sábado, 11 de janeiro de 2014

João Paulo - Em busca da delicadeza perdida‏

Em busca da delicadeza perdida 
 
João Paulo
Estado de Minas: 11/01/2014


Andrew Salomon: é a capacidade de aprender com a diferença que pode nos fazer mais felizes   (Annie Leibovitz/Divulgação)
Andrew Salomon: é a capacidade de aprender com a diferença que pode nos fazer mais felizes


O mundo está uma selva. A todo momento esbarramos com um tipo de violência que, é claro, não se compara com os grandes crimes, mas que mina a vida em comunidade e parece nos afastar das pessoas que não fazem parte do nosso círculo mais familiar e imediato. O resultado, como dá para perceber, é um estrangulamento do mundo, um resumo da vitalidade às suas mínimas condições de operação. Para um mundo menor, uma vida menor.

No arco de um único dia é possível conviver com vários atos de descortesia, impunidade, corrupção, falta de modos, preconceito, discriminação, autoritarismo e agressividade. A vida social vem sendo figurada como uma guerra de todos contra todos, tendo como recompensa aos vencedores o livre impulso para usar a humilhação e a força sobre o mais fraco. O que espanta ainda mais é o assentimento em torno dessa forma de violência. Há muitos que defendem que um serviço não prestado ou feito com ineficiência é motivo bastante para reduzir o outro a objeto de ira e constrangimento. A forma arrogante como o consumidor trata funcionários de empresas aéreas e operadores de telemarketing só se nivela com a grosseria anônima dos covardes na internet.

E os territórios da descortesia são também variados: dentro de casa, nas relações verticais e ausência de diálogo; no trabalho, na reprodução de comportamentos autoritários; nos negócios, na tendência a ver o outro como adversário ou idiota que deve ser passado para trás; no trânsito, na forma agressiva de ocupar espaços, usar a lei do mais forte (o carro contra o corpo do pedestre) e fazer do interesse pessoal algo que sobrepuje o bem comum (parando em filas duplas e fechando cruzamentos).

Há muitos séculos, o filósofo holandês Espinosa definia a felicidade como uma forma de expansão do mundo. Assim, as pessoas felizes seriam aquelas capazes de expandir suas relações, seus interesses, seu universo de trocas. Quanto mais pessoas – e entre elas as mais diferentes – fizessem parte de nosso ambiente moral, maior a possibilidade de alegria. Na via inversa, a tristeza poderia ser definida como a tendência a se concentrar em poucas ações, em conhecer menos gente, em atuar em contextos mais reduzidos.

A ideia é boa e funciona. É só pensar, em qualquer situação, qual seria a opção que nos faz maiores e com áreas ampliadas de interseção com o outro. Esta será sempre a melhor via para quem busca a alegria no mundo. Por outro lado, ao se aferrar em certezas que dividem, em comportamentos que apartam, em ações que diminuem a diferença, o caminho da tristeza começa a ser trilhado. E é preciso lembrar que há uma tristeza ruidosa, falsamente alegre, como o riso das hienas. Para usar uma terminologia política clássica, a tristeza é de direita (os conservadores, como o nome indica, não querem mudanças) e a alegria é de esquerda (os progressistas, por definição, acreditam que a ação precede o conceito).

A filosofia espinosista da ênfase positiva do papel da diferença na vida dos homens pode ser considerada a base de um dos melhores livros lançados recentemente, Perto da árvore, de Andrew Salomon (Editora Companhia das Letras). O jornalista americano, que já havia estudado a depressão no já clássico O demônio do meio-dia, toma como tema de seu novo estudo o amor dos pais pelos filhos. A princípio parece um tema comum, já que não há nada mais universal que um pai e uma mãe amarem seu rebento. No entanto, o autor vai no limite dessa verdade: será que os pais amam igual, caso se trate de uma criança diferente do padrão?

Gay e disléxico


Salomon, que viveu na pele a desconfiança dos pais por ser disléxico (quem diria que viria a escrever um livro como Longe da árvore, magistral e com quase 900 páginas) e gay (é uma questão lógica, a maior parte dos gays são filhos de heterosssexuais). Por isso quis investigar como os casais rejeitam e passam a amar os filhos que se afastam do padrão de afeto que criaram em suas fantasias – a maior delas a de se eternizar no destino heroico que programam para o filho. Para isso ele mergulhou em universos que sabemos que existem, mas que são preservados do nosso contato por uma operação que mescla discrição e constrangimento.

Surdos, anões, portadores de síndrome de Down, autistas, esquizofrênicos, portadores de deficiências múltiplas, crianças prodígios, filhos concebidos por estupro, transgêneros e menores infratores. Essas são as 10 “identidades horizontais”, ou seja, que divergem dos padrões familiares, linguísticos e sociais mais correntes, que passam a atrair a atenção do autor. Além de descobrir um mundo riquíssimo de substância humana, pleno de sentido e capaz de realizações sublimes, Salomon volta sua atenção para os pais e seu empenho em amar aqueles que, a princípio, rejeitam.

A grande lição do livro é que o amor cresce com a diferença. Mais que isso, os pais, que deixam de lado seu esforço narcisista de se realizar por meio do filho, se tornam mais livres para amar e conhecer o mundo. Eles também ficam melhores. Salomon acompanhou muitas histórias para descobrir, mais que uma lei do afeto familiar, uma saída para um mundo que insiste em perder sua vocação para a alegria. A aposta no amor – a começar por filhos “diferentes” – permite expandir nossa vocação para o contato humano. Em outras palavras, a sermos mais felizes.

Assim como os filhos não existem para realizar nossas fantasias, nossas existências não precisam ficar presas nas expectativas que foram depositadas sobre nós. A psicologia, psicanálise, terapia, ou o que seja, é uma forma de buscar a liberdade. Outra via é a política, que permite que sonhos coletivos se concentrem no imaginário de grupos comprometidos em fazer dos homens pessoas mais completas. Mas há um caminho intermediário, meio pessoal, meio coletivo, que aponta para comportamentos bem mais simples e igualmente efetivos: a delicadeza.

