segunda-feira, 29 de abril de 2013

A importância da ficção científica - Luli Radfahrer

folha de são paulo

Desde 1972 que ninguém mais visita a Lua. Pouco importa que cada bolso guarde um smartphone mais potente do que toda a Nasa da década de 70.
O Futuro perdeu-se de vista. No horizonte próximo o cenário parece catastrófico. Cheio de hackers, tecnologias daninhas, inteligências malignas, desastres ecológicos e holocaustos em geral. O gênero cyberpunk, alimentado pelo pessimismo pós-moderno de Jean Baudrillard e de seus comparsas e materializado em distopias como O Exterminador do Futuro e os livros de Philip K. Dick ("Blade Runner", "Minority Report", "Total Recall") parece ter vencido toda e qualquer utopia. Estaríamos mesmo destinados a um presente contínuo em que nada é criado, apenas transformado para pior? Será que os otimistas foram todos devorados por zumbis, vampiros e alienígenas sanguinários?
A ficção científica parece viver uma nostalgia depressiva. Fala-se em lendas góticas, histórias medievais, sociedades secretas e bruxarias diversas. A trilogia "Matrix", grande sucesso recente do gênero, fez referências rasas a praticamente todas as religiões, correntes de autoajuda e versões simplificadas da Caverna de Platão. Em outros círculos, pouco se cita além de um "Grande Irmão" --inventado em 1948-- e de um "Admirável Mundo Novo" --de 1932.
Essa crise não passaria de um lamento intelectual se o gênero não fosse tão importante. Boas obras desse tipo de fantasia costumam gerar visões icônicas, inspiradoras, materializando personagens, produtos e cenários muito além do que pode supor nossa vã Engenharia.
Ao contextualizar uma história em um ambiente de inovação tecnológica, seus autores precisam imaginar a integração das novas ideias ao cotidiano. Esse é o componente que muitos cientistas e empreendedores se esquecem de levar em conta quando implementam suas ideias. É só pensar na influência de Google, iPhone e Facebook na vida pessoal para compreender o tamanho da encrenca.
Quando popular, a ficção científica cria modelos de compreensão universal. Seria muito difícil explicar um "campo de força" sem ela. Além disso, suas histórias antecipam questões éticas. Os contos de Isaac Asimov levaram os debates metafísicos para mundos a princípio distantes deles, como a Robótica e a Inteligência Artificial. Seus colegas discutiram extensivamente os problemas de clonagem antes de qualquer filósofo ouvir falar do termo.
Os inventores do submarino e do helicóptero confessam a importância da obra de Júlio Verne em seus protótipos. Os livros de H.G. Wells tem influência direta na invenção do foguete, no alerta quanto ao risco de bombas atômicas e no uso pacífico da energia nuclear. Em tempos mais recentes, poucas obras foram tão marcantes quanto a série de TV "Jornada nas Estrelas".
Muitos a associam a convenções de nerds com orelhas pontudas, falando em Klingon. Sua influência, no entanto, vai muito além de um simples fetiche. Inspiradas em westerns e nas "Viagens de Gulliver", as expedições da Enterprise já teriam sido importantes por mostrarem o primeiro elenco multirracial e o primeiro beijo entre pessoas de diferentes etnias na telinha.
Mas ela fez muito mais do que isso: mostrou monitores de computador em quartos e salas de reunião, fones de ouvido sem fio, telas planas de grandes dimensões e alta definição, videofone, interfaces sensíveis ao toque e sensores de biometria diversos, capazes de reconhecer vozes e identificar palmas da mão e retinas.
Sua popularidade foi tamanha que fez o inventor do Altair 8800, o primeiro microcomputador, dar a sua máquina o nome de uma das galáxias citadas na série.
O primeiro telefone celular foi claramente inspirado no comunicador portátil usado pelo Capitão Kirk e Sr. Spock. Para Martin Cooper, diretor de pesquisa da Motorola na época, o seriado não mostrava uma fantasia, mas um objetivo. Tanto que apelidou um de seus modelos mais famosos de StarTAC.
O comunicador, como boa parte dos smartphones de hoje, também servia para localizar seu portador. Mas o GPS só seria possível graças a uma invenção de outro autor de ficção científica: Arthur C. Clarke, que o descreveu em um artigo de 1945 como sugestão para facilitar a navegação e a transmissão de sinais de TV. Desnecessário dizer que sua invenção levou duas décadas para ser levada a sério. Um conto de Arthur C. Clarke, "Disque F para Frankenstein", fascinou o jovem Tim Berners-Lee, e o inspirou a pensar em uma grande rede mundial de computadores.
Está na hora de reativar a ficção científica. De pensar em um futuro melhor, mais limpo e otimista, que não deixa de se preocupar com o "Show de Truman" mas que também imagina o teletransporte.
É certo que uma ficção melhor não salvará o mundo, mas pode inspirar a invenção de novos produtos que melhorem a qualidade de vida. E mostrar para neurocientistas, psicólogos e pesquisadores hoje a serviço de corporações, bancos de investimentos e agências de publicidade, que há objetivos mais nobres do que a dominação do mercado.
Inspiração não falta: Júlio Verne defendia que o que pode ser imaginado pode ser inventado. Arthur C. Clarke dizia que tecnologias avançadas são parecidas com mágica. E o narrador de "Jornada nas Estrelas" elogiava os que tinham a coragem de ir aonde ninguém jamais esteve.
Luli Radfahrer
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.

