“FELIZ ANO NOVO” NOS MOSTRA UMA ESPÉCIE DE MARCO ZERO DE UMA VIOLÊNCIA QUE, APESAR DOS LONGOS ANOS DE DEMOCRACIA, AINDA SE ENCENA NO PAÍS
Fixo-me em “Feliz ano novo”, o
conto que empresta título ao já
lendário livro que Rubem Fonseca,
cuja obra vem sendo relançada
pela editora Agir, publicou em
1975. Não só, provavelmente, é o
mais cruel relato da coletânea, mas uma das
narrativas mais violentas produzidas pela literatura
brasileira dos anos 1970. O conto guarda
uma estranha síntese dos métodos da ditadura,
que se espalharam pela entranhas da sociedade
brasileira na ordem de uma peste — o livro
de Fonseca seria censurado no ano seguinte ao
seu lançamento. Antes de tudo, a violência, arbitrária,
indiferente ao sentido, cruel que, na
narrativa de Fonseca, deixa os cárceres do poder
para penetrar na penumbra do dia a dia e se
transformar em um método de ação. Contra a
violência, mais violência. Contra a miséria,
mais miséria. O método nefasto da duplicação
e da retaliação.
É bom recordar a terrível história que Rubem
Fonseca inventou como um espelho invertido
da ordem ditatorial vigente. Espelho
que, de resto, já estava infiltrado em toda a realidade
brasileira, espalhado por ela, duplicado
em suas dobras mais íntimas. Numa noite de
ano novo, sem ter coisa melhor para fazer, desesperados,
cheios de fome, um bando de criminosos
resolve assaltar uma mansão de São
Conrado, no Rio de Janeiro, onde 25 pessoas
comemoram a noite de réveillon. Não querem
só roubar: querem chocar e tripudiar, isto é,
impor uma nova forma de poder sem limites.
Antes de planejar o assalto, seu projeto era almoçar,
no dia seguinte, os restos dos despachos
de macumba armados nas encruzilhadas
cariocas. Mas era muito pouco, e eles decidem
querer mais.
O mais miserável dos miseráveis é Pereba,
“vesgo, preto e pobre”, e que vive atordoado
não só pela fome de comida, mas de sexo. “Ele
falava devagar, gozador, cansado, doente”. O
personagem indica a presença ostensiva de
dois elementos centrais na violência total: a
doença e o humor negro. A presença de Pereba
empresta à trama de Fonseca uma estranha
forma de delicadeza: a delicadeza do desespero.
Invadem a mansão de São Conrado, mas como
não têm só fome de dinheiro, mas sobretudo
de poder sem limites, se põem a praticar as
mais sórdidas barbaridades. Dias antes, Zequinha
e Pereba perambulavam pela boca do lixo
de São Paulo, bebendo e namorando, gastando
os “lucros” de um assalto a um supermercado
do Leblon, no Rio. Eram dois homens normais —
dentro dos imensos limites que abarcam aquilo
que, por falta de coragem para encarar a diversidade
do mundo, chamamos de normalidade.
Agora se transformam em dois monstros — os
mesmos monstros que carregavam dentro de si
nos dias em que foram apenas homens distraídos
e felizes. Rasgão fundo, dupla ferida no coração
do humano.
Uma sombra da ditadura — com seus cárceres,
seus rituais de tortura, sua brutalidade, sua total
cegueira — se derrama agora
sobre o estilo requintado de
crueldade praticado pelos assaltantes,
que se estendem
muito além de seus objetivos
pragmáticos. Não basta cometer
o crime: é preciso que ele
seja escandaloso e que imponha
uma noção de poder associada
ao desempenho e à vaidade.
Um poder total, que se
sobreponha a qualquer traço
de cultura, ou limite civilizatório.
O que os move? Em parte,
as vítimas anteriores da violência
policial — de Estado — que
aniquilou alguns de seus comparsas, como o
Bom Crioulo, morto com dezesseis tiros (um só
não seria suficiente para promover a morte?). Como
o Tripé, dublê de boneco de pano em quem
os policiais atearam fogo. O Vevé, simplesmente
morto estrangulado. Ou o Minhoca, lançado dentro
do rio Guandu como um entulho. Há um “estilo”
de poder total que se espalha pelos dois lados
da cena: policiais e criminosos o cumprem à risca,
e com grande requinte. A ideia central é: poder
tudo. O desejo: exibir este poder que não tem freios.