O mundo não vai deixar de ser uma selva apenas com terapia e revolução. Nem mesmo com a capacidade de os pais estenderem o amor de seus filhos ao amor de todas as crianças. Estamos precisando de uma dose mais urgente de política do afeto e afetividade política. Tratar bem os iguais é fácil e inócuo, quase uma atitude mesquinha em sua busca de reciprocidade. O que anda fazendo falta no mundo, e que pode adiar um pouco o estado de selva que nos cerca e ameaça, é a capacidade de ver o outro como pessoa, quem sabe como nosso filho que foge do padrão.


 jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

Orelha

Orelha 
 
Estado de Minas: 11/01/2014


Com seu piano, Ernesto Nazareth ajudou a criar o que hoje chamamos de música brasileira (TV Brasil/Divulgação)
Com seu piano, Ernesto Nazareth ajudou a criar o que hoje chamamos de música brasileira
Ritmo brasileiro

Pelos tangos de Nazareth – Da rítmica africana à síncope brasileira, de Tânia Maria Lopes Cançado, é um livro precioso para quem gosta de música e história do Brasil. A autora, que é pianista, professora e pesquisadora, sintetizou no pequeno volume de 80 páginas a origem histórica e as características estilísticas do ritmo próprio da música brasileira. Tânia estudou a música africana e as influências europeias para desvendar o ritmo brasileiro, tendo como objeto de atenção os tangos, lundus, modinhas e choros de Ernesto Nazareth. A tese da autora, que vem ilustrada no CD que integra a edição (e é uma delícia), mostra que o estilo sincopado brasileiro vai muito além da notação musical nas partituras, exigindo um balanço próprio do instrumentista. “A suspensão rítmica é sutil e mais fisiológica do que teórica”, afirma. Nazareth, ensina Tânia Cançado, foi o compositor nacionalista que melhor utilizou a variedade e combinação de ritmos afro-americanos em suas obras. Assim como o samba no pé não é para qualquer um, é preciso ter ginga nas mãos para tocar Ernesto Nazareth como ele merece.

Cinema e HQ

O filme Azul é a cor mais quente, em cartaz nos cinemas, ganha edição em quadrinhos de Julie Maroh. O livro, com desenhos sofisticados, faz uma leitura delicada da história de Clémentine, a mulher que muda radicalmente sua vida depois do encontro com Emma, a jovem de cabelos azuis. O uso inteligente das cores (do preto e branco a variações de tons suaves) e bom gosto dos desenhos valorizam a publicação da Martins Fontes.

Balzac atual

O tema de Azul é a cor mais quente, a paixão lésbica, ainda causa polêmica no século 21. No entanto, o amor entre duas mulheres já fazia parte dos romances do século 19, desde A menina dos olhos de ouro, de Honoré de Balzac, que acaba de ser relançado. A novela integra o oitavo volume da Comédia humana, que está sendo publicada pela Editora Globo. A menina dos olhos de ouro faz parte de A história dos Treze, sobre uma sociedade secreta fictícia criada por Balzac, que tem ainda os livros Ferragus e A duquesa de Langeais.

O ego e o mundo

A romancista Ayan Rand (1905-1982) é uma espécie de guru dos individualistas e liberais radicais. Nascida na Rússia, ela emigrou para os EUA, onde desenvolveu carreira de romancista, sempre defendendo ideais individualistas e criando heróis autoconfiantes e dispostos a enfrentar a opinião pública e o conformismo. Acaba de chegar às livrarias a tradução de um dos mais conhecidos romances de Ayan Rand, A nascente, em dois volumes. A edição é da Arqueiro, que já lançou no Brasil a trilogia A revolta de Atlas.

Mais recordes

Para os viciados em listas, um lançamento esperado todos os anos acaba de chegar ao mercado, Guinness world records 2014. Desde a primeira edição, em 1955, o volume se tornou uma referência e já vendeu mais de 130 milhões de cópias em todo o mundo. A nova fornada traz, além dos temas fixos, os novos tópicos “Terra dinâmica”, “Vida urbana” e “Pioneirismo”. O Guiness 2014 aposta também em interatividade, com aplicativo gratuito para visualização de imagens em 3D. O lançamento é da Ediouro.

Arte de Cretti

O paulista Cláudio Cretti, há mais de uma década, vem desenvolvendo com desenhos e esculturas uma obra sólida, austera, disciplinada, cujo mote é a investigação de limites. São trabalhos que tensionam presença e dissipação de matérias, geometria e formas orgânicas, acaso e construção. O livro Cláudio Cretti (WMF Martins Fontes e Galeria Marília Razuk) traz textos sobre as pesquisas do artista nos últimos 10 anos, escritos por Fernanda Lopes, Noemi Jaffe, Lorenzo Mammì, Juliana Monachesi e Tadeu Chiarelli.

 (Record/Divulgação)


Mussa completo

A obra de Alberto Mussa (foto) ganha edição completa pela Record, que chega com novo projeto gráfico e estudos inéditos. Os dois primeiros volumes são O enigma de Qaf, de 2004, que traz prefácio de Walnice Galvão e pós-escrito do autor; e O senhor do lado esquerdo, o mais recente livro do autor, de 2011, com ensaio de João Cezar de Castro Rocha. A obra de Alberto Mussa está traduzida em 10 idiomas e já foi lançada em 14 países.

Palavra de autor - Carlos Herculano Lopes

Palavra de autor 
 
Vencedores brasileiros e portugueses de prêmio literário têm obras analisadas por especialistas e falam sobre seu processo de criação em trabalho organizado por José Castello e Selma Caetano 
 
Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 11/01/2014


Para o romancista e ensaísta mineiro Silviano Santiago, a literatura vai além do entretenimento e tem afinidade com o conhecimento (Maria Tereza Correia/EM/D.A Press)
Para o romancista e ensaísta mineiro Silviano Santiago, a literatura vai além do entretenimento e tem afinidade com o conhecimento

Desde sua criação em 2003, o Prêmio Portugal Telecom de Literatura vem se firmando como um dos mais importantes do gênero em língua portuguesa. Para comemorar os seus 10 anos, que se completaram em 2013, acaba de ser lançado O livro das palavras, que traz informações, textos críticos e entrevistas com 22 dos 27 escritores premiados até hoje. É uma referência para quem quiser ficar sabendo um pouco mais sobre os autores, alguns deles não brasileiros, já que o prêmio se estende a todos os países que têm o português como língua oficial.

Dalton Trevisan, que insiste em se manter recluso em Curitiba, Lobo Antunes e Chico Buarque não quiseram falar. Dois outros autores que também ganharam o prêmio, Sebastião Uchoa Leite e Mário Chamie, morreram antes que a ideia do livro ganhasse forma.

