O Globo - 18/11/2012
“Não aceito injustiças. Somos uma
só raça, a raça humana. Não aceito
preconceitos. Às vezes, penso que
deveria ser alienada, mas não sou. Se
vejo qualquer ação preconceituosa,
falo. Cuspo meus marimbondos”
Na certidão de nascimento consta meu nome de batismo: Áldima. Depois que me tornei uma operária da música, o Paulo Gracindo me batizou de Áurea Martins. Foi quando, em 1969, ganhei o prêmio de melhor cantora no programa “A grande chance”, no Teatro Municipal, do Flávio Cavalcanti. E de uma imagem não esqueço: a Mayza me estendendo uma rosa, homenagem talvez à ousadia de escolher uma canção dificílima de Dolores Duran e Ribamar, “Pela rua”, para disputar o prêmio. Quarenta anos depois, no Canecão, ouço a Fernanda Montenegro me anunciar como vencedora na mesma categoria, e berrei como se estivesse com a boca num megafone: “Mas eu?” E, baixinho, disse para mim mesma: “Olha só onde essa Cara Preta chegou!”
Uso de forma bem-humorada a expressão “Cara Preta”. Entretanto, por trás desse bom humor, procuro me manter esclarecida sobre as condições as quais o negro está submetido na sociedade contemporânea, condições essas caracterizadas pelas mais diversas maneiras de segregação (geográfica, midiática, artística, dentre outras). Fazendo um recorte socioespacial do Brasil, é importante dizer que em nosso país o preconceito racial, na maioria das vezes, ocorre de forma velada, nas entrelinhas, e este é um dos principais motivos pelos quais o racismo ainda mantém tantas raízes.
Nesses anos posso falar que, sendo negra e cantora, tenho como referência a música do Billy Blanco “A banca do distinto”, que escreveu para Dolores Duran, negra e cantora, que também sofreu preconceitos e descriminações.
Nosso país segue, por muitas vezes, o modelo europeu e americano. Nós somos um país miscigenado, o qual deveria dar igualdade de condições para todos.
Se hoje temos mais negros — não gosto da palavra mulato — nas mídias é porque nossa cultura é forte e inteligente. O samba, o hip hop, o jongo, o funk, a black music... Não estamos tão invisíveis.
Mas sinto falta de negros nos shows que frequento e que faço. Participei de uma roda de samba numa comunidade pacificada e só vi meninos e meninas da Zona Sul. Quero todos, não aceito invisibilidade. Que as comunidades sejam pacificadas, mas para todos terem segurança e liberdade.
Sei viver bem, e viveria melhor se não tivesse ainda que conviver com o preconceito. Tenho uma personalidade forte, talvez por ter vivido esses anos passando por muitas situações de preconceito racial. Não aceito injustiças. Somos uma só raça, a raça humana. Não aceito preconceitos de jeito nenhum. Às vezes, penso que deveria ser alienada, mas não sou. Sou justa. Se vejo qualquer ação preconceituosa, falo. Cuspo meus marimbondos.
Quanto a cantar, continuo aí, feliz por ter cantado até hoje o que gosto e sem amarguras. E cantar o que gosto é uma das minhas mais importantes respostas ao preconceito racial, pois representa a minha liberdade artística, a minha assinatura de autoalforria, a minha transgressão ao monstro silencioso da segregação. Levo a vida sem preconceitos ou conceitos. Tenho meu reconhecimento digno. E para concluir esta coluna remeto-me à letra da já citada “A banca do distinto”, que expressa, com humor e dureza, o princípio que rege a condição de igualdade entre todas as etnias. “Todo mundo é igual, quando o tombo termina: com terra por cima e na horizontal.”