folha de são paulo
'Engate' é 'o ato ou efeito de...'
No Brasil, o engate não engata; é a síntese perfeita da estupidez e do egoísmo que reinam no nosso país
Há algum tempo, o ministro da Justiça da vez disse algo como "a assunção do comando". O que vem a ser "assunção"? Nada mais do que "o ato ou o efeito de assumir", como se vê em qualquer dicionário. O ato de "transmitir" é "transmissão", e o de "suspender" é "suspensão". Como o leitor certamente deve ter notado, os três substantivos citados indicam "o ato ou efeito de" e terminam em "ão", mas o que vem antes desse "ão" pode ser "s", "ss" ou "ç".
O conhecimento da origem desse tipo de palavra poderia facilitar a vida do usuário da língua na hora de optar entre "ção", "são" e "ssão", mas a leitura constante e o consequente convívio com esses vocábulos já bastam para que a grafia de boa parte deles seja internalizada.
Há outras terminações de substantivos que indicam "o ato de" ("transferir/transferência"; "escalonar/escalonamento"; "prensar/prensagem").
Nos casos vistos até aqui impera a sufixação, ou seja, o acréscimo (a um verbo) de um sufixo para a formação do substantivo que designa "o ato ou efeito de". Agora eu lhe pergunto, caro leitor: qual é o substantivo que designa "o ato ou efeito de trocar"? E o de "combater"? E o de "avisar"? Vamos lá: "troca", "combate" e "aviso", respectivamente.
Nos três casos, não houve sufixação, isto é, não houve o acréscimo de um sufixo ao verbo, o que se nota facilmente pelo fato de o substantivo não "espichar". Na verdade, o substantivo "encolhe". O que temos agora é a "derivação regressiva", processo pelo qual se elimina o sufixo da palavra originária (o verbo) e se acrescenta uma vogal (temática).
No caso de "aviso", que é "o ato ou efeito de avisar", elimina-se a terminação "-ar" do verbo "avisar" e se acrescenta a vogal "o" para que se chegue ao substantivo "aviso".
Há casos em que se formam dois ou mais substantivos e pelos dois processos --sufixação e derivação regressiva. Um bom exemplo vem de "enlevo", "enlevamento" e "enlevação", que indicam "o ato ou efeito de enlevar" ("provocar arrebatamento, deleite"). Aliás, "deleite", que é "o ato ou efeito de deleitar", equivale a "deleitamento" e "deleitação".
Mas voltemos à derivação regressiva, processo pelo qual se formam inúmeros substantivos que designam "o ato ou efeito de". Quer uma listinha? Vamos lá: "abalo", "venda", "ataque", "saque", "beijo", "amparo", "caça" etc. Esses substantivos designam, respectivamente, "o ato ou efeito de abalar, vender, atacar, sacar, beijar, amparar e caçar".
Na gíria do português do Brasil, há casos interessantes e criativos de derivação regressiva. Um deles é "amasso", que designa "o ato ou efeito de amassar", cujo significado... É claro que não preciso terminar, certo?
Ainda no território das coisas "interessantes" do português do Brasil, pode-se citar o substantivo "engate", que, fruto da genialidade brasileira, designa "o ato ou efeito de NÃO engatar". Sim, de "não engatar", caro leitor. Não me enganei, não. No Brasil, o engate não engata. Síntese perfeita da estupidez e do egoísmo reinantes no país, o engate é usado, com a anuência das nossas LAMENTÁVEIS autoridades (in)competentes, para estragar, causar prejuízos de diversas ordens (inclui-se aí o ambiental) e, sobretudo, para machucar, ferir gravemente e até matar. No Brasil, "engate" é "o ato ou efeito de viver num país pouco inteligente...".
Qualquer pessoa que já tenha lido meia linha de um texto sobre resistência dos materiais, sobre física ou sobre ética (nesse caso, refiro-me a algo chamado "egoísmo") sabe do que estou falando. Não preciso explicar. Para bom entendedor, meia palavra basta. Só os gênios de Brasília não sabem disso. O Brasil é mesmo muito criativo. É isso.