Leia poema infantil de Paulo Leminski publicado pela 'Folhinha'


Folha DE SÃO PAULO

Folhinha 50 AnosO escritor Paulo Leminski é famoso entre adultos, mas ele também escrevia para crianças.
Em 1985, Leminski escreveu o poema "A Lua no Cinema", sobre uma estrela que não tinha namorado. O texto foi publicado pela 'Folhinha'.
Leia a íntegra, publicada em 3 de novembro de 1985, abaixo.
*
A Lua no Cinema
A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado.
Era a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
- Amanheça, por favor!
PAULO LEMINSKI, é poeta
Ovidio Vieira/Folhapress
Paulo Leminski nas ruas de São Paulo em foto de 1983
Paulo Leminski nas ruas de São Paulo em foto de 1983

Zoólogo, Paulo Vanzolini teve grande importância para a ciência

folha de são paulo

REINALDO JOSÉ LOPES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Musicalmente, Paulo Vanzolini não parece ter sido um grande apreciador do samba de breque, mas a hipótese que ele ajudou a desenvolver para explicar a imensa biodiversidade do Brasil lembra uma versão evolutiva das idas e vindas do ritmo.

Trata-se da chamada teoria dos refúgios, que o herpetólogo (especialista em répteis e anfíbios) desenvolveu em parceria com o geógrafo Aziz Ab'Sáber (1924-2012). A tese, formulada a partir do fim dos anos 1960, afirma que o vaivém climático dos últimos milênios da Era do Gelo teria funcionado como um gerador de espécies.
A ideia é que, entre 18 mil e 14 mil anos atrás, conforme períodos mais frios e secos se alternavam com outros momentos mais quentes e úmidos, as áreas de floresta na Amazônia e na mata atlântica, por exemplo, passavam por fases de contração e expansão, já que "preferiam" mais calor e umidade.
Nos períodos frios e secos, as espécies da mata teriam ficado isoladas em arquipélagos de floresta, em meio a um mar de vegetação mais aberta, parecida com o cerrado atual. Seriam os chamados refúgios.
Acredita-se que esse tipo de isolamento é um dos fatores mais importantes para que as espécies se diversifiquem, já que cada população de animal, separada das demais, poderia cruzar apenas entre si, desenvolvendo características únicas que, mais tarde, impediriam que seus membros voltassem a gerar filhotes com os de outras populações.
Quando a Era do Gelo acabou e estabeleceu-se o clima relativamente quente e úmido que conhecemos, os refúgios foram reconectados, formando áreas contínuas de floresta, mas cada um deles reteve suas espécies únicas, ou endêmicas, como dizem os biólogos.

Paulo Vanzolini

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Zé Carlos Barretta - 10.mar.2013/Folhapress
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Paulo Vanzolini se apresenta no 'El Grande Conserto' no Teatro Oficina
Nas últimas décadas, a teoria dos refúgios andou sob ataque, já que o ritmo da diversificação de espécies parecia não bater com o proposto por Vanzolini e Ab'Sáber, mas ninguém deixou de reverenciar a importância científica do zoólogo-sambista. Ele ajudou a zoologia brasileira a deixar de ser a mera busca pela descrição ("batismo" científico) de novas espécies e a pensar em hipóteses evolutivas, enxergando padrões históricos numa diversidade antes confusa.
O trabalho de Vanzolini também foi importante numa escala mais prosaica, mas nem por isso menos importante: ele ajudou a estruturar o gigantesco acervo de exemplares hoje abrigados no Museu de Zoologia da USP - eram mil quando ele assumiu, hoje chegam a 300 mil. Essa biblioteca de animais é crucial quando um pesquisador está tentando saber se tem em mãos uma nova espécie, porque o cientista sempre compara o exemplar que coletou com os exemplares de referência dos grandes museus.
Colegas o recompensaram por essa dedicação ao batizar dezenas de espécies com seu nome, de cobras-de-duas-cabeças a um macaco.
Sua trajetória científica está resumida no livro "Evolução ao nível de espécie - Répteis da América do Sul", de 700 páginas, lançado em 2010 pela editora Beca, contendo 47 artigos publicados entre 1945 e 2004. A obra também vem com um CD-ROM no qual se pode ver a obra completa de Vanzolini no formato PDF.

Quadrinhos

folha de são paulo

CHICLETE COM BANANA      ANGELI
ANGELI
CHICLETE COM BANANA      ANGELI
ANGELI
DAIQUIRI      CACO GALHARDO
CACO GALHARDO
MUNDO MONSTRO      ADÃO ITURRUSGARAI
ADÃO ITURRUSGARAI
BIFALAND, A CIDADE MALDITA      ALLAN SIEBER
ALLAN SIEBER
MALVADOS      ANDRÉ DAHMER
ANDRÉ DAHMER
MALVADOS      ANDRÉ DAHMER
ANDRÉ DAHMER
GARFIELD      JIM DAVIS
JIM DAVIS

HORA DO CAFÉ      LÉZIO JÚNIOR
LÉZIO JÚNIOR

Vanzolini foi muito mais que um cronista de São Paulo

folha de são paulo

LUIZ FERNANDO VIANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na década de 1940, Paulo Vanzolini dedicou-se à boemia, começou a compor, formou-se médico e iniciou sua internacionalmente bem-sucedida carreira de zoólogo.
É irresistível especular que há mais complementaridade do que mera coincidência nessa superposição de atividades com aparências tão diferentes.
O cientista que conhecia todas as minúcias de répteis e anfíbios também era o autor de sambas que iam direto ao ponto, fazendo ricas apresentações de personagens e histórias sem se perder em versos demais, salvo exceções extensas como a primorosa "Capoeira de Arnaldo".
"Vida comprida e vazia/ Dias e noites iguais./ Morte é paz" ("Morte É Paz"); "Quando eu for, eu vou sem pena/Pena vai ter quem ficar" ("Quando Eu For, Vou sem Pena"); "Só pretendo/ Que de tanto mentir,/ Repetir que me ama,/ Você mesma acabe crendo" ("Mente").
Além dessas músicas amargas, com o travo das noites paulistanas que ele frequentou e interpretou tão bem, há as divertidas, temperadas com o humor dos boêmios mais inteligentes.
"Mulher que não dá samba eu não quero mais" ("Mulher que Não Dá Samba"); "Orgulho eu não tenho/ Mas sou homem demais pra cinquenta por cento" ("Maria que ninguém queria"); "Pondo a modéstia de parte,/ É Napoleão Bonaparte e eu/ Que sabemos de verdade/ O quanto dói uma saudade" ("Napoleão").
Em 2003, foi lançada a caixa de quatro CDs "Acerto de Contas", com 52 músicas de Vanzolini regravadas por Chico Buarque, Paulinho da Viola, Miúcha, Elton Medeiros, Martinho da Vila e muito mais gente.
Era a prova irrefutável, caso alguém ainda tivesse dúvida, de que sua obra ia muito além de "Ronda" e "Volta por Cima", seus dois grandes sucessos - tão grandes que incomodavam a sua discrição, sobretudo o primeiro, pois não morria de amores pelo samba-canção terminado num bar da avenida São João.
Paulo Vanzolini não se reduz a classificações fáceis. Não é apenas um cronista de São Paulo, embora seja um dos melhores, com mais nuances do que seu amigo Adoniran Barbosa.
Não é só da fossa, da bossa, das moças. Mexeu em temas e linguagens variadas com seu bisturi preciso. O jeito econômico, refletido numa discografia de quatro títulos (apenas um com sua voz), é coerente com o que compôs.
Ouvi-lo é sempre comover-se e, ao mesmo tempo, levantar e sacudir a poeira.
Luiz Fernando Vianna é jornalista, autor de "Aldir Blanc - Resposta ao Tempo" (Casa da Palavra).
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KLEDIR RAMIL - Música e matemática

