Amigos da fraude
PAUL KRUGMAN
DO "NEW YORK TIMES"
DO "NEW YORK TIMES"
Como muitos proponentes da reforma financeira, fiquei um pouco decepcionado com a lei que acabou emergindo. A lei Dodd-Frank deu aos reguladores o poder de refrear muitos excessos financeiros; mas não ficou nem está igualmente claro se reguladores futuros vão fazer uso desse poder.
Como mostra a história, a riqueza e influência do setor financeiro podem muito facilmente converter em cachorrinho de estimação quem deveria estar atuando como intransigente cão de guarda.
Mas uma parte da reforma foi um exemplo rematado de como fazer a coisa certa: a criação de um Birô de Proteção Financeira do Consumidor --um órgão independente, dotado de verbas próprias e encarregado de proteger os consumidores contra abusos e fraudes financeiras. E, como não chega a surpreender, os republicanos no Senado estão se esforçando ao máximo para acabar com esse birô.
Por que a proteção financeira ao consumidor é necessária? Porque fraudes e abusos acontecem. Não diga que consumidores bem instruídos e informados podem se cuidar sozinhos. Para começo de conversa, nem todos os consumidores são bem instruídos e informados.
Numa instância que ficou famosa, Edward Gramlich, o funcionário do Federal Reserve (o banco central dos EUA) que avisou em vão sobre os perigos das hipotecas imobiliárias de alto risco, indagou: "Por que os produtos de crédito de mais alto risco são vendidos aos devedores menos informados?" Ele prosseguiu: "A pergunta já encerra sua resposta: os devedores menos informados provavelmente são induzidos ou ludibriados para que adquiram esses produtos".
E mesmo adultos bem instruídos podem ter dificuldade em entender os riscos e consequências vinculados a transações financeiras --fato do qual operadores de má-fé têm plena consciência. Para citar uma área na qual o birô vem fazendo um trabalho ótimo, quantos de nós sabemos o que de fato está contido nos contratos de nossos cartões de crédito?
Você pode sentir-se tentado a dizer que, embora precisemos de proteção contra fraudes financeiras, não há necessidade de criar mais uma agência, com mais burocracia. Por que não deixar isso a cargo dos organismos reguladores que já temos?
A resposta é que os organismos reguladores existentes ocupam-se basicamente em respaldar os bancos; como questão cultural prática, eles sempre relegam a proteção ao consumidor ao segundo plano --como fizeram quando ignoraram os avisos de Gramlich sobre as hipotecas de alto risco.
Portanto, o birô de proteção ao consumidor cumpre uma função vital. Mas, como eu mencionei, senadores republicanos estão tentando extingui-lo.
Como eles podem fazer isso, quando a reforma já virou lei e os democratas são maioria no Senado? Aqui, assim como em outros lugares, os republicanos estão recorrendo à extorsão --ameaçando obstruir a nomeação de Richard Cordray, o diretor em exercício do birô, com isso deixando o órgão incapaz de funcionar. Cordray já foi elogiado até mesmo por banqueiros, e está claro que seu nome não é o problema. O que está ocorrendo é uma tentativa flagrante de usar o obstrucionismo descarado para derrubar a lei.
O que os republicanos estão exigindo, basicamente, é que o birô de proteção ao consumidor perca sua independência. Querem que suas ações sejam sujeitas ao veto de outros organismos reguladores financeiros, estes focados nos bancos, com isso assegurando que os consumidores voltem a ser ignorados. E eles querem eliminar as verbas garantidas do birô, abrindo-o à pressão de grupos de interesses. Essas modificações tornariam o órgão mais ou menos inútil. Mas é esse o objetivo todo, é claro.
Como pode o Partido Republicano estar tão determinado a tornar a América um lugar seguro para a prática de fraudes financeiras, quando a crise de 2008 ainda está tão fresca em nossa memória? É em parte porque os republicanos ainda se negam a admitir o que aconteceu realmente com nosso sistema financeiro e nossa economia.
Entre a direita já é totalmente ortodoxa a visão de que liberais supostamente bem-intencionados, especialmente o ex-deputado Barney Frank, teriam causado o desastre financeiro por forçarem banqueiros impotentes a conceder empréstimos a "aquelas pessoas".
Na realidade, essa é uma bobagem que já foi extensamente refutada. Sempre me pareceu especialmente surpreendente a noção de que um deputado democrata, exercendo seu primeiro mandato numa época em que os republicanos regiam a Câmara com mão de ferro, pudesse de algum modo ter o poder misterioso de distorcer todo nosso sistema bancário. Mas os conservadores preferem essa história à realidade incômoda de que a fé deles na perfeição dos livres mercados mostrou ser equivocada.
E, como sempre, devemos seguir a trilha do dinheiro. Historicamente, o setor financeiro deu muito dinheiro para os dois partidos, com um viés apenas modesto em favor dos republicanos.
Na última eleição, contudo, ele apostou fortemente nos republicanos, dando a eles mais do dobro do que deu aos democratas (e favorecendo Mitt Romney por quase três a um em relação ao presidente). Esse dinheiro todo não foi o suficiente para comprar uma eleição --mas, ao que parece, foi o suficiente para comprar um grande partido político.
No momento, as atenções da mídia estão voltadas às questões prementes óbvias: imigração, armas de fogo, a lei de 2011 de controle do orçamento, e assim por diante. Mas vamos tentar não deixar este problema passar despercebido: apenas quatro anos depois de banqueiros descontrolados terem colocado a economia mundial de joelhos, os republicanos no Senado estão usando de todos os meios à sua disposição, e nesse processo violando todas as normas da política, num esforço para dar aos banqueiros a chance de fazer tudo de novo.
Tradução de CLARA ALLAIN
Paul Krugman é prêmio Nobel de Economia (2008), colunista do jornal "The New York Times" e professor na Universidade Princeton (EUA). Um dos mais renomados economistas da atualidade, é autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados.