segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

CASAL NA ESQUINA - Joaquim Ferreira dos Santos



O Globo - 21/01/2013


O mundo passa ao seu redor,
branquelas da Noruega,
chinas da Conchichina,
mas ele esbraveja com a
mulher na língua universal
do barraco de casal


É uma esquina banal do Rio de Janeiro, mais precisamente a da Delfim Moreira com a João Lira, e lá está ele num domingo à tarde. Turistas do mundo inteiro passam ao lado, a gangue da bicicleta também, os biguás cruzam o céu em voo rasante. Nosso personagem nada vê.

Lá está o mais famoso prosador brasileiro das arruaças entre os sexos. O escritor capaz de desancar de modo vil o amor, esse coitado. Dependendo do que lhe tiver acontecido na cama da véspera, pode entronizá-lo, mas sem euforia, com angústia psicanalítica, no altar de mármore da mais linda catedral veneziana, grato por ter sido bafejado em idade tão provecta pela chegada de uma paixão madura.

Infelizmente, não é o que está acontecendo no front sentimental com o Especialista do Amor na esquina do Marina do Leblon, o mesmo hotel eternizado numa música da Marina Lima, aquela balada do quando ele se acende não é para nós dois. O Grande Pensador das Idiossincrasias da Paixão está brigando com a mulher, uma loura bem mais jovem, que a tudo ouve, rosto crispado, mas que resignadamente a nada vocifera

A música da Marina é um conselho para baixar a bola dos pretensiosos, um aviso de que o mundo não está nem aí para os dramas particulares. O casal parece cônscio disso. Deblatera-se como se tivesse ficado invisível, entregue à sua mútua raiva. A multidão também passa indiferente, mas tem sempre alguém que vê e imediatamente põe no jornal em letras garrafais: “O amor não toma jeito, fracassou de novo”.

Tem sempre alguém que já sentia o drama na carne, e agora, diante do Especialista publicamente envolvido pelo mesmo tormento, se aproveita da cena. Não é para tripudiar, mas para se sentir mais resignado e suportar o próprio sofrimento. “Definitivamente, o amor é um blefe”, sussurram as ondas do mar em frente.

O Dono do Verbo Sentimental, sempre escrevendo com a letra púrpura de quem foi aos mais profundos vinhedos da sabedoria para trazê-la à luz dos ignorantes, é PHD não só do pegapracapá amoroso, mas também da ciência de como lhe aplicar o veneno anti-histeria. “O amor já era”, tem dito. Articula como ninguém essas premissas subreptícias que vão aos desvãos rancorosos, às rimas pobres da desilusão do coração, aos colchetes e colchões dos amantes — mas em seguida apresenta a receita da cura.

Seus leitores sempre acharam que ele tinha a força de resolver os atropelos da carência infinita que é a busca amorosa. Demonstrava-se mestre na capacidade de chafurdar de cachecol na calhordice do amor que por acaso lhe pregasse mais uma peça — e, na revista da semana seguinte, contava como não entrar na mesma e dolorosa roubada.
Vã quimera.

Ele agora está batendo boca com a mulher no meio da rua, feito você e eu, e o amor vai lhe escapando do controle como esses touros mecânicos de parque de diversão. O amor, esse terreno baldio suburbano, a flor roxa, a flor do lodo sempre subindo e fedendo no coração do trouxa — o fracasso do amor está dando bandeira no Leblon.

Quem não desconfiava que amar é mico? Quem, mesmo assim, não insistia, pedindo mais uma dose do mesmo conhaque? Mais um pico que aplaque na veia a ansiedade dessa carência que nenhuma outra droga substitui?

A cena não saiu no Globo Online, a câmera da CET-Rio estava virada para um acidente logo adiante — mas tem sempre alguém que vê e publica no jornal do dia seguinte. Não como escárnio, mas cumplicidade. Como se este alguém passasse pelo casal discutindo na esquina e batesse gentil no ombro dos dois, sussurrasse com sinceridade um “guenta firme, estamos juntos, sei como é”.

Lá está o Homem Alfa Psicanalizado quase colérico na calçada do Hotel Marina do Leblon, nem aí se as luzes do sol das quatro horas da tarde estão ou não acesas para ele. O mundo passa ao seu redor, branquelas da Noruega, chinas da Conchichina, mulatas da Lapa, mas ele esbraveja com a mulher na língua universal do barraco de casal. Esqueceu Tomás de Aquino e todos os verbetes da razão e da prudência.

O Guru do Amor está cheio de mãos agitadas como se fosse um italiano do norte, cheio de disposição como se fosse um brasileiro qualquer que nunca tivesse lido a “Educação sentimental”, do Flaubert. A Lei Maria da Penha pode ser acionada a qualquer momento — e antes que a rádio patrulha chegue aqui agora, antes que Cupido peça para que o coloquem fora desse barraco, eis que o espaço do jornal se dá por findo, as luzes do Hotel Marina do Leblon se dão por apagadas, e a cena final fica para a próxima semana

André Conti

FOLHA DE SÃO PAULO

A crítica de jogos
O que se tem é muita opinião desconjuntada, press-releases mal disfarçados e histeria adolescente
No mês passado, a revista "Nintendo Power" publicou seu último número, depois de 222 edições. Há pelo menos dez anos as revistas de videogame perderam totalmente a importância, mas não deixa de ser um marco. Antes da internet, elas eram a única fonte de informação sobre lançamentos e rumores e um depositário de dicas, truques e guias. Quem pegou a saudosa "Ação Games" sabe do que estou falando.
Com os sites especializados cobrindo as notícias com agilidade, algumas revistas apostaram em análises mais longas para sobreviver. Por conta disso, ainda fazia sentido assinar, por exemplo, a "PC Gamer UK", que dedicava páginas e páginas a um jogo em suas resenhas minuciosas.
No fim, sobreviveram as publicações de nicho (como a excelente "Retro Gamer"), mas o grosso da crítica migrou para sites e blogs.
Crítica é modo de falar. O que se tem é muita opinião desconjuntada, press releases mal disfarçados e uma forte dose de histeria adolescente. Ninguém aceita e reproduz tão bem uma campanha de marketing quanto os grandes sites de jogos, como "Gamespot" e "IGN".
O problema é que a crítica de jogos, no sentido mais clássico, é relativamente recente (o ótimo livro "Extra Lives", de Tom Bissell, é de 2010, por exemplo). Não há parâmetros, apenas hordas de jogadores com graduação em jornalismo e muita opinião para dar.
Ocorre que, ao contrário da crítica literária, por exemplo, a crítica de jogos ainda é determinante para as vendas de uma produtora. Blogs e sites criados por amigos há dez anos hoje detêm um poder enorme sobre o mercado. Raras vezes esse crescimento em importância significou aumento de qualidade.
A resenha de jogos virou terreno dos especialistas, sempre sob um verniz técnico. O "IGN", por exemplo, até recentemente dava sua nota ao jogo a partir de uma média entre a qualidade do som, dos gráficos, da jogabilidade etc.
Que os jogos recebam notas já diz muito sobre a qualidade das resenhas. Dividi-los em aspectos técnicos é o mesmo que avaliar um filme por seus movimentos de câmera e engenharia de som, como se houvesse um conhecimento científico que suplantasse uma análise "leiga", em termos mais gerais.
Claro que jogos não são filmes. É preciso dizer ao leitor não apenas do que se trata aquele título mas também como ele é jogado. Ao contrário do cinema, cada gênero tem mecânicas próprias, mecânicas que também vão variar de jogo para jogo dentro de um mesmo gênero.
Talvez o site que tenha chegado mais perto da resenha livre do ranço técnico seja o "Rock, Paper, Shot- gun", um blog especializado em jogos para computadores. Os críticos do "RPS" tratam o jogo como uma coisa única: gráficos, mecânicas, bossas formais e pompas tecnológicas não interessam isoladamente e são mencionadas apenas no contexto da experiência do jogador.
Mas o cenário não é tão tenebroso. A invasão independente dos últimos anos forçou resenhistas a encarar jogos com gráficos rudimentares e pouca duração (um dos grandes crimes na mentalidade custo/benefício). Conforme o cenário se tornar menos homogêneo, a crítica deve melhorar. Ou, pelo menos, parar com as notas.

