Maior desigualdade nos EUA não é um problema por si só
Representante da ala mais liberal americana questiona quem aponta profusão de 'áreas vip' como sinal de decadência social do país
RICARDO MIOTODE SÃO PAULOA discórdia sobre o papel do Estado e sobre a crescente desigualdade nos EUA segue vivíssima na academia do país. Agora, ela é simbolizada pelos estádios de beisebol.
Décadas atrás, não existia área VIP ou camarote na liga principal. O sujeito pagava uns poucos dólares e sentava onde quisesse, ricos e pobres lado a lado -no máximo, um pouquinho a mais para ficar junto ao campo. Com os anos, a diferença entre o ingresso mais barato e o mais caro se multiplicou, criando "divisão social" na arena.
Para o pessoal mais à esquerda das universidades "progressistas" americanas, isso é o sinal de que o capitalismo solto significou concentração de renda. O governo deveria interferir para dar condições mais igualitárias a todos -seja no estádio, seja no hospital ou na universidade.
Membro famoso dessa ala é Michael Sandel, 60, de Harvard. Ele usa o beisebol, sua paixão, como argumento sobre a decência social do país no seu recém-lançado "O Que o Dinheiro Não Compra: Os Limites Morais dos Mercados" (ed. Civilização Brasileira).
No outro lado, estão especialistas de "think tanks" liberais, como Randy Simmons, do Independent Institute. Ele veio ao Brasil a convite do Instituto Millenium para lançar "Para Além da Política: Mercados, Bem-Estar e o Fracasso da Burocracia" (Topbooks).
Aos 66, ele, como Sandel, adora beisebol e foi muito a estádios "igualitários" quando jovem. Acredita, porém, que seja positivo que setores melhores sejam mais caros. "Se o sujeito está disposto a pagar mais, significa que aquilo é muito importante para ele."
Se os dados mostram que a sociedade americana está cada vez mais desigual, isso não é necessariamente um problema, diz. Importa saber se os pobres vivem bem, não se existe gente muito mais rica do que eles. Abaixo, a entrevista.
Folha - O senhor e Sandel vão a jogos de beisebol há décadas. Ele sente saudade de quando ia ao estádio e pobres e ricos sentavam juntos. O senhor também? Acha que áreas VIP simbolizam uma mudança na sociedade americana?
Randy Simmons - Não. A liga principal é como um cartel: poucos times, um oligopólio. Com os anos, a demanda por ingressos, especialmente para os melhores lugares, cresceu muito, ao contrário da oferta. É natural o preço subir.
Eu não estou disposto a pagar o que os Yankees cobram pelos melhores lugares. Mas ainda posso ir ao estádio. E há outras ligas, outros jogos. Se você quiser muito o melhor lugar nos Yankees, economize o valor do ingresso. As pessoas estão dispostas a pagar, há demanda, e o número de cadeiras é limitado.
Mas é inegável que há uma crescente concentração de renda nos EUA.
Se a desigualdade é causada pelo governo, temos um problema. É o caso da Rússia.
No caso dos EUA, o fato de que Bill Gates é muito rico me faz feliz. É importante recompensar quem fez a vida de tantos mais fácil e aumentou tanto a produtividade geral.
Não se pode medir a desigualdade isoladamente, ela não é um problema por si. Quantas horas as pessoas pobres têm de trabalhar para conseguir um produto? Há cem anos, havia muito menos desigualdade, mas o acesso a bens ou serviços era menor. Vejo as coisas que meus netos têm hoje e comparo com o que meus pais podiam me dar. É muito mais, mesmo que a renda em valores corrigidos possa ter caído.
O senhor é contra o governo intervir contra a pobreza?
É fato: a sorte tem um papel grande na vida. Começa por nascer no lugar certo, na família certa. Mas é preciso permitir que as pessoas persigam o que querem. Assim, eu aceito que o governo tenha um papel na educação, mas sem administração direta.
Você pode ter vouchers [o governo dá um "vale educação" para os alunos]. É ótimo, mas a resistência dos sindicatos de professores é enorme. Sindicatos nunca trabalham pelo interesse público.
Mas, de maneira geral, creio que redes de proteção social só ficam maiores, maiores e maiores. Elas não ajudam as pessoas a inovar, a assumir responsabilidades.
Nós temos aquilo que subsidiamos. Se subsidiarmos os pobres, vamos ter pobres.
E nos programas de ajuda aos pobres, por exemplo, na África, muito se perde no caminho, de burocrata em burocrata. Se 40% de um programa chega a quem de fato precisa, ele é um sucesso! Especialmente porque os governos são muito corruptos.