Zero Hora - 29/04/2013

Por incrível que possa parecer, Kleiton e eu somos formados em engenharia. Eu sou engenheiro mecânico, e ele, eletrônico. Cantores-engenheiros não são raros na MPB: Ivan Lins, João Bosco e Francis Hime também são. No fim é isso, artistas, engenheiros é tudo a mesma turma.

Para fazer um show, por exemplo, a gente depende de vários profissionais da área. Precisamos de um prédio, um teatro com tratamento acústico e equipamentos elétricos/eletrônicos de última geração. Nossos instrumentos musicais são ferramentas de alta precisão, projetados segundo formas, medidas, resistência dos materiais e até cálculo de engrenagens, como é o caso das chaves usadas para afinar as cordas do violão.

O mundo está cada vez melhor graças aos engenheiros, nossos colegas. Se não fosse o domínio de toda essa tecnologia, nós estaríamos vivendo no meio do mato, cantando e dançando na volta de uma fogueira.

Adoro ciências exatas, tenho uma mente concreta, um pensamento lógico. O problema é que eu era um cara atrapalhado com as questões afetivas e corria o risco de me tornar um sujeito cartesiano. A música me salvou. Encontrei uma atividade absolutamente rigorosa, de precisão matemática, onde posso extravasar as minhas emoções.

Música é pura matemática. O que a gente chama de nota musical é, na verdade, uma frequência determinada. Lá 4 é uma vibração de 440 hertz. Frequências mais altas, notas mais agudas. Mais baixas, notas graves. Além da altura, uma nota musical tem um tempo de duração, curto ou longo.

Uma sequência de notas “constrói” uma melodia. Notas tocadas ao mesmo tempo criam acordes, harmonias. Aí, esse monte de notas com frequências e tempos variados, são executadas em um ritmo, tipo 4/4, 6/8... E com um andamento determinado, como 120 bpm (beats por minuto). Por isso, é necessário um maestro para fazer uma contagem e dirigir a orquestra.

Além de todas essas medidas musicais, na hora de compor uma canção ainda é preciso “encaixar” uma letra. Versos respeitando a métrica (um número certo de vocábulos), a prosódia (a acentuação tônica das palavras coincidindo com a acentuação melódica) e a rima. Aí, no fim, tudo isso tem que fazer algum sentido e ter um mínimo de beleza. Ou seja, é uma loucura, é mais complicado do que construir um edifício. Acho que vou voltar pra engenharia.

Comentário final: Maria Fumaça... só mesmo dois engenheiros malucos para fazerem uma canção de amor em homenagem a uma locomotiva.