Entrevista Salim Ismail

FOLHA DE SÃO PAULO

Próximo Facebook deve nascer no Brasil ou em outro emergente
Para fundador da Universidade da Singularidade, há muito empreendedorismo e entusiasmo no país
YURI GONZAGACOLABORAÇÃO PARA A FOLHAO indiano Salim Ismail, 47, é um dos fundadores da Universidade da Singularidade, organização encravada em um campus da Nasa, a agência espacial dos EUA, no Vale do Silício.
Anualmente, 80 estudantes do mundo todo vão à instituição, em Mountain View (Califórnia), para um curso de dez semanas em que, como define a própria universidade, "aprendem a resolver os maiores problemas globais", como a fome e os desastres climáticos.
Para Ismail, empresário que hoje coordena o processo de expansão global da escola, o próximo Facebook pode ser fundado no Brasil. "Não há motivo para isso não acontecer", disse em e-mail à Folha o diretor da universidade norte-americana.
Ele estará em São Paulo na semana que vem, para realizar uma palestra na sexta edição da Campus Party, evento de tecnologia que começa na próxima segunda. Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
-
A UNIVERSIDADE
A ideia central [da Universidade da Singularidade] é estudar as áreas da tecnologia que estão se transformando mais rapidamente, como a computação, a robótica e a biotecnologia, para resolver os maiores problemas globais, como a crise financeira, pandemias e outras questões exponenciais.
SOLUÇÕES EXPONENCIAIS
Estamos acostumados a uma forma de pensamento linear, enquanto os maiores problemas do mundo são exponenciais -no caso de uma doença contagiosa, por exemplo, eu posso transmiti-la para duas pessoas, essas duas pessoas para mais quatro, e assim por diante. Nós estamos preparando os estudantes para encontrar soluções que também sejam exponenciais, em especial ligadas a áreas como a computação, que se aceleram por conta própria.
PENSAR DIFERENTE
Estamos verificando o crescimento de organizações como o TED e o X Prize [fundações que apoiam o surgimento de ideais e projetos sociais e humanitários]. Nelas, quando uma pessoa é adicionada ao grupo, há um salto de produtividade muito superior ao do que aconteceria em uma empresa tradicional. São colaborativas, conectadas, usam "crowdsourcing" e têm uma visão de propósito que cria um novo tipo de estrutura.
VOZ ESTRANGEIRA
Cerca de 85% dos nossos estudantes não são dos EUA. Os cerca de 4.000 candidatos anuais vêm de 120 países. Não poderíamos querer resolver problemas globais sentados no Vale do Silício. As diferentes formas de pensamento são importantes para nós.
PODER DO BRASIL
Somos muito otimistas em relação ao Brasil, porque há muito entusiasmo e empreendedorismo natos. Quando isso é exposto a tecnologias poderosas, pode ter resultados extraordinários. Acredito que, por isso, o Brasil será um dos mais importantes países para as próximas gerações.
Por causa do advento dos celulares e da democratização da tecnologia pessoal, acho que o próximo Facebook deve nascer no Brasil ou em outro país emergente. Não há razão para que isso não aconteça. O Facebook foi criado em um notebook de US$ 1.000; o próximo deverá ser feito em um celular de US$ 100.
A NASA E O VALE DO SILÍCIO
É essencial [para a universidade] que estejamos na Nasa e, mais importante, no Vale do Silício. Em um raio de 50 km, podemos entrar em contato com os maiores pensadores do mundo nas áreas da tecnologia que nos interessam.
O campus Ames é responsável pela parte de supercomputação de toda a Nasa, o que nos dá acesso ao trabalho de mais de 4.000 pesquisadores nesse tema essencial.
Nunca poderíamos estar dentro de Berkeley ou de Stanford, porque gastaríamos muito tempo combatendo suas maneiras velhas de pensar.
HUMANOS X MÁQUINAS
Muitas vezes, o conceito de singularidade [que dá nome à instituição] é posto como um momento mágico no tempo em que a inteligência artificial superará a dos seres humanos.
Não acredito nisso porque nem sequer entendemos perfeitamente ou sabemos mensurar a inteligência.
Temos a inteligência humana como parte de um processo criativo e cheio de nuances, algo que não sei se poderíamos replicar com inteligência de máquinas.

    FRASES
    "Com os celulares e a democratização da tecnologia pessoal, acho que o próximo Facebook deve nascer no Brasil ou em outro país emergente
    O Facebook foi criado em um notebook de US$ 1.000; o próximo deverá ser feito em um celular de US$ 100
    Cerca de 85% dos nossos estudantes não são dos EUA. Não poderíamos querer resolver problemas globais sentados no Vale do Silício. As diferentes formas de pensamento são importantes para nós"
    SALIM ISMAIL
    cofundador da Universidade da Singularidade

      RAIO-X SALIM ISMAIL, 47
      QUEM É
      Nascido em Mumbai, formado em física pela Universidade de Waterloo (Canadá), é cofundador da Universidade da Singularidade
      O QUE JÁ FEZ
      Foi vice-presidente do Yahoo!, onde criou a encubadora Brickhouse (2007-2008).
      Em 2010, sua empresa Angstro, que compilava informações na web sobre os contatos de seus usuários, foi comprada pelo Google

        O plantonista sumiu! -LIGIA BAHIA


        O Globo - 21/01/2013

        Tropeça-se a cada passo em relatos
        de pessoas desassistidas
        pelos serviços de saúde. Mas
        encontrar os responsáveis pela
        omissão de socorro ou imprudência,
        imperícia ou negligência, especialmente
        no Brasil, constitui um fato
        extraordinário. A principal razão da
        dissociação entre a frequência dos danos
        causados a crianças e adultos por
        instituições que deveriam protegerlhes
        e o indiciamento de quem os causou
        é a finitude da vida. Separar acertos
        e erros da intervenção médica em
        casos de sucessos e desfechos indesejados
        requer um sólido conhecimento
        sobre as possibilidades e limites do repertório
        de alternativas diagnósticas e
        terapêuticas e muita ênfase na qualidade
        da atenção. A avaliação permanente
        da qualidade das atividades da
        saúde é a ferramenta adequada para
        distinguir e afirmar boas práticas, que
        por sua vez pressupõem compromissos
        e responsabilidades explícitas pelas
        ações e cuidados prestados. Os esforços
        para organizar um sistema de
        avaliação de qualidade pressupõem a
        perspectiva de atingir crescentes níveis
        de saúde e melhoria do desempenho
        dos serviços assistenciais.

        Sem saber exatamente em que ponto
        estamos na construção de nosso sistema
        de saúde e para onde vamos —
        ora somos o farol do mundo com nosso
        sistema universal e igualitário, ora o
        país que desponta como sede de um
        portentoso mercado de planos de saúde
        —, a definição de encargos é uma
        missão quase impossível. A necessidade
        de proteção simultânea de interesses
        públicos e privados, incluindo
        aqueles que extrapolam os limites do
        sistema de saúde, funciona como um
        poderoso escudo antirresponsabilidade.
        Como ninguém é responsável, todos
        denunciam. O preâmbulo de
        qualquer discurso sobre saúde é a denúncia
        sobre faltas. O que varia é a ênfase
        na falta. Uns preferem a falta de
        gestão; outros, de financiamento. São
        essas falsas pistas que estimulam temporadas
        de caça sazonais e seletivas
        aos médicos, aos medicamentos, aos
        leitos, aos equipamentos e resguardam
        a troca de uma política de saúde
        por um punhado de interesses particulares
        e imediatistas.

        O caso Adrielly-Adão é insólito porque
        rompeu com as desculpas sobre a
        quantidade de recursos. O sumiço do
        substituto do neurocirurgião no plantão
        da emergência que deveria ter socorrido
        uma criança baleada horrorizou
        porque desvela o estado de corrupção,
        no sentido do processo ou ato
        de tornar-se apodrecido, da rede assistencial
        pública e privada. Adrielly
        chegou viva ao Hospital Salgado Filho,
        seu quadro clínico era de extrema
        gravidade, e exatamente por isso foi
        encaminhada para um serviço de
        emergência. Em circunstâncias habituais,
        riscos à vida, sobretudo de uma
        criança, comovem e mobilizam solidariedade
        imediata. Contudo, usos e
        costumes aceitos e as normas oficiais
        que regem a dinâmica interna dos
        serviços de saúde nem sempre permitem
        uma interação humana entre
        pacientes e quem os atende.

