, do Bairro Floresta, Leste de Belo Horizonte. A casa 1, do número 55, abriga uma (espécie de) república, além da Relicário Edições, criada pela graduada em filosofia pela UFMG Maíra Nassif Passos, de 29 anos.

A microempresa vem surpreendendo o ainda tímido mercado editorial mineiro, com a publicação de pérolas como A vida porca (El juguete rabioso), do argentino Roberto Arlt (1900-1942), já em segunda edição no Brasil. Produto da parceria de Maíra com o tradutor Davidson de Oliveira Diniz, doutor em literatura argentina, a edição do volume reflete o clima independente, quase artesanal da pequena editora, para a qual também trabalha a designer Ana C. Bahia, amiga de Maíra, que assina a criação da capa da obra.

“O processo de trabalho é sempre com a rede de amigos, que têm habilidades a oferecer”, diz Maíra. O namorado dela, Lucas Morais, de 28, que trabalha também para outras editoras, é responsável pela revisão de textos na Relicário Edições.
Depois da estreia com Personagens conceituais – Filosofia e arte em Deleuze, de Fernando Torres Pacheco, a editora já lançou mais nove títulos, entre os quais A festa do adeus, livro de contos que marca a estreia de Leonardo Beltrão, de 30. “Além de dificuldades de financiamento, o próprio mercado editorial é complicado. Ele é muito fechado”, afirma o escritor estreante, que trabalha como gestor cultural há alguns anos.

Nicho Na opinião dele, a literatura, ao lado da dança, é o segmento da arte com mais dificuldade de se organizar mercadologicamente. Resultado: além do livro escolar, cujo principal cliente é o governo, o outro nicho mais explorado é sempre a literatura estrangeira, com os famosos best-sellers.

“Em Minas Gerais, o mercado é muito imaturo, embora estejam surgindo editoras como a Relicário, Polvilho Edições, Scriptum Livraria e Editora e Aletria Editora, que está inaugurando uma linha de poesia”, lista o jovem escritor, que já está escrevendo uma novela, com o título provisório De Rishikesh a Marrakesh, inspirada na viagem de um ano que fez por 14 países, entre Europa, Ásia e África.

Editar obras do poeta alemão Christian Morgenstern (1871-1914), do austríaco Ernst Jandl (1925-2000), do filósofo Philippe Lacoue-Labarthe (1940-2007) e do pensador Michel Carrouges, ambos franceses, está nos planos de Maíra, que tem viabilizado traduções brasileiras de obras estrangeiras para a Relicário via editais de embaixadas. “Eles não custeiam integralmente. É uma ajuda”, afirma.

Esse recurso também atrai as jovens Luísa Rabello, Carolina Fenati, Cecília Rocha e Júlia de Carvalho Hansen, proprietárias da Chão da Feira, cuja estreia no mercado editorial, há aproximadamente três anos, ocorreu na plataforma on-line. Batizada com o nome de uma travessa de Lisboa, na qual mora atualmente Carolina, que conclui doutorado em literatura em Portugal, a editora contabiliza cinco títulos, além de uma revista literária gratuita, cujo segundo número será lançado em junho.

Enquanto a Relicário Edições se debruça sobre duas linhas de publicações – livros acadêmicos (nas áreas de filosofia e estudos literários) e literatura em geral, aberta a novos talentos e a traduções de autores consagrados – a Chão da Feira vai da literatura ao ensaio filosófico, passando pela poesia, correspondência e livros de fotografia em diálogo com a literatura.
As incursões estrangeiras da editora comandada por mulheres na faixa dos 30-35 anos inclui o filósofo francês Jean-Luc Nancy. Graduadas em diferentes áreas – artes visuais, história, letras e comunicação social – as meninas da Chão da Feira começaram com o Caderno de Leituras, on-line, que acabou gerando a revista literária.

Depois de uma edição dedicada à correspondência (Cartas para todos e para ninguém), a próxima, com direito a ensaios, poemas e outros gêneros, vai se pautar sobre cartografias. A partir do segundo número, a revista literária, que nasceu independente, passou a ser viabilizada com recursos captados via Lei Municipal de Cultura.

A exemplo da Relicário Edições, a Chão da Feira também não tem sede física para a venda dos livros. A editora recebe pedidos por e-mail (livro@chãodafeira.com), além de comercializar seus produtos em lojas físicas de Belo Horizonte (livrarias Quixote e Scriptum), Lisboa (Letra Livre e Paralelo W) e Porto (Gato Vadio) e no modo virtual (www.quartoamado.com).

