domingo, 17 de março de 2013
Clássico alemão é reeditado por conter expressões politicamente incorretas
O Estado de S.Paulo - 17/03/2013
Thais Caramico
ESPECIAL PARA O ESTADO / BERLIM
O politicamente correto chegou também à literatura infanto juvenil da Alemanha. Assim como as polêmicas envolvendo o caso de Monteiro Lobato no Brasil, um dos maiores nomes do país está em evidência: Otfried Preussler, autor de Die Kleine Hexe (ABruxinha), de 1957, e morto aos 89 anos no dia 18 de fevereiro.
A questão, no entanto, não é proibir a distribuição desse clássico na rede pública de educação básica,como chegou a ser discutido no caso de Caçadas de Pedrinho, mas sim reeditar a obra eliminando palavras e passagens consideradas inadequadas e racistas.
A decisão foi anunciada pela editora Thienemann Verlag logo após a ministra alemã das Relações Familiares, Kristina Schröder – do partido conservador União DemocrataCristã, o mesmo da chanceler Angela Merkel –, declarar ser a favor da alteração.
Para entender melhor a história, é preciso voltar um pouquinho ao fim de 2012, quando o editor da Thienemann Verlag, Klaus Willenberg, recebeu uma carta que apontava “um sério problema” na página 86 do livro da inexperiente bruxinha de 127 anos que tem um ano para aprender a ser uma ótima bruxa.
O leitor chama-se Mekonnen Mesghena, que aos 14 anos deixou a Eritreia, no Nordeste da África, como refugiado, para viver na Alemanha. Formou-se em jornalismo e hoje é diretor de Migração e Diversidade da Fundação Heinrich Boell. Ele lia para a filha quando foi surpreendido por algumas palavras e, como tem dito nos jornais, não conseguiu continuar a leitura como uma atividade prazerosa. “A experiência foi muito ruim e até minha filha notou que algo estava errado”, ele costuma falar.
Ao editor da Thienemann Verlag, Mesghena pediu que a obra fosse revisada, especialmente no trecho em que os personagens se fantasiam para celebrara Fastnacht, espécie de carnaval que acontece no Sul da Alemanha e também em algumas cidades da Áustria e Suíça. O texto, em tradução livre, fica assim: “Mas os dois negros não eram do circo, nem os turcos e indianos. Nem mesmo as meninas chinesas, os ogros, as mulheres esquimós e o sheik do deserto”.
A carta poderia ter sido um capítulo único e esquecido nessa história,não fosse a ministra Schröder dizer em público que gostaria de ler o livro para a filha sem ter de pular ou editar essa parte, insinuando, então, uma atitude da editora e afirmando o teor discriminatório.
O editor consultou o autor que, aos 89 anos(com mais de32 livros traduzidos em 55 idiomais) aceitou remover a palavra e qualquer outra parte que fosse considerada ruim. No fim de janeiro, cerca de duas semanas antes de Preussler morrer, a editora anunciou o lançamento de uma reedição“correta”de A Bruxinha, prevista para julho de 2013. A notícia não caiu bem e, desde então, a empresa só responde a entrevistas através de uma carta explicativa de cinco páginas e um outro documento escrito em primeira pessoa por Klaus Willenberg, no qual ele lamenta a má repercussão e até prevê um boicote às vendas,mas se mantém firme na decisão.
Para ele, não há censura ou uso excessivo do termo politicamente correto. Oque ele defende é que por ter sido escrito em 1957, alguns termos do livro não fazem mais sentido.Einsiste em chamar a alteração da obra por outro nome: modernização linguística. “Muitas crianças leem os livros do Preussler sozinhas e acabariam não dando atenção a uma nota de rodapé. Nós somos uma editora de literatura infantil responsável por aquilo que publicamos. Portanto,um texto para crianças nunca pode ser confuso ou mal interpretado. Além do mais, a linguagem afeta a consciência e se um termo discriminatório pode ser evitado, pensamos numa forma razoável de omiti-lo”, diz Willenberg.
Para a diretora da Biblioteca Internacional da Juventude de Munique, Christiane Raabe, a questão é muito maior. “Lamento essa decisão por diversas razões. O debate deixa claro que a autonomia da arte,um pré-requisito essencial para o processo criativo do artista, não se aplica para a literatura infantil. É um revés levando em conta a dura batalha para o reconhecimento da literatura infantil e tudo que
la sofre para ser entendida como parte da literatura em geral. Esse debate a enfraquece”, disse em entrevista ao Estado.
O fato de a ministra ter colocado em xeque um clássico alemão fez com que o público entrasse em uma discussão surpreendentemente feroz. “A questão é que, como mãe, ela pode achar o que quiser. Mas, como representante do governo, a cena é outra”, defende a especialista. Para ela, há ondas de pensamentos retrógrados que se repetem com os anos. “Nos anos 1970, por exemplo, os contos dos Irmãos Grimm eram um tabu, diziam que de tão cruéis podiam infringir a alma do leitor”, completa a diretora da Biblioteca Internacional da Juventude de Munique.
Perguntas cabeludas - Barbara Gancia
folha revista são paulo
É brincadeira? Bucicleide me apareceu com quatro crianças. Pois é, filhas dela. Uma menina loira, de idade indefinida (bem, ao menos para mim, que não sei mais dizer a idade de ninguém, não me pressione, por favor); um garoto igualmente claro que aparentava ter sido grotescamente disfarçado por uma peruca de índio de camelô e um par de óculos de Groucho Marx com bigode.
Mas, como eu não tenho grande intimidade com crianças, poderia muito bem ser o primo de Michelle Obama que acabou de chegar de Chicago. Pode inclusive ser um adulto proveniente daquela região do México em que a população apresenta sinais manifestos de hirsutismo facial, não sou a melhor pessoa para julgar. As outras duas crianças, se é que crianças são, tanto poderiam ser pigmeus da Nova Guiné como Buci, digo, Cleide poderia, em última instância, estar mesmo dizendo a verdade.
Aparentemente, ela teria trocado os quatro órfãos por tostequeiras elétricas na ilha de St. Lawrence, ao sul do estreito de Bering, em um esforço para lhes conferir uma existência digna, antes que elas acabassem virando ração para alce nas mãos de feitores de escravos esquimós em uma fazenda da Sarah Palin. Seria um lugar sórdido em que a mão de obra infantil é obrigada a ouvir música da cantora Björk 24 horas para trabalhar sem protestar. Para comer, apenas raspadinha sabor groselha. Ai de quem pedisse de uva.
Ainda estava digerindo as novidades quando Buci puxou-me de lado para dizer que não havia dormido na noite anterior pensando nas possíveis perguntas que a filha poderia lhe fazer e nas respostas que daria, caso a menina tomasse conhecimento do episódio do motorista embriagado que acabou por jogar o braço decepado do ciclista com o qual colidiu em um córrego.
Ilustração Alex Cerveny |
Para você ver. Até a tresloucada Bucicleide tem sensibilidade para saber que é preciso orientar crianças diante da abundância de informações a que estamos expostos em um mundo em que o equivalente a 450 bibliotecas do Congresso norte-americano é produzido pela internet diariamente.
O que não significa que essa quantidade enorme de informação tenha a mesma importância daquilo que está armazenado na biblioteca do Congresso, é claro. A maioria do que se produz todos os dias é lixo na forma de frases falsamente atribuídas a Clarice Lispector.
Segundo minha amiga, o diálogo hipotético de Buci com sua filha poderia ocorrer da seguinte forma: "Mamãe, por que o motorista fugiu?". Ela lhe diria que o inconsequente tinha bebido e, mesmo sabendo que isso era errado, resolvera sair dirigindo. Depois do acidente, teria ficado com medo e fugido.
Bucicleide preparou todo um discurso sobre cometer um ato grave e não assumir a responsabilidade, sobre como dirigir um carro é uma responsabilidade de adulto e como ele acabou agindo de forma infantil. E, ainda por cima, de ele ter bebido justamente logo depois de as leis sobre álcool e direção terem endurecido... Comecei a perder o interesse na conversa. Meu olhar foi pouco a pouco desviando para os meninos. Eles pareciam os irmãozinhos do filme "Valente" depois do feitiço.
Buci continuava a parlamentar sobre pais que, na melhor das intenções, correm para aliviar a dor dos filhos. Mais uma pergunta hipotética: "Se fosse mais velho, ele faria a mesma coisa?". A pergunta é antiga. Se não existisse castigo, você ficaria?
E um sujeito capaz de jogar um braço em um córrego se apresentaria à Justiça caso o advogado não lhe explicasse as consequências que ele estava enfrentando?
Ainda estava com essa na cabeça quando me veio mais uma. "E se sua filha lhe perguntar: 'Quer dizer que ele só voltou por medo de ser pego, não porque se arrependeu?'."
Talvez você possa nos ajudar, caro leitor. O que dizer para a filha da Bucicleide?
Barbara Gancia, mito vivo do jornalismo tapuia e torcedora do Santos FC, detesta se envolver em polêmica. E já chegou na idade de ter de recusar alimentos contendo gordura animal. É colunista do caderno "Cotidiano" e da revista "sãopaulo".
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O consumidor tem o direito de saber quem é quem - Entrvista Juliana Pereira
folha de são paulo
ANDREZA MATAISSHEILA D’AMORIMDE BRASÍLIAMais efetivo do que multas, a secretária nacional do consumidor, Juliana Pereira, acredita que carimbar as empresas com o "selo" de quem respeita ou desrespeita o consumidor é a melhor alternativa para puni-las.
A xerife do consumo explica que o governo criará um ranking com base não apenas em quantidade de reclamações, mas considerando também o tipo de problema, o que o ocasionou e a solução apresentada pela empresa.
"É direito do consumidor saber quem é quem no mercado de consumo", defende. Diz ainda que as empresas precisam parar de tratar o consumidor como um custo.
Ex-diretora do Procon em São Paulo, a secretária, que assumiu o cargo no ano passado, diz que espera contar com o apoio dos consumidores para vencer as pressões contrárias à implementação do Plano Nacional de Consumo e Cidadania, lançado pelo governo na última sexta. Leia trechos da entrevista.
Folha - Não faltou ousadia na elaboração do plano para um país onde o consumo é a base do crescimento da economia?
Juliana Pereira - A ousadia está exatamente em transformar o assunto em questão de Estado e enfrentar o problema com um conselho de ministros, com foco na solução. Parece pouco, mas é um salto grande.
O plano não prevê aumento das multas, não prevê mais multas...
98% das multas vão parar no Judiciário. As empresas recorrem das multas do Procon, do Ministério da Justiça, das agências reguladoras, recorrem de todas. Só no setor de telecomunicações, por exemplo, fizemos uma conta que, num determinado período, o Ministério da Justiça e os Procons somavam multas de R$ 50 milhões.
Não é a multa que vai melhorar?
Vários países passaram por esse processo da multa alta, da multa que vai sendo discutida longamente, a empresa começa a diluir isso no custo e, na hora que chega o dia para ela pagar, ela já tem todo o dinheiro.
Suspender as vendas, como fez a Anatel, é mais efetivo?
As empresas recorrem também. A novidade está exatamente numa outra coisa que o mercado entende muito rapidamente: todo o governo junto com a agenda do consumidor.
E quando o problema for de infraestrutura?
Uma empresa de e-commerce me disse que o problema é das estradas. Eu disse: o problema é que você promete entregar em dez dias uma coisa que não consegue. Você mente para o consumidor.
Essa postura do governo de assumir a defesa do consumidor pode retrair investimento?
De forma alguma. Esse é o discurso de gente que aposta no retrocesso. A agenda de defesa do consumidor é qualidade, bom atendimento e transparência na cobrança. É uma agenda de desenvolvimento.
É para isso que o Brasil caminha?
Acho que caminhamos para cada dia mais ter um consumidor consciente. O consumo é transversal nas classes sociais: da A à E, todo mundo consome. Essa consciência de que quero qualidade e respeito não tem classe social.
Há os críticos que afirmam que, com isso, o governo vai quebrar empresas...
Esse é um discurso que tem 23 anos de atraso. O Código de Defesa do Consumidor existe desde 1990 e aconteceu o contrário. Vamos criar um índice para mostrar quem é quem. Consumo é relação de confiança. Deu problema, a pessoa procurou a empresa e resolveu, isso aumenta a confiança de que escolheu a marca certa. O consumidor precisa deixar de ser custo e ser tratado como um sujeito importante da relação.
Mais de duas décadas depois, o Brasil está discutindo como aplicar o CDC. O país não está atrasado?
Vinte anos para uma mudança da sociedade é pouco. É claro que temos pressa porque não vamos viver 150 anos.
Como enfrentar o lobby das empresas que têm representantes no Congresso? Uma das principais medidas, a que fortalece os Procons, depende de aval do Congresso.
O que o Procon pode fazer está no Código de Defesa do Consumidor: multar, apreender o produto, inutilizá-lo, caçar o registro, proibir a fabricação, suspender o fornecimento. O que estamos fazendo é dizer que, se ele pode tudo isso, queremos que ele possa também resolver a vida do consumidor de uma maneira mais efetiva.
Qual o recado que a senhora dá para os consumidores?
Você tem o poder. O consumidor escolhe a marca, o modelo, o serviço, o banco que contrata e o Estado brasileiro está dizendo que o que ele quer -qualidade, bom atendimento e transparência, principalmente em custo- virou uma questão de Estado.
É uma cruzada contra as empresas?
Não estamos fazendo nada contra ninguém. É a favor. Um mercado que respeita o consumidor vai ter condições de ser mais competitivo, de exportar, de agregar valor para sua marca. A proteção do consumidor é um instrumento de desenvolvimento econômico e social. É assim no mundo desenvolvido.
Como xerife do consumo, qual o recado para os empresários?
Temos uma grande oportunidade para virar o jogo. Para transformar essa política de Estado, esse novo status de proteção do consumidor, em menos conflito e mais soluções.
E para quem não acredita nisso, que acha que essas medidas não vão sair do papel?
No lançamento do plano estavam todos os Poderes e atores do sistema de defesa do consumidor. Acho que é um bom recado.
A mentalidade de que multa é um custo que se provisiona e empurra a discussão para a Justiça...
Acabou.
Mudar a mentalidade do empresário será um desafio?
Para mudar a mentalidade, vamos estimular a competitividade. Chegou a hora de ter no Brasil um conceito de competitividade pelo consumidor e não só a competitividade clássica do custo.
Como será esse modelo?
Vamos construir indicadores que mostrem o comportamento. A defesa do consumidor sempre diagnosticou o efeito: os mais reclamados. Muitas vezes aparecem os mais massificados. Queremos olhar de maneira mais ampla e dar luz a outros mercados. A ideia é propor indicadores que olhem a conduta setorialmente e permitam analisar a causa para dizer se é uma decisão contumaz da empresa e se tem que ser punida de acordo.
Como vai funcionar isso?
Vamos trazer uma qualificação para as reclamações. Em geral, elas são de que o produto não funciona, a empresa não entregou ou cobrou indevidamente. Queremos dizer: o que o banco cobrou, por que e se tem uma norma sobre isso. Isso qualifica mais a demanda. Queremos qualificar as reclamações para que isso seja levado também para os acionistas.
Classificar as empresas que respeitam e as que desrespeitam os consumidores dá mais resultado?
É direito do consumidor saber quem é quem no mercado de consumo.
Vai ter um ranking dessas empresas?
A intenção é sofisticar esses instrumentos.
Há críticas de que dar maior poder aos Procons fere a constituição.
O Procon pode fechar loja, aplicar multa, cancelar alvará e não pode determinar a devolução de R$ 50 para o consumidor? O próprio Judiciário nos apoia nesse processo. A análise constitucional foi feita pela Advocacia Geral da União.
E a crítica de que as empresas terão que ter estoques maiores para trocas imediatas?
Vamos ter 30 dias para discutir a lista dos produtos essenciais, inclusive com o mercado. A troca é para produtos com defeito. Tenho esperança de que produtos com defeito sejam um percentual muito baixo. A gente sabe de situação em que o consumidor chama a polícia na loja. É esse o país que a gente quer, onde o consumidor, para ser respeitado, precisa chamar a polícia?
NOME
Juliana Pereira
FORMAÇÃO
Graduada em direito e pós-graduada em contratos e responsabilidade civil
EXPERIÊNCIA
Foi coordenadora do Procon de Franca (SP); assessora especial da Secretaria de Direito Econômico; coordenadora geral do Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor; e diretora do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor
ENTREVISTA JULIANA PEREIRA
Para a secretária nacional do setor, carimbar as empresas que desrespeitam o cliente é a melhor alternativa de punição
A xerife do consumo explica que o governo criará um ranking com base não apenas em quantidade de reclamações, mas considerando também o tipo de problema, o que o ocasionou e a solução apresentada pela empresa.
"É direito do consumidor saber quem é quem no mercado de consumo", defende. Diz ainda que as empresas precisam parar de tratar o consumidor como um custo.
Ex-diretora do Procon em São Paulo, a secretária, que assumiu o cargo no ano passado, diz que espera contar com o apoio dos consumidores para vencer as pressões contrárias à implementação do Plano Nacional de Consumo e Cidadania, lançado pelo governo na última sexta. Leia trechos da entrevista.
Juliana Pereira - A ousadia está exatamente em transformar o assunto em questão de Estado e enfrentar o problema com um conselho de ministros, com foco na solução. Parece pouco, mas é um salto grande.
O plano não prevê aumento das multas, não prevê mais multas...
98% das multas vão parar no Judiciário. As empresas recorrem das multas do Procon, do Ministério da Justiça, das agências reguladoras, recorrem de todas. Só no setor de telecomunicações, por exemplo, fizemos uma conta que, num determinado período, o Ministério da Justiça e os Procons somavam multas de R$ 50 milhões.
Não é a multa que vai melhorar?
Vários países passaram por esse processo da multa alta, da multa que vai sendo discutida longamente, a empresa começa a diluir isso no custo e, na hora que chega o dia para ela pagar, ela já tem todo o dinheiro.
Suspender as vendas, como fez a Anatel, é mais efetivo?
As empresas recorrem também. A novidade está exatamente numa outra coisa que o mercado entende muito rapidamente: todo o governo junto com a agenda do consumidor.
E quando o problema for de infraestrutura?
Uma empresa de e-commerce me disse que o problema é das estradas. Eu disse: o problema é que você promete entregar em dez dias uma coisa que não consegue. Você mente para o consumidor.
Essa postura do governo de assumir a defesa do consumidor pode retrair investimento?
De forma alguma. Esse é o discurso de gente que aposta no retrocesso. A agenda de defesa do consumidor é qualidade, bom atendimento e transparência na cobrança. É uma agenda de desenvolvimento.
É para isso que o Brasil caminha?
Acho que caminhamos para cada dia mais ter um consumidor consciente. O consumo é transversal nas classes sociais: da A à E, todo mundo consome. Essa consciência de que quero qualidade e respeito não tem classe social.
Há os críticos que afirmam que, com isso, o governo vai quebrar empresas...
Esse é um discurso que tem 23 anos de atraso. O Código de Defesa do Consumidor existe desde 1990 e aconteceu o contrário. Vamos criar um índice para mostrar quem é quem. Consumo é relação de confiança. Deu problema, a pessoa procurou a empresa e resolveu, isso aumenta a confiança de que escolheu a marca certa. O consumidor precisa deixar de ser custo e ser tratado como um sujeito importante da relação.
Mais de duas décadas depois, o Brasil está discutindo como aplicar o CDC. O país não está atrasado?
Vinte anos para uma mudança da sociedade é pouco. É claro que temos pressa porque não vamos viver 150 anos.
Como enfrentar o lobby das empresas que têm representantes no Congresso? Uma das principais medidas, a que fortalece os Procons, depende de aval do Congresso.
O que o Procon pode fazer está no Código de Defesa do Consumidor: multar, apreender o produto, inutilizá-lo, caçar o registro, proibir a fabricação, suspender o fornecimento. O que estamos fazendo é dizer que, se ele pode tudo isso, queremos que ele possa também resolver a vida do consumidor de uma maneira mais efetiva.
Qual o recado que a senhora dá para os consumidores?
Você tem o poder. O consumidor escolhe a marca, o modelo, o serviço, o banco que contrata e o Estado brasileiro está dizendo que o que ele quer -qualidade, bom atendimento e transparência, principalmente em custo- virou uma questão de Estado.
É uma cruzada contra as empresas?
Não estamos fazendo nada contra ninguém. É a favor. Um mercado que respeita o consumidor vai ter condições de ser mais competitivo, de exportar, de agregar valor para sua marca. A proteção do consumidor é um instrumento de desenvolvimento econômico e social. É assim no mundo desenvolvido.
Como xerife do consumo, qual o recado para os empresários?
Temos uma grande oportunidade para virar o jogo. Para transformar essa política de Estado, esse novo status de proteção do consumidor, em menos conflito e mais soluções.
E para quem não acredita nisso, que acha que essas medidas não vão sair do papel?
No lançamento do plano estavam todos os Poderes e atores do sistema de defesa do consumidor. Acho que é um bom recado.
A mentalidade de que multa é um custo que se provisiona e empurra a discussão para a Justiça...
Acabou.
Mudar a mentalidade do empresário será um desafio?
Para mudar a mentalidade, vamos estimular a competitividade. Chegou a hora de ter no Brasil um conceito de competitividade pelo consumidor e não só a competitividade clássica do custo.
Como será esse modelo?
Vamos construir indicadores que mostrem o comportamento. A defesa do consumidor sempre diagnosticou o efeito: os mais reclamados. Muitas vezes aparecem os mais massificados. Queremos olhar de maneira mais ampla e dar luz a outros mercados. A ideia é propor indicadores que olhem a conduta setorialmente e permitam analisar a causa para dizer se é uma decisão contumaz da empresa e se tem que ser punida de acordo.
Como vai funcionar isso?
Vamos trazer uma qualificação para as reclamações. Em geral, elas são de que o produto não funciona, a empresa não entregou ou cobrou indevidamente. Queremos dizer: o que o banco cobrou, por que e se tem uma norma sobre isso. Isso qualifica mais a demanda. Queremos qualificar as reclamações para que isso seja levado também para os acionistas.
Classificar as empresas que respeitam e as que desrespeitam os consumidores dá mais resultado?
É direito do consumidor saber quem é quem no mercado de consumo.
Vai ter um ranking dessas empresas?
A intenção é sofisticar esses instrumentos.
Há críticas de que dar maior poder aos Procons fere a constituição.
O Procon pode fechar loja, aplicar multa, cancelar alvará e não pode determinar a devolução de R$ 50 para o consumidor? O próprio Judiciário nos apoia nesse processo. A análise constitucional foi feita pela Advocacia Geral da União.
E a crítica de que as empresas terão que ter estoques maiores para trocas imediatas?
Vamos ter 30 dias para discutir a lista dos produtos essenciais, inclusive com o mercado. A troca é para produtos com defeito. Tenho esperança de que produtos com defeito sejam um percentual muito baixo. A gente sabe de situação em que o consumidor chama a polícia na loja. É esse o país que a gente quer, onde o consumidor, para ser respeitado, precisa chamar a polícia?
FRASES
"O Procon pode fechar loja, aplicar multa, cancelar alvará e não pode determinar a devolução de R$ 50 para o consumidor?"
"Não estamos fazendo nada contra ninguém. É a favor. Um mercado que respeita o consumidor vai ter condições de ser mais competitivo, de exportar, de agregar valor para sua marca"
"O Estado brasileiro está dizendo que o que o consumidor quer -qualidade, bom atendimento e transparência, principalmente em custo- virou uma questão de Estado"
RAIO-X
Juliana Pereira
FORMAÇÃO
Graduada em direito e pós-graduada em contratos e responsabilidade civil
EXPERIÊNCIA
Foi coordenadora do Procon de Franca (SP); assessora especial da Secretaria de Direito Econômico; coordenadora geral do Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor; e diretora do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor
Vinicius Torres Freire
folha de são paulo
A ARGENTINA tem papa; vários Nobel e Oscar, dizia-se entre milhares de piadas que suscitou a eleição de Francisco.
O chiste tem lá suas relações com o inconsciente, mas não se trata aqui de fazer análise de recalques nacionais nem de lamentar o fracasso no BBB da fama mundial, bobagem provinciana e burra.
O Oscar é dado por uma associação comercial, kitsch como tantas, que chama a atenção por ser povoada por gente bonita, rica e famosa.
O Nobel poderia ser lá um indicador com mais tutano, ainda mais se a gente levasse em conta prêmios de ciência. Os Nobel de Literatura são o túmulo do escritor desconhecido, de tanto escrevinhador agraciado. O da Paz já premiou ex-terroristas, afora trastes demagogos.
Ainda assim, por que o país é desconhecido e ignorado como esses nomes de rua? Numa piada do ciclo papal, um cardeal diz a outros: "Não tínhamos combinado de eleger um brasileiro?". Alguém responde: "Ué, mas a capital do Brasil não é Buenos Aires?". A piada é velha, mas não seu motivo.
Para glosar Francisco, se a Argentina vive no "fim do mundo", o Brasil parece morar no mesmo endereço, mas nos fundos. Por que somos tão obscuros? Importa? Importa, mas como sintoma de deficiências e perversidades nacionais.
Somos obscuros porque somos recentes. Até 1960, não passávamos de mistura de Sudão com Império Russo perdida num canto do mapa. Tínhamos fome africana, massas de servos no sertão, éramos ainda mais iletrados do que hoje. Exportávamos café, açúcar e algodão, produtos sem rosto, afora o de Carmen Miranda. Os vizinhos do Cone Sul eram mais educados e ricos. E mais brancos, o que diminui o preconceito.
Somos separados do mundo porque falamos português, essa língua remota, quando não acham que falamos espanhol (ainda hoje, sim, até em universidades aqui nos EUA).
Somos isolados porque países grandes tendem a ser mais autocentrados. Por não temos importância militar e geopolítica. Mas moramos longe em parte porque queremos.
Somos muito ignorantes. Gostamos pouco de escola; de aprender no exterior; de falar com o exterior. Nas universidades de elite dos EUA, há relativamente menos brasileiros que mexicanos, chilenos e argentinos.
Entre 187 países, estamos em 85° lugar em desenvolvimento social (Chile: 40º; Argentina: 41º). Isso, entre outras coisas, é sinal de ignorância, de incivilidade.
Somos isolados. O Brasil é um dos países mais fechados do mundo ao comércio internacional.
Demoramos a importar tecnologias; raro importamos cérebros. Vendemos ainda produtos sem rosto, soja e ferro (nada contra) e raras Embraer. Nas prateleiras do mundo, há café da Colômbia e daqueles países miúdos da América Central e da África que confundimos no mapa. Não do Brasil.
Mas o Brasil tem o maior sistema de ciência e a economia com o maior nível de sofisticação técnica no mundo em desenvolvimento. A invenção de tais coisas ajudou a criar mais desigualdade, mas essa é outra história.
Somos assim algo obscuros porque pouco "conversamos" com o resto do mundo, embora gostemos de miçangas, "gadgets"; olhamos muito para nosso umbigo pouco educado.
Sem papa, Oscar ou Nobel
Piadas sobre Francisco revelam recalques nacionais e nossa obscuridade sintomática
O chiste tem lá suas relações com o inconsciente, mas não se trata aqui de fazer análise de recalques nacionais nem de lamentar o fracasso no BBB da fama mundial, bobagem provinciana e burra.
O Oscar é dado por uma associação comercial, kitsch como tantas, que chama a atenção por ser povoada por gente bonita, rica e famosa.
O Nobel poderia ser lá um indicador com mais tutano, ainda mais se a gente levasse em conta prêmios de ciência. Os Nobel de Literatura são o túmulo do escritor desconhecido, de tanto escrevinhador agraciado. O da Paz já premiou ex-terroristas, afora trastes demagogos.
Ainda assim, por que o país é desconhecido e ignorado como esses nomes de rua? Numa piada do ciclo papal, um cardeal diz a outros: "Não tínhamos combinado de eleger um brasileiro?". Alguém responde: "Ué, mas a capital do Brasil não é Buenos Aires?". A piada é velha, mas não seu motivo.
Para glosar Francisco, se a Argentina vive no "fim do mundo", o Brasil parece morar no mesmo endereço, mas nos fundos. Por que somos tão obscuros? Importa? Importa, mas como sintoma de deficiências e perversidades nacionais.
Somos obscuros porque somos recentes. Até 1960, não passávamos de mistura de Sudão com Império Russo perdida num canto do mapa. Tínhamos fome africana, massas de servos no sertão, éramos ainda mais iletrados do que hoje. Exportávamos café, açúcar e algodão, produtos sem rosto, afora o de Carmen Miranda. Os vizinhos do Cone Sul eram mais educados e ricos. E mais brancos, o que diminui o preconceito.
Somos separados do mundo porque falamos português, essa língua remota, quando não acham que falamos espanhol (ainda hoje, sim, até em universidades aqui nos EUA).
Somos isolados porque países grandes tendem a ser mais autocentrados. Por não temos importância militar e geopolítica. Mas moramos longe em parte porque queremos.
Somos muito ignorantes. Gostamos pouco de escola; de aprender no exterior; de falar com o exterior. Nas universidades de elite dos EUA, há relativamente menos brasileiros que mexicanos, chilenos e argentinos.
Entre 187 países, estamos em 85° lugar em desenvolvimento social (Chile: 40º; Argentina: 41º). Isso, entre outras coisas, é sinal de ignorância, de incivilidade.
Somos isolados. O Brasil é um dos países mais fechados do mundo ao comércio internacional.
Demoramos a importar tecnologias; raro importamos cérebros. Vendemos ainda produtos sem rosto, soja e ferro (nada contra) e raras Embraer. Nas prateleiras do mundo, há café da Colômbia e daqueles países miúdos da América Central e da África que confundimos no mapa. Não do Brasil.
Mas o Brasil tem o maior sistema de ciência e a economia com o maior nível de sofisticação técnica no mundo em desenvolvimento. A invenção de tais coisas ajudou a criar mais desigualdade, mas essa é outra história.
Somos assim algo obscuros porque pouco "conversamos" com o resto do mundo, embora gostemos de miçangas, "gadgets"; olhamos muito para nosso umbigo pouco educado.
"Khor e Kalínitch" - Ivan Turguêniev [trad.Irineu Franco Perpetuo]
folha de são paulo
A aldeia de Oriol (estamos falando da parte oriental da província de Oriol) normalmente está situada em meio a campos arados, perto de uma vala transformada de qualquer jeito em um tanque imundo. Tirando uns salgueiros sempre às ordens e umas duas ou três bétulas ralas, não se vê uma árvore sequer no raio de uma versta; uma isbá é grudada na outra, os telhados, atulhados de palha suja... A aldeia de Kaluga, ao contrário, é geralmente rodeada de floresta; as isbás são mais livres e mais retas, com telhado de ripa; o portão fecha direito, a cerca do quintal não está desfeita nem tombada, convidando os porcos que passam... E, para a caça, a província de Kaluga também é melhor.
Na província de Oriol, as últimas florestas e praças estão fadadas a desaparecer em cinco anos, e não há nem sombra de pântano; em Kaluga, ao contrário, as matas se estendem por centenas de verstas, os pântanos por dezenas, essa ave nobre que é a tetraz ainda não se extinguiu, encontra-se a bondosa narceja, e a atarefada perdiz alegra e assusta o atirador e o cachorro com seu voo impetuoso.
Visitando o distrito de Jizdra como caçador, eu me deparei com um campo e travei conhecimento com um pequeno proprietário de Kaluga, Polutikin, um apaixonado pela caça e, portanto, uma pessoa exemplar. Possuía, é verdade, algumas fraquezas: por exemplo, oferecia-se a todos os bons partidos da província e, quando a mão e a casa lhe eram recusadas, confiava seu pleno pesar, com o coração aflito, a todos os amigos e conhecidos, continuando, porém, a enviar aos parentes da noiva pêssegos azedos e outros presentes de seu jardim; adorava repetir sempre a mesma anedota, a qual, apesar da admiração do senhor Polutikin por seus méritos, decididamente jamais fez alguém rir; louvava a obra de Akim Nakhímov e a novela "Pinna"; gaguejava; chamava o cachorro de Astrônomo; em vez de mas, dizia todavia, e implantara em casa a cozinha francesa, cujo segredo, no entendimento de seu cozinheiro, consistia em alterar completamente o sabor natural de todos os pratos: graças a esse artista, a carne ficava com gosto de peixe, o peixe, de cogumelos, o macarrão, de pólvora; em compensação, não havia cenoura que entrasse na sopa sem ter tomado o aspecto de um losango ou trapézio. Porém, à exceção desses poucos e insignificantes defeitos, o senhor Polutikin era, como já foi dito, uma pessoa exemplar.
No primeiro dia em que conheci o senhor Polutikin, ele me convidou a pernoitar em sua casa.
- São umas cinco verstas - acrescentou-, é longe para ir a pé. Vamos primeiro até a casa de Khor. (Permita-me o leitor não reproduzir seu gaguejar.)
- E quem é esse Khor?
- Um mujique meu... Fica pertinho daqui.
Fomos até ele. Em meio à floresta, em uma clareira limpa e bem cuidada, a casa de Khor se erguia, solitária. Consistia de umas armações de pinheiro, unidas em uma cerca; na frente da isbá principal, estendia-se um alpendre sustentado por colunas finas. Entramos. Veio a nosso encontro um rapaz de 20 anos, alto e belo.
- Ei, Fédia! Khor está em casa? -perguntou o senhor Polutikin.
- Não, Khor foi à cidade -respondeu o rapaz, sorrindo e mostrando uma fileira de dentes brancos como a neve- Quer que prepare a teleguinha?
- Sim, irmão, a teleguinha. E nos traga kvas.
Entramos na isbá. Nenhuma imagem de Suzdal cobria as limpas paredes de madeira; no canto, em frente ao severo ícone com moldura de prata, ardia uma lamparina; a mesa de tília fora raspada e lavada havia pouco; nos troncos e no umbral da janela, não havia carochas ligeiras a perambular, nem se escondiam baratas pensativas.
O jovem logo apareceu com uma grande caneca branca, cheia de um ótimo kvas, uma fatia enorme de pão branco e uma dúzia de pepinos salgados em uma tigela de madeira. Deixou toda essa comida na mesa, encostou-se na porta e se pôs a contemplar-nos, sorridente. Nem conseguimos comer todos os acepipes, pois a telega já estava na entrada. Saímos. Um menino de 15 anos, com cabelos encaracolados e faces vermelhas, era o cocheiro, contendo com dificuldade o garanhão malhado e bem nutrido. Em volta da telega havia seis jovens grandes, muito parecidos uns com os outros e com Fédia. "São todos filhos de Khor!", observou Polutikin. "Todos de Khor", corroborou Fédia, que viera atrás de nós até a entrada, "mas ainda não são todos: Potap está na floresta, e Sídor foi à cidade com o velho Khor... Veja bem, Vássia", continuou, dirigindo-se ao cocheiro, "vá a toda: você está levando o patrão. Mas fique de olho nos solavancos: não vá acabar com a telega, nem revirar as tripas do patrão!". Os outros filhos de Khor riram do exagero de Fédia.
"Ajude o Astrônomo a subir", exclamou solenemente o senhor Polutikin. Fédia, não sem prazer, ergueu no ar o cachorro, que sorria amarelo, e colocou-o no fundo da telega. Vássia soltou a rédea do cavalo. Partimos. "Esse é o meu escritório", disse Polutikin, subitamente, mostrando uma casinha baixa e pequenina, "quer entrar?". "Por favor." "Está desativado", observou, descendo, "mas ainda vale a pena dar uma olhada".
O escritório consistia em dois aposentos vazios. O vigia, um velho zarolho, veio correndo dos fundos. "Olá, Miniáitch", disse Polutikin, "cadê a água?". O zarolho sumiu, voltando imediatamente com uma garrafa de água e dois copos. "Aproveite", disse Polutikin, "essa minha água de nascente é ótima". Bebemos copos d'água enquanto o velho nos fazia uma profunda reverência. "Bem, agora parece que podemos ir", observou meu novo amigo. "Nesse escritório, vendi ao negociante Allilúiev quatro deciatinas de floresta por um bom preço." Sentamo-nos na telega e, em meia hora, já estávamos no pátio da casa senhorial.
- Diga, por favor -perguntei a Polutikin, no jantar-, por que Khor vive isolado dos outros mujiques?
- Veja por quê: ele é o meu mujique esperto. Há 25 anos, a isbá dele queimou; ele veio ao meu finado pai e disse: "permita, Nikolai Kuzmitch, que eu me instale no pântano da floresta. Vou pagar ao senhor um ótimo tributo". "Mas por que você quer se instalar no pântano?" "Ah, porque sim: Nikolai Kuzmitch, meu pai, apenas não exija nenhum trabalho de mim, mas estabeleça um tributo, aquele que o senhor quiser." "Cinquenta rublos por ano!" "Como quiser." "Mas veja bem, não me venha com atraso!" "Eu sei, sem atraso..." Daí ele se instalou no pântano. E, a partir desse dia, passou a ser chamado de Khor.
- Ele enriqueceu?
- Enriqueceu. Agora ele me paga um tributo de cem rublos, e ainda é possível que eu aumente. Já lhe disse mais de uma vez: "Compre sua liberdade, Khor, compre...". Mas ele, malandro, me garante que não tem como: é o dinheiro, diz, não tenho... Sei! Como se fosse isso!
No dia seguinte, fomos caçar logo depois do chá. Ao passar pela aldeia, o senhor Polutikin mandou o cocheiro parar em uma isbá baixa, e chamou sonoramente: "Kalínitch!". "Já vou, meu pai, já vou", soou uma voz que vinha do pátio, "estou amarrando as alpargatas".
Prosseguimos; na aldeia, fomos alcançados por um homem de 40 anos, alto, magro, com a cabecinha erguida para trás. Era Kalínitch. Seu rosto bronzeado e bondoso, marcado aqui e ali pela varíola, agradou-me logo de cara. Kalínitch (como vim a saber mais tarde) ia caçar todo dia com o patrão, carregava sua bolsa, às vezes até a espingarda, observava onde estavam as aves, arrumava água, colhia morangos, construía cabanas, corria atrás da drójki; sem ele, Polutikin não conseguia dar um passo. Kalínitch era um homem do temperamento mais alegre e dócil, cantarolava a meia-voz o tempo todo, olhava despreocupadamente para todos os lados, falava um pouco pelo nariz, sorria, apertava os olhos azuis claros e passava a mão frequentemente na barba rala e cuneiforme. Não caminhava rápido, e sim a passos largos, levemente apoiado em um bastão comprido e fino. Ao longo do dia, falou comigo mais de uma vez, servindo-me sem ser servil, mas o patrão ele vigiava como se fosse um bebê.
Quando o calor insuportável do meio-dia nos forçou a buscar refúgio, ele nos levou a seu colmeal, bem no fundo da mata. Kalínitch nos abriu uma pequena isbá, revestida de tufos de ervas aromáticas secas, alojou-nos em feno fresco e colocou na cabeça uma espécie de saco de tela, pegou uma faca, um pote e um tição e foi à colmeia, cortar um favo para nós. Sorvemos um mel diáfano como água de fonte e adormecemos sob o zumbido monótono das abelhas e o murmúrio loquaz das folhas.
SOBRE O TEXTO Este trecho foi extraído da narrativa "Khor e Kalínitch", que abre "Memórias de um Caçador", livro publicado em 1852 e a partir do qual Ivan Turguêniev (1818-83) se tornaria conhecido. A coletânea de contos baseados nas observações do autor em suas estadas no campo deve ser lançada no país em maio, pela editora 34. Foram suprimidas as notas do tradutor. Leia íntegra do relato emfolha.com.br/ilustrissima.
IMAGINAÇÃO
prosa, poesia e tradução
Khor e Kalínitch
IVAN TURGUÊNIEVTRADUÇÃO IRINEU FRANCO PERPETUOQuem já foi do distrito de Vólkhov ao de Jizdra possivelmente ficou espantado com a aguda diferença no aspecto das pessoas da província de Oriol e de Kaluga. O mujique de Oriol é baixo, arqueado, soturno, olha de soslaio, mora em umas isbás de álamo pequenas e malfeitas, presta corveia, não faz comércio, come mal, calça alpargatas; o camponês arrendatário de Kaluga habita em espaçosas isbás de pinheiro, é alto, olha de forma sorridente e alegre, tem o rosto limpo e claro, comercia manteiga e alcatrão e usa botas nos feriados.A aldeia de Oriol (estamos falando da parte oriental da província de Oriol) normalmente está situada em meio a campos arados, perto de uma vala transformada de qualquer jeito em um tanque imundo. Tirando uns salgueiros sempre às ordens e umas duas ou três bétulas ralas, não se vê uma árvore sequer no raio de uma versta; uma isbá é grudada na outra, os telhados, atulhados de palha suja... A aldeia de Kaluga, ao contrário, é geralmente rodeada de floresta; as isbás são mais livres e mais retas, com telhado de ripa; o portão fecha direito, a cerca do quintal não está desfeita nem tombada, convidando os porcos que passam... E, para a caça, a província de Kaluga também é melhor.
Na província de Oriol, as últimas florestas e praças estão fadadas a desaparecer em cinco anos, e não há nem sombra de pântano; em Kaluga, ao contrário, as matas se estendem por centenas de verstas, os pântanos por dezenas, essa ave nobre que é a tetraz ainda não se extinguiu, encontra-se a bondosa narceja, e a atarefada perdiz alegra e assusta o atirador e o cachorro com seu voo impetuoso.
Visitando o distrito de Jizdra como caçador, eu me deparei com um campo e travei conhecimento com um pequeno proprietário de Kaluga, Polutikin, um apaixonado pela caça e, portanto, uma pessoa exemplar. Possuía, é verdade, algumas fraquezas: por exemplo, oferecia-se a todos os bons partidos da província e, quando a mão e a casa lhe eram recusadas, confiava seu pleno pesar, com o coração aflito, a todos os amigos e conhecidos, continuando, porém, a enviar aos parentes da noiva pêssegos azedos e outros presentes de seu jardim; adorava repetir sempre a mesma anedota, a qual, apesar da admiração do senhor Polutikin por seus méritos, decididamente jamais fez alguém rir; louvava a obra de Akim Nakhímov e a novela "Pinna"; gaguejava; chamava o cachorro de Astrônomo; em vez de mas, dizia todavia, e implantara em casa a cozinha francesa, cujo segredo, no entendimento de seu cozinheiro, consistia em alterar completamente o sabor natural de todos os pratos: graças a esse artista, a carne ficava com gosto de peixe, o peixe, de cogumelos, o macarrão, de pólvora; em compensação, não havia cenoura que entrasse na sopa sem ter tomado o aspecto de um losango ou trapézio. Porém, à exceção desses poucos e insignificantes defeitos, o senhor Polutikin era, como já foi dito, uma pessoa exemplar.
No primeiro dia em que conheci o senhor Polutikin, ele me convidou a pernoitar em sua casa.
- São umas cinco verstas - acrescentou-, é longe para ir a pé. Vamos primeiro até a casa de Khor. (Permita-me o leitor não reproduzir seu gaguejar.)
- E quem é esse Khor?
- Um mujique meu... Fica pertinho daqui.
Fomos até ele. Em meio à floresta, em uma clareira limpa e bem cuidada, a casa de Khor se erguia, solitária. Consistia de umas armações de pinheiro, unidas em uma cerca; na frente da isbá principal, estendia-se um alpendre sustentado por colunas finas. Entramos. Veio a nosso encontro um rapaz de 20 anos, alto e belo.
- Ei, Fédia! Khor está em casa? -perguntou o senhor Polutikin.
- Não, Khor foi à cidade -respondeu o rapaz, sorrindo e mostrando uma fileira de dentes brancos como a neve- Quer que prepare a teleguinha?
- Sim, irmão, a teleguinha. E nos traga kvas.
Entramos na isbá. Nenhuma imagem de Suzdal cobria as limpas paredes de madeira; no canto, em frente ao severo ícone com moldura de prata, ardia uma lamparina; a mesa de tília fora raspada e lavada havia pouco; nos troncos e no umbral da janela, não havia carochas ligeiras a perambular, nem se escondiam baratas pensativas.
O jovem logo apareceu com uma grande caneca branca, cheia de um ótimo kvas, uma fatia enorme de pão branco e uma dúzia de pepinos salgados em uma tigela de madeira. Deixou toda essa comida na mesa, encostou-se na porta e se pôs a contemplar-nos, sorridente. Nem conseguimos comer todos os acepipes, pois a telega já estava na entrada. Saímos. Um menino de 15 anos, com cabelos encaracolados e faces vermelhas, era o cocheiro, contendo com dificuldade o garanhão malhado e bem nutrido. Em volta da telega havia seis jovens grandes, muito parecidos uns com os outros e com Fédia. "São todos filhos de Khor!", observou Polutikin. "Todos de Khor", corroborou Fédia, que viera atrás de nós até a entrada, "mas ainda não são todos: Potap está na floresta, e Sídor foi à cidade com o velho Khor... Veja bem, Vássia", continuou, dirigindo-se ao cocheiro, "vá a toda: você está levando o patrão. Mas fique de olho nos solavancos: não vá acabar com a telega, nem revirar as tripas do patrão!". Os outros filhos de Khor riram do exagero de Fédia.
