Revista Piauí > Edição 68 > Maio de 2012
Filhos da guerra suja
Os órfãos roubados na ditadura argentina
por FRANCISCO GOLDMAN
Daniel, soube-se depois, momentos antes do ataque tinha viajado para participar de uma reunião em Buenos Aires. Sua mulher, Diana Teruggi, foi assassinada no pátio. Ela havia escondido a filha, Clara Anahí, dentro de uma banheira, coberta com toalhas. Depois do ataque, um soldado encontrou o bebê e levou a menina para a rua. Perguntou ao comandante da operação, coronel Ramón Camps, o que fazer com ela. Dois policiais estavam sentados num carro ali perto e Camps disse ao soldado que entregasse o bebê para eles. Trinta anos depois, uma vizinha contou para Chicha que tinha visto um dos policiais colocar Clara Anahí dentro de uma ambulância. Quando o policial percebeu que ela estava olhando, gritou para que voltasse para dentro de casa, senão iria matá-la.
Assim que soube que sua neta também estava na casa, Chicha começou a procurar por Clara Anahí, buscando informações em delegacias, hospitais, juizados de menores e igrejas. Durante meses de busca, não encontrou nenhum vestígio da criança e ninguém disposto a discutir a questão. Até as amigas mais próximas de Chicha passaram a atravessar a rua para evitá-la. Por fim, uma mulher que trabalhava num Juizado de Menores teve pena. “Está muito sozinha, señora”, disse ela. Sugeriu que se juntasse a outras mulheres que estavam em busca de crianças desaparecidas e lhe deu o número de telefone de Alicia de la Cuadra. Alicia, cuja filha estava grávida quando “desapareceu”, falou para Chicha acerca do grupo ao qual ela pertencia – as Madres de Plaza de Mayo –, criado em abril de 1977, por mães que procuravam filhos detidos pelo regime militar. As Madres reuniam-se diante do Palácio Presidencial em Buenos Aires toda quinta-feira para fazer uma passeata em torno da praça, num protesto silencioso, usando lenços brancos bordados com os nomes dos filhos desaparecidos. Chicha participou de um protesto com as Madres e logo formou outro grupo, com Alicia e outras dez Madres que também procuravam netos desaparecidos. Ficaram conhecidas como Abuelas de Plaza de Mayo.
O filho de Chicha, que levara adiante sua vida de militante, foi morto numa rua de La Plata oito meses depois da morte da mulher. Anos depois, o marido de Chicha, um regente de orquestra sinfônica, continuava a ter frequentes alucinações, nas quais o chão de sua casa ficava encharcado de sangue. Passou a maior parte da vida na Itália e morreu em 2003. Chicha ficou em La Plata e dedicou-se a descobrir o paradeiro de Clara Anahí.
Durante o Processo de Reorganização Nacional – denominação pomposa que a Junta Militar deu ao período em que governou, de 1976 a 1983 – desapareceram nada menos de 30 mil pessoas, na maioria jovens argentinos. O governo justificou sua tática como parte de uma guerra contra uma insurreição revolucionária promovida por “terroristas subversivos”, embora o primeiro líder da Junta, o general Jorge Rafael Videla, definisse “terrorista” como “não só uma pessoa que instala bombas, mas aquela cujas ideias são contrárias à civilização cristã ocidental”. As forças de segurança da Junta iam ainda além dessa missão abrangente, quando tinham em mira dissidentes que deviam ser eliminados. Sessenta estudantes secundaristas do Colegio Manuel Belgrano, em Buenos Aires, desapareceram só porque ingressaram no conselho estudantil do colégio. Vítimas eram sequestradas quando desciam do ônibus, quando voltavam do trabalho ou vinham da escola para casa, ou em ataques-surpresa no meio da noite contra residências particulares e esconderijos onde membros dos grupos de guerrilha ou de organizações sindicais e estudantis banidas moravam escondidos. Os sequestrados eram levados para centros de detenção clandestinos, onde a maioria era torturada e morta.