 Organizado pelo escritor e crítico literário José Castello e por Selma Caetano, curadora do prêmio desde o início, cada entrevista é antecedida por uma pequena biografia do entrevistado e, depois da transcrição da conversa, é apresentado um estudo literário sobre a obra do autor.

 Vários textos foram assinados por José Castello, como o do escritor português Walter Hugo Mãe, vencedor do prêmio pelo romance A máquina de fazer espanhóis. Para José Castello, trata-se de um escritor trágico. “Seus personagens vivem destinos miseráveis, mas não se conformam, lutam contra eles e, apesar de quase derrotados, conservam-se firmes e agarrados aos sonhos.”

Nascido em Saurimo, Angola, em 1971, Walter Hugo Mãe viveu no país natal até os 2 anos, seguindo com a família para Portugal, onde passaram a morar em Paços de Ferreira, no Norte do País. Formado em direito, profissão que exerceu por pouco tempo, até optar pela literatura, Hugo Mãe é autor de O remorso de Baltazar Serapião, de 2006, e O apocalipse dos trabalhadores, de 2008.

Na entrevista que concedeu aos organizadores do livro, ele diz que os temas da literatura, desde sempre, só podem ser o amor e a morte. “O amor como símbolo da vida, a morte como sentença. Não sabemos falar de nada sem estar a falar disso. Gostar ou não gostar e começar ou ter de acabar”, disse.

Falso mentiroso Já para o mineiro Silviano Santiago, contemplado em 2005 com O falso mentiroso, a literatura tem mais a ver com o saber que com o entretenimento. “Não desprezo a este, mas não lhe rendo homenagem na criação literária”, disse. Nascido em Formiga, no Oeste de Minas, em 1936, Santiago, em outro trecho de sua entrevista, afirma ser um escritor metódico, além de apaixonado pela arte de ler e de escrever. “Mas método não significa disciplina, mas paixão”, esclarece.

Para José Castello, que também assinou o ensaio sobre a obra de Santiago, é no esconder que a sua literatura se mostra. “De pouco adianta o esforço para identificar identidades verdadeiras, lugares verdadeiros, histórias verdadeiras. O foco não está na verdade, mas na dobra. Não na verdade desvelada, mas na verdade velada e dobrada. Não na porta, mas no esconderijo, e a palavra pode ser esconderijo’”, escreveu Castello.

No entender de Marina Colasanti, que faturou o Telecom em 2011 com Minha guerra alheia, a criação não acontece ao deus-dará, não cai de presente no colo. “Decido em que área trabalhar e oriento a minha sensibilidade em relação a ela. É como se ativasse uma antena de captação, ou se lançasse a linha de um caniço de pesca em um lago ou outro”, disse.

Marina estreou na literatura em 1968 com o volume de crônicas Eu sozinha. A partir daí, publicou mais de 40 livros e se tornou uma das escritoras mais respeitadas do país. Com passagens por várias redações brasileiras, ela hoje é cronista do Estado de Minas. Para Castello, a obra de Marina é um exemplo do longo trabalho de fiação que define o processo criativo. “Nele, a roca, o bastão em que se enrola a rama do linho, do algodão ou da lã para serem fiados, é ao mesmo tempo instrumento criativo e peça de alto risco.”


O livro das palavras
• Organização de José Castello e Selma Caetano
• Editora Leya
• 608 páginas, R$ 69,90

Dor que não sai nos jornais - Carlos Herculano Lopes

Dor que não sai nos jornais
Estado de Minas: 11/01/2014


Thereza Hilcar começou a escrever sobre depressão e percebeu que suas crônicas tiveram efeito catártico (Lucas Possiede/Divulgação)
Thereza Hilcar começou a escrever sobre depressão e percebeu que suas crônicas tiveram efeito catártico

Mineira de Lagoa da Prata, há muitos anos vivendo em Campo Grande (MS), a jornalista e escritora Thereza Hilcar escolheu um tema espinhoso – a depressão,  doença que atinge milhões de pessoas em todo o mundo – para mote de seu novo livro de crônicas, No fundo do poço não tem mola, lançado pela Editora Letra Livre.

Autora de outros livros do gênero, como O outro lado do peito e Thereza toda terça, com crônicas publicadas no Correio do Estado, de Campo Grande, a escritora conta que optou por escrever histórias em torno da depressão porque ela própria, ao longo da vida, sempre se viu às voltas com este problema, que em certa época a fez sofrer muito. Além disso, foi incentivada pelo psiquiatra Hélio Martins. “Estava passando por uma crise muito séria no ano passado, quando ele me deu uma ideia: escrever uma crônica toda semana. No princípio, saía uma a cada 15 dias, mas depois elas começaram a jorrar. Foi uma catarse”, diz Thereza.

A partir dessa realidade, que a fez encarar de peito aberto seus demônios e a colocar tudo no papel, como uma forma de amenizar a própria dor, Thereza Hilcar conseguiu, sem cair em lamentos desnecessários, contar histórias surpreendentes. O limite entre a ficção e a realidade é difícil. Também não faria nenhuma diferença. É a vida jorrando em palavras, sem pedir licença.

Em poucas linhas, Thereza Hilcar, que também integra a Academia Sul- Matogrossense de Letras, questiona: “Por que será que as pessoas não respeitam a infelicidade dos outros? Estar infeliz é mais ou menos como ter uma doença contagiosa. As pessoas podem até ser solidárias, mas ficam longe, bem longe...”.

Tarefa dolorosa Em seguida, sem querer apontar caminhos a serem seguidos – será que eles existem realmente? – a cronista pergunta: “Por que dói tanto viver? Conhecer a si mesmo é tarefa das mais dolorosas que existe” . Para terminar, não sem certa ironia, faz coro à ignorância, “à santa ignorância”, cada vez mais disseminada por aí e que, sem se incomodar em deixar bem claro, “pode ser uma bênção”.

Em outra crônica, “Um dia para refletir”, a escritora, sem querer mudar o mundo ou ficar se questionando sobre isto ou aquilo, apenas volta para dentro de si própria, vai para casa, recebe telefonemas de amigos, dá outros e, ao cair da noite, assiste a um filme na televisão, cuja história gira em torno de um homem que perde tudo, menos a si mesmo. “Retorna, pratica a humildade, atravessa humilhações e colhe os frutos do medo. No fim, como em quase todos os filmes, tudo se resolve”, escreve.