"Ajude o Astrônomo a subir", exclamou solenemente o senhor Polutikin. Fédia, não sem prazer, ergueu no ar o cachorro, que sorria amarelo, e colocou-o no fundo da telega. Vássia soltou a rédea do cavalo. Partimos. "Esse é o meu escritório", disse Polutikin, subitamente, mostrando uma casinha baixa e pequenina, "quer entrar?". "Por favor." "Está desativado", observou, descendo, "mas ainda vale a pena dar uma olhada".
O escritório consistia em dois aposentos vazios. O vigia, um velho zarolho, veio correndo dos fundos. "Olá, Miniáitch", disse Polutikin, "cadê a água?". O zarolho sumiu, voltando imediatamente com uma garrafa de água e dois copos. "Aproveite", disse Polutikin, "essa minha água de nascente é ótima". Bebemos copos d'água enquanto o velho nos fazia uma profunda reverência. "Bem, agora parece que podemos ir", observou meu novo amigo. "Nesse escritório, vendi ao negociante Allilúiev quatro deciatinas de floresta por um bom preço." Sentamo-nos na telega e, em meia hora, já estávamos no pátio da casa senhorial.
- Diga, por favor -perguntei a Polutikin, no jantar-, por que Khor vive isolado dos outros mujiques?
- Veja por quê: ele é o meu mujique esperto. Há 25 anos, a isbá dele queimou; ele veio ao meu finado pai e disse: "permita, Nikolai Kuzmitch, que eu me instale no pântano da floresta. Vou pagar ao senhor um ótimo tributo". "Mas por que você quer se instalar no pântano?" "Ah, porque sim: Nikolai Kuzmitch, meu pai, apenas não exija nenhum trabalho de mim, mas estabeleça um tributo, aquele que o senhor quiser." "Cinquenta rublos por ano!" "Como quiser." "Mas veja bem, não me venha com atraso!" "Eu sei, sem atraso..." Daí ele se instalou no pântano. E, a partir desse dia, passou a ser chamado de Khor.
- Ele enriqueceu?
- Enriqueceu. Agora ele me paga um tributo de cem rublos, e ainda é possível que eu aumente. Já lhe disse mais de uma vez: "Compre sua liberdade, Khor, compre...". Mas ele, malandro, me garante que não tem como: é o dinheiro, diz, não tenho... Sei! Como se fosse isso!
No dia seguinte, fomos caçar logo depois do chá. Ao passar pela aldeia, o senhor Polutikin mandou o cocheiro parar em uma isbá baixa, e chamou sonoramente: "Kalínitch!". "Já vou, meu pai, já vou", soou uma voz que vinha do pátio, "estou amarrando as alpargatas".
Prosseguimos; na aldeia, fomos alcançados por um homem de 40 anos, alto, magro, com a cabecinha erguida para trás. Era Kalínitch. Seu rosto bronzeado e bondoso, marcado aqui e ali pela varíola, agradou-me logo de cara. Kalínitch (como vim a saber mais tarde) ia caçar todo dia com o patrão, carregava sua bolsa, às vezes até a espingarda, observava onde estavam as aves, arrumava água, colhia morangos, construía cabanas, corria atrás da drójki; sem ele, Polutikin não conseguia dar um passo. Kalínitch era um homem do temperamento mais alegre e dócil, cantarolava a meia-voz o tempo todo, olhava despreocupadamente para todos os lados, falava um pouco pelo nariz, sorria, apertava os olhos azuis claros e passava a mão frequentemente na barba rala e cuneiforme. Não caminhava rápido, e sim a passos largos, levemente apoiado em um bastão comprido e fino. Ao longo do dia, falou comigo mais de uma vez, servindo-me sem ser servil, mas o patrão ele vigiava como se fosse um bebê.
Quando o calor insuportável do meio-dia nos forçou a buscar refúgio, ele nos levou a seu colmeal, bem no fundo da mata. Kalínitch nos abriu uma pequena isbá, revestida de tufos de ervas aromáticas secas, alojou-nos em feno fresco e colocou na cabeça uma espécie de saco de tela, pegou uma faca, um pote e um tição e foi à colmeia, cortar um favo para nós. Sorvemos um mel diáfano como água de fonte e adormecemos sob o zumbido monótono das abelhas e o murmúrio loquaz das folhas.
SOBRE O TEXTO Este trecho foi extraído da narrativa "Khor e Kalínitch", que abre "Memórias de um Caçador", livro publicado em 1852 e a partir do qual Ivan Turguêniev (1818-83) se tornaria conhecido. A coletânea de contos baseados nas observações do autor em suas estadas no campo deve ser lançada no país em maio, pela editora 34. Foram suprimidas as notas do tradutor. Leia íntegra do relato emfolha.com.br/ilustrissima.
O xadrez nível UFC de Tezza - Caetano Galindo
folha de são paulo
CAETANO W. GALINDOEu hoje sou vizinho de prédio de Cristovão Tezza.
Quinze anos atrás, no entanto, quando virei professor da Universidade Federal do Paraná e acabamos dividindo um gabinete, minha relação com ele era só de leitor. Foi quando vim morar o condomínio Leblon, quando juntei a biblioteca (expressão da Beth, mulher do Cristovão) com a da Sandra (Stroparo, outra colega de departamento), que a gente passou a conversar mais e a "se frequentar". (A vida social dos curitibanos, mesmo dos adotivos, como Cristovão, podia ser tema de documentário, como aqueles sobre bichinhos em extinção.)
Foi mais ou menos nessa época, e também por influência da Sandra -que me deu o meu primeiro software de xadrez- que o meu interesse de adolescência pelo jogo recebeu uma reanimação cardiorrespiratória básica; ou talvez o estado zumbi do meu jogo seja uma condenação cármica maior.
Gosto muito de xadrez, jogo bastante (sempre on-line: eis o curitibanismo), mas o jogo para mim continua sendo uma fundamental lição de humildade. Eu sou péssimo. Não evoluo. Aprendo a fracassar. A fracassar de novo. A fracassar melhor, como diria Beckett (outro enxadrista, aliás).
E nada me "humilifica" mais do que jogar com o Cristovão. Ele é bom. Bom tipo semiprofissional. Ele é sério. (E não se engane o não jogador. Quem esteve lá sabe. Xadrez é violência, é destruição. E mesmo com as melhores simpatias que ele sempre demonstra, o que o Cristovão faz comigo no tabuleiro é nível UFC.)
A gente joga hoje on-line (estilo correspondência, onde cada um dá um lance e volta no dia seguinte para conferir a resposta), já jogou na casa dele, com relógio (que é como UFC com alguém soprando baboseiras no teu ouvido), mas começamos mesmo jogando no nosso gabinete, no 11º andar do edifício d. Pedro 1º, do conjunto da Reitoria da UFPR. Sala 1104.
Lá o esquema já era o da correspondência. Eu tinha levado um tabuleirinho tipo caixa, de fechar, e cada um dava um lance, anotava numa planilha para compensar qualquer desacerto promovido pelo pessoal da limpeza e voltava dias depois para "reresponder". Era divertido. E andava bem.
Aí um dia chegou uma data de aniversário do Cristovão. Fui lá e, com o recém-adquirido salário de doutor, em 2006, comprei um tabuleiro mais bonito, com mais cara de sério, para pôr na minha mesa. Cheguei na universidade, troquei os tabuleiros, repondo as peças na posição correspondente do jogo em curso naquele momento. E dei meu lance, claro.
Dia seguinte, todo animadinho, pergunto ao Cristovão: "E você viu o jogo, daí?". E ele, claro, tem na memória a posição completa, o meu lance mais recente, a resposta dele e as possíveis alternativas de ambos.
"Mas... o tabuleiro novo? Viu lá?" (Curitibano adora terminar frase com advérbio.) Não. Simplesmente não tinha registrado.
O lance, sim. A modificação das relações sempre instáveis entre os valores relativos das peças em suas posições temporárias ele, claro, notou e avaliou (Ele viria a ganhar essa partida, como todas as outras.) Mas a "notação", os elementos concretos, esses não são relevantes.
Bons jogadores de xadrez são capazes de jogar sem um tabuleiro e peças. O mapa, sabemos, não é o território. Os peões não são o jogo.
Marcel Proust dizia que, como das pessoas só entendemos o que dela representamos para nós, é da sabedoria do romance eliminar o inacessível (as tais "pessoas reais") e instaurar representações que tenham de se sustentar plenamente. Formas.
Não sei se o que fez do Cristovão um jogador de xadrez astronomicamente melhor que eu não pode ter a ver com o que faz dele um escritor (e dos bons) e de mim um tradutor (um "reescritor" dos livros dos criadores).
Só sei que, desde que ele saiu da universidade e se mocozou no apartamento que vejo da janela, o tabuleiro está parado em posição de sentido em cima da minha mesa, esperando que algum aluno se intimide com o meu bullying ou fique com pena do meu "patetiquismo" e abra um jogo.
Eu ofereço as brancas, tá?
E vou perder. Não se preocupe.
ARQUIVO ABERTO
memórias que viram histórias
Curitiba, 2006
Quinze anos atrás, no entanto, quando virei professor da Universidade Federal do Paraná e acabamos dividindo um gabinete, minha relação com ele era só de leitor. Foi quando vim morar o condomínio Leblon, quando juntei a biblioteca (expressão da Beth, mulher do Cristovão) com a da Sandra (Stroparo, outra colega de departamento), que a gente passou a conversar mais e a "se frequentar". (A vida social dos curitibanos, mesmo dos adotivos, como Cristovão, podia ser tema de documentário, como aqueles sobre bichinhos em extinção.)
Foi mais ou menos nessa época, e também por influência da Sandra -que me deu o meu primeiro software de xadrez- que o meu interesse de adolescência pelo jogo recebeu uma reanimação cardiorrespiratória básica; ou talvez o estado zumbi do meu jogo seja uma condenação cármica maior.
Gosto muito de xadrez, jogo bastante (sempre on-line: eis o curitibanismo), mas o jogo para mim continua sendo uma fundamental lição de humildade. Eu sou péssimo. Não evoluo. Aprendo a fracassar. A fracassar de novo. A fracassar melhor, como diria Beckett (outro enxadrista, aliás).
E nada me "humilifica" mais do que jogar com o Cristovão. Ele é bom. Bom tipo semiprofissional. Ele é sério. (E não se engane o não jogador. Quem esteve lá sabe. Xadrez é violência, é destruição. E mesmo com as melhores simpatias que ele sempre demonstra, o que o Cristovão faz comigo no tabuleiro é nível UFC.)
A gente joga hoje on-line (estilo correspondência, onde cada um dá um lance e volta no dia seguinte para conferir a resposta), já jogou na casa dele, com relógio (que é como UFC com alguém soprando baboseiras no teu ouvido), mas começamos mesmo jogando no nosso gabinete, no 11º andar do edifício d. Pedro 1º, do conjunto da Reitoria da UFPR. Sala 1104.
Lá o esquema já era o da correspondência. Eu tinha levado um tabuleirinho tipo caixa, de fechar, e cada um dava um lance, anotava numa planilha para compensar qualquer desacerto promovido pelo pessoal da limpeza e voltava dias depois para "reresponder". Era divertido. E andava bem.
