folha de são paulo
Um mar de tubarões
Crítico traça guia para navegar por 150 anos de produção artística
CASSIANO ELEK MACHADO
RESUMO
Autor de "Isso é Arte?", Will Gompertz afirma que os artistas nunca se guiaram tanto como agora pela relação com o dinheiro e diz que isso define a ausência de crítica quanto ao que se produz e exibe. Para o editor da BBC, falta ao grande público informação que permita ficar à vontade para avaliar a produção atual.
O cliente que pede "quero esta em azul" e que ouve o lojista responder "esta só vou ter bege", numa loja da cadeia Gap na 5ª Avenida, em Nova York, não tem como saber, mas naquela mesma esquina começou o maior terremoto da arte do século 20.
Numa segunda-feira de início de abril, em 1917, outro cliente entrou no estabelecimento que então ocupava o número 118 da avenida, a tradicional loja de ferragens J.L. Mott e, daquela barafunda de maçanetas, pias e banheiras de ferro, saiu carregando no colo um mictório de porcelana branca.
O nome do rapaz, claro, era Marcel Duchamp (1887-1968), e o tal urinol, igual aos que eram instalados em milhares de banheiros comuns, se converteria pouco depois na "obra de arte mais influente criada no século 20".
As aspas são do inglês Will Gompertz, 47, editor de artes da emissora britânica BBC e ex-diretor da Tate Gallery, em Londres. E é com este episódio emblemático, do mictório que o artista francês transformou numa "escultura" chamada "Fonte", que ele abre o seu livro "Isso É Arte?" [Zahar, tradução Maria Luiza X. de A. Borges, R$ 59,90, 464 págs.], recém-lançado no Brasil.
Pouco importa que Duchamp não tenha conseguido à época expor o urinol e que a peça "original" tenha se perdido. Até a concepção de "Fonte", era o meio (tela, madeira, papel, mármore) que ditava o modo como o artista trataria da realização de sua obra. "Duchamp queria inverter isso. Considerava o meio secundário: o primordial era a ideia", escreve.
Gompertz não nos conta nada de revolucionário com isso. Há muitas décadas críticos e historiadores de arte de todo o mundo vêm mascando nervosamente esse momento de epifania artística. Mas não haveria outro começo para o livro que ele decidiu escrever.
Ao longo de centenas de páginas, o autor se propõe a discutir a pergunta expressa no título, segundo ele bastante frequente a espectadores cada vez mais numerosos de mostras mundo afora --e a fonte da questão foi o urinol.
O visitante do museu olha a cama desfeita e amarfanhada, com lençóis manchados (obra de 1998 da britânica Tracey Emin), ou o tubarão-tigre num aquário com formol (escultura de 1991 do também inglês Damien Hirst), coça o queixo e questiona: "Isso é arte?".
O escritor peruano Mario Vargas Llosa responderia que não, como expressa com veemência em "A Civilização do Espetáculo" [Alfaguara, tradução Ivone Benedetti, R$ 34,90, 208 páginas], analisado no texto ao lado.
Mas, para Gompertz, obras como o célebre tubarão de Hirst não só são arte como constituem grandes marcos do maior movimento em voga hoje, que ele ensaia batizar de "artetenimento" ou simplesmente de "empreendedorismo". O autor inglês, que virá ao Brasil pela primeira vez em setembro, como convidado da Bienal Internacional do Livro do Rio, conversou com a Folha por telefone sobre o cenário da mercantilização da arte.
Folha - Em "Isso É Arte?" o sr. enfatiza os aspectos financeiros do universo artístico e toma o leilão promovido por Damien Hirst em 2008 como um marco de um "movimento" atual, o empreendedorismo. Por que tamanho destaque para essa mercantilização?
Will Gompertz - É um encontro muito interessante o da arte com o dinheiro. Quase sempre foram sinônimo, como vimos no tempo dos Médici, em Florença, e na relação de Leonardo da Vinci com as cortes italianas. A novidade do momento que vivemos é que a relação entre dinheiro e arte ficou mais explícita, até um ponto, recente, no qual o artista virou literalmente um homem de negócios. Os artistas estão cumprindo a profecia de Andy Warhol de que a arte seria feita em fábricas. Artistas como Jeff Koons estabeleceram verdadeiras indústrias para elaborar obras para um mercado em crescimento constante. Antes abasteciam Europa e EUA, agora vendem para todo o planeta.
Como a relação entre dinheiro e arte tende a afetar a qualidade da produção artística?
Ela tem um efeito ruim para a arte em geral. Não acho que, de um ponto de vista histórico, a relação do artista com seus mecenas ou com homens de negócios tenha sido negativa. O impressionismo e o expressionismo abstrato, por exemplo, provavelmente não teriam sobrevivido sem o apoio inicial de agentes e outros investidores. Mas agora as coisas mudaram: o dinheiro assumiu um protagonismo inédito. E artistas gastam milhões de libras para produzirem objetos gigantescos e lustrosos, que parecem menos interessantes do que o que realizavam quando não tinham dinheiro algum.
Por outro lado, o sr. aponta que nunca tantas pessoas frequentaram exposições de arte como agora. Esse movimento não pode funcionar como um antídoto para a "mercantilização" artística?