        A existência de rotinas largamente
        disseminadas, como a sublocação da
        vaga de médicos e enfermeiros nos
        serviços públicos de saúde, provocou
        espanto, em função da associação automática
        entre alteração de identidades
        com a desonestidade e inaplicabilidade
        da regra a profissionais tão
        dedicados como os de saúde. Mas as
        explicações para a existência de um
        mercado colateral de trabalho são banais.
        Quem obtém melhor remuneração
        em outros postos opta por manter
        o cargo com o intuito de obter vantagens
        na aposentadoria, e contrata
        seus substitutos, mediante a transferência
        do salário para colegas geralmente
        situados em posições iniciais
        na carreira. Trata-se de uma autorregulação
        consentida e legitimada, que
        falha quando as oportunidades de
        maiores remunerações permitem a
        recusa de plantões em feriados, fins
        de semana, locais distantes da residência
        etc. O segundo motivo de assombro
        para quem acompanha o desenrolar
        da apuração do não atendimento
        a Adrielly foi a apelação para o
        álibi de inexorabilidade da morte. A
        intenção de espanar a ignorância (como
        se alguém acreditasse que os serviços
        de emergência realizam milagres)
        e apaziguar os ânimos exaltados
        pelo descaso só serviu para expor ainda
        mais as entranhas pútridas da rede
        assistencial. O terceiro motivo de perplexidade
        deveu-se à constatação,
        particularmente dos leigos, de que as
        engrenagens, movidas a pagamentos
        por plantões de gente desconhecida
        pelos chefes, atendendo pessoas como
        coisas, traduzíveis em procedimentos
        remunerados e metas de produção,
        revelam a péssima administração
        da saúde.

        As soluções apresentadas pela prefeitura
        do Rio de Janeiro e pelo Ministério
        da Saúde também assustam. Implantar
        métodos de apuração de presença
        de médicos não responde sequer
        à preservação do decoro perante
        a tragédia, quanto mais ao enfrentamento
        real da situação da saúde.
        Apertar os controles da presença de
        quem não existe é completamente
        desnecessário. A introdução de artefatos
        tecnocráticos hi-tech, como o
        ponto biométrico, e a imposição de
        indicadores artificiais de performance
        prenunciam uma nova sequência
        de sofrimentos e escândalos. Os plantões
        continuam esvaziados e os prazos
        para o acesso de pacientes com
        câncer no SUS e para consultas nos
        planos privados de saúde não estão
        sendo cumpridos. A sugestão dos parentes
        das vítimas de mau atendimento
        parece mais promissora. O desejo
        manifesto por quem experimentou a
        mistura da dor decorrente da perda
        de familiares com a humilhação do
        mau atendimento é que os casos não
        se repitam. A diferença entre a reiteração
        de alternativas irreais e as perspectivas
        construídas com sentimentos
        e valores genuínos é cristalina.

        Médicos não somem, não deixam
        de trabalhar. Adão seguiu exercendo
        importantes atividades como cirurgião
        de coluna de um hospital privado.
        A responsabilidade direta pela omissão
        de atendimento de Adrielly será
        apurada. Porém, sem o exame criterioso
        e das responsabilidades indiretas
        de professores, pesquisadores, entidades
        profissionais e empresariais e
        dos políticos, as urgentes tarefas de
        organização de um sistema público
        democrático de qualidade ficarão
        mais uma vez adiadas. 

        Ligia Bahia é professora da Universidade
        Federal do Rio de Janeiro
        ligiabahia55@gmail.com

        Cresce o suspense em torno de 2014 - Renato Janine Ribeir


        Valor Econômico - 21/01/2013 

        A economia é o terreno movediço da fortuna

        No começo do ano, há poucas semanas, parecia certa uma tranquila reeleição de Dilma Rousseff em 2014. O candidato do PSDB seria Aécio Neves, que concorreria não tanto para vencer, mas para marcar posição com vistas a 2018 - renovando também as lideranças do partido de oposição, após três derrotas sucessivas de grandes nomes seus, ambos paulistas. Esse roteiro continua provável, mas já não é tão certo. As chances de Dilma e Aécio diminuíram.

        Dilma se enfraqueceu porque os problemas na economia - vale dizer, no crescimento econômico - começam a preocupar. A economia é o segredo do sucesso dos governantes, numa época em que a confiança dos eleitores neles se reduz ao crédito que se pode ter na compra de bens a prazo, o que por sua vez resulta da irrigação de dinheiro, do aumento da produção e da inclusão social. Essas condições podem ser fruto da competência do governante - de sua "virtù", como diria Maquiavel - mas também podem decorrer de uma conjuntura de sorte, que o pensador florentino chamava de "fortuna". Lula mostrou "virtù" não se apavorando ante a crise mundial de 2008, não reagindo (como fariam os tucanos) com um forte aumento da taxa de juros - mas também se beneficiou de um quadro afortunado, porque não enfrentou a série de crises mundiais que se abateu sobre seu antecessor FHC.

        Aécio se enfraqueceu porque, segundo a "Folha de S. Paulo", Serra radicaliza na sua intenção de disputar, mais uma vez, as eleições presidenciais: ele até deixaria o PSDB, se não lhe derem a candidatura. Essa notícia mostra um partido potencialmente dividido, porque Aécio teria ainda menos razões para retirar o nome em favor de quem já foi duas vezes derrotado no pleito presidencial. Com isso se enfraquecem Serra, Aécio, o partido.

        Dilma estaria fraca, o que é muito curioso, não por seu desempenho na política, mas na economia. Ora, é sabido que ela gosta da economia; que prefere uma visão técnica, gerencial, das questões a uma visão política. Política aparece para Dilma em seu pior sentido: o do toma-lá-dá-cá, o da construção da governabilidade mediante concessões. Aliás, é dessa mesma forma que a maior parte da população vê a política; talvez a popularidade presidencial se deva a essa coincidência do seu modo de ser com o da maioria do povo. Presidenta e povo convergem numa certa repulsa aos políticos. "Política", aqui, é a submissão do melhor e mesmo do bom ao possível. Quem tem valores fortes geralmente sente repugnância por isso. Parece ser o caso dela. E, mesmo assim, neste momento Dilma está melhor no quadro político do que no econômico. Não tem um rival forte à sua direita, a oposição de esquerda é microscópica e a causa ecológica muito fraca, dois anos apenas depois da avalanche de votos em Marina Silva.

        Já a economia é a praia de Dilma Rousseff. A presidenta representa uma visão que, curiosamente, está perto do modo que, anos atrás, era a marca registrada de José Serra, na oposição interna ao governo FHC: o ideal de uma economia desenvolvimentista, pondo a regulação do Estado e o apetite dos atores privados a serviço de uma estratégia que aumente o crescimento e reduza a pobreza. (Não por acaso, jogo com o título do best-seller de 1975, que projetou o Cebrap de FHC e Serra, "São Paulo: crescimento e pobreza"). Não por acaso, me ocorreu escrever este artigo depois de ler uma entrevista do economista de esquerda Carlos Lessa, que foi professor de Dilma mas também padrinho de casamento de José Serra, e declara ter votado no candidato tucano.

        Em suma, Dilma vê a economia não como fim em si, mas como o melhor instrumento técnico para fazer uma política que só é chamada de esquerdista porque, em nosso país, o mero propósito de construir uma nação de classe média soa radical - e talvez seja mesmo. Ora, é essa agenda que poderia ser comum ao maior número possível de pessoas, que poderia ser o ponto de encontro dos "homens de boa vontade", superando as pautas político-partidárias de interesses mesquinhos - essa agenda das pessoas que "pensam no Brasil", para usar uma expressão do então presidente Fernando Henrique Cardoso, numa crítica a uma sentença do Supremo Tribunal Federal - que está em risco. E está em risco porque a economia é uma caixa-preta.
        Fala-se tanto em competência a respeito da economia mas, na verdade, ela é o movediço terreno da fortuna. Não se diz que os mercados "estão nervosos"? Nervosismo é o contrário da racionalidade. Daí que, apesar do cabedal de simpatia e da vantagem política em que está Dilma, com o PIB baixo as coisas se tenham tornado delicadas para ela. Não há melhor sinal disso do que a possível crise no abastecimento de energia. Esqueçam o sinônimo "luz" e pensem no sentido forte da palavra "energia": é isso que pode nos faltar. Simbolismo forte, não é? E pode faltar caso faltem chuvas, que não dependem de nenhum político, mas da sorte. Se Dilma se enfraqueceu, foi devido a golpes da fortuna.