Aí um dia chegou uma data de aniversário do Cristovão. Fui lá e, com o recém-adquirido salário de doutor, em 2006, comprei um tabuleiro mais bonito, com mais cara de sério, para pôr na minha mesa. Cheguei na universidade, troquei os tabuleiros, repondo as peças na posição correspondente do jogo em curso naquele momento. E dei meu lance, claro.
Dia seguinte, todo animadinho, pergunto ao Cristovão: "E você viu o jogo, daí?". E ele, claro, tem na memória a posição completa, o meu lance mais recente, a resposta dele e as possíveis alternativas de ambos.
"Mas... o tabuleiro novo? Viu lá?" (Curitibano adora terminar frase com advérbio.) Não. Simplesmente não tinha registrado.
O lance, sim. A modificação das relações sempre instáveis entre os valores relativos das peças em suas posições temporárias ele, claro, notou e avaliou (Ele viria a ganhar essa partida, como todas as outras.) Mas a "notação", os elementos concretos, esses não são relevantes.
Bons jogadores de xadrez são capazes de jogar sem um tabuleiro e peças. O mapa, sabemos, não é o território. Os peões não são o jogo.
Marcel Proust dizia que, como das pessoas só entendemos o que dela representamos para nós, é da sabedoria do romance eliminar o inacessível (as tais "pessoas reais") e instaurar representações que tenham de se sustentar plenamente. Formas.
Não sei se o que fez do Cristovão um jogador de xadrez astronomicamente melhor que eu não pode ter a ver com o que faz dele um escritor (e dos bons) e de mim um tradutor (um "reescritor" dos livros dos criadores).
Só sei que, desde que ele saiu da universidade e se mocozou no apartamento que vejo da janela, o tabuleiro está parado em posição de sentido em cima da minha mesa, esperando que algum aluno se intimide com o meu bullying ou fique com pena do meu "patetiquismo" e abra um jogo.
Eu ofereço as brancas, tá?
E vou perder. Não se preocupe.
Sexo + DSK = notícia - Serge Kaganski
folha de são paulo
SERGE KAGANSKITRADUÇÃO PAULO WERNECKO affaire Marcela Iacub-Dominique Strauss-Kahn acaba de agitar a esfera midiático-cultural da França. Jurista, ensaísta e cronista de origem argentina, Iacub volta e meia perturba por seu feminismo paradoxal e suas críticas à criminalização da sexualidade, na fronteira da defesa do estupro. Ela acaba de publicar "Belle et Bête" (Stock), relato de sua relação de sete meses com DSK, lançado de modo espetacular na capa da revista "Le Nouvel Observateur", que publicou trechos duas semanas antes da chegada às livrarias.
Em 2011, como se sabe, o então presidente do Fundo Monetário Internacional (FMI) foi acusado de estupro por uma camareira de um hotel em Nova York. O escândalo mundial minou sua promissora candidatura à presidência da França pelo Partido Socialista.
Muitas perguntas foram feitas quando o livro saiu. Sobre a qualidade literária. Sobre o lançamento midiático que instrumentalizou DSK. Sobre as fronteiras entre literatura e comércio, jornalismo e sensacionalismo, informação e respeito pela vida privada.
Em meio à tempestade no copo d'água, cada um foi um pouco hipócrita: Iacub e o "Nouvel Obs", que invocam a literatura enquanto sabem que DSK vende; DSK, que apregoa seu desgosto e apela à deontologia; o público, que denuncia nas redes sociais um livro "nojento" sem nem ter lido. Oscilando entre realidade e fantasias, "Belle et Bête" não é nem escandaloso nem genial. Mas o burburinho do lançamento se parece com o cinismo mercantil de nossa época.
CINEMA SINGULAR
Apresentado no Festival de Berlim,"Camille Claudel 1915" é o filme francês mais forte e atípico do momento. Lembramos que a escultora e irmã do escritor Paul Claudel já foi tema de uma cinebiografia com Isabelle Adjani e Gérard Dépardieu uns 20 anos atrás. O diretor Bruno Dumont escolheu mostrar algumas semanas da vida de Camille Claudel no asilo psiquiátrico onde foi erroneamente internada durante longos anos.
Dumont fez o filme num asilo de verdade, com doentes verdadeiros e enfermeiras reais, em meio aos quais Juliette Binoche encarna Camille Claudel. O filme mostra a solidão, o silêncio, o vazio de uma existência entravada. Dumont filma com a mesma atenção, a mesma duração e as mesmas escalas de plano o rosto de Binoche e os dos internos verdadeiros: confronto esclarecedor entre o rosto de uma estrela sem maquiagem e os de figuras monstruosas que acabam ganhando certa beleza pela potência do olhar do autor. Uma experiência cinematográfica singular e fortíssima.
POP MADE IN FRANCE
Os meandros da história do rock ecoam às vezes estranhas coincidências. Enquanto acaba de morrer o cantor mítico do rock francês Daniel Darc, de obediência pós-punk, figura "destroy" do sombrio tecnopop dos anos 80, um de seus filhos estéticos acaba de lançar seu primeiro álbum e de entrar no clube das promessas da canção francesa: o nome é Lescop (esse é também o título de seu disco).
Muito influenciado pela "cold wave", Lescop se situa na encruzilhada de cantores de texto como Murat, Miossec ou Dominique A, e de mitos do rock anglo-saxão como Joy Division, que marcou sua educação musical e sua atitude. Encarna perfeitamente a fusão pós-moderna entre canção francesa tradicional pouco exportável e o pop universal, dois universos que, por muito tempo, foram incomunicáveis entre si e que se aproximaram há uns 30 anos, graças a personalidades como Daniel Darc. O ciclo se fecha.
CINEMA POLÍTICO
Num registro muito diferente de "Camille Claudel 1915", sai esses dias "Notre Monde", documentário de Thomas Lacoste que está no cruzamento do cinema, da política e das ideias. Reunindo cerca de 30 intelectuais de prestígio (Luc Boltanski, Etienne Balibar, Jean-Luc Nancy, Françoise Héritier...), que representam diversas disciplinas e correntes de pensamento, Lacoste os filmou analisando o mau estado de nosso mundo e desenvolvendo propostas para melhorá-lo.
Cada um fala de seu campo de especialização, mas o filme articula todas essas vozes e mostra que a ideologia liberal dominante atualmente destrói todos os setores de nossas sociedades. Isso poderia ser deprimente, mas a associação de todas essas cabeças pensantes e falantes dá esperança e vontade de se mobilizar. O trailer, em francês, pode ser visto em http://bit.ly/notremonde.
DIÁRIO DE PARIS
o mapa da cultura
Sexo + DSK = notícia
O livro da ex-amante, a privacidade e a mídia
Em 2011, como se sabe, o então presidente do Fundo Monetário Internacional (FMI) foi acusado de estupro por uma camareira de um hotel em Nova York. O escândalo mundial minou sua promissora candidatura à presidência da França pelo Partido Socialista.
Muitas perguntas foram feitas quando o livro saiu. Sobre a qualidade literária. Sobre o lançamento midiático que instrumentalizou DSK. Sobre as fronteiras entre literatura e comércio, jornalismo e sensacionalismo, informação e respeito pela vida privada.
Em meio à tempestade no copo d'água, cada um foi um pouco hipócrita: Iacub e o "Nouvel Obs", que invocam a literatura enquanto sabem que DSK vende; DSK, que apregoa seu desgosto e apela à deontologia; o público, que denuncia nas redes sociais um livro "nojento" sem nem ter lido. Oscilando entre realidade e fantasias, "Belle et Bête" não é nem escandaloso nem genial. Mas o burburinho do lançamento se parece com o cinismo mercantil de nossa época.
CINEMA SINGULAR
Apresentado no Festival de Berlim,"Camille Claudel 1915" é o filme francês mais forte e atípico do momento. Lembramos que a escultora e irmã do escritor Paul Claudel já foi tema de uma cinebiografia com Isabelle Adjani e Gérard Dépardieu uns 20 anos atrás. O diretor Bruno Dumont escolheu mostrar algumas semanas da vida de Camille Claudel no asilo psiquiátrico onde foi erroneamente internada durante longos anos.
Dumont fez o filme num asilo de verdade, com doentes verdadeiros e enfermeiras reais, em meio aos quais Juliette Binoche encarna Camille Claudel. O filme mostra a solidão, o silêncio, o vazio de uma existência entravada. Dumont filma com a mesma atenção, a mesma duração e as mesmas escalas de plano o rosto de Binoche e os dos internos verdadeiros: confronto esclarecedor entre o rosto de uma estrela sem maquiagem e os de figuras monstruosas que acabam ganhando certa beleza pela potência do olhar do autor. Uma experiência cinematográfica singular e fortíssima.
POP MADE IN FRANCE
Os meandros da história do rock ecoam às vezes estranhas coincidências. Enquanto acaba de morrer o cantor mítico do rock francês Daniel Darc, de obediência pós-punk, figura "destroy" do sombrio tecnopop dos anos 80, um de seus filhos estéticos acaba de lançar seu primeiro álbum e de entrar no clube das promessas da canção francesa: o nome é Lescop (esse é também o título de seu disco).
Muito influenciado pela "cold wave", Lescop se situa na encruzilhada de cantores de texto como Murat, Miossec ou Dominique A, e de mitos do rock anglo-saxão como Joy Division, que marcou sua educação musical e sua atitude. Encarna perfeitamente a fusão pós-moderna entre canção francesa tradicional pouco exportável e o pop universal, dois universos que, por muito tempo, foram incomunicáveis entre si e que se aproximaram há uns 30 anos, graças a personalidades como Daniel Darc. O ciclo se fecha.
CINEMA POLÍTICO
Num registro muito diferente de "Camille Claudel 1915", sai esses dias "Notre Monde", documentário de Thomas Lacoste que está no cruzamento do cinema, da política e das ideias. Reunindo cerca de 30 intelectuais de prestígio (Luc Boltanski, Etienne Balibar, Jean-Luc Nancy, Françoise Héritier...), que representam diversas disciplinas e correntes de pensamento, Lacoste os filmou analisando o mau estado de nosso mundo e desenvolvendo propostas para melhorá-lo.
Cada um fala de seu campo de especialização, mas o filme articula todas essas vozes e mostra que a ideologia liberal dominante atualmente destrói todos os setores de nossas sociedades. Isso poderia ser deprimente, mas a associação de todas essas cabeças pensantes e falantes dá esperança e vontade de se mobilizar. O trailer, em francês, pode ser visto em http://bit.ly/notremonde.
Notas sobre a violência - De antropólogos e outras tribos ferozes
folha de são paulo
MARCELO LEITERESUMO Antropólogo Napoleon Chagnon retoma em novo livro teoria sobre agressividade ianomâmi e ataca adversários da sociobiologia. Jared Diamond escreve obra de bases semelhantes, mas mais generosa com 'primitivos', aproximando-se de adversários de Chagnon, como Manuela Carneiro da Cunha, que lança coletânea.
É preciso ter estômago forte para digerir a narrativa de um antropólogo que escolhe iniciar o relato de seu primeiro dia de campo entre os ianomâmis -meio século depois- com a frase: "Nunca antes tinha visto tanto ranho verde". Não é a antropologia, porém, a disciplina que ensina a combinar o máximo de disciplina com o mínimo de conforto em benefício do entendimento do homem?
