Uma cultura morrendo de sede
Degradação do Rio Jequitinhonha pouco
abaixo da nascente sufoca comunidades e mata costumes como os dos
quilombolas e das lavadeiras, cujos cânticos estão desaparecendo
Mateus Parreiras (texto) e Leandro Couri (fotos)
Estado de Minas: 07/04/2014
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Cicatriz no Vale do Jequitinhonha: garimpo clandestino contamina com dejetos humanos manancial que é a marca de toda uma região
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Moradora de remanescente de quilombo sobre o córrego que agora os habitantes evitam: vidas desviadas |
Serro –
Doenças, redução da oferta de água para consumo e queda da geração
elétrica são o resultado de anos de degradação das bacias hidrográficas e
de uma rede de nascentes desamparada. Mas, no município do Serro, no
Vale do Jequitinhonha, despejos de esgoto doméstico, comercial e
detritos de matadouros nos mananciais produzem uma devastação que
extrapola o prejuízo ambiental: começa a degradar a cultura de povos
tradicionais, na bacia em que convivem um dos maiores bolsões de pobreza
do país e expressões culturais das mais ricas e genuínas. A devastação
do Jequitinhonha, cenário que inspira música, artesanato e formas de
cultivo, avança em direção à cabeceira, que começa a ser castigada pouco
mais de um quilômetro depois de brotar nos chapadões do cerrado
mineiro, onde o rio começa sua saga de mazelas ambientais e sociais até
chegar à Bahia e desaguar no mar, nam altura do município de Belmonte.
O
isolamento manteve praticamente intocada a nascente do Rio
Jequitinhonha, no Serro, a 320 quilômetros de Belo Horizonte. Mas o
córrego de águas translúcidas, que é imagem presente na cultura local,
desce sem a ação nociva do homem por apenas 1.300 metros. Já nessa
altura, o igarapé precisa transpor a canalização do aterro da rodovia
BR-259, onde recebe resíduos carreados da via, como combustível, óleo e
cargas que vazam pelas canaletas de drenagem. Passados mais 10
quilômetros, a paisagem da nascente dá lugar ao fluxo intenso de esgoto
do distrito de Pedro Lessa, que é carregado pelo Córrego Acabassaco e
mancha o manancial com mais poluentes.
A derrubada das matas que
levavam até a área da nascente do Rio Jequitinhonha e o lançamento de
esgoto, lixo e animais mortos no Córrego Acabassaco afetaram o modo de
vida de quilombolas da região, como os descendentes de escravos fugidos
ou alforriados do povoado do Baú, a 35 quilômetros da sede do município
do Serro. Homens e mulheres da comunidade atravessavam as trilhas no
mato pela nascente do Jequitinhonha para caçar, coletar frutas e ir a
outros povoados. Nas margens do Acabassaco, se reuniam para lavar
roupas, utensílios domésticos e obter água para beber e cozinhar.
Nos
últimos anos, o mau cheiro e a imundície têm descido as corredeiras do
Córrego Acabassaco com cada vez mais volume, o que afastou os
quilombolas de muitas de suas atividades. “A gente se juntava para lavar
roupa no rio, cantando as canções que os antigos nos ensinaram. Mas
agora, se a gente usa essa água fica com dor de barriga, adoece e pega
mancha na pele”, reclama uma das líderes da comunidade do Baú, a
lavradora e artesã Clemilde da Conceição Reis Vitor, de 56 anos. “A
gente só cantava quando ia para a plantação e um ajudava o outro ou na
beira do rio. E isso está acabando”, lamenta.
Outro problema é o
êxodo impulsionado por problemas como esses. “Nossos jovens estão indo
embora. Não querem ficar onde não dá para plantar e onde a gente não tem
tantas opções”, lamenta a artesã Vera Vicentina da Conceição Paulino,
de 50. Só na casa dela seis filhos emigraram para São Paulo, atrás de
mais oportunidades de vida, abandonando suas raízes. “Antigamente, a
gente passava por uma estrada de terra para chegar à nascente do Rio
Jequitinhonha. Hoje tem asfalto. As fazendas e a cidade estão derrubando
as matas que a gente conhecia. Os pássaros que a gente via e depois
bordava nas colchas e panos, os peixes que enfeitavam nossas rendas,
tudo está acabando aos poucos. Como é que uma pessoa que nunca viu um
pássaro vai bordar um?”, indaga Vera.