Cerca de 30% dos desaparecidos eram mulheres. Algumas eram sequestradas com os filhos pequenos, e talvez 3% estivessem grávidas, ou engravidaram na prisão, em geral por causa de estupros cometidos pelos guardas e torturadores. Prisioneiras grávidas eram rotineiramente mantidas vivas até que dessem à luz. “A depravação do regime alcançou o auge com as prisioneiras grávidas”, escreveu Marguerite Feitlowitz, na época professora em Harvard, em seu estudo pioneiro sobre o pesadelo argentino, A Lexicon of Terror: Argentina and the Legacies of Torture. Uma ex-detenta contou para Marguerite: “Nossos corpos eram fonte de um fascínio especial. Diziam que meus mamilos inchados eram um convite para a ‘vara’” – a vara de ferro eletrificada, própria para tanger o gado, usada na tortura. “Eles representavam uma combinação francamente repulsiva – a curiosidade de meninos e a excitação violenta de homens adultos.”
Às vezes, as mães podiam amamentar seus filhos recém-nascidos, pelo menos esporadicamente, por alguns dias, ou até semanas, antes de os bebês serem tomados delas e as mães serem “transferidas” – enviadas para a morte, na famigerada nomenclatura da Guerra Suja. Um método comum de “transferir” era injetar drogas nas mulheres e empurrá-las pela porta de um avião nas águas do rio da Prata ou do oceano Atlântico. Segundo grupos de direitos humanos, pelo menos 500 bebês recém-nascidos e crianças pequenas foram separados de pais desaparecidos e, com suas identidades suprimidas, foram entregues para casais de policiais e militares sem filhos e outros favorecidos pelo regime.
Faz muito tempo que se supõe que esses roubos de bebês resultaram, em parte, do conluio entre militares e setores da Igreja Católica, que deram sua bênção aos voos da morte, mas não ao assassinato de crianças pequenas ou ainda não nascidas. O Processo de Reorganização Nacional queria definir e criar “argentinos autênticos”. Os filhos de subversivos, explicou Marguerite, eram tidos como “sementes da árvore do mal”. Talvez por meio da adoção tais sementes pudessem ser replantadas num solo sadio.
Chicha Mariani e as Abuelas de Plaza de Mayo definiram como seu propósito encontrar aquelas crianças adotadas e devolvê-las para o que houvesse restado de suas famílias biológicas. No final da década de 70, porém, a técnica do exame de DNA não estava plenamente desenvolvida e as Abuelas não tinham um modo seguro de identificar as crianças desaparecidas, sobretudo as que haviam nascido em centros de detenção. Às vezes o simples relance de um rosto de criança na rua fazia disparar seus corações. Crianças eram fotografadas na saída da escola ou eram seguidas a caminho de casa. Uma avó chegou a se fazer passar por empregada doméstica na casa de um casal que ela achava que podia estar criando uma criança roubada.
No início dos anos 80, geneticistas de universidades e de centros de pesquisas em hospitais nos Estados Unidos, alguns deles exilados da América Latina, começaram a manifestar interesse na busca empreendida pelas Abuelas. Em 1984, um ano depois do final do regime militar, Mary-Claire King, geneticista na Universidade da Califórnia em Berkeley, viajou para Buenos Aires para trabalhar com a geneticista argentina Ana María di Lonardo. Juntas, criaram o Índice dos Avós, um exame do antígeno leucócito humano, capaz de identificar um vínculo genético entre os avós e os netos. Mais adiante, naquele mesmo ano, o exame genético foi usado pela primeira vez para identificar um filho de desaparecidos políticos. A menina Paula Logares tinha sido sequestrada com os pais, em 1978, quando tinha 23 meses de vida. O policial que a criou – e que provavelmente estava envolvido na morte de seus pais – registrara a data de nascimento da menina como dois anos posteriores à data real. (Paula, mais tarde, foi devolvida à sua avó biológica.) As Abuelas começaram a pressionar o governo para criar um banco de dados genéticos nacional a fim de armazenar o perfil genético das famílias que procuravam crianças desaparecidas e, em 1987, foi fundado o Banco Nacional de Dados Genéticos, ou BNDG.
Chicha Mariani foi a presidenta das Abuelas até 1989 e, durante sua gestão, cerca de sessenta netos foram identificados e reintegrados a suas famílias biológicas. “Isso sempre nos deixava mais ou menos tão felizes como se tivéssemos encontrado nossos próprios netos”, me disse ela.
