A Rede quer fazer da política um jogo em que todos ganhem. Mas pode isso funcionar nas questões mais polêmicas?
Para entender Marina, seu
programa e sobretudo seu impacto em intenções de voto, é bom falar um
pouco dos tipos de jogos. Estamos acostumados a jogos em que um lado
ganha e outro perde. O futebol, por exemplo. A vitória do São Paulo é a
derrota do Corinthians. Ou apostas. O dinheiro que amealho é o mesmo que
meus adversários perderam. Mas nem todos os jogos são assim. Um roubo
rende menos ao ladrão do que o prejuízo causado à vítima. Se ele rouba o
som de seu carro, o dinheiro que receberá pelo equipamento será menos
do que você gastará para comprar um novo e consertar a janela. E há os
jogos em que os dois perdem.
O grande exemplo do jogo perde-perde é a poluição. As motosserras e carvoarias da Amazônia causam perdas imediatas, em vidas e saúde, e lucros também imediatos: a riqueza de quem desmata. Mas, a médio prazo, todos perdem com a devastação da natureza. A seca que este ano assola o Centro-Sul pode derivar desse descaso com a base natural da vida. Correu faz um tempo a lenda de que o general Westmoreland, que comandou a destruição norte-americana do Vietnã, teria perdido um filho depois da guerra, contaminado pelo pior desfolhante ali utilizado, o agente laranja. É só uma estória, mas com uma moral: quem destrói a natureza paga por isso.
A ideia de uma situação perde-perde contrasta com nossa visão usual da política e da economia, na qual sempre imaginamos que haja ganhadores e perdedores. Mas, se houver situações em que todos perdem? Então, deve também haver soluções ganha-ganha.
Temos aqui um dos raciocínios mais poderosos em termos de meio ambiente ou ecologia. Uns ganham a curto prazo com a destruição, outros perdem, mas em uma geração, todos perdemos. Assim, se revertermos esses processos, sairemos todos ganhando.
Esta é uma das lógicas subjacentes à candidatura Marina Silva. Quando ela afirma que governará com os melhores dos dois lados em que se cindiu a política brasileira, exprime a convicção de que pode unir as pessoas capazes e bem-intencionadas numa só direção. Não é fortuito que a Rede tenha nascido de uma preocupação ecológica - embora esta não seja mais o centro de suas análises e propostas. No horizonte, sempre está o ganha-ganha.
Daí, o modelo de discussão que a Rede prefere, ironizado por alguns críticos, o de construir um consenso. Reuniões duram horas. O objetivo não é tomar uma posição, o que se faria rápido com um voto. Porque votos só acentuam o racha, e a Rede quer unir as pessoas. A meta é construir propostas melhores e com maior apoio. Isso funciona muitas vezes. Gera um engajamento maior na proposta finalmente aprovada. Não exclui nenhum dos participantes. Opera de forma centrípeta, ao passo que a política é centrífuga, com as pessoas se dividindo por vaidade, interesses e até subornos. A Rede quer levar para a esfera política formas de convívio testadas em ambientes de empresas e organizações, as quais buscam aproximar, e não opor, as pessoas.
Mas os problemas são óbvios. Nada garante que, na gestão de uma sociedade complexa, essa demora dê certo. Se o presidente tem que "matar um leão por dia" (dizia FHC), não é possível construir um consenso em cada caso. Ademais, nem todas as questões podem ser conduzidas ao modelo ganha-ganha. Esse modelo serve como uma luva para a ecologia, mas bem menos para a economia.
Há o risco de que a busca do consenso paralise o processo de decisão, nublando também os conflitos reais que precisam ser decididos. Existem situações ásperas de conflito. Quem fez as contas do novo programa da Rede+PSB diz que ele não cabe no orçamento da União. Como criar um ambiente favorável às empresas e ao mesmo tempo lançar programas sociais ambiciosos?
Não custa lembrar a etimologia de decisão: vem da palavra "cisão". Decidir é cortar possibilidades. Nem sempre a decisão satisfaz, sequer parcialmente, as partes em confronto. Ou seja, o modo de convívio prezado pela Rede serve para certas situações, não para todas, talvez não as mais importantes. Para incorporar a Rede ao PSB, ao que consta Marina ouviu muitos, mas decidiu sozinha. Fica um contraste grande entre o ideal democrático, de ampla participação, e a prática por vezes monocrática.
Mas com certeza uma parte dos conflitos que hoje vivemos pode ser resolvida de modo mais manso. Conflitos entre vizinhos ou mesmo parentes poderiam sair da esfera judicial, em que apenas pioram, passando para o âmbito da conciliação. Aqui temos o que muitos chamam, palavra inflacionada de que pessoalmente não gosto, um novo "paradigma". Num mundo em que as relações sociais se tornaram mais democráticas, o que é bom, mas ao mesmo mais tensas, o que é ruim, seria uma forma de melhorar a convivência entre as pessoas, de unir o melhor da independência de cada um com o melhor da cooperação entre os próximos.