        E Serra? Seu jogo é arriscado. Fernando Henrique, que apoia Aécio, e Alckmin, que não apoia ninguém, parecem cansados de avalizar suas pretensões presidenciais. O pior para Serra será assumir o rótulo de ingrato, em relação aos correligionários, de desleal ao partido e de egoísta na aspiração ao Planalto. Com isso, ele pode tirar votos de Aécio, mas dificilmente conseguirá a candidatura tucana e, se a obtiver, sofrerá um intenso fogo amigo. Por hábil que seja Serra, que movimenta o xadrez político como poucos - dotado que é de muita "virtù" -, ele pode estar batendo no teto. Hoje, Dilma ainda vence Aécio, mas os dois enfraquecidos.

        Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

        O preço de um sonho

        FOLHA DE SÃO PAULO

        Calculadora interativa mostra quantos dias de trabalho são necessários para comprar um bem, de um tablet a um imóvel
        MARIA PAULA AUTRANDE SÃO PAULOTrabalhar cerca de um mês para comprar um tablet ou para fazer um cruzeiro de três dias. Ou aproximadamente 20 anos de suor dedicados à aquisição de um imóvel.
        Esses são alguns resultados obtidos a partir de uma calculadora interativa desenvolvida pelo professor da FGV Samy Dana a pedido da Folha, tomando como base o salário médio do brasileiro estimado pelo IBGE após desconto do INSS, de R$ 1.224.
        Mais do que o preço de um bem, saber quanto tempo de trabalho ele custa ajuda o consumidor a decidir se aquele desejo realmente vale a pena e que planejamento ele terá de fazer para realizá-lo.
        Afinal, há gastos fixos e imprescindíveis, como alimentação, educação, saúde e tributos, que já comprometem boa parte do salário e que não entraram na conta.
        "É o que a gente chama de custo de oportunidade", afirma o educador financeiro Mauro Calil, para quem, dependendo do salário, um almoço de R$ 30 pode custar ao consumidor metade de um dia de trabalho. "Significa que você ganha pouco ou que o almoço está caro?"
        E, se o consumidor estiver prestes a fazer uma compra por impulso, saber quantos dias de trabalho dedicados exclusivamente a ela serão necessários pode levar o indivíduo a pensar duas vezes antes de gastar.
        Dana, da FGV, diz que é importante ter em mente a ideia de renúncia ligada ao desejo do gasto. "As pessoas dão pesos diferentes às coisas. Posso ter prazer em ir a um restaurante. Depende do quanto eu gosto de restaurantes."
        "Vale a pena pensar que tudo é uma renúncia. Quando você está comprando um iPad, está renunciando à compra de outro produto."
        Para ele, é importante escolher e gastar naquilo que maximiza a felicidade.
        Uma prática que pode elevar o número de dias trabalhados para a aquisição de um bem é fazer financiamentos -afinal, os juros aumentam o preço do produto.
        POUPE PRIMEIRO
        Se, mesmo depois de saber quantos dias de trabalho o sonho custará, o consumidor quiser realizá-lo, é preciso lembrar de poupar primeiro.
        Para isso, o ideal é fazer um orçamento, colocando na ponta do lápis as receitas e os gastos e verificando onde é possível cortar despesas.
        O educador financeiro Reinaldo Domingos afirma que não se deve contar apenas uma possível sobra do orçamento para planejar a realização dos sonhos, pois é comum que, sem esforço, não sobre nada no fim do mês.
        Por isso, a família deve se reunir e traçar seus objetivos de curto prazo (um ano), médio prazo (até dez anos) e longo prazo (mais de dez anos).
        O especialista afirma que, para quem está endividado, quitar os débitos deve fazer parte da lista de sonhos.
        É importante também retirar o dinheiro para o sonho assim que o salário chegar.

          Pagar as dívidas deve ser prioridade
          DE SÃO PAULO
          Quem tem dívidas e quer se livrar delas precisa, primeiro, reconhecer que o problema existe. Especialistas aconselham estabelecer o pagamento dos débitos como um objetivo e fazer um planejamento para isso.
          Primeiramente, é necessário mapear todas as dívidas, elencá-las da maior para a menor e definir um cronograma para pagá-las, sendo a primeira aquela que tiver os juros mais altos.
          Depois, a orientação é tentar negociar com o maior número possível de credores. Em geral, eles facilitam o pagamento para começar a receber ao menos parte dos valores. Quem se recusar a negociar vai para o fim da fila.
          Além disso, uma estratégia que pode ajudar é incrementar a receita com um trabalho temporário ou vendendo algo que tem -uma coleção de discos, por exemplo.
          É possível também pegar um empréstimo para pagar a dívida, mas isso só vale se os juros da nova forem menores do que os da antiga.
          Uma situação em que essa prática tende a ser vantajosa é quando se deve no cartão de crédito, que costuma ter os juros mais altos entre as modalidades de crédito.
          O mesmo vale para os investimentos: aplicar o dinheiro em vez de pagar uma dívida só vale a pena se o investimento render mais do que os juros da dívida -o que costuma ser raro.
          O consumidor endividado pode também procurar ajuda. O Procon-SP (www.procon.sp.gov.br), por exemplo, oferece um serviço de apoio ao superendividado.
          Para evitar problemas, o orçamento familiar é fundamental para o controle das finanças. É importante, porém, checar sempre se o orçamento já feito ainda corresponde à realidade da família. A chegada de um filho ou a perda de um emprego podem exigir ajustes nas contas e na lista de prioridades.

          IPVA precisa ser pago no prazo mesmo sem aviso
          Atraso no envio da correspondência aos motoristas não muda datas de vencimento
          DE SÃO PAULOMesmo que não tenham recebido carta avisando sobre valor e vencimento do IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores), os donos de veículos em São Paulo precisam pagar o imposto nos prazos corretos.
          De acordo com a Secretaria de Estado da Fazenda de São Paulo, houve atraso no envio da correspondência.
          O motivo, diz o órgão, foi a demora na definição dos valores do prêmio do seguro obrigatório (Dpvat), que só foram repassados pelas autoridades fiscais federais no dia 24 de dezembro.
          Os pagamentos podem ser feitos com o número do Renavam, nos bancos, pela internet ou em outros canais.
          Apenas os proprietários de veículos com placas de final 7 a 0 ainda conseguem fazer o pagamento da cota única com desconto de 3%. Para quem tem carro com placa de final 7, o prazo para pagar com desconto termina hoje.

            Familiares de viciados já buscam internação à força

            FOLHA DE SÃO PAULO

            Programa para facilitar medida compulsória começa hoje em São Paulo
            Centro recebeu muitos telefonemas e governo já espera alta demanda; juiz fará plantão para analisar os pedidos
            GIBA BERGAMIM JR.DE SÃO PAULOO programa de internação compulsória de viciados em drogas, do governo do Estado, começa hoje em São Paulo com expectativa de filas por causa da alta demanda de familiares em busca de tratamento forçado a parentes que não largam o vício.
            Folha esteve nos últimos dias no Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas do Estado), no Bom Retiro, onde haverá um juiz, um promotor e um integrante da OAB para definir a necessidade de internação.
            Ouviu de funcionários que, durante a semana passada, muitos parentes de viciados em crack entraram em contato. "Eles telefonaram para saber quando o juiz vai estar aqui. Só hoje [anteontem] foram cinco telefonemas", disse um funcionário à reportagem.
            O governo estadual diz que tem capacidade para atender a demanda e que há cerca de 700 leitos no Estado para isso. O viciado pode, por exemplo, ser levado para ser internado em outro Estado.
            A internação compulsória está prevista na lei de psiquiatria. Para que ela ocorra é necessário que um médico assine um documento indicando que o usuário precisa ser internado, mesmo contra a vontade. A Justiça decide se isso deve ou não ser feito.
            A criação do programa para esse tipo de medida ocorre um ano depois de uma intervenção policial na região da cracolândia, que visava coibir o tráfico e tentar levar usuários a tratamento. Não surtiu efeito - a venda da droga persiste e as ruas seguem tomadas por usuários.
            PROTESTO
            Um protesto organizado por meio de um fórum no Facebook acontecerá hoje em frente ao Cratod.
            Entre os apoiadores da manifestação está padre Julio Lancelloti, defensor dos direitos dos moradores de rua.
            "A internação compulsória é considerada o último recurso. É a exceção e não pode virar regra", disse. O padre questiona se há capacidade para atender todos.
            Ele, que se reuniu com entidades de atendimento a viciados durante a semana, disse que o temor de todos é o mesmo. "O que a gente prevê no dia 21 (hoje) é um número muito grande de mães querendo a internação involuntária dos filhos", disse.
            Na involuntária, um parente vai a um centro de atendimento e pede a internação. Um promotor tem 72 horas para analisar o caso, sem a necessidade de juiz. É diferente da compulsória, que depende do aval de médicos e que passará pelo magistrado, mesmo sem aval da família.
            OUTROS PAÍSES
            Segundo Ronaldo Laranjeira, professor titular de psiquiatria da Unifesp, a internação compulsória é bastante aplicada no interior de São Paulo - a medida foi usada em 50% dos internos da clínica Bairral, em Itapira (a 164 km de São Paulo), diz ele.
            A internação contra a vontade do dependente é comum na Europa e nos EUA. "Na Suécia, por exemplo, 30% das internações são involuntárias, lá chamadas de coercitivas. Tecnicamente falando, a experiência é boa, mas precisa haver estrutura para atender a demanda", disse ele.
            Laranjeira diz que, na Inglaterra, onde trabalhou, após um médico decidir pela internação compulsória, uma comissão de especialistas é acionada para endossar ou não a necessidade.
            O psiquiatra Elko Perissinotti, do Hospital das Clínicas, teme que a medida possa se mostrar inócua.
            Segundo ele, o índice de recuperação é muito baixo, não chega a 2%. "Muitos autores dizem que após o uso contínuo, a pessoa pode se tornar dependente crônica. Mesmo após um diagnóstico de suposta 'cura', a pessoa tem recaídas e volta para o mesmo estágio em que estava antes", afirmou.

