Mário Fontana/Interino Helvécio Carlos
Estado de Minas: 24/12/2013
Seis autores para um conto
Histórias não faltam às vésperas do Natal. Embalado pelo clima de fim de ano, a coluna convidou seis personalidades da cidade para criar uma narrativa natalina. Cada um redigiu um parágrafo do conto, que foi aberto por Jacques Fux (vencedor na categoria Melhor autor estreante até 40 anos no Prêmio São Paulo de Literatura, com o livro Antiterapias). Na sequência, cada autor recebia o trecho já escrito e acrescentava sua parte, e assim sucessivamente até completar a história. Participaram da criação coletiva, além de Fux, Afonso Borges, criador do Sempre um papo; o governador Antonio Anastasia; o consultor de moda Rodrigo Cezário; o designer Gustavo Greco; e o arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, dom Walmor Oliveira de Azevedo. O resultado você confere abaixo. Feliz Natal a todos.
Amor de Natal
Jacques Fux |
>> N., assim como milhões de brasileiros, nasceu de uma família humilde, mas trabalhadora. Filho de pais iletrados – o pai marceneiro e a mãe doméstica –, N., desde pequeno, descobriu as dificuldades (e algumas belezas) da vida. Seus pais, como tantos outros, tentaram lhe dar um futuro melhor, matriculando-o em uma escola pública que, como sabemos, possui inúmeras limitações e perigos (mas viver é mesmo muito perigoso). N., já no primeiro encontro, surpreendentemente, encantou-se com o poder e com a leveza das letras, que transformam sonhos em uma certa realidade. Fascinado por cartas, único gênero (perdoem-me pelo exagero) literário que aprendeu, descobriu a possibilidade da realização do desejo (seu e dos outros) através da mera manipulação de letras. Mas a vida lhe pregou uma peça, dessas que deixam marcas profundas e indeléveis: seus pais desapareceram, assim, como neste texto, sem muita razão e N. teve que aceitar a dor de seu destino. Porém, a partir de então, criou sua própria proteção: queria livrar o mundo do sofrimento, mas não queria jamais se envolver novamente com alguém, só através das cartas.
>> Mudou-se para a casa de umas tias, na Rua Oriente, na Serra, após o desaparecimento de seus pais. Lia todos os livros que encontrou por ali. Revirava bibliotecas públicas, pedia emprestados aos amigos, mas nunca devolvia. Fez daquele porão um universo paralelo, alheio a todos. As cartas eram seu único alento. Escrevia, endereçava a pessoas imaginárias e as guardava em um armário velho, abaixo da escada. Suas tias, apreensivas, tentavam uma forma de comunicação. Ele respondia com bilhetes, lacônicos. Um dia, viu a sua vizinha Marialva aparecer na janela. O cachorro latia alto, estridente, aquela manhã. Observou seus cabelos crespos, o sorriso ao conversar, ouviu a gargalhada solta. Sua proteção havia sido destruída. As cartas não mais o salvariam.
Antônio Anastasia |
>> Dia após dia, N. passava cada vez menos tempo em seu porão, sentando-se furtivamente à janela do corredor, não sem antes conferir se as tias já haviam saído para as compras ou se retirado para as providências do dia na cozinha. Inclinava-se de modo que as palmeiras do jardim disfarçavam-lhe o rosto, enquanto observava Marialva a conversar sozinha com suas bonecas ou a atirar uma bolinha amarela que o cão ia alegremente buscar. Quando a menina não aparecia, N. punha-se a escrever freneticamente, com letra miúda e caprichada, cartas que iam se acumulando em um calhamaço de envelopes – sua timidez de menino não permitia, ainda, que as ansiosas correspondências chegassem às mãos de sua destinatária. De certa feita, porém, sem aviso, enquanto aquela rotina diária se desenrolava tranquilamente, com a pilha de missivas repousando perto de seu joelho, N. viu quicar, para o seu lado da cerca, e rolar, para muito perto de sua janela-esconderijo, aquela bolinha amarela. Num átimo, Marialva já tinha os olhos fixos no brinquedo e, sem modos, pulava para dentro dos limites da residência das tias de N.