Um poder sem fronteiras.
Por isso agora — trocando o plano de roubar
um banco pelo assalto à mansão na noite do réveillon
— eles matam a esmo, quase “por esporte”,
comparando estilos e métodos, equiparando
competências, medindo forças e estratégias.
Por isso agora já não basta a violência,
mas é preciso que ela venha decorada pelos
horrores da escatologia e do deboche amargo.
Por isso eles matam brutalmente Maurício, o
convidado bem educado, que se oferece como
intermediário: para demonstrar
que não existe mediação,
que a realidade está partida
ao meio para sempre e a única
forma de contato entre seus
dois lados é o choque brutal.
Há uma “arte de matar” que
Zequinha e seu bando aprimoram
com afinco, “arte”
que, em vez de conferir sentido
à morte, a envolve ainda
mais em arbitrariedade e mais
horror. “Vê como esse vai grudar.
Zequinha atirou. O cara
voou, os pés saíram do chão,
foi bonito, como se tivesse dado
um salto para trás. Bateu com estrondo na
porta e ficou grudado”. A morte como esporte,
terreno de medição e competição da pura força,
tudo realizado na mais absoluta impessoalidade
— como se não existissem sujeitos dentro
daqueles corpos. Como se fossem fantoches do
poder totalitário, que os manipula para cá e para
lá, unicamente para se divertir e se afirmar
como total.
Para culminar, o estupro — a violência invadindo
o terreno da mais íntima sensibilidade. A
moça luta, tenta resistir, mas Zequinha dá uns
murros nela e ela sossega, não tem escolha.
Atravessa a cena de olhos abertos, olhando para
teto, como que crucificada na própria dor.
No fim, ainda o deboche: “Muito obrigado pela
cooperação de todos”. Ninguém responde, pois
o que fica depois de violência só pode mesmo
ser o silêncio. O vazio. Tudo se foi naquele teatro
em que os assaltantes, além de assaltar, ou
ainda mais que assaltar, encenam seu poder
sem limites, impõem seu estilo, manipulam
outros corpos, transformando-os em símbolos
da ausência do humano.
Não é de espantar, ainda, que “Feliz ano novo”
nos fique como uma espécie de marco zero
de uma violência — de irracionalidade, de
mascarados, de anonimato, da brutalidade total
— que ainda hoje, apesar dos anos já longos
de democracia, ainda se encenam em algumas
ruas do país. Uma espécie nacional de ovo da
serpente. Tudo está ali sintetizado: a aprendizagem
do terror, o poder invadindo com suas
garras as intimidades, os métodos de domínio,
de sujeição e de gozo. Deles se valeu, a seu
tempo, a ditadura — para dominar, para oprimir,
para aterrorizar, para submeter. Deles se
valem ainda hoje, aqueles que encaram o poder
como uma espécie de capa malévola cuja
função é encobrir toda a realidade para transformá-
la em uma eterna noite. Mudam os tempos,
as realidades políticas, as conjunturas, os
personagens, as classes sociais — tudo se altera,
menos a violência que permanece como
uma bala intacta a oprimir nossa alma.
Hoje, quando leio na imprensa o caso de uma
pobre mulher arrastada por um carro de polícia,
constato que, infelizmente, “Feliz ano novo”
não terminou. Não: na realidade dos fatos, o
conto de Rubem Fonseca continua a ser narrado.
Talvez ele seja uma marca tardia do mal original
incrustado no humano. O mal como algo
de que, infelizmente, por mais que lutemos, não
podemos nos livrar. Mal de que as ditaduras se
aproveitam e no qual investem para fixar e expandir
seu poder total. Mal do que os desesperados
se valem para ultrapassar a si mesmos e
impor aos outros o mesmo inferno em que vivem.
Vingança, gozo com a morte, celebração
da dor. Podemos chamar como quisermos esse
quisto que se infiltra no destino humano. Fonseca
foi, com seu conto, um dos mestres em sua
detecção e sua denúncia. Ajudou-nos a ver
aquilo que só com muito sofrimento conseguimos
ver. E que, no entanto, é preciso ver, ou não
sobrevivemos.