              Juiz diz que internará só em caso de risco
              Samuel Karasin, um dos que analisarão pedidos para internação, afirma que vai ouvir viciados antes de decisão
              Segundo magistrado, internação compulsória só será utilizada em dependente que estiver 'muito debilitado'
              FABIANA CAMBRICOLIDO “AGORA”Ouvir, sempre que possível, o viciado antes de tomar a decisão. Negar, quando não houver necessidade de internação, o pedido feito pela família do dependente.
              É o que promete fazer Samuel Karasin, um dos dois juízes que a partir das 9h de hoje farão plantão no Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas), no Bom Retiro (centro de São Paulo), para autorizar ou não pedidos de internação compulsória de dependentes químicos.
              O plantão foi criado por meio de uma parceria entre o governo do Estado, Tribunal de Justiça, Ministério Público Estadual, OAB-SP e Defensoria Pública.
              Segundo o magistrado, a internação só será autorizada se o viciado oferecer risco a si próprio ou a terceiros, como quando estiver com a saúde debilitada ou ameaçando matar alguém. Nos demais casos, o tratamento previsto em lei é o ambulatorial.
              "[Quando não houver o risco] Eu vou negar e acabou. A lei tem uma diretriz muito tranquila. Internação não é depósito", afirmou.
              Karasin disse que a internação involuntária só é usada nos casos em que a pessoa perdeu qualquer condição de ficar sozinha.
              "Eu sei que a família se desespera, mas não é só a questão do vício que está em jogo, é se ele está correndo risco ou não. É para ele se curar do surto, sair do risco e voltar numa condição melhor para o tratamento", afirma.
              A legislação a qual o juiz se refere é a lei 10.216, que prevê que a internação "só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes."
              LAUDO DIVERGENTE
              Para que a internação seja autorizada, será obrigatório um laudo médico atestando tal necessidade. Apenas o atestado, porém, não é suficiente para que o juiz autorize a medida. "Não é o médico que decide, tem que ouvir a defensoria, alguém pode trazer um laudo divergente. Sempre que possível, pretendo ouvir também o dependente", diz Karasin.
              Juiz há 15 anos, metade deles na Vara da Infância e Juventude de Osasco (Grande São Paulo), função que desempenha até hoje, Karasin vai estar ao lado de outro juiz da mesma área, Iasin Issa Ahmed, no plantão do Cratod.

                ONG conveniada defende busca voluntária por ajuda
                AFONSO BENITESMARLENE BERGAMODE SÃO PAULOElizeu Dias, 37, foi traficante em Vitória (ES) por 14 anos. Tinha 11 bocas de fumo e um lucro mensal de cerca de R$ 30 mil. Ele usava crack.
                Janaína Ramos, 26, foi, por quase uma década, usuária de cocaína e álcool em São Paulo. Caminhava pelas ruas da região central em busca da droga e sempre foi arredia a tratamentos.
                Na última sexta-feira, o grupo de agentes em que Elizeu e Janaína agora trabalham foi o responsável por dar uma nova chance para o dependente químico Jeferson Lima, 29.
                A equipe da ONG Missão Belém convenceu o usuário de crack a se internar pela nona vez. "Se eu não for internado agora, vou voltar para lá", disse Jeferson apontando para a direção da multidão de viciados que se aglomerava na cracolândia, nas proximidades da estação Júlio Prestes, na região central da cidade.
                Após firmar um convênio anual de R$ 4 milhões com o governo estadual, a Missão Belém iniciou um trabalho de tratamento de dependentes.
                Desde o dia 3 de dezembro, cerca de 50 agentes já conseguiram encaminhar 400 viciados da cracolândia para serem tratados em uma das 113 casas da entidade.
                Todos foram internados voluntariamente. Ou seja, convencidos pelos agentes - ex-usuários de drogas- a receber o tratamento.
                Como falam a mesma "língua" dos viciados e, vez ou outra, chegam a dormir com eles nas ruas, os agentes conseguiram estabelecer uma relação de confiança.
                "É um trabalho de paciência e perseverança", afirmou o padre Gianpietro Carraro, idealizador e coordenador-geral do projeto.
                Nesta segunda-feira, dia 21, as equipes da ONG terão um novo desafio: provar para os viciados que não vão interná-los à força. Isso porque vai começar o programa de internações compulsórias feito pelo governo estadual.
                "Vai ficar mais difícil para nossa abordagem", reclamou Elizeu, livre das drogas e do tráfico há sete anos e hoje coordenador de campo na região da cracolândia.

                  Cláudia Collucci

                  FOLHA DE SÃO PAULO

                  ANÁLISE
                  Tratamento de pacientes ainda gera muitas dúvidas
                  CLÁUDIA COLLUCCIDE SÃO PAULODo ponto de vista da saúde pública, a internação compulsória dos dependentes de crack em São Paulo começa com uma série de dúvidas: Que tipo de tratamento (terapias e medicamentos) será usado? Quanto tempo vai durar? O que será feito após o confinamento?
                  Até para justificar o dinheiro público que será empregado na operação (os valores ainda não foram anunciados pelo governo Alckmin), é importante mais clareza e transparência ao processo.
                  Há muita polêmica e falta de consenso sobre internações contrárias à vontade da pessoa. A medida foi duramente criticada no ano passado pela ONU (Organização das Nações Unidas), que recomendou aos países-membros a sua imediata extinção.
                  Para a ONU, não há evidência científica do êxito das internações compulsórias de usuários de drogas.
                  Ao mesmo tempo, a OMS (Organização Mundial da Saúde) considera válida a opção em casos de risco à vida do dependente químico.
                  Os poucos estudos envolvendo internações compulsórias mostram taxas de recuperação entre 2% e 6%.
                  Mas não é possível comparar os resultados com os da internação voluntária (em torno de 30%) porque não são estudos controlados. As variáveis (condição socioeconômica e transtornos psiquiátricos) não foram isoladas.
                  A questão é tão complexa que até o conceito de tratamento exitoso é relativo. Para os especialistas, as recaídas fazem parte do processo de recuperação e não são, necessariamente, sinônimo de fracasso. Eles defendem que o dependente seja tratado como um doente crônico-um diabético ou um hipertenso.
                  Voltando às questões que abrem este texto, o país conta com uma diretriz da Sociedade Brasileira de Psiquiatria de como os médicos devem tratar os usuários de crack.
                  Entre as orientações há a indicação de tratamento de desintoxicação imediato e de múltiplas ações terapêuticas após a internação. O plano de Alckmin vai contemplar isso?
                  As experiências internacionais também mostram que o enfrentamento das drogas deve ser tratado de forma coordenada por diferentes áreas dos governos, do setor privado e das universidades.
                  Receitas existem aos montes. Resta saber qual delas o governo paulista deve adotar.