Quem pede aos quilombolas
para ouvir um pouco de suas canções descobre que muitos não sabem mais
as letras e os ritmos, apesar de alguns se mostrarem visivelmente
tímidos, o que é típico daquele povo. Para essas ocasiões, mandam chamar
o agricultor Luiz de Gonzaga Costa, de 59, um dos que ainda sabem os
catopês, congados e canções tradicionais do Baú, porque os canta quando
há festejos nas comunidades vizinhas ou reuniões no centro comunitário
construído na comunidade.
Basta que Luiz entoe os primeiros
versos, de frente para a pinguela que atravessa o Córrego Acabassaco,
para atrair a atenção de quem está disperso: “Minha virgem do Rosário,
hoje é o vosso dia/ que iremos festejar com prazer e alegria”. Outra
canção, que mistura frases de origem africana a um manso sotaque
caipira, faz alguns recordarem tempos passados, nas vozes de pais e
avós: “No caminho do sertão/ Encontrei Mané João/ Com seu laço na
garupa/ Tocando sua boiada/ Ê, kombiendi. A, kombiendá. Nangá-iangá,
nocalungá/ Ê, kombiendi. A, kombiendá”. Se depender do agricultor, as
canções continuarão a ser transmitidas, por serem muito importantes.
“Esses catopês são nossos, aqui do povoado do Baú e do Ausente. Então,
não podem acabar enquanto a gente estiver aqui”, disse, como quem teme
que uma fonte muito importante seque de repente.
O vale vítima de suas riquezas
Dona das águas que se degradam com mais
rapidez em Minas, bacia do Jequitinhonha sofre com garimpeiros que
revolvem leitos atrás de ouro e diamantes, sem critérios nem
fiscalização
Mateus Parreiras (textos) e Leandro Couri (fotos)
Enviados especiais
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Da mina de água cristalina que sustenta
animais e seres humanos à mina de ouro que ainda está espalhada pelo
leito e atrai garimpeiros, o Jequitinhonha sofre pelo que oferece a uma
região de contrastes |
Diamantina, Couto de Magalhães de Minas e Serro – A
estreita faixa de mata ciliar que protege a nascente do Rio
Jequitinhonha é tão densa que as tramas de espinhos e árvores do cerrado
impedem até indentificá-la de fora da vegetação. Para ter acesso ao
ponto onde a água aflora, é preciso subir pela calha do córrego até a
cabeceira. O esforço é recompensado pela paisagem lacrada na vegetação
agreste. Nela, pássaros pousam nas margens e bebem da água límpida que
desce pelo leito de seixos brancos e redondos. Mas toda essa pureza dura
pouco, já que o Jequitinhonha é o rio que mais tem sido degradado nos
últimos anos em Minas. O trecho mais preocupante fica a 140 quilômetros
da cabeceira, entre os municípios de Diamantina e Couto de Magalhães de
Minas, no garimpo ilegal de Areinha. Um lugar tão devastado que as
margens são de areia extraída do fundo do manancial, o curso natural foi
seguidas vezes desviado e as águas se tornaram tão vermelhas que
lembram sangue.
O garimpo de Areinha se esconde após extensas
plantações de eucalipto, em um labirinto de estradinhas. Com o auxílio
de um GPS e do mapeamento da região, a equipe do EM conseguiu chegar ao
local em um fim de tarde. A estratégia de se deslocar sem guia da região
e de seguir nesse horário se deu justamente para evitar a rede de
alertas dos trabalhadores. Eles usam rádios acionados por motoqueiros
que passam o dia trafegando por aquelas vias. Qualquer sinal da polícia
ou de fiscalização ambiental dispara o alarme para que equipamentos
sejam escondidos e metais preciosos, guardados.
A primeira cena
que se vê do garimpo surge depois de uma curva de mata fechada. É uma
imagem aterradora: o curso de água vermelha se perde no meio de uma
larga mancha de areia que foi revolvida do fundo do Rio Jequitinhonha
por dezenas de dragas. O leito natural é desviado em vários pontos,
formando novos braços e poços onde tratores e caminhões são usados para
separar diamante e ouro de terra e detritos. São 2 mil garimpeiros se
espremendo em uma área de 1,4 hectare, o que compreende um homem a cada 7
metros quadrados nas barrancas. Se somados os pontos de garimpo além de
Areinha, o Jequitinhonha tem manchas de areia escavada e braços de rio
desviados que somam 16,8 hectares só nessa região, o equivalente a 5,6
vezes a cava de Serra Pelada, no Pará.