Outro risco é que sejam encobertas algumas tensões reais. Por exemplo, a certa altura o programa da candidata diz que o Tesouro deve deixar de gastar dinheiro público com certas medidas. Parece bonito, mas na verdade significa que as despesas em questão vão passar para nossos bolsos. Nossos impostos não mais as pagarão, mas nós arcaremos com elas. No final, pagaremos o valor em questão, ou nos impostos como agora, ou direto ao prestador de serviços. O custo para o cidadão pode até aumentar. Esse é um conflito real, mas que está sendo apresentado como solução, quando na verdade cria novo problema. Pode ser justa essa transferência de despesas, mas não está explicitada no programa. Ou seja, a crença no consenso pode ocultar conflitos reais. Talvez não seja por acaso que, na filosofia política, os pensadores mais recentes da democracia preferem falar em dissenso: este, pelo menos, explicita os pontos de divergência.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
E-mail: rjanine@usp.br
O grande exemplo do jogo perde-perde é a poluição. As motosserras e carvoarias da Amazônia causam perdas imediatas, em vidas e saúde, e lucros também imediatos: a riqueza de quem desmata. Mas, a médio prazo, todos perdem com a devastação da natureza. A seca que este ano assola o Centro-Sul pode derivar desse descaso com a base natural da vida. Correu faz um tempo a lenda de que o general Westmoreland, que comandou a destruição norte-americana do Vietnã, teria perdido um filho depois da guerra, contaminado pelo pior desfolhante ali utilizado, o agente laranja. É só uma estória, mas com uma moral: quem destrói a natureza paga por isso.
A ideia de uma situação perde-perde contrasta com nossa visão usual da política e da economia, na qual sempre imaginamos que haja ganhadores e perdedores. Mas, se houver situações em que todos perdem? Então, deve também haver soluções ganha-ganha.
Ou será mais democrático o dissenso?
Temos aqui um dos raciocínios mais poderosos em termos de meio ambiente ou ecologia. Uns ganham a curto prazo com a destruição, outros perdem, mas em uma geração, todos perdemos. Assim, se revertermos esses processos, sairemos todos ganhando.
Esta é uma das lógicas subjacentes à candidatura Marina Silva. Quando ela afirma que governará com os melhores dos dois lados em que se cindiu a política brasileira, exprime a convicção de que pode unir as pessoas capazes e bem-intencionadas numa só direção. Não é fortuito que a Rede tenha nascido de uma preocupação ecológica - embora esta não seja mais o centro de suas análises e propostas. No horizonte, sempre está o ganha-ganha.
Daí, o modelo de discussão que a Rede prefere, ironizado por alguns críticos, o de construir um consenso. Reuniões duram horas. O objetivo não é tomar uma posição, o que se faria rápido com um voto. Porque votos só acentuam o racha, e a Rede quer unir as pessoas. A meta é construir propostas melhores e com maior apoio. Isso funciona muitas vezes. Gera um engajamento maior na proposta finalmente aprovada. Não exclui nenhum dos participantes. Opera de forma centrípeta, ao passo que a política é centrífuga, com as pessoas se dividindo por vaidade, interesses e até subornos. A Rede quer levar para a esfera política formas de convívio testadas em ambientes de empresas e organizações, as quais buscam aproximar, e não opor, as pessoas.
Mas os problemas são óbvios. Nada garante que, na gestão de uma sociedade complexa, essa demora dê certo. Se o presidente tem que "matar um leão por dia" (dizia FHC), não é possível construir um consenso em cada caso. Ademais, nem todas as questões podem ser conduzidas ao modelo ganha-ganha. Esse modelo serve como uma luva para a ecologia, mas bem menos para a economia.
Há o risco de que a busca do consenso paralise o processo de decisão, nublando também os conflitos reais que precisam ser decididos. Existem situações ásperas de conflito. Quem fez as contas do novo programa da Rede+PSB diz que ele não cabe no orçamento da União. Como criar um ambiente favorável às empresas e ao mesmo tempo lançar programas sociais ambiciosos?
Não custa lembrar a etimologia de decisão: vem da palavra "cisão". Decidir é cortar possibilidades. Nem sempre a decisão satisfaz, sequer parcialmente, as partes em confronto. Ou seja, o modo de convívio prezado pela Rede serve para certas situações, não para todas, talvez não as mais importantes. Para incorporar a Rede ao PSB, ao que consta Marina ouviu muitos, mas decidiu sozinha. Fica um contraste grande entre o ideal democrático, de ampla participação, e a prática por vezes monocrática.
Mas com certeza uma parte dos conflitos que hoje vivemos pode ser resolvida de modo mais manso. Conflitos entre vizinhos ou mesmo parentes poderiam sair da esfera judicial, em que apenas pioram, passando para o âmbito da conciliação. Aqui temos o que muitos chamam, palavra inflacionada de que pessoalmente não gosto, um novo "paradigma". Num mundo em que as relações sociais se tornaram mais democráticas, o que é bom, mas ao mesmo mais tensas, o que é ruim, seria uma forma de melhorar a convivência entre as pessoas, de unir o melhor da independência de cada um com o melhor da cooperação entre os próximos.
Outro risco é que sejam encobertas algumas tensões reais. Por exemplo, a certa altura o programa da candidata diz que o Tesouro deve deixar de gastar dinheiro público com certas medidas. Parece bonito, mas na verdade significa que as despesas em questão vão passar para nossos bolsos. Nossos impostos não mais as pagarão, mas nós arcaremos com elas. No final, pagaremos o valor em questão, ou nos impostos como agora, ou direto ao prestador de serviços. O custo para o cidadão pode até aumentar. Esse é um conflito real, mas que está sendo apresentado como solução, quando na verdade cria novo problema. Pode ser justa essa transferência de despesas, mas não está explicitada no programa. Ou seja, a crença no consenso pode ocultar conflitos reais. Talvez não seja por acaso que, na filosofia política, os pensadores mais recentes da democracia preferem falar em dissenso: este, pelo menos, explicita os pontos de divergência.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
E-mail: rjanine@usp.br