Questionada sobre o título do livro, a escritora diz que o escolheu porque as pessoas adoram dizer para quem está deprimido: “Ah! fica assim não, no fundo do poço tem mola...”. “Sempre detestei essa metáfora, porque, no meu entender, no fundo do poço existencial não tem mola nenhuma e, costumo dizer, se não jogarem uma escada ou a gente mesmo não conseguir cavar uns degraus até à superfície, ficamos lá no fundo. Não tem esta história de mola. Ninguém cai no buraco existencial e depois sai como num passe de mágica”, afirma Thereza.

Ao contrário de suas outras crônicas, que até chegarem aos livros tinham sido publicadas em jornais ou revistas, todas as histórias deste novo trabalho eram inéditas. Antes da autora resolver publicá-las, apenas três pessoas tiveram acesso à elas: seu editor em Campo Grande, Henrique Medeiros, o cartunista Ziraldo e Maria Adélia Megazzo, professora de literatura da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Em ensaio escrito sobre a obra de Thereza Hilcar, Maria Adélia registra: “Ela conta pedaços esparsos de sua trajetória cotidiana com um estilo narrativo apaixonante e sedutor. Escancara seu íntimo, prende você à leitura e conduz a uma viagem pelo interior de suas intimidades”. (CHL)

No fundo do poço não tem mola
• De Thereza Hilcar
• Editora Letra Livre l 128 páginas
• Informações: http/www.letralivre.com.br

TeVê

TV paga


Estado de Minas: 11/01/2014



 (Paris Filmes/Divulgação)

Noite estrelada


O Telecine Premium começou muito bem o ano, com um pacote de filmes de primeira. Hoje, o canal estreia, às 22h, a comédia dramática O lado bom da vida (foto), com Bradley Cooper e a ganhadora do Oscar Jennifer Lawrence à frente de um elenco que conta ainda com ninguém menos que Robert De Niro.

Futura exibe mais uma
fita de R. W. Fassbinder


A HBO vem timidamente com Kevin James em outra comédia, Professor peso-pesado, também às 22h. Melhor faz o Futura, com o festival de filmes do alemão Rainer Werner Fassbinder, hoje com O desespero de Veronika Voss, às 22h. No mesmo horário, Telecine Cult exibe César deve morrer, dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani.

Hoje é dia também de
sessões duplas e triplas


Sábado costuma ser marcado por sessões especiais, como a que o Telecine Touch batizou Pioneiros, com os filmes Amelia, de Mira Nair, às 15h45, e Um método perigoso, de David Cronenberg, às 17h40. No Telecine Action, a sessão é tripla, com Identidade paranormal (18h15), O último exorcismo (20h20) e Filha do mal (22h). No Universal Channel, Adam Sandler faz hora extra em Tratamento de choque (20h) e Zohan: um agente bom de corte (21h30).

Os melhores filmes vão
ao ar na faixa das 22h


Na concorrida faixa das 22h, o assinante tem mais seis opções: Argo, na HBO Signature; Contágio, na HBO HD; Inquilino desajeitado, no Max; O vigarista do ano, na MGM; Spawn, o soldado do inferno, no TCM; e Resident evil: o hóspede maldito, no A&E. Outras atrações da programação: Entrando numa fria, às 19h55, no Megapix; 400 contra 1 – Uma história do crime organizado, às 21h, no AXN; O preço do amanhã, às 22h30, no FX; Invasores, também às 22h30, na TNT; e O quatrilho, às 22h45, na Cultura.

Cultura caprichou nas
suas atrações musicais


Comandado por Max B.O., o programa Manos e minas está reprisando os melhores momentos em 2013 na cena do rap e do hip-hop, às 17h, na Cultura. No mesmo canal, às 18h, tem o Cultura livre, apresentado por Roberta Martinelli, e que hoje recebe Tiê, Lucas Santtana e a banda Neurótico e as Histéricas.

Zubin Mehta conduz
a Filarmônica de Israel


Música de classe é no Arte 1. O maestro Zubin Mehta rege a Filarmônica de Israel em apresentação comemorativa dos 75 anos da orquestra, com peças de Chopin, Beethoven, Saint-Saens e solos de Julian Rachlin, Vadim Repin e Evgeny Kissin. No ar às 23h.

Boas dicas para quem
curte os frutos do mar


O canal Bem Simples preparou para hoje uma maratona de dar água na boca. No clima de férias e praia, a emissora separou quatro atrações que serão exibidas em sequência, só com receitas de pratos com frutos do mar. Foram selecionados episódios temáticos dos programas Super express, Escola de culinária, Cozinha caseira e Brasil no prato.


CARAS & BOCAS » A aventura vai começar

Depois do especial no circo, a turminha de Carrossel volta em Patrulha Salvadora     (Lourival Ribeiro/SBT)
Depois do especial no circo, a turminha de Carrossel volta em Patrulha Salvadora



Maria Joaquina, Cirilo, Jaime, Davi, Daniel, Mario, Alícia e Carmen estão de volta à telinha, mas agora na série Patrulha Salvadora. Na trama, as crianças ganham poderes e formam o grupo Patrulheiros, que se une para ajudar a resolver problemas do bairro e das pessoas em apuros. A primeira temporada tem 12 episódios e estreia hoje, às 20h30, no SBT/Alterosa. E vai até ter festa em um buffet na Lapa paulistana, onde a turminha se reunirá para assistir ao primeiro capítulo.

Mais uma chance para ver
Carrossel no Circo Tihany

Aliás, o SBT/Alterosa reapresenta hoje, às 18h15, o especial de Carrossel gravado no Circo Tihany, que contou com a participação de todo o elenco da novelinha infantil e também de Chiquititas, banda Restart, MC Jenny, Simony, Roberta Tiepo, Priscilla Alcantara e artistas circenses, tudo com apresentação de Eliana.

Turma do Pagode promete
agitar o programa de Eliana

Para amanhã, às 15h, no SBT/Alterosa, Eliana anuncia a Turma do Pagode, além das solteiras Camilla Uckers, Núbia Oliver, Valentina Francavilla, Juliana Oliveira e Mulher Melão, que continuam procurando namorado na esteira do “Rola ou enrola”. E ainda tem Tiago Barnabé, Geraldo Magela, Nina, Bigode, João Mineirinho e Renato Rodrigues.