Estela de Carlotto, que assumiu o cargo de Chicha, era outra avó em busca de um bebê perdido. Em abril de 1978, Estela, na época diretora de uma escola em La Plata, soube por intermédio de uma ex-presa que sua filha, Laura, sequestrada em novembro de 1977, estava num campo de detenção chamado La Cacha e estava grávida. Estela conhecia a irmã de um general importante e foi pedir a ele que interferisse pela libertação da filha. O único efeito desse conhecimento foi que, alguns meses depois, Estela e o marido foram convocados a comparecer a uma delegacia de polícia para receber o cadáver da filha crivado de balas. Estela uniu-se às Abuelas de Plaza de Mayo alguns dias depois.
Numa viagem ao Brasil, em 1980, para entrevistar exilados sobreviventes dos campos de detenção, Estela conheceu Alcira Ríos, advogada, e seu marido, Luís Córdoba, dois dos cinco únicos prisioneiros de La Cacha, em 1978, que haviam sobrevivido ao campo. Em La Cacha, Alcira, que durante cinco meses foi mantida acorrentada a uma parede num fosso semelhante a uma caverna, conhecera Laura, que fora levada para lá dez meses antes. Quando o marido de Alcira foi cruelmente torturado e adoeceu com uma infecção, Laura cuidou dele e usou sua influência junto aos guardas para conseguir antibióticos. Nessa altura, ela já dera à luz um bebê chamado Guido, em homenagem ao avô. Depois do nascimento, disseram para Laura que seu bebê seria levado para a avó. Alcira lembrava-se de como Laura chorava e gemia: “Eu tenho um filho! Onde en mierda ele está?” Em agosto de 1978, disseram para Laura que ela ia ser levada para a Escuela Superior de Mecánica de la Armada, o mais temido campo de detenção do país, onde ela seria preparada para ser solta. Disseram que em breve estaria em casa, com seu filho e sua mãe. No dia 24 de agosto, na noite de sua “transferência”, ela teve permissão para despedir-se dos outros prisioneiros em La Cacha. Rastejou para dentro da caverna de Alcira e lhe pediu alguma coisa para poder se lembrar dela. “O que eu tinha que pudesse lhe dar?”, me disse Alcira. “Só tinha as roupas com que havia sido sequestrada. Mas eu tinha um sutiã, de renda preta. Dei para ela e Laura pôs o sutiã.” Anos depois, quando as investigações dos crimes da Guerra Suja estavam em andamento, o corpo de Laura foi exumado; tinha sido enterrada com o sutiã preto de Alcira.
Em 1984, Alcira voltou do exílio e Estela convidou-a para trabalhar para as Abuelas. A situação legal em que se viu envolvida era complexa. Um ano antes, a liderança militar argentina, humilhada pelos ingleses na Guerra das Malvinas, cedera o poder a um governo eleito democraticamente, chefiado pelo presidente Raúl Alfonsín. Em 1985, um inédito relatório da Comissão da Verdade para apurar os Crimes da Guerra Suja, intitulado “Nunca Mais”, redundou no julgamento e na prisão de, entre outros, nove ex-líderes da Junta Militar. Mas em 1986, sentindo-se ameaçado pela agitação militar que sucedeu os julgamentos, Alfonsín aprovou uma lei nova, Ponto Final, que punha um fim às investigações sobre a violência política durante a Guerra Suja. No ano seguinte, uma outra lei, Obediência Devida, determinava que as pessoas não podiam ser perseguidas por crimes cometidos no cumprimento de ordens de seus superiores. Em 1990, o sucessor de Alfonsín, presidente Carlos Menem, perdoou e libertou os líderes da Junta. Os argentinos, oficialmente livres da ditadura, eram, no entanto, obrigados a viver numa acomodação passiva com seus crimes e seus criminosos. Alguns dos mais famigerados sádicos da Junta Militar vagavam por Buenos Aires com sorrisos desafiadores e contavam suas histórias na televisão. Mulheres cruzavam no supermercado com seus torturadores e estupradores. Policiais veteranos recebiam em suas casas de campo velhos colegas de farda para parrilladas e brindavam uns aos outros como heróis que haviam salvado a nação do comunismo.