Gustavo Greco |
>> Ao se dar conta de que o tão esperado encontro seria inevitável, N. ficou paralisado. Coração disparado, um frio no estômago se contrapunha ao calor no rosto e a sensações até então desconhecidas. Um nó na garganta parecia conter a enxurrada de palavras que por anos ficaram guardadas e, naquele momento, poderiam sair todas de uma só vez, atropelando-se desordenadamente. Por um instante, a vida, que nunca havia sido generosa para o menino, sorria-lhe, proporcionando um momento capaz de tirar de sua cabeça todas as preocupações e aliviando-lhe o peso que carregava no peito desde quando se entendia por gente. A falta dos pais, a dificuldade de se relacionar com as tias, nada ali tinha importância. Uma aproximação com Marialva era tudo o que N. queria, mas não sabia como. Por dias e noites ele pensara naquele momento, que aconteceria ali, caso não fosse Tigre, o cachorro vira-latas da menina, que chegou mais rápido e pegou a bolinha. Isso fez com que Marialva recuasse, voltando para sua casa, deixando N. parado, sem acreditar que o momento perfeito lhe escapara. N. não estava surpreso, pois o revés já era um antigo conhecido, um velho amigo talvez.
>> Mais uma vez, mergulhou em um turbilhão de pensamentos. Mas agora, algo mudara. Todos seus fantasmas e angústias não faziam mais sentido. Apesar de continuarem lá, lembrando a todo momento quem ele era, haviam perdido a força esmagadora que o tornara tão alienado. Seus medos estavam mais distantes, não os sentia presentes, eram apenas vultos. Havia algo diferente acontecendo com suas emoções, algo que pela primeira vez preencheu todos os seus sentidos. Buscou refúgio nos papéis e no lápis, sua forma segura de reflexão. N. não conseguia escrever, as palavras não alcançavam o papel, sentiu-se mudo, pois aquela era sua principal forma de comunicação. Perdeu a noção do tempo, as tias chamaram para o jantar, mas N. não quis fazer a refeição, não sentia fome. Ainda procurava compreender o que se passava e, horas depois, ainda não conseguira imprimir uma letra em seu caderno. Cansado de tentar organizar seus pensamentos, N. deitou-se encolhido em sua cama, como um feto buscando conforto no útero morno dos lençóis, e chorou silenciosamente. Sentia que as lágrimas levavam sua dor embora e assim N. adormeceu.
Dom Walmor |
>> Adormecido, em sono profundo, provocado pelos desgastes das fugas e buscas, N. sonhou. Sonhou ao som de músicas melodiosas, nostálgicas – que alimentavam os sentimentos do coração. Ao som das melodias, em sonho, passeava entre luzes, enfeites e cores. Ora um céu azul clareado pelos raios do sol; ora uma noite estrelada, trazendo o frescor da brisa que acariciava o seu rosto, gerando sensação de novidade, gosto de coração apaixonado, indicação de possibilidade nova de viver. Nos embalos das músicas e das cores, Marialva também passeava com N., enchendo o seu coração de leveza, coragem de sonhar, alegria de viver e amar. Sonhando, bem próximos, não mais separados pelos limites das residências, nem pelos recursos de cartas e de letras, sem vira-latas para atrapalhar, chegaram, coração só, disparado pela ternura, em frente a um presépio. Um presépio lindo que iluminava o amor que se despertava na glória daquele sonho. Ante o presépio, ao som da música natalina melodiosa, resgatando devoções, deram as mãos, entrelaçando vidas e histórias, um caminho para sempre. Ele acordou. Era um sonho. Um sonho que o levou naquele dia, dia de Natal, a sair do seu esconderijo. Foi à igreja. Viu um presépio igual. Esperou por Marialva. Ela não veio. Fixou o olhar n’Ele, o menino Deus recém-nascido. Ficou tocado pelo amor, reencontrou em José e Maria, os pais que foram embora. Um encontro que reacendeu no coração de N. o amor, o amor de Deus. Compreendeu e encontrou a fonte do amor: Deus. Saiu diferente. Renovado. Por coincidência ou providência, pelas ruas e praças da vida, caminhou diferente, se sentindo diferente, e encontrou Marialva. E no amor inesgotável do amor de Deus a amou, exercitando o amor para sempre, numa vida que mudou. Porque é Natal, a festa do encontro do amor de Deus.