                    Marcos Augusto Gonçalves

                    FOLHA DE SÃO PAULO

                    Restaurar o Copan
                    Atenção empresas e publicitários, se o edifício-símbolo da cidade está caindo aos pedaços, imagina na Copa
                    É um vexame para os paulistanos e para São Paulo que não se consiga levantar fundos para restaurar o Copan. A novela vem se arrastando nos últimos anos. O edifício, embora histórico, não é tombado, mas a prefeitura já concedeu autorização para a venda de publicidade na tela que o recobrirá durante a reforma -seguindo uma estratégia que deu certo em Barcelona.
                    Numa cidade limpa de outdoors e anúncios em espaço público, fazer propaganda naquela superfície sinuosa de 140 metros de extensão por 118 de altura seria, em tese, um atrativo e tanto para o mercado -que geraria os recursos para o restauro, estimado em pouco mais de R$ 20 milhões. Até aqui, porém, nada aconteceu.
                    Alô, empresas, alô publicitários, alô Nizan Guanaes: se o edifício-símbolo da maior e mais rica cidade do país, desenhado por Oscar Niemeyer, está caindo aos pedaços agora, imagina na inauguração da Copa!
                    Faz tempo que a elite paulista virou as costas para o belo centro de sua capital. Já está na hora de desvirar. Não faz sentido continuar a manter aquela zona fantasma, abandonada e maltratada.
                    Bacanas adoram ir a Nova York. Alguns até parece que viram americanos quando pisam no JFK. Babam de orgulho pela maneira como seus compatriotas emprestados se relacionam com a magnífica metrópole em que vivem, sempre se reinventando, sempre engendrando novos espaços e situações. Mas quando retornam à jungle tropical, puf, o encanto se desfaz. Viram abóbora, entram no carrão com insulfilm e boa noite. Todos direto para a redoma particular, devidamente segregada do espaço público, visto como sinônimo de pobreza e desordem.
                    É um tipo de comportamento que já deu. Chega. Acorda. As pessoas querem mudar a cidade, querem mais cuidado, mais beleza, mais convivência, mais respeito, mais civilidade. É nessa onda que a nova São Paulo quer surfar. E os sinais, basta olhar, estão por todos os lados.
                    A cidade tem alguns prédios incríveis pedindo restauro. Não é só o Copan. Há outros à espera de ajuda. Insisto no Copan porque, ladeado pelo Itália, tem sido há décadas o cartão-postal da cidade. É um edifício admirável, que fascina qualquer um que se ponha aos seus pés ou o vislumbre à distância.
                    Já contei aqui que o projeto do Copan é do início da década de 1950, quando se inaugurava uma importante e moderna instituição paulistana -a Bienal Internacional de Arte, obra do espírito empreendedor de Ciccillo Matarazzo. Projetado por Oscar Niemeyer, com apoio de seu escritório paulista, comandado pelo arquiteto Carlos Lemos, deveria ser um conjunto com dois prédios interligados. Um deles de apartamentos, o outro, um hotel.
                    Dificuldades financeiras mudaram o rumo dos acontecimentos e retardaram a obra, que trocou de mãos. O projeto original sofreu modificações e o hotel deixou de ser construído. Niemeyer, por isso, relutava em abraçar o resultado final -embora assumisse que eram suas as sublimes linhas curvas do edifício, inaugurado em 1966.
                    Quem finalizou o prédio foi o Bradesco, que acabou se instalando naquele bichão feio de mármore na frente. Aliás, boa ideia: alô, Bradesco, olha a chance passando! Restaurar o Copan seria um presente para São Paulo e uma homenagem à memória de nosso grande arquiteto.

                    Minas põe a mesa (Madrid Fusión) - Eduardo Tristão Girão‏

                    Começa hoje na Espanha a 11ª edição do Madrid Fusión, o mais importante festival de gastronomia do mundo. Culinária mineira está no centro da programação, que amplia fronteiras culturais do estado 

                    Eduardo Tristão Girão
                    Estado de Minas: 21/01/2013 
                    Madri – Ponto de encontro de chefs, pesquisadores, jornalistas e todo tipo de gente interessada em gastronomia vindos de todas as partes do mundo, o congresso Madrid Fusión começa hoje na capital espanhola, tendo a cozinha de Minas Gerais como homenageada e, inevitavelmente, criando certa aura de mistério junto ao público internacional. Afinal, quantos estrangeiros já ouviram falar de ora-pro-nóbis, jabuticaba e queijo canastra, por exemplo? Até dia 23, vários chefs do estado vão revelar ao mundo a riqueza gastronômica mineira em aulas e palestras, dividindo espaço com estrelas internacionais no palco que, tradicionalmente, lança tendências e abriga discussões que reverberam pelo planeta.

                    Para ter ideia da dimensão do evento, atualmente em sua 11ª edição, foi numa das suas palestras que pegou fogo a rixa entre os chefs espanhóis Ferran Adrià e Santi Santamaria, este último um defensor fervoroso da cozinha tradicional, inconformado com os avanços do primeiro no revolucionário Restaurante elBulli, a meca da gastronomia molecular, com suas espumas, esferificações e incontáveis experiências. A julgar pela quantidade de chefs de peso presentes (Joan Roca, Andoni Luis Aduriz e Pierre Hermé, Elena Arzak e Quique Dacosta são só alguns), o evento promete.

                    Pela primeira vez, o Madrid Fusión homenageará um estado e não um país, a exemplo das edições anteriores em que nações como Peru e Coreia foram contempladas em sua programação. A maré está tão a favor de Minas que os chefs do estado ainda serão protagonistas de outro feito inédito: serão eles, em vez dos espanhóis, os responsáveis pelo coquetel de abertura do evento, cujo extenso cardápio inclui itens como caipirinha de pitanga, pão de queijo, paçoca de carne serenada e até farofa de içá. Para fechar, doces de fazenda, queijo minas e café – além de cachaça, é claro. Será hoje à noite, no Casino de Madrid.

                    São cerca de 15 os chefs mineiros convidados, sendo Ivo Faria (Vecchio Sogno, BH) e Rafael Cardoso (Atlantico, BH) os encarregados da palestra de abertura do congresso, hoje, na qual será abordada a evolução da culinária mineira ao longo do tempo. Rafael terá como ponto de partida a época dos tropeiros, quando a necessidade de transportar a comida no lombo dos animais de carga por dias pelas estradas determinava os ingredientes e processos. Na outra ponta, Ivo falará sobre o momento em que as famílias, já assentadas em vilas, passaram a tirar proveito do que havia ao redor, como verduras e frutas.

                    O tema do Madrid Fusión este ano é “A criatividade continua” e o ingrediente convidado, desta vez, é o café. Sem dúvida, Minas Gerais é um produtor de café notável em nível mundial, tanto em termos de qualidade quanto em quantidade. O café é um dos produtos que o governo do estado, um dos propulsores da participação mineira no evento, destacará em Madri, formando espécie de tripé com o queijo minas e a cachaça. Não fossem as barreiras sanitárias, muito mais poderia ser mostrado ao público estrangeiro – houve quem planejasse levar queijos de leite cru, verduras e frutas ao evento.

                    Novas rotas Ciente da grande vitrine que se tornou o congresso, o governo mineiro organizou delegação composta por cerca de 80 pessoas – entre chefs, empresários e o governador Antonio Anastasia –, apostando alto nos benefícios que essa grande ação em conjunto poderá trazer para o estado, sobretudo na área do turismo. A Rota do Café, de acordo com informações da Secretaria de Estado do Turismo, está ativa desde setembro e recebeu visitas de brasileiros e estrangeiros a fazendas de café. A intenção estatal é criar ainda este ano outras duas rotas; não por acaso, talvez sejam a do queijo e a da cachaça.

                    Por enquanto, pensar em aumento e diversificação das exportações brasileiras como consequência da divulgação da riqueza alimentar mineira na Espanha é algo prematuro, como avalia o secretário de Estado do Turismo, Agostinho Patrus Filho: “Infelizmente, não há como pensar nisso hoje. Os produtores muitas vezes não têm nem como aumentar 20% ou 30% do que produzem”. As rotas turísticas seriam instrumento importante para alterar essa realidade, visto que pequenos produtores agrícolas de destaque teriam fonte de renda extra para poder investir no próprio negócio.