Casos de roubo de bebês forneciam uma pequena brecha às leis da anistia: pais condenados nos tribunais por terem adotado filhos de desaparecidos – ou “se apropriado” deles –, sabendo da verdade sobre sua origem, podiam ser presos. Em 1998, as Abuelas, em conjunto com outro grupo de direitos humanos, investigaram o caso de Claudia Poblete. Ela e os pais foram sequestrados em 1978, quando tinha 8 meses de idade. Seus pais foram torturados e mortos e Claudia foi criada por um militar e sua mulher. Por meio do exame de dna, as Abuelas identificaram a família de Claudia, então com 21 anos de idade, e seus pais adotivos foram condenados à prisão. (A mãe adotiva, com mais de 70 anos na época, teve permissão para cumprir a pena em regime de prisão domiciliar.) Segundo as leis da anistia, no entanto, os dois policiais responsáveis pelo sequestro, tortura e assassinato dos pais biológicos de Claudia não podiam ser processados. O juiz do caso, Gabriel Cavallo, num arrazoado de 188 páginas, argumentou que as leis Ponto Final e Obediência Devida estavam em conflito com a obrigação que a Argentina havia assumido, perante as leis internacionais, de levar a julgamento os responsáveis por crimes contra a humanidade. As duas leis foram revogadas pelo Congresso Nacional em 2003 e consideradas inconstitucionais pela Corte Suprema em 2005. Os dois policiais do caso Claudia, detidos em 2003, foram os primeiros processados por desaparecimentos desde 1987. Um morreu no hospital de uma prisão em abril de 2006, antes do começo do julgamento; o outro foi condenado a 25 anos de prisão.
Embora o caso tenha sido um triunfo histórico para as Abuelas, o grupo também sofreu repetidas frustrações: muitos exames de DNA deram negativo; nem todos os netos recuperados aceitaram os avós biológicos, para eles, pessoas estranhas. Muitos, fiéis aos únicos pais que haviam conhecido, se recusavam até a fazer o exame. Em 1983, Chicha Mariani achou que tinha encontrado sua neta, uma garota com uma história muito parecida com a de Clara Anahí. “Quando se constatou que não era ela, senti a terra se abrir debaixo de meus pés”, disse Chicha. Mais tarde, naquele mesmo ano, ela viu num jornal a fotografia de Marcela Noble Herrera, filha adotiva da proprietária da maior empresa de comunicação do país, e achou que talvez tivesse afinal descoberto a menina que tanto procurava. “A primeira vez que vi Marcela”, contou-me, sorvendo mate no café da manhã, com bananas e coalhada, em sua mesa de jantar coberta de documentos, “foi logo depois de Alfonsín tomar posse como presidente. Marcela estava de meias Morley” – meias com reforços nos joelhos – “iguais às meias que eu usava antigamente. E as pernas eram iguaizinhas às minhas. Vi as fotos dela na Inglaterra, na França, com presidentes e reis, e com o papa. Eu a vi crescer. Tem o mesmo corpo da mãe de minha nora. E sua personalidade parece ser semelhante à nossa – reservada, discreta, sincera, sensível e muito inteligente.”
Na ocasião em que conversei com Chicha, no ano passado, a questão da paternidade biológica de Marcela Noble Herrera se tornara central no relato das décadas de esforços, esperança e dor das Abuelas. Estava também no centro de um caso legal que havia envolvido a elite da mídia e da política argentina numa prolongada batalha pública. Um caso que passara a representar a reação volúvel, e não raro paradoxal, da Argentina com respeito a seu passado violento e que havia fascinado boa parte da população por mais de dez anos.