Gays de Cristo - Laura Capriglione

folha de são paulo

Cerca de 500 fiéis, entre homossexuais, travestis, transgêneros e até héteros, assistem ao culto de estreia do primeiro templo da Igreja Cristã Contemporânea em São Paulo, na zona leste
LAURA CAPRIGLIONEDE SÃO PAULOA igreja lotou no sábado à noite de gays, lésbicas, travestis, transgêneros. Eram uns 500, em trajes que iam do terno e gravata até as plumas e paetês dos travestis que deram o ar da graça no templo, localizado no bairro do Tatuapé, zona leste de São Paulo.
Culto de estreia da Igreja Contemporânea em São Paulo, viam-se aqui e ali, também, uns gatos pingados heterossexuais (em geral familiares de gays convertidos).
Fundada há seis anos pelos pastores Fabio Inacio de Souza e Marcos Gladstone, casados desde 2009 e há dois anos pais adotivos dos meninos Felipe, 7, e Davidson, 9, a Contemporânea entra no disputado mercado da fé oferecendo mercadoria rara entre religiosos em geral: a aceitação total da homossexualidade.
"Somos contra a demonização do público gay, patrocinada por evangélicos como o deputado-pastor Marco Feliciano [PSC-SP] e por Silas Malafaia", diz Fabio Inacio, 33, que descobriu ser homossexual ainda criança e viveu "dentro do armário" até os 24, quando se assumiu.
Ainda enrustido, ele conseguiu durante quatro anos manter-se como pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. Nunca se sentiu discriminado, diz. "A maior discriminação contra mim era eu mesmo que fazia, por não corresponder àquilo que minha família e minha religião esperavam de mim. Eu sofri isso durante toda a minha infância e adolescência."
BOATE DA FÉ
Nos embalos de sábado à noite na igreja, viam-se casais homossexuais masculinos e femininos enroscados, trocando carinhos --respeitosos, diga-se. Em várias músicas religiosas, a iluminação era rebaixada e o templo transformava-se em boate, meninos dançando abraçados. Alguns, emocionados, chegavam a chorar.
Crianças, como Andressa, 9, também assistiam ao culto. Aplicada, a menina lia a Bíblia, seguindo as indicações do pastor. Estava com a mãe, de 48 anos, que não quis se identificar. Vestido até a canela, decote zero, nenhuma maquiagem, a mulher parecia estar no culto errado.
Por que a senhora está aqui? E ela apresentou a "amiga", de 52, vestida com o mesmo rigor que ela.
As duas ficaram sabendo pela internet que haveria a inauguração da igreja e quiseram ver como era. Prometeram voltar no dia seguinte, dia de culto também. Mas ainda não decidiram quando e nem se sairão do armário.
Os planos dos pastores Fabio Inacio e Marcos Gladstone são ambiciosos. Incluem abrir dez novos templos em São Paulo, nos próximos dois anos, além dos que já possuem no Rio (onde estão implantados principalmente na Baixada Fluminense) e em Belo Horizonte.
Segundo a igreja, já se contabilizam 1.800 fiéis dizimistas, 95% dos quais são homossexuais. Os pastores rejeitam a interpretação antigay da maioria das denominações evangélicas. Dizem que as passagens bíblicas que condenam a sodomia não passam de traduções mal feitas, "maliciosas, com a exclusiva finalidade de fomentar preconceito e exclusão".
A designer de joias Valeska Castelane, 43, de tailleur em tecido perolado, elegante, entende de exclusão. Nascida em uma família evangélica, ela assumiu sua transexualidade aos 20, quando foi arremessada diretamente para a prostituição. "Sou ex-tudo de pior que você possa imaginar", afirma. "Hoje, pela primeira vez, estou vivendo esse sonho de ser quem eu sou e ao mesmo tempo poder louvar esse Deus que me ama e me fez assim: transexual."
O culto durou quase três horas, ao final das quais, como sempre acontece, distribuíram-se os envelopes para recolhimento dos dízimos.

    Educação para melhorar a política - RENATO JANINE RIBEIRO

    Valor Econômico - 29/04/2013

    Como podem a educação e a cultura conduzir-nos de uma democracia de consumidores, na qual um dos grandes critérios para medir a inclusão social é o aumento nas vendas a crédito - para uma democracia em que as pessoas estejam menos presas ao consumo, com o que este tem de arriscado e perigoso: pois é efêmero e, o que é pior, torna o voto quase consequência de certas politicas governamentais? Entre elas, a irrigação de dinheiro na praça, a venda a preço baixo de mercadorias de má qualidade e, sobretudo, o fato ou suposição de que ganha votos quem esparrama o crédito pelo comércio. A confiança no governo, fator crucial para ganhar eleições, parece oscilar em função do crédito na praça.

    Esta situação faz pairarem duas restrições à qualidade de nossa democracia. A primeira está no tipo de eleitor e cidadão que ela forma: seus valores principais estão no bolso. Não são valores políticos. São valores do consumo. É verdade que sustentei, anos atrás, em meu artigo "A inveja do tênis", que muitas vezes os pobres sentem maior desejo por bens de consumo, como um tênis de grife, do que pelas necessidades básicas da vida social: saúde, educação, trabalho, moradia e segurança. O consumo é forte na política atual.