Leia-se então com dose generosa de bonomia antropológica a obra mais recente do americano Napoleon Chagnon, "Noble Savages - My Life among two Dangerous Tribes - The Yanomamö and the Anthropologists" [Simon & Schuster, 531 págs., R$ 87,50]. Em desagravo, que seja, porque Chagnon pagou um preço alto demais por sua crença nas explicações ultradarwinistas do comportamento, cuja matriz -a natureza humana- acredita ter desvendado nas selvas do Orinoco.
O estudioso americano dedicou pelo menos duas décadas de sua vida a longas permanências em terras ianomâmis, quase sempre na Venezuela (com desastradas incursões também do lado brasileiro). As três seguintes ele ocupou em defesa da carreira e da reputação quase arruinadas por dois outros livros: "O Povo Feroz" (1968), trabalho acadêmico de sua própria lavra, e "Trevas no Eldorado", um panfleto do jornalista Patrick Tierney (2000).
Os que desconhecem a crônica dessa guerra entre os clãs cultural e biológico da antropologia encontrarão um resumo devastador das acusações mútuas no documentário "Os Segredos da Tribo", de José Padilha. Não se recomenda o consumo de pipoca na sessão de barbaridades que a fita apresenta.
O povo feroz do título de Chagnon são os ianomâmis. Sua caracterização pelo antropólogo como uma etnia violenta, de homens "maliciosos, agressivos e intimidadores", que acumulam homicídios para obter mais mulheres e maior sucesso reprodutivo, despertou a ira dos antropólogos culturalistas.
Primeiro, Chagnon foi acusado de distorcer a imagem do grupo e, assim, facilitar sua dizimação por brancos dos dois lados da fronteira. Depois, foi denunciado por Tierney como genocida, pois teria -intencional ou negligentemente, sob a tutela do médico americano James V. Neel- contribuído para uma epidemia de sarampo que matou centenas de índios.
BOM SELVAGEM "Noble Savages" ("bons selvagens") é um acerto de contas com as duas tribos que infernizaram sua vida. A partir da descrição para o público não especializado de seu convívio de cinco anos com os ianomâmis, Chagnon retoma sua conclusão de que o "bom selvagem" concebido por Rousseau é um mito politicamente correto e que só há uma resposta biológica (evolucionista) -e simploriamente hobbesiana- para a questão de por que seres humanos são sociais: a luta de todos contra todos para aumentar a própria prole (ou pôr mais cópias dos próprios genes no mundo, na vulgata sociobiológica).
Não faltam páginas desairosas para os ianomâmis no livro. "Olhei para cima e arfei, em choque, quando vi uma dúzia de homens corpulentos, nus, suados e pavorosos nos encarando por trás dos caniços de suas setas apontadas!" -conta sobre a primeira visita a uma casa coletiva dos índios.
"Imensos rolos de tabaco verde estavam enfiados entre os dentes e os lábios inferiores, tornando sua aparência ainda mais pavorosa. Veios de ranho verde escuro pingavam ou pendiam de suas narinas -tão longos que se desprendiam de seus queixos, caíam sobre os músculos peitorais e escorriam preguiçosamente sobre seus ventres, mesclando-se com a pintura vermelha e o suor."
Chagnon também não economiza relatos sobre tentativas mal sucedidas de engodo dos ianomâmis contra ele. Sempre eficazes, por outro lado, eram seus próprios ardis para levá-los a ceder amostras de sangue (para Neel) e a revelar nomes de ancestrais mortos -um tabu- para rechear suas genealogias e estatísticas. As mesmas informações, pagas com machados, facas e panelas de metal, que lhe permitiriam afirmar, depois, serem os homens com mais homicídios nas costas também os de prole mais numerosa.
Muito antes das acusações de Tierney, as conclusões sociobiológicas e os métodos traficantes de Chagnon já vinham sendo questionados por seus pares na comunidade antropológica. Até a correlação estatística entre ferocidade e fertilidade masculina, formulada num famigerado artigo de 1988 para a revista acadêmica "Science", teve seus dados postos em dúvida (o autor foi acusado de excluir da amostra aqueles pais que já haviam sido mortos por vingança, portanto sem meios de multiplicar descendência).
Os antropólogos culturais, refratários à moldura biológica em que Chagnon queria enquadrar o painel exuberante das culturas, já estavam no seu encalço. Nada se compara, porém, com a virulência do ataque de Tierney. Assim que um capítulo do livro foi publicado na revista "New Yorker", em outubro de 2000, a Associação Antropológica Americana entrou na briga -do lado dos culturalistas. Foi montado um comitê de investigação, que acabou por inocentar o médico Neel e descartar a epidemia intencional, mas recriminou Chagnon por desvios éticos.
O caso teve enorme repercussão na imprensa mundial, brasileira inclusive. Contudo, quando a obra do "jornalista investigativo" Tierney e os próprios investigadores da AAA passaram a ser investigados, a começar pela historiadora da ciência Susan Lindee, o vento virou.
Forçada por um referendo entre seus membros, a associação renegaria o relatório. As acusações de Tierney não paravam de pé, como reconstitui com farta documentação um ensaio demolidor da também historiadora Alice Dreger publicado em 2011 no periódico acadêmico "Human Nature", sob o título "Darkness's descent on the American Anthropological Association. A cautionary tale" (trevas sobre a Associação Antropológica Americana - uma fábula moral; leia em bit.ly/adreger).
Dreger puxa vários fios da teia de perseguição a Chagnon. Levanta a suspeita, intrigante, de que a cruzada de Tierney pode ter ocorrido sob o patrocínio da Igreja Católica, mais especificamente da ordem de padres salesianos, que já mantinha missões junto aos ianomâmis da Venezuela quando o antropólogo por lá baixou.
Após alguns meses de convívio e cooperação, cientista e religiosos se estranharam. Na versão fantástica narrada em "Noble Savages", isso ocorreu depois de um hierarca pedir a Chagnon ajuda para matar um padre amasiado com índia. Na passagem do livro que mais se avizinha do estilo de Tierney, o antropólogo também acusa os salesianos de distribuir espingardas cartucheiras entre os índios para conquistar seu favor.
A inconsistência mais relevante da obra, porém, não decorre do ânimo retaliatório, e sim da pretensão de ter localizado entre os ianomâmis as nascentes da agressividade que supõe inerente à natureza humana. A antropóloga Elizabeth Povinelli assinalou, numa resenha escaldante de "Noble Savages" para o "New York Times", que a tese se assenta sobre a premissa falaciosa de que os ianomâmis sejam relíquias de uma infância neolítica da humanidade.
FÓSSEIS Desde esse ponto de vista, compreende-se melhor o esforço retórico de Chagnon em degradar os ianomâmis, acentuando nas suas descrições uma animalidade que serve para relocar sua cultura na vizinhança da biologia. Ora, não há básica empírica nenhuma para afirmar que sociedades "primitivas" como a dos ianomâmis se mantiveram à margem da história, fósseis de um passado inaugural da espécie humana.
Como lembra Manuela Carneiro da Cunha -que presidia a Associação Brasileira de Antropologia quando esta cerrou fileiras contra Chagnon- na coletânea de ensaios "Índios no Brasil - História, Direitos e Cidadania" [Claro Enigma, 160 págs., R$ 29,50], essa é uma visão originária do século 19, que atribui "à natureza e à fatalidade de suas leis o que é produto de política e práticas humanas, [...] consoladoras para todos à exceção de suas vítimas".
Os ianomâmis, por exemplo, só permaneceram mais ou menos isolados (na realidade, longas redes de contatos já lhes garantiam acesso a artefatos de metal) porque suas terras montanhosas não interessavam a colonizador algum.
A perspectiva adotada por Chagnon -um engenheiro convertido para a antropologia- faz tábula rasa de tudo que há de peculiar no modo de vida ianomâmi. Por que cargas d'água esses índios cremam seus mortos, moem os ossos calcinados e ingerem as cinzas com um mingau de banana? É esse tipo de manifestação simbólica que a antropologia cultural se esforça por sistematizar e elucidar, mas que a obra de Chagnon relega à penumbra dos detalhes irrelevantes para a "natureza humana".
Ótica semelhante anima o último best-seller de outro adepto declarado da sociobiologia (rebatizada psicologia evolucionista), Jared Diamond, mas com resultados muito diversos, se não opostos. Em "The World until Yesterday - What Can We Learn from Traditional Societies?" [Viking, 512 págs., R$ 96,90], Diamond acredita piamente ter aberto uma janela para o passado nas suas décadas de visitas à Nova Guiné para estudar pássaros.
A ilha, fervilhante com centenas de tribos e línguas em contato e conflito, constitui um continente cultural descoberto como tal por ocidentais só nas primeiras décadas do século 20. Fornece a Diamond, portanto, o equivalente dos ianomâmis para Chagnon, em matéria de isolamento e primitivismo.
As diferenças entre esses dois generalizadores prodigiosos, contudo, salta já do título de Diamond. Ao contrário de Chagnon, ele está aberto -mais que isso, interessado- a aprender algo com os nativos, e não só sobre eles. São muitas as lições úteis que o observador de pássaros e homens extrai para o aperfeiçoamento marginal do indubitavelmente superior modo de vida ocidental: ingerir menos sal, aleitar bebês à vontade até os três anos, dar educação bilíngue às crianças, fazer refeições lentamente com amigos...
Até das ameaças constantes da natureza e do estado de guerra crônica entre os primitivos Diamond retira um ensinamento, centro de gravidade do livro, que chama de "paranoia construtiva": o estado de vigilância permanente para os muitos perigos que a vida oferece aos homens. Depois de embasbacar multidões com as generalizações audazes de "Armas, Germes e Aço" (livro pelo qual ganhou o Pulitzer em 1998), Diamond corteja com leveza o gênero da autoajuda e compila um volume de leitura bem mais amena que
"Noble Savages". Os ilhéus são feios e sujos como os ianomâmis, mas simpáticos e sábios.
Já a paranoia de Chagnon, se cabe falar assim, é corrosiva. Nos termos da controvérsia que animou o Brasil escravizador de índios nos séculos 18 e 19, relatada por Manuela Carneiro da Cunha, eles podem ser encarados como cães, canibais e ferozes, ou como homens, diferentes e por isso exemplares de capacidade adaptativa e perfectibilidade. É uma questão de escolha, ou de ponto de vista.
Como diz a antropóloga, repetindo o que ouviu em conferência de Claude Lévi-Strauss, a sociodiversidade pode ser tão preciosa quanto a biodiversidade: "Creio, com efeito, que ela constitui essa reserva de achados na qual as futuras gerações poderão encontrar exemplos -e quem sabe novos pontos de partida- de processos e sínteses sociais já postos à prova".
Em 2012, Napoleon Chagnon foi eleito para a prestigiada Academia Nacional de Ciências (NAS) dos Estados Unidos. Ato contínuo, em protesto, o antropólogo Marshall Sahlins -que em 2000 se engajara na campanha contra ele- renunciou à sua cadeira na NAS.
Manifesto de 17 antropólogos que trabalham com ianomâmis deblaterou mais uma vez contra a noção de "povo feroz" reiterada no novo livro, que poderia ser usada por governos para prejudicar a etnia. Uma nota do líder ianomâmi David Kopenawa sobre a obra aponta as guerras dos brancos como muito mais ferozes que as de seu povo -uma observação antropologicamente perspicaz, ao menos no que respeita às tribos dos culturalistas e dos sociobiólogos.