                    Cozinha nativa Mas nem só de mineiros é feita a participação do Brasil no Madrid Fusión. Com presença numa das edições anteriores, o paulistano Alex Atala, chef do D.O.M., atual quarto melhor restaurante do mundo segundo ranking anual da revista britânica Restaurant, fará outra palestra, no último dia do evento. O tema será “Brasil pré-Portugal”, contemplando a cultura alimentar indígena brasileira, estabelecendo ligação com o que já abordou em seu livro mais recente, Escoffianas brasileiras. Além dele,  marcarão presença outros nomes expressivos em âmbito nacional, como César Santos (Oficina do Sabor, Olinda, PE), Mônica Rangel (Gosto com Gosto, Visconde de Mauá, RJ), Flávia Quaresma (Rio de Janeiro, RJ) e Wanderson Medeiros (Picuí, Maceió, AL).

                    Por falar em Alex Atala, o chef viverá situação curiosa ao lado do colega mineiro Felipe Rameh, que dará aula amanhã sobre a versatilidade da mandioca. Antes de brilhar à frente dos restaurantes Dádiva e Trindade, em BH, Felipe se tornou conhecido na TV como assistente de Atala, quando atendia pelo apelido de Sansão. Agora, em Madri, ele terá a luxuosa assistência do mestre. “A mandioca é o ingrediente que une o Brasil”, resume o jovem chef.

                    * O repórter viajou a convite do Governo de Minas Gerais

                    Gastro Festival

                    O Madrid Fusión termina quarta-feira, mas Minas Gerais continuará a marcar presença na capital espanhola até o fim desta semana, por conta do Gastro Festival, programação paralela de jantares ligada ao congresso. De quarta a sexta, estão previstos seis jantares a quatro mãos em hotéis da cidade. As duplas são Felipe Rameh (Trindade) e Paula Cardoso (Albano’s); Guilherme Melo (Hermengarda) e Rodrigo Fonseca (Taste-Vin); e Pablo Oazen (Assunta) e Leonardo Paixão (Glouton).

                    Brasil abrirá novos bancos de sangue para transplante

                    FOLHA DE SÃO PAULO

                    Unidades armazenam sangue de cordão umbilical, que tem células-tronco
                    Medida objetiva aumentar diversidade genética do material coletado, o que torna mais fácil encontrar um doador compatível
                    MARIANA VERSOLATODE SÃO PAULOA rede de bancos públicos de sangue de cordão umbilical vai se expandir para aumentar as chances de pacientes encontrarem um doador compatível para transplante de medula no país.
                    Criada em 2004, a rede é coordenada pelo Inca (Instituto Nacional de Câncer) e armazena material retirado do cordão umbilical de recém-nascidos.
                    As células-tronco do sangue do cordão são usadas em transplantes de medula em pessoas com doenças como a leucemia, quando há compatibilidade.
                    Hoje há 12 bancos públicos no país, seis deles no Sudeste. A expansão da rede BrasilCord -gerenciada pela Fundação do Câncer- para Norte, Nordeste e Centro-Oeste quer completar o perfil genético do brasileiro e aumentar as chances de pessoas de todas as regiões encontrarem um doador.
                    Quatro cidades terão bancos até 2016, com um aporte de R$ 23 milhões do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico).
                    Manaus e Campo Grande foram escolhidas pois têm diversidade genética proveniente dos indígenas. Já São Luís recebeu negros escravos do Benin, e Salvador, da Nigéria. Por isso, têm materiais genéticos muito diferentes.
                    A escolha dos novos bancos foi feita após análise das características do Redome (Registro Nacional de Doadores de Medula) e dos pacientes que buscam um doador, para saber que grupos estavam sem cobertura. A logística também foi um aspecto relevante, segundo Luis Fernando Bouzas, coordenador da Rede BrasilCord.
                    "Se eu encontro um doador compatível em uma região inóspita, é muito mais difícil encontrá-lo e fazer seu transporte para um hospital do que pegar o sangue do cordão armazenado daquela mesma área", diz.
                    Para a hematologista Carmen Vergueiro, da Santa Casa de São Paulo e presidente da Ameo (Associação da Medula Óssea do Estado de São Paulo), a iniciativa é boa porque a diversidade genética do Brasil dificulta achar um doador. Segundo ela, a diversidade deve estar representada no registro de doadores.
                    Em países da Ásia, cerca de 80% dos pacientes que precisam de um transplante de medula encontram um doador porque lá não uma miscigenação como há aqui.
                    No Brasil, as chances de encontrar um doador fora da família são de 30%. Hoje, 1.050 pessoas estão à procura de um doador compatível.
                    Bouzas diz que o número de transplantes não aparentados cresce rapidamente. Até 2003, segundo ele, o país fazia cerca de de 12 por ano. Em 2012, foram quase 250.
                    Isso se deve ao aumento de doadores e à criação da rede pública de sangue de cordão. Os novos bancos devem ajudar no crescimento, mas levarão pelo menos três anos para funcionar a todo vapor.
                    A rede de bancos públicos tem hoje cerca de 10 mil unidades armazenadas. Desde 2001, cerca de 150 já foram usadas em transplantes.

                      O Rei da casa -Patricia Giudice

                      Pais que anteciparam a tendência atual de ter apenas um herdeiro contam sobre os desafios da escolha. Taxa de fecundidade no Brasil caiu de 5,76 filhos em 1970 para 1,90 em 2010 

                      Patricia Giudice
                      Estado de Minas: 21/01/2013 
                      Há 40 anos as famílias brasileiras começavam a diminuir. De cinco, seis filhos, os casais passaram a ter quatro ou três. Vinte anos depois, ainda eram poucos os que paravam no primeiro. Mas são esses antes tão escassos que anteciparam uma tendência: a união familiar composta apenas por pai, mãe e um descendente. E a escolha não foi fácil. Casais que já passaram pela infância e adolescência de um filho único contam que foram muito pressionados por amigos e parentes a continuar a prole sob alegações de que a criança seria mimada, sem limites e solitária. Mas, sem arrependimento, eles mostram que a condição não fez diferença no desenvolvimento.

                      Dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, desde 1970, a taxa de fecundidade no país está caindo. De 5,76 filhos por mulher há mais de 40 anos para 1,90 em 2010. Dependendo da região os números são ainda menores. A Sudeste tem a menor taxa: 1,70 filho por mulher. E a Norte a mais alta: 2,47. 

                      Minas, de acordo com o Censo, registrou taxa de 1,77 filho por mulher em 2010, número que diminui ainda mais a medida que o nível de escolaridade feminina aumenta. No caso das que têm curso superior completo, por exemplo, é 1,16. Na outra ponta, para aquelas com ensino fundamental incompleto, a taxa aumenta para 2,78. No mesmo estudo, o IBGE mostrou que, em Minas, no ano de 2010, foi identificado que 19,61% das mulheres com idade entre 40 e 44 anos tinham um filho, enquanto 72,59% tinham dois, três ou quatro. Na faixa etária seguinte, de 45 a 50, são 15,93% das mulheres com um filho e 73,41% entre dois e quatro filhos. 

                      Tânia Amorim, de 65 anos, é mãe de Sthefânia e só. Quando a filha era pequena ela e o marido pensaram em aumentar a família, mas não deu certo e eles desistiram. “Pensamos muito e chegamos à conclusão de que era melhor ficar do jeito que estava. Eu achava pouco, mas a vida era muito boa. Ao mesmo tempo, eu era muito pressionada. Já escutei até que se ela morresse eu ficaria sem ninguém, era um terrorismo, mas segui em frente”, contou. Tânia e o marido, que morreu há seis anos, passaram então a preocupar em como criariam uma filha única, para que ela não desenvolvesse problemas de comportamento. “Tinha muita preocupação com ela ficar mimada. O filho único era muito visado na época.” 

                      Sthefânia, que hoje é administradora de empresas, passou a infância e adolescência rodeada de muitos primos. Poucas vezes, conta, se sentiu sozinha por não ter um irmão. Mesmo assim, por várias outras pediu aos pais que providenciassem mais um membro para a família. “Sempre quis ter um irmão porque todos os meus primos tinham irmãos. Eles iam embora para casa brincar e eu ficava sozinha, mas todo fim de semana encontrávamos e isso amenizou muito a falta.” Ela conta que os pais sempre tiveram o cuidado de impor limites, mas sempre teve tudo o que quis. “Meus pais falavam ‘não’ na hora certa, me davam limites, mas acho que tudo foi com muito cuidado para que não me chateassem”, afirmou. 