É por isso que decidi escrever o livro. Há um grande público que precisa das informações históricas, para que possa decidir por conta própria o que acha que é boa ou má arte. Vivemos numa época em que nos é imposta a ideia de que tudo o que está em museus ou galerias é maravilhoso. Não há mais crítica a nada. Isso tem claramente relação com a mercantilização da arte e com todos esses museus que escolhem colecionadores milionários para serem conselheiros. Uma vez que o nome de um artista é estabelecido, não interessa a ninguém que seu valor de mercado seja afetado.
Há, portanto, desonestidade e corrupção no sistema. Isso significa que nós, os espectadores de arte, nunca temos ajuda. Um filme de Woody Allen ou um livro de um escritor famoso pode ser bem ou mal avaliado. Na arte é tudo bom.
O sr. faz um grande esforço para explicar por que centenas de artistas são realmente artistas, e não charlatões, mas não para mostrar que algum grande artista é um enganador. Por quê?
Acho que os verdadeiros charlatões são alguns colecionadores. O artista faz suas obras, e esse é o papel que cabe a ele. Se o colecionador ganancioso decide comprá-las só porque o nome do artista é conhecido, ele é que é o enganador.
Não existem obras de arte ruins que mereçam ser apontadas como tal?
O que eu tento fazer no livro é guiar as pessoas para o que é bom, o que não significa afirmar, e é o que eu acho, que 99% da arte produzida hoje é ruim, da mesma forma que a maior parte dos livros, filmes ou peças recentes não são muito bons. Não creio que faça sentido escrever um livro sobre a arte que não é boa. Seria estimular as pessoas a verem o que é ruim. Quero ajudar as pessoas a fugirem do que é um lixo apontando obras que merecem seu tempo.
No ensaio "O Pintor da Vida Moderna", de 1863, Charles Baudelaire dizia que "poucos homens são dotados da capacidade de ver". Após 150 anos, nós enxergamos melhor?
Acho que não. Talvez ainda pior do que há 150 anos. Tornamo-nos obcecados por nós mesmos. É a geração "eu". Você vê pessoas andando nos parques olhando para seus celulares, sem nem conseguirem manter uma conversa com o vizinho. Hoje há muito pouca gente apta a enxergar a vida além de suas experiências mais pessoais. A objetividade parece ser uma ação em queda no mercado.
A aproximação de multidões de pessoas à cultura da fotografia, com a difusão do digital e de aplicativos como o Instagram, não pode ajudar a educar o olhar?
Acho que isso só faz as pessoas se interessarem cada vez mais por elas mesmas e pararem de prestar atenção no universo do outro.
O sr. faz um trabalho de grande síntese, ao aglutinar 150 anos de arte. O sr. acredita que tenha conseguido acrescentar elementos novos à narrativa dessa história?
Acho que a razão de existir do livro é olhar a arte moderna a partir do século 21. Muitos o fizeram no século 20, mas faltava uma visão nova. O realmente novo, entretanto, seria um olhar para o que aconteceu nesse período fora da Europa e dos EUA. O que acontecia na China, na África, na América da Sul, nas áreas ignoradas pelo "establishment"? Esse talvez seja o tema de meu próximo livro.
Em sua história da arte, o sr. faz referências ao universo pop, como "Onde Está Wally?", Beyoncé, "Os Simpsons" e Susan Boyle. O sr. usou esses elementos a fim de atrair um público novo?
Sim, eu considero essas referências muito importantes para meu trabalho. O que quero afirmar ao citá-los é que a arte não existe só dentro da bolha dos artistas. Ela reflete a vida cotidiana. Deveríamos nos sentir tão confortáveis com a arte quanto nos sentimos com "Os Simpsons".
O sr. cita o Brasil em três ocasiões no seu livro, ao se referir ao Carnaval do Rio, a Brasília e ao artista contemporâneo Cildo Meireles. O sr. já esteve no país?
Não, e estou ansioso para chegar aí para a Bienal do Livro do Rio. Cito Meireles porque, na minha opinião, é um dos melhores artistas do mundo. É um gênio. Também sou um grande fã de Helio Oiticica e de Caetano Veloso, um de meus cantores preferidos.
Você tomou a decisão de não citar as fontes bibliográficas de sua pesquisa. Houve alguma obra central para a sua pesquisa?
Não. Usei muitos catálogos de mostras individuais de artistas. Também consultei instituições de pesquisa, visitei acervos e falei com curadores e críticos. Foram fontes mais importantes do que livros gerais de história da arte.
O sr. não menciona no livro diversos artistas contemporâneos destacados, como Anselm Kiefer, Gerhrad Richter, Anish Kapoor, Bill Viola. O sr. não acha que eles sejam de grande importância? Ou foi por uma questão de espaço?
A estrutura do livro foi construída em torno das escolas de arte moderna, não dos artistas. Trato essencialmente dos artistas que estabeleceram esses movimentos. No universo do expressionismo, por exemplo, eu começo em Van Gogh, em 1880. Mas o expressionismo continua até hoje, com grandes artistas como Kiefer. Eu poderia ter feito um livro inteiro só sobre o expressionismo, ou sobre Picasso, mas, por conta do formato que escolhi, tive de deixar alguns autores icônicos de lado.
É impressão ou o sr. gosta mais de Cézanne do que de Picasso?
Essa é difícil. Os dois foram colossos. Foram mestres e gênios e não consigo pensar numa obra da qual eu goste mais do que a pintura "O Retrato de Gertrude Stein" (1906), de Picasso. Mas Cézanne foi mais consistente e inovador. Picasso não poderia ter acontecido sem Cézanne.