Luciana Gimenez voltou a
gravar nos Estados Unidos

A participação de Luciana Gimenez no programa The view, da ABC, nos Estados Unidos, rendeu frutos. Recentemente, a apresentadora fez testes para uma nova atração do canal, gravando com uma plateia. Casada com Marcelo de Carvalho, um dos donos da RedeTV!, Luciana continua apresentando dois programas na emissora: Superpop e Luciana by night.

Marcos Veras deve ganhar
mais espaço no Encontro

Após as férias de Fátima Bernardes, algumas reformulações prometem movimentar o matinal Encontro com Fátima Bernardes, da Globo. Uma delas será o fortalecimento da participação do humorista Marcos Veras. Em um quadro, ele deverá conversar com o público nas ruas sobre temas abordados no palco. Em outro, fará reportagens em festas.

Globo lança hoje seu novo
portal de entretenimento

Novidade na rede. A Globo lança hoje o portal Gshow, que reunirá as páginas de mais de 40 programas da emissora (novelas, séries, programas de variedades e reality shows), além de oferecer conteúdo exclusivo para a internet (webséries, videoclipes, tutoriais de culinária, moda e beleza). Anote o endereço: www.gshow.com.



Bons exemplos

A equipe do Futurando pega carona na onda de protestos nas cidades brasileiras para avaliar sistemas de transporte urbano mais eficientes, melhorias na infraestrutura nacional, na saúde e na educação. O programa, que vai ao ar hoje, às 13h, na Rede Minas, focaliza especialmente a questão da mobilidade urbana, mostrando exemplos de projetos que funcionam, mas infelizmente não no Brasil, e sim na Alemanha. Uma pergunta curiosa que é feita pela produção: “Por que Bonn, uma cidade de 300 mil habitantes, tem 125 quilômetros de trilhos, enquanto São Paulo, com seus 12 milhões de habitantes, tem apenas 74 quilômetros?“ É isso aí: quem sabe o programa sirva de inspiração para líderes políticos e administrativos daqui.

VIVA
Danilo Gentili, o repórter Léo Lins e o grupo Ultraje a Rigor devem estrear em breve um talk show no SBT, mas em formato diferente do que faziam no Agora é tarde, da Band.

VAIA
Pelo jeito a direção da Rede Bandeirantes ainda não digeriu bem as saídas de Gentili e também de Sabrina Sato, da turma do Pânico. O clima anda pesado por aquelas bandas.

Arquitetos do desejo - Carlos Marcelo

Arquitetos do desejo

Como um pernambucano e um mineiro fizeram da minissérie Amores roubados o primeiro grande sucesso da TV em 2014


Carlos Marcelo
Estado de Minas: 11/01/2014 0


George Moura e José Luiz Villamarimexpõem a alma arcaica do sertão contemporâneo (Walter Carvalho/divulgação)
George Moura e José Luiz Villamarimexpõem a alma arcaica do sertão contemporâneo

O dramaturgo e roteirista George Moura tinha um desejo imenso, nascido em 1984, quando ainda estudava jornalismo e morava no Recife: dar vida aos personagens do livro A emparedada da Rua Nova, do conterrâneo Carneiro Vilela. "Ao ler uma reedição, fiquei impressionado com o nível de desencontro das paixões que vai impelindo uns personagens contra os outros de forma vertiginosa: é uma trama de muito apelo", lembra Moura. Trinta anos após o impacto da primeira leitura, a adaptação sonhada pelo pernambucano ganhou rostos, corpos – e números. Com 10 capítulos, a minissérie global Amores roubados estreou na última segunda-feira com ótimos índices de audiência e qualidade técnica igualmente elevada. "Intuía que era tiro certo, porque a trama une o folhetim com o tom policialesco do thriller, mas foi melhor do que o esperado", reconhece o diretor, o mineiro José Luiz Villamarim.

Amores roubados passa a ser ponto de inflexão da carreira de dois realizadores, que, com afinco e sem badalação, já tinham se destacado nacionalmente ano passado com a minissérie O canto da sereia. Ambos radicados no Rio de Janeiro e recém-chegados aos 50 anos, Moura e Villamarim passaram a acalentar a ideia da adaptação de A emparedada... no início da parceria artística, em 1997, na novela O rei do gado. Tanto tempo de espera parece ter ajudado a dupla a encontrar, com a participação decisiva do fotógrafo Walter Carvalho, o tom adequado para atualizar a obra de Joaquim Maria Carneiro Vilela (1846-1913), considerada por especialistas como "caso típico de glória da província". O folhetim, publicado no Jornal Pequeno entre agosto de 1909 e janeiro de 1912 e recentemente reeditado em livro, teria causado comoção a ponto de os leitores invadirem a sede da publicação para conhecer antecipadamente as trágicas consequências do envolvimento do don-juan Leandro com a esposa e a filha do comerciante português Jaime Favais.

No papel do 'obscuro e galanteador' Leandro,  Cauã Reymond conquista personagens vividas  por Dira Paes, Patrícia Pillar e Isis Valverde (Fotos: TV Globo/divulgação)
No papel do 'obscuro e galanteador' Leandro, Cauã Reymond conquista personagens vividas por Dira Paes, Patrícia Pillar e Isis Valverde

Na adaptação, além da contemporaneidade, o autor promoveu mudança geográfica. Deslocou a trama recifense para uma localidade fictícia chamada Sertão. "Essa cidade não existe, mas, como a Twin Peaks de David Lynch e a Vigata de Andrea Camilleri, catalisa o espírito do lugar: foi imaginada como parte de um sertão contemporâneo, no qual convivem o jumento e o mototaxista; no liquidificador da modernidade, estão também a modernização econômica e um certo arcaísmo dos valores, numa revisitação do coronelismo", acredita. Nesse "liquidificador", há a junção de referências díspares, como as vozes de Fagner (o narrador das chamadas da série) e Amelinha, o forró de Anastácia/Dominguinhos (Eu só quero um xodó) e a sonoridade cool da banda inglesa The XX (dica certeira de Lucas, filho de Villamarim, para o tema da personagem de Isis Valverde).

