folha de são paulo
A lei, ora, a lei...
Há um paradoxo fundamental envolvendo as leis. Embora não tenham o poder de moldar a sociedade, como muitos erroneamente ainda acreditam, elas são mesmo assim um valioso instrumento de transformação. A contradição é apenas aparente, como veremos a seguir.
Comecemos pelo direito penal e os costumes. Uma visão ingênua, mas ainda muito comum, assevera que devemos criminalizar todas as condutas que consideramos moralmente reprováveis. Mesmo que não estejamos dispostos a investir muitos recursos no cumprimento dessas normas --porque são difíceis de fiscalizar ou não se encontram no alto das prioridades policiais--, já teremos feito um imenso bem, ao sinalizar para a população o que é certo. É nesse contexto que se justificariam propostas legislativas como a criminalização da homofobia e a chamada Lei das Palmadas.
Receio que essa concepção embaralhe um pouco causas com efeitos. Parece-me mais razoável sustentar que, quando o Congresso cogita de adotar essas medidas, é porque a maior parte das pessoas já as internalizou e elas estão em vias de tornar-se um consenso social. A lei servirá no máximo para punir uma pequena minoria que tende a rejeitar as inovações em todas as circunstâncias. Podemos até pôr essa gente recalcitrante na cadeia, mas o efeito terá sido menos de sinalização do que de castigo.
O grande jurista alemão Friedrich Karl von Savigny (1779-1861) foi direto ao ponto, quando afirmou que nem vale a pena tentar codificar em lei matérias relativas a costumes. Esse tipo de regulação se dá primeiramente pelos próprios hábitos da população, depois, por decisões judiciais, em nenhum caso pela vontade arbitrária do legislador.
A grande verdade é que superestimamos o alcance do direito penal. A esmagadora maioria dos humanos --algo como 98% ou 99% das pessoas-- segue o principal das convenções sociais sem precisar de nenhum estímulo adicional como a ameaça de prisão. Se revogássemos amanhã todas as leis que punem o homicídio, a quase totalidade dos cidadãos continuaria se comportando como sempre se comportou.
A rigor, essa já é um pouco a situação no Brasil hoje. Considerando que a taxa de resolução de homicídios das nossas polícias é de 8% (a estimativa é do sociólogo Julio Jacobo Weiselfisz), é racional resolver uma disputa difícil eliminando seu oponente à bala. A chance de não ser preso é bem maior do que a de ser. Não obstante, a quase totalidade dos brasileiros jamais matou alguém e nem irá fazê-lo, mesmo conhecendo esse número.
Exceto em casos muito especiais, a proporção de criminosos violentos numa sociedade é sempre uma fração de não mais de 2% da população total. Isso não implica, é claro, que os 98% restantes sejam 100% honestos. Escrevi há pouco sobre
um interessante livro do economista comportamental Dan Ariely que sustenta que somos 90% honestos, isto é, que nossos cérebros resolvem a contradição entre o desejo de obter vantagens e a necessidade de cultivar uma autoimagem lapidada roubando só um pouquinho.
Suas experiências mostraram que, na média, as pessoas se sentem confortáveis trapaceando em algo entre 10% e 15%.
Seria até possível arguir que o conformismo social, isto é, o impulso de seguir as regras e não se desviar do comportamento percebido como padrão, é um problema tão ou mais grave do que o da criminalidade. A aceitação acrítica de regras e convenções, sejam elas ditadas por uma autoridade ou simplesmente praticadas pelo grupo, está na origem de fenômenos como o nazismo, os totalitarismos comunistas e as guerras de religião. Se o ser humano tem um lado negro, ele fica ainda mais escuro quando participa da dinâmica de massas.
Essa constatação não é exatamente surpreendente, quando consideramos a questão da coesão social à luz da evolução. Muito antes de o homem ter sido capaz até de articular um juízo com forma lógica semelhante à de uma norma --o que antecedeu em centenas de milênios o Estado e a escrita--, já vivíamos em bandos que precisavam evitar conflitos. Desenvolvemos, portanto, um incrível potencial de influenciar uns aos outros por meio do "soft power" e aceitar o "statu quo", sem, contudo, perder a capacidade de reagir diante do que víamos como grandes injustiças. Na verdade, essa é uma característica que repartimos com vários outros primatas.