A história de Marcela começa com Ernestina Herrera de Noble, a mulher que a adotou em 1976. Ernestina era a viúva de Roberto Noble, fundador do império de mídia Clarín, que começou com um jornal, Clarín, e agora inclui estações de rádio e televisão, além do mais popular site de notícias da internet em língua espanhola na América Latina. Ernestina, de origem humilde, era 23 anos mais jovem do que o marido e foi nomeada proprietária e diretora titular do Grupo Clarín quando ele morreu, em 1969, embora a direção efetiva da empresa tenha ficado nas mãos de um círculo de executivos em quem Noble confiava. (A única filha de Noble, que ele tivera com outra mulher, aceitou um acordo em troca da renúncia a qualquer pretensão sobre a propriedade do grupo.) Em 1976, quando a Junta Militar tomou o poder, Ernestina tinha 50 anos e parecia estar no auge da crise de meia-idade. Dizem que era propensa a ceder a impulsos destemperados, a beber, e que também passava seus dias em iates com novos amigos. Segundo a jornalista Graciela Mochkofsky, que no último mês de agosto publicou, na Argentina, um livro intitulado Pecado Original: Clarín, los Kirchner y la Lucha por el Poder, os membros da diretoria do Clarín, preocupados com o futuro da empresa e com as próprias carreiras, caso algo acontecesse com Ernestina, apresentaram-lhe uma proposta. Ela adotaria duas crianças, disseram, e as nomearia herdeiras do Clarín. Então, se Ernestina morresse antes de as crianças chegarem à idade adulta, os homens da diretoria poderiam ser os regentes da empresa, até os jovens ficarem aptos a herdá-la. Ernestina concordou com o plano. Entre os executivos do Clarín estavam Rogelio Frigerio, que tinha sido o segundo homem na hierarquia do Ministério da Economia entre 1958 e 1962, e um advogado chamado Bernardo Sofovich. Esses homens incumbiram-se de encontrar dois bebês para Ernestina, uma menina e um menino, e naquele verão um Juizado de Menores conferiu a ela a guarda das crianças que se tornariam Marcela e Felipe Noble Herrera, herdeiros de uma fortuna que agora alcança muitos milhões.
O Clarín nunca se opôs abertamente ao regime militar e, em 1976, a empresa lucrou devido a suas relações amistosas com a Junta quando lhe foi oferecida uma parceria na primeira indústria de papel do país, Papel Prensa. (A maioria dos jornais concorrentes ainda tinha de importar papel.) O negócio impulsionou a expansão econômica do Grupo Clarín, dirigido por Héctor Magnetto, ex-contador da empresa e seu futuro presidente. Em 1985, o Clarín era um dos jornais em língua espanhola de maior circulação no mundo inteiro.
Durante as duas primeiras décadas depois da Guerra Suja, os presidentes argentinos geralmente encaravam o Grupo Clarín como um rival ou um adversário, a ser cortejado ou contestado. Mas o Clarín nunca seguiu um programa ideológico bem definido; a empresa estava mais preocupada com o fato de cada governo representar uma oportunidade para seus negócios ou uma barreira para sua expansão. O presidente Alfonsín resistiu à pressão do Clarín para revogar uma lei que impedia que jornais comprassem estações de rádio ou de televisão. Quando a desordem política e a vasta impopularidade afundou o governo de Alfonsín, ele culpou o Clarín. Carlos Menem, que governou como um neoliberal privatizante, revogou aquela lei e, em troca, esperava o apoio do Clarín. De início, o Clarín, cujas empresas de mídia associadas se expandiram acentuadamente, atendeu suas expectativas. Mas quando outros jornais começaram a publicar investigações sobre corrupção no governo Menem, o Clarín, para não se tornar irrelevante, imitou-os de maneira agressiva. Menem tinha tanto medo do Clarín que incentivou seus aliados ricos a construírem um império de mídia concorrente. Quando isso desmoronou, junto com as ambições de Menem, o grupo Clarín apoderou-se dos despojos.
Em 2001, a economia da Argentina entrou em colapso, desencadeando uma corrida aos bancos, o efetivo congelamento das poupanças individuais, protestos de massa nas ruas, uma série de mandatos presidenciais anulados, a repentina desvalorização do peso, um calote da dívida externa do país e o descrédito dos políticos tradicionais de todos os principais partidos. Em 2003, Néstor Kirchner, ex-governador de uma remota província na Patagônia, foi eleito presidente de uma Argentina desmoralizada e humilhada. O governo de Kirchner despejou dinheiro em programas sociais e o índice de pobreza do país caiu pela metade. Uma grande alta do preço da soja ajudou a impulsionar a recuperação da economia. Num de seus primeiros atos como presidente, Kirchner retirou os retratos dos ex-líderes da Junta Militar da galeria do Colégio Militar. Transformou em lei a revogação das Leis Ponto Final e Obediência Devida e converteu as então já idosas integrantes das Madres e Abuelas de Plaza de Mayo em ícones de seu governo, instalando-as de forma solene a seu lado em eventos públicos, e dizia: “Nós todos somos filhos das Madres e Abuelas de Plaza de Mayo.” Seu governo indicou Estela de Carlotto para o Prêmio Nobel da Paz. Em janeiro de 2006, as Madres encerraram suas passeatas semanais e anunciaram que o Palácio Presidencial não abrigava mais um inimigo.