Amores Roubados: muita qualidade e pouca fidelidade (TV Globo/Divulgação)
Amores Roubados: muita qualidade e pouca fidelidade

No amálgama de Amores roubados, coube também reunir atores consagrados com talentos nordestinos (ainda) desconhecidos do público da tevê, mas vistos no cinema, como Irandhir Santos (Tropa de elite 2, O som ao redor), o estreante Jesuíta Barbosa  (Tatuagem) e o veterano Germano Haiut (O ano em que meus pais saíram de férias). "Eu brinco, dizendo que estou fazendo o lançamento de um ator de 76 anos", afirma Villamarim, referindo-se ao pernambucano que interpreta o avô de Antônia (Isis Valverde).
Leandro ( Cauã Reymond) é o verdadeiro don juan do sertão na nova minissérie da Rede Globo. A jovem Antônia ( Ízis Valverde) não resiste aos encantos do sommelier sedutor (TV Globo/Divulgação)
Leandro ( Cauã Reymond) é o verdadeiro don juan do sertão na nova minissérie da Rede Globo. A jovem Antônia ( Ízis Valverde) não resiste aos encantos do sommelier sedutor

Logo no primeiro capítulo, a fotografia do paraibano Walter Carvalho provocou onda de comentários nas redes sociais na linha "parece cinema". Mas os autores preferem delimitar as diferenças. "A gente está fazendo televisão, tratando o telespectador de forma inteligente", ressalta George Moura. "Há muitas cenas sem cortes, uma câmera que ‘cai dentro’` do ator, como nos filmes do (John) Cassavetes, mas o que interessa é a narrativa. A gente persegue a excelência da qualidade, como fazem os seriados americanos. Queremos concorrer com eles", complementa Villamarim. Os dois estarão juntos novamente em outro projeto ousado: o remake da novela O rebu (1974), de Bráulio Pedroso, que, passada inteiramente em uma festa, causou furor ao romper com a linearidade temporal. "O que mais me fascina é a radicalidade narrativa: Bráulio fez um mix de 24 Horas e Lost antes de tudo isso existir. Vai ser um desafio dificílimo", antecipa George Moura.

Da página para a tela
Trecho de A emparedada da Rua Nova, obra de Carneiro Vilela que deu origem à minissérie Amores roubados

(…) A esse amor enorme de Celeste não correspondia igual sentimento de Leandro. Para ele aquela mulher representava o mesmo papel, tinha a mesma importância que tantas outras, cuja posse fora objeto de seus desejos realizados e cujo retrato ia aumentar a galeria das vítimas da sua libidinagem.
Em pouco tempo, a efervescência do capricho passara nele, o afogo da paixão se acalmara mais um pouco e a sua assiduidade junto de Celeste só se justificava pela força do hábito ou pela falta de substituta fácil e pronta. (…).

Sexo, prosódia e poemas

 "Cínico com as mulheres, cauteloso com os maridos". Assim Carneiro Vilela descreveu o personagem Leandro, originalmente um mulato baiano, estudante de medicina, capaz de confessar: "Sempre gostei do perigo. O amor que não tem risco é uma cousa desenxabida, uma aventura sem encantos e pueril." Para incrementar as diversas facetas das conquistas amorosas do protagonista, o autor George Moura lançou mão dos versos de outro conterrâneo, o poeta Joaquim Cardozo (1897-1978), utilizados como arma de sedução por Leandro (Cauã Reymond) para fisgar Isabel (Patrícia Pillar): "Na engenharia calculista de sedução, nada melhor do que os versos de um poeta engenheiro: é muito bom poder brindar o espectador com essas pérolas".

Para Cauã Reymond, seu personagem tem um lado "obscuro e galanteador",  explorado nas intensas cenas de sexo, como as protagonizadas nos primeiros capítulos, com Dira Paes. "São dois morenos se encontrando, né? E ela está linda, um espetáculo de mulher", comenta o ator, fazendo elogios também ao texto da minissérie: "O George foi muito feliz, porque ele sabe escrever do ponto de vista do homem, do macho alfa, mas também é muito sensível com o ponto de vista feminino".

Neto de paraibano ("Meu avô foi um pai pra mim e pensei muito nele pra fazer esse trabalho"), Reymond conseguiu driblar o maior dos obstáculos enfrentados por atores do eixo Rio-São Paulo ao interpretar nordestinos: o sotaque. A prosódia, que já tinha sido um desafio na novela Cordel Encantado, foi surgindo a partir do contato com moradores de Petrolina, onde parte das cenas foi gravada. "Ficava ouvindo a camareira, o motorista, o acupunturista, tentava imitá-los falando… sentia a musicalidade deles até me sentir confortável: foi um processo artesanal". Villamarim conta que foi intencional a decisão de adotar uma prosódia "mais limpa, mais crível", inclusive para os atores nordestinos. "Queria fugir do farsesco", destaca.  Sobre seu personagem, Reymond tem uma definição que representa, na verdade, uma sentença: "Leandro é o cara que só entendeu a vida no momento mais trágico dela. Não sei se tem tempo para viver esse amor", referindo-se ao envolvimento com o personagem de Isis Valverde e antes de fazer reflexão pessoal: "O amor passa por lugares muito profundos. Passa, por exemplo, pela necessidade de doação. E ainda estou aprendendo: venho me redimensionando, repensando muita coisa sobre mim mesmo".

Eduardo Almeida Reis-Muié, vortá, quetô‏

Muié, vortá, quetô 
 
O Google anda perto de 2 milhões de causos, mais de 1 milhão goianos, só 38 mil mineiros e 6,5 mil gaúchos 
 
Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 11/01/2014


Não há dia em que não me mandem e-mails com anedotas e causos escritos em caipirês, como se tivesse graça reproduzir a fala dos que não quiseram ou não puderam aprender. Quase todas as semanas recebo livros de autores que recorrem à mesma sem-gracice. Deleto os e-mails e repasso os livros com pena dos destinatários. Já não gosto de “causos”, regionalismo brasileiro do século 19. O Google anda perto de 2 milhões (!) de causos, mais de 1 milhão goianos, só 38 mil mineiros e 6,5 mil gaúchos. Pelo visto, a praga veio de Goiás, terra que já nos deu a belíssima senhora Carlinhos Cachoeira. Se me fosse dado palpitar, diria que há exemplo perfeito de caipirice no Eça, em seu romance A cidade e as serras, quando introduz o personagem Melchior, caseiro nas terras de Jacinto em Tormes, no Douro. Em Portugal, caipira é bimbo, caramelo, papalvo, saloio, parolo, alarve, labrego. O abençoado Google traz “fazer turismo em Tormes”, com fotos da Fundação Eça de Queiroz, que pretendo ver com calma. Por ora, cito o exemplo do autor ao introduzir o personagem informando que Melchior dizia “sua incellência”. Pronto: deu o recado. Os leitores ficaram sabendo que o caseiro falava errado. A partir dali, Melchior se exprime normalmente sem vortá, muié e quetô.