Nesse sentido, me parece que vocês têm um experimento fascinante aqui no Brasil, o Bolsa Família, que eu gostaria de conhecer melhor.
Com transferência direta de dinheiro.
Sim. Veja: vi há pouco uma propaganda na minha universidade. Convidava as pessoas a doarem sapatos usados para a África. Mas tem alguém na África agora tentando sobreviver vendendo sapatos. A doação vai acabar com esse sujeito.
Se os americanos quiserem ajudar os africanos, poderiam acabar com o subsídio ao algodão nacional. Poderiam incentivar empréstimos a empreendedores, ajudar na criação rápida de empresas.
O senhor, imagino, discorda completamente de movimentos como o Occupy Wall Street.
Eles não sabem nada sobre um bom protesto. Sou filho dos anos 60. Fui ver o Occupy e fiquei decepcionado: onde estavam as mulheres dançando nuas, o pessoal "viajando"? Foi o protesto mais chato que eu já vi (risos).
Eles têm razão em algo: há excesso de poder político das corporações nos EUA.
Mas quem protesta tem de assumir responsabilidades. Um entrevistado reclamou que tinha se endividado para estudar teatro de fantoches. E agora estava lá protestando por falta de emprego, "não é justo"... Endividados escolheram se endividar.
O senhor era esquerdista quando jovem, protestou contra a guerra do Vietnã?
Não era. Fui contra a guerra porque não queria morrer.
Então o senhor tem algo em comum com Bush filho...
Sim, sim (risos). Para a minha geração, isso era o mais importante. Quando falaram tudo isso sobre Bush ter fugido da guerra, eu disse: todos nós fizemos isso. Eu tinha 18 anos. Fui a um curso da Aeronáutica de três anos, pensando "até eu me formar, a guerra acabou". Nem completei...
O senhor é republicano?
Não. A liberdade pessoal é um problema para muitos deles. Não deve importar ao governo quem casa com quem. Mas diga isso a republicanos mais conservadores. Eles ficam loucos. E há a maconha, a prostituição. Fale em legalizar a prostituição a certos republicanos e eles vão implorar para você voltar a falar de casamento gay (risos).
Mais do que isso, há uma onda de paternalismo nos EUA. Não é só Nova York querendo proibir que se beba muita Coca-Cola, é a escalada de impostos em tudo que soa errado: cigarros, álcool, coisas que engordam. É fácil: aumenta a arrecadação e soa justo. Se é assim, por que não legalizam logo a maconha?
Mas isso está mudando...
Sim. E é incrível: em Washington, que a legalizou, já há um órgão estatal para dizer como manejá-la. Isso as pessoas já sabem, não precisam de um burocrata! (risos)
O liberalismo econômico nunca fez sucesso na intelectualidade latino-americana. A narrativa da história econômica local costuma ser a de Eduardo Galeano, a das veias abertas. O que acontece?
Citam a influência católica. Não sei. A maioria dos cientistas políticos que estudam América Latina é de esquerda. Mas espero que um dia acordem para os dados. Veja a Argentina. Há 90 anos, era uma das economias mais fortes. Hoje, é a... Argentina (risos). A Venezuela então... Acho que os políticos daqui tiveram sucesso com certa narrativa da inveja. É a crença de que não se é responsável pelo que se é, de que a culpa é dos outros, da "dominação". Mas veja Hong Kong, veja os exemplos asiáticos. Conseguiram, por meio do livre comércio, a prosperidade.
Mas o senhor não considera que a crise de 2008 foi um golpe no liberalismo?
Não. Veja, foi o governo dos EUA quem incentivou suas agências de crédito imobiliário a tomarem riscos exagerados, dando a eleitores pobres casas que não podiam bancar.
Existiram, sim, inovações financeiras criadas por bancos que se revelaram muito arriscadas. Mas quase ninguém conseguiu prever isso. A grande maioria dos investidores não conseguiu, perdeu dinheiro. Se eles não conseguiram, um burocrata teria? E, depois de tudo, o governo ainda salvou os bancos. Isso só os encoraja a agir pior.
O pior é que a nova regulação foi muito influenciada por grandes instituições financeiras. Fizeram um sistema com muito menos competição, um oligopólio de "grandes demais para quebrar". A situação hoje é pior do que antes da crise.
Ph.D. em ciência política pela Universidade de Oregon
Pesquisador sênior do Independent Institute e diretor do Instituto de Economia Política da Universidade do Estado de Utah. Foi prefeito da cidade de Providence (Utah)