De perto, a devastação é
ainda mais impressionante. Os garimpeiros transformaram as margens em
desfiladeiros para processar pedras e cascalho em suas máquinas. O
diamante ainda é separado no balanço da bateia. Atividade que Clóvis
Fernandes Silva Lopes, de 27 anos, conhece desde a infância. “Quem é do
ramo sabe onde está dando ouro e diamante. A gente vai atrás, procurando
achar um ‘pedrão’ para resolver a vida. Enquanto não consegue licença,
vai trabalhando na surdina, porque é daqui que sai nosso sustento”,
disse. A aglomeração dos garimpeiros, que vivem amontoados em barracas
sem as mínimas condições sanitárias, também se reflete nas águas do rio
que eles próprios consomem. A reportagem do Estado de Minas coletou uma
amostra na região, na qual a análise de laboratório detectou a presença
de coliformes fecais 374% acima do limite do Conama, resultado dos
despejos de esgoto sem tratamento.
Areinha é uma área que foi
fechada pela mineração Rio Novo e invadida por garimpeiros há cerca de
seis anos. Fica em uma parte do Jequitinhonha, que em tese foi
protegida pela Lei Estadual 15.082, de 2004, que considera que é de
preservação permanente o curso d’água e seus afluentes até a altura do
Rio Tabatinga, entre os municípios de Carbonita e Engenheiro Navarro.
Muitas justificativas
e nenhuma soluçãoO
problema do garimpo de Areinha não se restringe aos danos ambientais.
Desde 2007, todas as vezes que a fiscalização ambiental lacrou as
máquinas e os garimpeiros tiveram de retornar para Diamantina, a cidade
experimentou uma onda de criminalidade. Setores como a prefeitura local e
a Cooperativa Regional Garimpeira de Diamantina querem que a atividade
seja liberada de forma sustentável, com recuperação de áreas que forem
degradadas pela extração mineral. O Ministério Público considera a
proposta inviável, já que a área está protegida por lei, e tenta
conseguir que a Justiça obrigue a mineradora a recuperar o que deixou
para trás.
A empresa alega que isso não é possível, devido à
presença dos garimpeiros. A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável informou que o garimpo não tem
licenciamento, mas que pelo fato de a situação estar sub judice e de ter
um lado social delicado, ainda aguarda definições. Enquanto isso,
garimpeiros arrancam o máximo que podem antes que suas máquinas sejam
lacradas pela polícia. O secretário de Meio Ambiente de Diamantina,
Rodrigo Canuto, afirma que a atividade minerária no Jequitinhonha seria
interessante para a cidade, mas reconhece que a lei estadual esvazia
essa possibilidade. “Mas não podemos desconsiderar os fatores social e
inclusive o de segurança pública. Mantemos atividades de
conscientização, orientando o uso de bacias de decantação e cuidados
para com a vigilância sanitária.”
DEGRADAÇÃO A
bacia do Jequitinhonha é a que tem apresentado a degradação mais
acentuada nos últimos anos, de acordo com o Instituto Mineiro de Gestão
das Águas (Igam). Em 2012, os índices de qualidade da água médio e ruim
eram 49% em sua extensão, sendo o parâmetro bom quantificado em 51%. Já
no ano passado, a soma do conceito ruim e médio saltou para 60%. A
primeira estação de medição, na localidade de São Gonçalo do Rio das
Pedras, não registrou o resultado de análises em 2013. A última
amostragem é referente ao fim de 2012 e já indica que a acidez do curso
d’água se encontra alterada a 30 quilômetros da nascente.
O
motivo apontado pelo Igam são os lançamentos de esgoto, descartes de
lixo e de efluentes de matadouros. Mas, mais adiante, o impacto das
mineradoras aparece mais uma vez, próximo a Virgem da Lapa, onde
amostras colhidas no ano passado revelaram contaminação por manganês
136% acima do limite considerado tolerável pelo Conama, o que é apontado
pelo relatório do Igam como efeito de atividades minerárias
predatórias.