Novidades
Sempre me lembro do compadre quando tivemos na roça a instalação do DDD, saudoso telefone preto, de disco, ali por volta de 1976. Fui passar o Natal no Rio de Janeiro e recomendei ao patrício que aguardasse, perto do aparelho, meu telefonema às seis da tarde. Ao atender, o compadre foi admirável: “Alô, doutor, as novidades por aqui vão sem novidades”. Vejo agora que se anuncia o lançamento de um edifício em Goiânia que tem, como “novidade”, uma vaga de garagem dentro de cada apartamento, além de outras quatro no subsolo. São 31 apartamentos, um por andar, área de 404 m2 e é de R$ 8.120 o preço estimado de cada m2. Os incorporadores prometem coisas ótimas: no break para controlar oscilações elétricas, internet sem fio e outras modernidades, mas garagem no apartamento com o carro levado pelo SkyDrive, elevador desenvolvido pela Atlas Schindler... tenham a santa paciência! O sistema existe em Cingapura, em Minas e no Rio Grande do Sul, diz a notícia, e se esquece de dizer que na Praia do Flamengo, no Rio, a novidade tem mais que 80 anos. Sei disso, porque lá estive opinando sobre o apartamento que uma amiga queria comprar. Um por andar, o carro ficava estacionado ao lado da cozinha, elevador gradeado daqueles antigos. Não havia outras vagas no prédio, que já era idoso há 50 anos. Bela vista para a Baía da Guanabara, as dependências de empregadas, que naquele tempo se chamavam criadas, ficavam na cobertura. Explico: cada apartamento tinha, no último pavimento, dependências para sua criadagem. Presumo que a construção tenha sido anunciada como grande novidade, porque no primeiro quartel do século passado os automóveis eram raros. Num site da Polícia de Minas Gerais vejo a seguinte nota de 1910: “Um mês depois, no dia 14 de fevereiro, ocorria também, o primeiro atropelamento por automóvel registrado pela Guarda e alardeado pelo mesmo jornal: ‘Hoje, ás 11 horas da manhã, o automóvel de propriedade do ilustre clínico Dr. Antônio Aleixo atropelou o acadêmico Antônio Navarro, quando o jovem estudante deixava a Academia de Direito. A vítima, que sofreu ligeiras escoriações, foi cuidada pelo humanitário médico que vinha no veículo’”. Hoje, qualquer idiota tem cinco ou seis automóveis. Não invento, porque já tive cinco e não nadava em ouro. Até pelo contrário, era modesto produtor de leite em Três Rios (RJ). Se o leitor promete que não vai contar para ninguém, confesso que os cinco veículos eram picapes de caçambas abertas.

O mundo é uma bola
11 de janeiro de 630: Maomé, o profeta fundador do islamismo, destrói os ídolos do santuário de Kaaba em Meca. Kaaba ou Caaba é uma construção cúbica de 15,24 metros de altura cercada por muros de 10,67m e 12,19m. Ela está permanentemente coberta por manta escura com bordados dourados, que é regularmente substituída. É o centro das peregrinações (hajj) e é para onde o devoto se volta para as suas preces diárias (salat). É o lugar mais sagrado do Islã. Quando o profeta repudiou todos os deuses pagãos e proclamou um deus único, Alá poupou a Caaba. No período pagão, a Caaba provavelmente simbolizava o sistema solar abrigando 360 ídolos, sendo assim uma representação zodiacal. O edifício foi restaurado diversas vezes. A construção atual data do século 7, substituindo a mais antiga, que foi destruída no cerco de Meca em 683. Em 1610, Galileu descobre Ganímedes, satélite de Júpiter. Em 1689, o Parlamento da Inglaterra depõe o rei Jaime II, cuja base aliada não tinha sido comprada com ministérios, mensalões e maracutaias. Em 1922, utilizada pela primeira vez a insulina no tratamento de humanos. O paciente era um canadense de 14 anos. Em 314 morreu o papa Melquíades, em 705 o papa João VI e em 844 o papa Gregório IV. Hoje é o Dia do Controle da Poluição por Agrotóxicos.

Ruminanças
“Governar não é assustar”
(Bias Fortes, 1891–1971). 

Desenho fidedigno aos movimentos Técnica de pintura corporal

Desenho fidedigno aos movimentos 
 
Técnica de pintura corporal, relativamente recente no Brasil, substitui o uso de cadáveres humanos e de animais e ganha espaço nos cursos de medicina como alternativa para as aulas de anatomia 
 
Ailton Magioli
Estado de Minas: 11/01/2014


Já se foi o tempo em que cadáveres (humanos e de animais) se constituíam como única opção de faculdades e universidades para o ensino da anatomia. Depois dos Estados Unidos, onde foi descrita pela primeira vez como estratégia de ensino, em 2002, a técnica da pintura corporal (bodypainting) ganha adeptos no Brasil. A começar do pioneirismo de São Paulo, pela Universidade Anhembi Morumbi, seguido pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) e Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul (Fadergs), ambas em Porto Alegre, as duas cidades sediam a rede internacional Laureate International Universities, que conta com 29 instituições de ensino em países da América, Ásia e Europa.

“Ela faz parte de um conjunto de outras técnicas, como projeção corporal, anatomia palpatória e anatomia digital, que integram um rol de ferramentas que resultam em uma nova metodologia de ensino da anatomia", explica a psicóloga Juliana Bredemeier, professora responsável pela implementação da metodologia do ensino da nova anatomia na Fadergs. Segundo ela, a proposta da instituição para o ensino da anatomia prevê o uso apenas de laboratórios secos (sem cadáver) e leva em conta as particularidades de aprendizagem presentes em jovens adultos.