É preciso ter estômago forte para digerir a narrativa de um antropólogo que escolhe iniciar o relato de seu primeiro dia de campo entre os ianomâmis -meio século depois- com a frase: "Nunca antes tinha visto tanto ranho verde". Não é a antropologia, porém, a disciplina que ensina a combinar o máximo de disciplina com o mínimo de conforto em benefício do entendimento do homem?
Leia-se então com dose generosa de bonomia antropológica a obra mais recente do americano Napoleon Chagnon, "Noble Savages - My Life among two Dangerous Tribes - The Yanomamö and the Anthropologists" [Simon & Schuster, 531 págs., R$ 87,50]. Em desagravo, que seja, porque Chagnon pagou um preço alto demais por sua crença nas explicações ultradarwinistas do comportamento, cuja matriz -a natureza humana- acredita ter desvendado nas selvas do Orinoco.
O estudioso americano dedicou pelo menos duas décadas de sua vida a longas permanências em terras ianomâmis, quase sempre na Venezuela (com desastradas incursões também do lado brasileiro). As três seguintes ele ocupou em defesa da carreira e da reputação quase arruinadas por dois outros livros: "O Povo Feroz" (1968), trabalho acadêmico de sua própria lavra, e "Trevas no Eldorado", um panfleto do jornalista Patrick Tierney (2000).
Os que desconhecem a crônica dessa guerra entre os clãs cultural e biológico da antropologia encontrarão um resumo devastador das acusações mútuas no documentário "Os Segredos da Tribo", de José Padilha. Não se recomenda o consumo de pipoca na sessão de barbaridades que a fita apresenta.
O povo feroz do título de Chagnon são os ianomâmis. Sua caracterização pelo antropólogo como uma etnia violenta, de homens "maliciosos, agressivos e intimidadores", que acumulam homicídios para obter mais mulheres e maior sucesso reprodutivo, despertou a ira dos antropólogos culturalistas.
Primeiro, Chagnon foi acusado de distorcer a imagem do grupo e, assim, facilitar sua dizimação por brancos dos dois lados da fronteira. Depois, foi denunciado por Tierney como genocida, pois teria -intencional ou negligentemente, sob a tutela do médico americano James V. Neel- contribuído para uma epidemia de sarampo que matou centenas de índios.
BOM SELVAGEM "Noble Savages" ("bons selvagens") é um acerto de contas com as duas tribos que infernizaram sua vida. A partir da descrição para o público não especializado de seu convívio de cinco anos com os ianomâmis, Chagnon retoma sua conclusão de que o "bom selvagem" concebido por Rousseau é um mito politicamente correto e que só há uma resposta biológica (evolucionista) -e simploriamente hobbesiana- para a questão de por que seres humanos são sociais: a luta de todos contra todos para aumentar a própria prole (ou pôr mais cópias dos próprios genes no mundo, na vulgata sociobiológica).
Não faltam páginas desairosas para os ianomâmis no livro. "Olhei para cima e arfei, em choque, quando vi uma dúzia de homens corpulentos, nus, suados e pavorosos nos encarando por trás dos caniços de suas setas apontadas!" -conta sobre a primeira visita a uma casa coletiva dos índios.
"Imensos rolos de tabaco verde estavam enfiados entre os dentes e os lábios inferiores, tornando sua aparência ainda mais pavorosa. Veios de ranho verde escuro pingavam ou pendiam de suas narinas -tão longos que se desprendiam de seus queixos, caíam sobre os músculos peitorais e escorriam preguiçosamente sobre seus ventres, mesclando-se com a pintura vermelha e o suor."
Chagnon também não economiza relatos sobre tentativas mal sucedidas de engodo dos ianomâmis contra ele. Sempre eficazes, por outro lado, eram seus próprios ardis para levá-los a ceder amostras de sangue (para Neel) e a revelar nomes de ancestrais mortos -um tabu- para rechear suas genealogias e estatísticas. As mesmas informações, pagas com machados, facas e panelas de metal, que lhe permitiriam afirmar, depois, serem os homens com mais homicídios nas costas também os de prole mais numerosa.
Muito antes das acusações de Tierney, as conclusões sociobiológicas e os métodos traficantes de Chagnon já vinham sendo questionados por seus pares na comunidade antropológica. Até a correlação estatística entre ferocidade e fertilidade masculina, formulada num famigerado artigo de 1988 para a revista acadêmica "Science", teve seus dados postos em dúvida (o autor foi acusado de excluir da amostra aqueles pais que já haviam sido mortos por vingança, portanto sem meios de multiplicar descendência).
Os antropólogos culturais, refratários à moldura biológica em que Chagnon queria enquadrar o painel exuberante das culturas, já estavam no seu encalço. Nada se compara, porém, com a virulência do ataque de Tierney. Assim que um capítulo do livro foi publicado na revista "New Yorker", em outubro de 2000, a Associação Antropológica Americana entrou na briga -do lado dos culturalistas. Foi montado um comitê de investigação, que acabou por inocentar o médico Neel e descartar a epidemia intencional, mas recriminou Chagnon por desvios éticos.
O caso teve enorme repercussão na imprensa mundial, brasileira inclusive. Contudo, quando a obra do "jornalista investigativo" Tierney e os próprios investigadores da AAA passaram a ser investigados, a começar pela historiadora da ciência Susan Lindee, o vento virou.
Forçada por um referendo entre seus membros, a associação renegaria o relatório. As acusações de Tierney não paravam de pé, como reconstitui com farta documentação um ensaio demolidor da também historiadora Alice Dreger publicado em 2011 no periódico acadêmico "Human Nature", sob o título "Darkness's descent on the American Anthropological Association. A cautionary tale" (trevas sobre a Associação Antropológica Americana - uma fábula moral; leia em bit.ly/adreger).
Dreger puxa vários fios da teia de perseguição a Chagnon. Levanta a suspeita, intrigante, de que a cruzada de Tierney pode ter ocorrido sob o patrocínio da Igreja Católica, mais especificamente da ordem de padres salesianos, que já mantinha missões junto aos ianomâmis da Venezuela quando o antropólogo por lá baixou.
Após alguns meses de convívio e cooperação, cientista e religiosos se estranharam. Na versão fantástica narrada em "Noble Savages", isso ocorreu depois de um hierarca pedir a Chagnon ajuda para matar um padre amasiado com índia. Na passagem do livro que mais se avizinha do estilo de Tierney, o antropólogo também acusa os salesianos de distribuir espingardas cartucheiras entre os índios para conquistar seu favor.
A inconsistência mais relevante da obra, porém, não decorre do ânimo retaliatório, e sim da pretensão de ter localizado entre os ianomâmis as nascentes da agressividade que supõe inerente à natureza humana. A antropóloga Elizabeth Povinelli assinalou, numa resenha escaldante de "Noble Savages" para o "New York Times", que a tese se assenta sobre a premissa falaciosa de que os ianomâmis sejam relíquias de uma infância neolítica da humanidade.
FÓSSEIS Desde esse ponto de vista, compreende-se melhor o esforço retórico de Chagnon em degradar os ianomâmis, acentuando nas suas descrições uma animalidade que serve para relocar sua cultura na vizinhança da biologia. Ora, não há básica empírica nenhuma para afirmar que sociedades "primitivas" como a dos ianomâmis se mantiveram à margem da história, fósseis de um passado inaugural da espécie humana.
Como lembra Manuela Carneiro da Cunha -que presidia a Associação Brasileira de Antropologia quando esta cerrou fileiras contra Chagnon- na coletânea de ensaios "Índios no Brasil - História, Direitos e Cidadania" [Claro Enigma, 160 págs., R$ 29,50], essa é uma visão originária do século 19, que atribui "à natureza e à fatalidade de suas leis o que é produto de política e práticas humanas, [...] consoladoras para todos à exceção de suas vítimas".
Os ianomâmis, por exemplo, só permaneceram mais ou menos isolados (na realidade, longas redes de contatos já lhes garantiam acesso a artefatos de metal) porque suas terras montanhosas não interessavam a colonizador algum.
A perspectiva adotada por Chagnon -um engenheiro convertido para a antropologia- faz tábula rasa de tudo que há de peculiar no modo de vida ianomâmi. Por que cargas d'água esses índios cremam seus mortos, moem os ossos calcinados e ingerem as cinzas com um mingau de banana? É esse tipo de manifestação simbólica que a antropologia cultural se esforça por sistematizar e elucidar, mas que a obra de Chagnon relega à penumbra dos detalhes irrelevantes para a "natureza humana".
Ótica semelhante anima o último best-seller de outro adepto declarado da sociobiologia (rebatizada psicologia evolucionista), Jared Diamond, mas com resultados muito diversos, se não opostos. Em "The World until Yesterday - What Can We Learn from Traditional Societies?" [Viking, 512 págs., R$ 96,90], Diamond acredita piamente ter aberto uma janela para o passado nas suas décadas de visitas à Nova Guiné para estudar pássaros.
A ilha, fervilhante com centenas de tribos e línguas em contato e conflito, constitui um continente cultural descoberto como tal por ocidentais só nas primeiras décadas do século 20. Fornece a Diamond, portanto, o equivalente dos ianomâmis para Chagnon, em matéria de isolamento e primitivismo.
As diferenças entre esses dois generalizadores prodigiosos, contudo, salta já do título de Diamond. Ao contrário de Chagnon, ele está aberto -mais que isso, interessado- a aprender algo com os nativos, e não só sobre eles. São muitas as lições úteis que o observador de pássaros e homens extrai para o aperfeiçoamento marginal do indubitavelmente superior modo de vida ocidental: ingerir menos sal, aleitar bebês à vontade até os três anos, dar educação bilíngue às crianças, fazer refeições lentamente com amigos...
Até das ameaças constantes da natureza e do estado de guerra crônica entre os primitivos Diamond retira um ensinamento, centro de gravidade do livro, que chama de "paranoia construtiva": o estado de vigilância permanente para os muitos perigos que a vida oferece aos homens. Depois de embasbacar multidões com as generalizações audazes de "Armas, Germes e Aço" (livro pelo qual ganhou o Pulitzer em 1998), Diamond corteja com leveza o gênero da autoajuda e compila um volume de leitura bem mais amena que
"Noble Savages". Os ilhéus são feios e sujos como os ianomâmis, mas simpáticos e sábios.
Já a paranoia de Chagnon, se cabe falar assim, é corrosiva. Nos termos da controvérsia que animou o Brasil escravizador de índios nos séculos 18 e 19, relatada por Manuela Carneiro da Cunha, eles podem ser encarados como cães, canibais e ferozes, ou como homens, diferentes e por isso exemplares de capacidade adaptativa e perfectibilidade. É uma questão de escolha, ou de ponto de vista.
Como diz a antropóloga, repetindo o que ouviu em conferência de Claude Lévi-Strauss, a sociodiversidade pode ser tão preciosa quanto a biodiversidade: "Creio, com efeito, que ela constitui essa reserva de achados na qual as futuras gerações poderão encontrar exemplos -e quem sabe novos pontos de partida- de processos e sínteses sociais já postos à prova".
Manifesto de 17 antropólogos que trabalham com ianomâmis deblaterou mais uma vez contra a noção de "povo feroz" reiterada no novo livro, que poderia ser usada por governos para prejudicar a etnia. Uma nota do líder ianomâmi David Kopenawa sobre a obra aponta as guerras dos brancos como muito mais ferozes que as de seu povo -uma observação antropologicamente perspicaz, ao menos no que respeita às tribos dos culturalistas e dos sociobiólogos.
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