                      ATENÇÃO Segundo o médico especialista em infância e adolescência e membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) Fábio Barbirato, o momento tem levado os casais a não estenderem demais a família. “Tanto o pai quanto a mãe trabalham fora para dar mais condição financeira ao filho e o tempo de dedicação à família está menor. A opção por ter apenas um abre a possibilidade de dar mais atenção a esse filho, mas mesmo que ela não seja dividida, continua precisando ser de qualidade, tanto quanto se tivesse dois ou mais”, afirmou o especialista, que é filho único e pai de uma criança de 3 anos.

                      Para ele, filhos, únicos ou não, só são mimados se o pai e a mãe permitirem. “Só há exagero de preocupação, superproteção, mimos demais, crianças que não sabem dividir porque os pais as criam assim e isso independe da quantidade de irmãos ou o tamanho da família. Depende exclusivamente dos pais, de como eles tratam essa criança.” Segundo ele, o ser humano tende a proteger suas coisas, a defender seu espaço, mas a situação piora se os pais não têm uma postura firme.

                      A projetista Maria Otília Soares Costa, de 50, decidiu criar só o Diego, hoje com 20, numa época em que não era tão comum. A maioria das amigas têm dois ou três. Ela diz que não se arrependeu, mas recebeu cobranças. “Até hoje brincam comigo para arrumar mais um.” O marido, o engenheiro civil Ivan Carlos da Costa, de 56, quis aumentar a família, mas diante da decisão da mulher resolveu não pressionar. “Pensei em ter mais, mas é ela quem carrega, eu não podia exigir. Foi tranquilo aceitar”, afirmou indicando que é preciso que o assunto seja resolvido em comum acordo. 

                      Diego diz que nunca sentiu falta de mais alguém para dividir o quarto, mas confessa que foi mimado. “Eles sempre fizeram tudo para mim, sempre tive tudo que quis, mas eles tiveram o cuidado de me dar limites como aconteceria em uma família grande”, afirmou. Quantos filhos quer ter? “Uns dois. Quero aumentar minha família e dar uma companhia para o meu filho. Com dois a casa fica mais agitada.”

                      CUIDADOS
                      Veja algumas dicas da presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp), Quézia Bombonatto, para os pais que querem ter apenas um filho

                      » Ao decidir ter filho, saiba que educar exige tempo dos pais 
                      » Ofereça à criança a oportunidade de estar com outras crianças. Coloque em escolas, não deixe muito tempo em casa, para que ele aprenda a fazer trocas
                      » Fique atento às queixas sobre o seu filho. Não pense “meu filho jamais faria isso” porque ele faz
                      » Tenha equilíbrio entre o que está oferecendo e o que está sendo pedido por ele. Antes de atender a um pedido, veja se é realmente necessário ou se o fato de privá-lo algumas vezes não é muito mais educativo do que oferecer tudo
                      » Cuidado para não oferecer antes que ele deseje. Você estará privando seu filho de ir em busca, de lutar por algo e ele se torna um insaciável
                      » Desejo de criança não é ordem. É algo para ser pensado e visto se é ou não oportuno. Não é porque desejou que tenho que dar
                      » Evite os brinquedos em excesso principalmente em datas como aniversário, Natal e Dia das Crianças. Deixe que ele escolha, guarde alguns para que ele brinque depois. Você estará dizendo que não se pode ter tudo o tempo inteiro
                      » Com cuidado na segurança, não crie seu filho em uma redoma. Crie situações para que ele saia e se vire sozinho, que seja mais independente
                      » O fato de ser mãe ou pai não anula o lado pessoal. Não deixe que isso aconteça, dedique também à vida pessoal

                      Futuro sem crianças 

                      As pesquisas feitas pelo IBGE mostram que o país está encolhendo. E especialistas afirmam: vai diminuir ainda mais. A lógica observada é de quanto maior a escolaridade da mulher, menor é o número de filhos. Elas também têm renda alta e esperam mais tempo para engravidar ou decidem por não reproduzir. A sigla “dinc” criada nos Estados Unidos já chegou ao Brasil e, para a demógrafa Luciene Longo, é o futuro: double income and no children, são os casais de dupla renda que optaram por não ter filhos. “A expectativa é que aumente o número de casais dinc, a não ser que daqui a um tempo as pessoas comecem a reverter a situação”, afirmou.

                      A diminuição de filhos por mulher, segundo Luciene Longo, começou a se acentuar na década de 1970 e chegou hoje a um número abaixo do nível de reposição, que é 2,1. “Isso significa que se a mulher continuar tendo filhos como hoje uma geração não vai repor a outra. Ainda acredita-se que vai diminuir mais, mas não muito mais que isso (1,90 filho por mulher), a próxima projeção deve chegar a 1,5”, explicou. A ideia de ter um único filho ainda gerou outro termo: o unigênito. Ele é utilizado pelo ex-marido de Maria Teresa Vieira Castro, de 52 anos, mãe da Maria Amorim, de 15. “Foi uma opção do casal e meu ex-marido falava muito isso: ela é nossa filha unigênita.” Segundo dados do IBGE, em 2010, 13,11% das mulheres com idade entre 50 e 54 anos tinham apenas um filho, enquanto 30,21% tinham 2 e 27,07% tinham 3. 

                      Alvaro Bernardes Cota Ribeiro, de 21 anos, passou a infância pedindo um irmão para os pais. Ele já tinha uma irmã do primeiro casamento do pai, mas queria mais. “Tenho muito contato com meus primos, mas até uns 10 anos tinha muita vontade de ter um irmão da mesma idade. Na época me sentia um pouco sozinho, mas depois me conformei.” Hoje, vê pontos positivos em ser único. “As despesas dos pais são só para você, não tem que dividir presente ou o quarto, fiz vários cursos, nunca tive problema financeiro. Vejo que quem tem irmãos sente falta de privacidade, brigam muito e eu gosto de não ter que enfrentar isso”, afirmou. Ao mesmo tempo, acha que os pais souberam lidar bem com  a situação. “Eles negavam as coisas para mim na hora certa, falavam não e eu adquiri consciência de que custava dinheiro.”

                      Para a mãe dele, Marisa Bernardes, de 51, o filho teve muitas mordomias. “Ele mora em uma casa grande, estudou em escolas particulares, viajou muito, ganhou um carro zero aos 18 anos, mas acho que não foi mimado. E eu nunca fui neurótica, deixava que ele viajasse com os amigos, fui liberal, isso ajudou.” Já para José Cota Ribeiro, de 58, corretor de seguros, pai de Alvaro, criar filhos hoje não é fácil e os casais precisam pensar bem antes na quantidade. “Ter filhos é uma experiência que dá alegria, mas demais deixa de ser prazerosa. Acho que o ideal é um casal ou um só”, disse.

                      A presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp) e terapeuta familiar, Quézia Bombonatto, analisa que criar um único filho pode ser tão difícil quanto ter dois ou três. Isso, segundo ela, porque os pais precisam fazer um exercício o tempo inteiro para compensar a falta de outro. “Essa criança tem mais dificuldade de dividir, de aceitar alguns limites e não é um mito que eles são mais paparicados porque a atenção é toda voltada para eles”, afirmou. Segundo a especialista, ainda há outro agravante: “toda a expectativa de sucesso fica em cima desse filho e ele fica com a responsabilidade de corresponder a família inteira”. E ela indica que a dinâmica familiar tem a ver com uma paternidade e maternidade pensada, responsável. Os pais têm que saber que criar e educar é um processo que demanda tempo e dedicação, sem exigir muito do filho nem oferecer tudo.”

                      PALAVRA DE ESPECIALISTA » Cuidados e apoio na medida do necessário 

                      Quézia Bombonatto
                      Presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia e terapeuta familiar

                      “O filho único perde a oportunidade de fazer negociações, mas é importante que os pais tenham a compreensão de que precisam dar oportunidade de crescimento e muitas vezes oferecer tudo impede que a criança conquiste. Caso contrário, eles não crescem, ficam na dependência de alguém fazer por eles. Nesse sentido, ter um só é mais complicado. Se tenho dois ou três, vou ter que dividir a atenção para cada um, mas ao mesmo tempo dissemino um pouco mais de responsabilidade, eles aprendem a ser mais independentes. Se os pais têm ciência de que precisam dar condições para que a criança caminhe sozinha, que ela não vai poder ter tudo o que quer, que não vai poder fazer tudo por ela, aí é indiferente, mas exige muito mais porque eles ficam sempre se policiando para exercer o desenvolvimento dessa competência. O importante é que cada filho seja visto como o único, que ele é um a mais dentro da sociedade e precisamos prepará-lo para competir, dividir e aceitar a diversidade.”