    A segunda restrição é que o consumo está em boa medida nas mãos do governo. Ele pode, abrindo e fechando as torneiras, influir nos resultados das eleições. A condição é marcar o ano da eleição presidencial pela expansão do crédito ao consumidor. Obviamente, nem do lado do eleitor, nem do governo, essa situação é positiva para a democracia.

    O que sugiro aqui é uma crítica que lembra a dos filósofos, ao longo da história, às ilusões do consumo. Podemos viver num mundo das aparências, aturdidos por uma sucessão de prazeres - já que a natureza destes é durarem pouco, precisando ser trocados o tempo todo. Nenhuma sociedade conseguiu, antes da nossa, fornecer tantos prazeres a tantas pessoas. Mas os filósofos criticam isso. Dizem que assim se perde de vista a felicidade que, nas palavras de Rousseau, não é uma sucessão de prazeres, que sempre terminam em saciedade ou frustração, mas "um estado simples e permanente, no qual a alma se basta a si mesma". Pois é. Nada mais longe de nós, exceto daqueles, bem minoritários, que mesmo sendo ricos se orientam para o budismo ou outra sabedoria, geralmente oriental. Porque o grande problema da aposta nos prazeres (dizem os filósofos) ou no consumo (supomos hoje) é o risco, o "day after", a ressaca - e ainda a impossibilidade do autogoverno. Quem é joguete do seu desejo não se autogoverna. Quem é refém de seus prazeres não vive em democracia.

    Como mudar isso? Penso que há três ingredientes fortes que podem mudar a orientação das coisas. Começo pelo esporte, mas entendendo-o, a exemplo do movimento MOVE (iniciativa internacional que no Brasil foi encampada pelo SESC de São Paulo), não como esporte competitivo, como projeto de investir milhões em atletas de escol a fim de obter medalhas olímpicas, em sua, não como gerador de espetáculo - mas como promoção da atividade física do maior número possível de pessoas. Basta um dado: por volta de 2005, nosso Ministério das Cidades queria baixar o porcentual de pessoas que vão a pé para o trabalho (por não terem dinheiro para a passagem), enquanto o Departamento de Saúde norte-americano pretendia aumentar esse porcentual (para aumentar o exercício físico dos cidadãos). Há mérito nas duas iniciativas, mas o futuro é da segunda.

    Depois, a cultura. Cultura e educação são, se formos à etimologia, duas formas de indicar como o homem se separa da animalidade. Cultura se opõe a natureza. Educação significa sair de um lugar para outro, melhorando. Bebês, que são quase animais, se veem educados para se tornarem humanos. A educação tem assim um currículo, uma regularidade, que a faz ocupar mais de dez anos da vida das pessoas. Ela é absolutamente necessária. Agora, ninguém espera que a cultura tenha um currículo, uma lista de obras imprescindível, sequências necessárias a cumprir, exames a prestar. Há um aspecto obrigatório na educação e um gratuito na cultura, que colocam esta última do lado do prazer, do prazer bem usado.

    Assim, dos três fatores que podem reduzir o canto de sereia do consumismo, um precisa ter um roteiro obrigatório e longo, que é a educação, enquanto os outros dois, cultura e atividade física, só funcionam se prodigarem satisfação. Precisamos dos três. Eles constituem fortes exemplos de que o dinheiro não pode tudo, até porque muito esporte e muita cultura são gratuitos, mas mais que isso: o que se ganha com eles não se perde. Esta é a enorme diferença com o consumo. O que se consome, como diz a palavra, está consumido, queimado, liquidado. Já a educação fica, assim como a cultura e a atividade física se incorporam ao sujeito. Posso esquecer todos os filmes que vi, os jogos de que participei, mas minha mente e meu corpo se enriqueceram graças a eles.

    Será então o fortalecimento destas três áreas um bom antídoto ao avanço, que até parece irresistível, dos excessos nos games, nas unhas esmaltadas das moças em ascensão social, da ideia de que "my pussy é meu poder", que reduz o poder a um de seus componentes básicos, primitivos, o de que tudo gravita em torno de quem controla o acesso ao prazer sexual, o homem pela opressão, a mulher pela sedução? Nenhum desses prazeres é mau em si. A questão, e lembro Foucault, está no uso dos prazeres. Eles precisam ter seu devido lugar. E para o terem é preciso fortalecer essas três áreas que mencionei: para além do prazer, a felicidade.