“Estamos felizes por ver que são muitas as iniciativas na área. É saudável”, diz Luísa Rabello, ela mesma autora de uma das cinco obras publicadas pela Chão de Feira (Entrar e sair). Os demais títulos do catálogo são À escuta, de Jean-Luc Nancy; Alforria blues ou poemas do destino do mar, da sócia Júlia de Carvalho Hansen; A carta do Lord Chandos, de Hugo von Hofmannsthal, em tradução de João Barrento, e Literatura, defesa do atrito, da portuguesa Silvina Rodrigues Lopes. “Este ano, estamos sentindo que, com o segundo volume da revista e novos títulos, vamos dar uma crescida”, aposta a autora-editora, esclarecendo que o objetivo é publicar pouco, porém com cuidado.

Conta-gotas Segundo a editora da Relicário, os livros do selo costumam vender bem no ato de lançamento. Depois, “é a conta-gotas”. “Confesso que não fiz plano de negócios. Fiz tudo intuitivamente, não pesquisei mercado. As portas foram se abrindo, e eu entrando”, afirma Maíra. A editora tem conseguido presença nos mercados do Rio de Janeiro, na livraria Travessa, e de São Paulo, na livraria Cultura.

Em BH, ela deixou 78 exemplares em consignação em diversas lojas e diz que se surpreendeu com o resultado de vendas. Associada à Liga Brasileira de Editoras (Libre), com sede em São Paulo, Maíra também apoia iniciativas como as feiras independentes, em locais como o Edifício Malleta, a Praça da Liberdade e o Galpão Cine-Horto. A média das tiragens da Reclicário Edições é de 500 exemplares.
A autobiografia do cientista político, escritor, ativista e dissidente cubano Charles George Moore Wedderburn, editada sob o título Pichón, com direito a capítulo inedito, é a novidade da Nandyala prevista para chegar ao mercado em junho.

Criada há oito anos, a editora – que posteriormente também se tornaria uma livraria e um instituto de utilidade pública – é especializada nas relações étnico-raciais e de gênero. “Por isso mesmo, o mercado é bastante sazonal para nós”, afirma Iris Amâncio, uma das proprietárias. Com 101 títulos já lançados, a Nandyala prevê editar 13 livros neste ano, incluindo Pichón, cuja edição teve campanha de crowdfunding. Entre as novidades da editora está a publicação de Olivio Jekupe, autor indígena da aldeia Crucutu, de São Paulo. “Será uma narrativa sobre o povo guarani”, conta Iris, que também quer publicar autores infantis.

Neste mês, a Nandyala pretende mandar para as lojas Eu e o outro, de Cristina Teodoro Trinidade. Trata-se de um ensaio a respeito da discriminação racial na infância, seguido da tradução de Uma ideia de filosofia africana, de Marcien Towa, de Camarões.

Pesquisa inédita mapeia o setor


Ailton Magioli


Leonardo Beltrão lançou seu primeiro livro, A festa do adeus, pela Relicário. Ele considera o mercado editorial %u201Cmuito fechado%u201D (Flávio Charchar/Divulgação)
Leonardo Beltrão lançou seu primeiro livro, A festa do adeus, pela Relicário. Ele considera o mercado editorial %u201Cmuito fechado%u201D
Pesquisa inedita a ser divulgada neste mês pela Câmara Mineira do Livro (CML) revela que, das 77 editoras existentes no estado, 56 estão instaladas na capital. Primeira iniciativa do gênero em Minas Gerais, a pesquisa mapeia também livrarias e distribuidoras do estado, além das editoras.

Belo Horizonte e oito cidades-polo (Teófilo Otoni, Poços de Caldas, Juiz de Fora, Uberlândia, Divinópolis, Governador Valadares, Patos de Minas e Montes Claros) foram as cidades pesquisadas pela CML, que promete trazer à tona o hábito de leitura da capital e do interior, com direito inclusive a um perfil do leitor mineiro.
Viabilizada com recursos próprios e do Fundo Estadual de Cultura (FEC), a pesquisa reúne dados da cadeia produtiva do livro, incluindo o número de empregados na área e o faturamento do setor.

Além da Câmara Mineira do Livro, que tem 50 associados, Belo Horizonte também sedia o Clube de Editoras Mineiras, com 10 empresas-associadas.