“Adultos necessitam saber o motivo pelo qual devem realizar determinado aprendizado, além de aprenderem melhor com a experiência. Eles também concebem a aprendizagem como resolução de problemas e conseguem compreender melhor quando o tópico tem valor imediato”, acrescenta Juliana, admitindo que os motivadores mais potentes para a aprendizagem do adulto são internos.

“Assim sendo, buscamos ferramentas adequadas ao ensino da nova anatomia para esse perfil de aluno adulto trabalhador.” Conforme lembra Juliana Bredemeier, tais ferramentas têm como embasamento o envolvimento do aluno de forma ativa no aprendizado, saindo da posição passiva (em que o professor é detentor do conhecimento) para a investigação, o questionamento, o estudo autônomo e, principalmente, o envolvimento e o encantamento com a formação.

Trazida ao Brasil pela Rede Laureate em 2008 – aqui representada pela Universidade Anhenbi Morumbi–, a técnica permitiu que profissionais pudessem desenvolver estratégias de ensino em saúde em cursos como biomedicina, enfermagem, farmácia, fisioterapia, nutrição, psicologia, medicina veterinária, entre outros. A Fadergs, de acordo com Juliana, começou a capacitar uma equipe de professores para a nova técnica em novembro de 2012. Na instituição, a técnica já foi utilizada para trabalhar os sistemas esquelético, muscular e cerebral.

O custo é praticamente o mesmo tanto para o uso da pintura quanto do cadáver. “Além de termos investido em mais de 60 horas de capacitação de professores, a cada aula com bodypainting há o pagamento para o artista plástico e para o modelo, além de custos com a compra de material como tinta, espuma, pincéis e aerógrafo (micropistola de pintura)”, acrescenta Juliana. “É uma técnica inovadora que, juntamente com os modelos em resina, exames de imagem, anatomia palpatória, livros-atlas, atlas interativo, bodypainting e bodyprojection, proporciona um excelente aprendizado, uma vez que a coloração é mais próxima do natural, em comparação com o cadáver, além da oportunidade de os alunos poderem observar o corpo em movimento”, atesta a bióloga e professora Cinara Garrido.

músculos e cores Na pintura corporal, de acordo com o artista plástico Euler Silva, são usadas basicamente três cores: vermelho (tons da carne, para mostrar os músculos), branco (tendões do músculo, a parte que une o músculo aos ossos) e amarelo com um pouco de branco (ossos). “A pintura corporal segue todas as linhas da musculatura, o que permite acompanhar o movimento do músculo (no corpo do modelo), tanto no alongamento quanto na contração”, compara Euler, ao lembrar que “no processo tradicional, com o uso de cadáveres que passam por processos químicos, para não apodrecer, os músculos acabam enrijecendo”. “Quando você pinta a musculatura no corpo humano, a impressão que dá é de que foi retirada a pele para a exposição da musculatura no corpo. Os alunos ficam impressionados”, acrescenta o artista plástico.

Aluna do curso de enfermagem da Fadergs, Nadia de Castro Tavares lembra que o bodypainting não tem o odor característico dos corpos preservados, além de facilitar a visualização do que está sendo ensinado em sala de aula. “Prefiro a pintura porque ela é dinâmica, possibilita observar o movimento, ajudando no entendimento/visualização, tanto do músculo quanto do movimento executado”, garante a estudante, admitindo que a nova técnica é uma experiência única no aprendizado.

Como faz questão de observar a professora Cinara Garrido, as pessoas envolvidas no ato da pintura corporal (alunos, modelo vivo e artista plástico) recebem um termo de consentimento informado para uso de imagens. “Há uma questão pedagógica que envolve o respeito ao ser humano. Os alunos são estimulados a desenvolverem uma postura respeitosa frente ao corpo, de modo que precisam entender que o ambiente todo faz parte do aprendizado. Não podem produzir imagens, devem entender os limites para os momentos de toque e de palpação, devem usar jaleco no laboratório e condutas de boa higiene com o espaço”, pontua a professora.

Tendência na prática é usar outros materiais

No Brasil, o uso de cadáveres em estudos da área da saúde é permitido pela Lei 8.501, de 1992, que sofreu alteração em 2011, quando ficou definido que o cadáver não reclamado junto às autoridades públicas, no prazo de 30 dias, poderia ser destinado às escolas. Em 2011, a Comissão de Assuntos Sociais do Senado aprovou projeto de lei que estendeu esse direito a cursos como educação física, enfermagem, farmácia, fisioterapia, fonoaudiologia, nutrição e odontologia, já que anteriormente o uso de cadáveres para fins científicos era restrito à medicina.

A opção das universidades da rede Laureate em não usar corpos de pessoas mortas, segundo professores da instituição, visa mesclar a aprendizagem técnica com a ética no contato dos alunos com outras pessoas. Segundo dizem, as aulas práticas com pessoas vivas, além de atrair maior atenção dos alunos, trabalham a conduta e o respeito no grupo. Como gostam de lembrar, a técnica é construída com a formação, mas a ética vem de berço.

Integrante do Comitê de Ética no Uso de Animais (Ceua) da PUC Minas, a professora Maria da Consolação Magalhães Cunha lembra que sua experiência na área se dá em dois momento. O primeiro diz respeito à utilização do animal em aulas práticas, cuja tendência crescente é de substituição por uma série de dinâmicas, entre as quais pode figurar o bodypainting. Já em um segundo momento, que diz respeito à pesquisa, a tendência é de não extrapolar a diretriz dos três erres: replacement (substituição), reducement (redução) e refinement (refinamento), do Conselho Nacional de Controle e Experimentação Animal (Concea), ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). A Lei 11.794, de 2008, regulamentou a questão no Brasil.

“No ambiente da PUC Minas, o que se percebe em relação à pesquisa é o respeito a essas diretrizes”, diz Maria da Consolação Cunha, salientando que, em se tratando de aulas práticas, a situação é um pouco mais complexa. “Não há mais dúvida, porém, de que em futuro muito próximo os animais serão substituídos por filmes, em aulas demonstrativas, e maquetes, que os laboratórios de anatomia já utilizam.” Segundo a professora, tanto o uso da maquete quanto o de animais, que tiveram morte natural ou por atropelamento e foram tratados com a técnica de Lacen, é cultural. “Não há dúvida de que no ensino o uso de animais é perfeitamente substituível por técnicas ou um rearranjo na matriz curricular. Já na pesquisa, basta obedecer a diretriz dos três erres”, acrescenta.