Não estou, com essas reflexões, advogando pela abolição de todas as leis. Nossas sociedades se tornaram um pouco mais complexas do que as do Pleistoceno e as comunidades de 150 indivíduos deram lugar a países de vários milhões de habitantes com os mais diferentes "backgrounds" culturais.
O que eu quero dizer é que os efeitos das leis são mais sutis do que parecem à primeira vista. É claro que precisamos dar um jeito naqueles que não se conformam às normas e recorrem à violência. Nós utilizamos o direito penal para neutralizá-los, retirando-os de circulação por um tempo e recomendando a outras pessoas que cogitam de recorrer ao crime que pensem duas vezes antes de fazê-lo. Não é muito eficiente, mas não inventamos nada melhor para pôr no lugar. De toda maneira, a regra aqui desempenha mais um papel negativo (suprimir desvios) do que positivo (incentivar comportamentos desejáveis).
As leis que acabam desempenhando maior papel transformador são aquelas tidas como mais aborrecidas, aí inclusas as disposições do direito tributário e regulamentações técnicas.
Elas tendem a ser mais eficazes porque interferem em nossos hábitos e comportamentos sem que nos demos conta. Se a carga tributária sobre o chuchu for muito menor do que a que incide nos brócolis e isso resultar numa diferença de preço considerável, eu e a gloriosa torcida do Corinthians vamos acabar consumindo mais do primeiro do que do segundo vegetal.
E as implicações podem ser complexas. A canetada do governo que reduziu impostos sobre veículos fez com que milhares de famílias brasileiras realizassem o sonho de comprar um carro. Para tanto, muitas tiveram de endividar-se. E isso teve impacto sobre outras decisões de compra, o que resulta numa redistribuição de lucros e prejuízos ao longo de toda a cadeia. Se os empresários e operários da Ford ganharam, o dono da pousada para a qual a família viajaria nas férias se não tivesse adquirido o veículo perdeu.
Políticas tributárias têm alcance a um só tempo sutil e profundo. A epidemia de obesidade nos EUA, por exemplo, está vinculada aos fartos subsídios oferecidos aos produtores de milho, do qual se extrai a alta frutose que adoça refrigerantes e uma série de outras guloseimas que ficaram perigosamente baratos.
O poder dos impostos para alterar hábitos é tamanho que o psicólogo Geoffrey Miller diz que, manipulando-os, podemos promover verdadeiras revoluções comportamentais, em tempo recorde e quase sem sangue.
No limite, poderíamos substituir partes da legislação penal por regulação tributária e sanitária. Seria possível, por exemplo, tentar controlar o consumo de drogas não através de penas de prisão, que já se mostraram muito pouco efetivas, mas de impostos (preço) e do "soft power" social. Para os que acham que isso é delírio, vale lembrar que essa combinação improvável já fez com que a prevalência do uso do tabaco no Brasil caísse de 32%, em 1989, para 17,2% em 2008.
A grande dificuldade aqui é que é praticamente impossível antecipar todos os efeitos das mudanças. Mesmo as mais simples podem esconder surpresas --tanto desagradáveis como agradáveis. O problema é matemático. Há um descompasso entre o sistema regulador, isto é, as leis, e o regulado, a sociedade. Enquanto o primeiro tende a ser extremamente simples, traduzível em juízos discretos, o segundo é terrivelmente complexo, subsumindo os desejos, interesses e necessidades conflitantes de milhões de pessoas. Sempre que editamos uma lei ou baixamos uma portaria prognosticamos, quando muito, seus efeitos mais imediatos e mais óbvios. Somos em geral incapazes de enxergar suas implicações profundas. Leis são um assunto sério demais para ficar a cargo apenas de políticos.