Ao mesmo tempo, Kirchner e sua mulher, Cristina Fernández de Kirchner, acumularam uma fortuna espantosa e surgiram denúncias de corrupção e de favorecimentos ilícitos. Em 2007, Kirchner declarou que iria se afastar para que Cristina pudesse concorrer à Presidência: marido e mulheresperavam se alternar no poder por mais doze anos. Em dezembro daquele ano, porém, menos de uma semana depois de Cristina ser eleita, o Clarín publicou uma incendiária matéria de primeira página afirmando que um venezuelano detido com uma mala cheia de dinheiro no aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, no mês de agosto, trazia uma doação não declarada do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, para financiar a campanha dela. A matéria não agradou a Kirchner, que mantivera uma forte aliança com o Clarín e com Héctor Magnetto durante todo o seu mandato e, dez dias antes, havia suprimido barreiras de leis antitruste a fim de permitir que o Clarín fundisse duas empresas de transmissão de dados por cabo. (Em 2009, esse negócio representava 60% das receitas do Clarín.) A partir daí, até a repentina morte de Néstor Kirchner em 2010, causada por um ataque cardíaco, o casal Kirchner esteve unido numa feroz luta pública contra o Clarín.
Era comum dizer na Argentina que nenhum governo poderia sobreviver a quatro tapas– manchetes da primeira página do jornal – negativas e consecutivas, mas Cristina se vangloriava de que “havia batido o recorde”. A Guerra contra o Clarín, como é amplamente conhecida na Argentina, foi travada em várias frentes: Cristina aprovou leis antimonopólio e leis da mídia que já começaram a encolher o domínio do grupo. Seu governo também acusou o Clarín e outro jornal de terem adquirido suas ações da fábrica Papel Prensa com o conhecimento, senão com a efetiva cumplicidade, do sequestro, tortura e assassinato de membros da família e de sócios dos donos originais da fábrica cometidos pelos militares. (O Clarín está se defendendo de tal acusação num processo em andamento na Justiça.) Mas, em 2009, a batalha emblemática tanto para os Kirchner quanto para o Clarín dizia respeito à origem dos filhos adotivos de Ernestina Herrera de Noble.
Marcela e Felipe quase nunca são vistos em público e os detalhes de suas vidas particulares são guardados a sete chaves, embora se saiba que Marcela estudou jornalismo na Universidade Católica e agora trabalha no Clarín, preparando-se para, um dia, suceder à mãe. Tem pele bonita, é loura, de rosto grande e aspecto reservado. Muitas vezes usa roupas simples e conservadoras da Zara, uma rede espanhola de lojas relativamente baratas. Felipe tem pele mais morena, é atarracado, com um início de calvície. Estudou desenho industrial e dizem ser ainda mais reservado do que a irmã.
Pouco depois do fim do regime militar, as Abuelas de Plaza de Mayo começaram a ouvir rumores de que os irmãos eram filhos de dissidentes desaparecidos. Na época, as Abuelas trabalhavam com um sistema jurídico nem um pouco cooperativo – muitos juízes ainda tinham laços com a ditadura –, nem sempre contavam com o apoio da mídia. Sob o governo da Junta Militar, o Clarín, como a maioria dos jornais argentinos, se recusava a publicar notas sobre pessoas desaparecidas enviadas pelas Madres e Abuelas. Depois, quando o governo Alfonsín recebeu aplausos por sua Comissão da Verdade, o jornal começou a publicar editoriais dando apoio à causa das Abuelas. As Abuelas sabiam que era importante manter do seu lado o jornal mais popular do país. Mas era difícil fazerem-se de surdas no caso dos filhos de Ernestina. Ainda mais quando se dizia que duas das figuras mais sinistras da Guerra Suja, o bispo Antonio Plaza e o general Ramón Camps, estavam envolvidas na tarefa de conseguir crianças para ela adotar.
Durante o regime militar, o bispo Plaza era o capelão da Polícia da Província de Buenos Aires, comandada por Camps. Plaza denunciou à polícia dúzias de pessoas que depois desapareceram, entre elas o próprio sobrinho, que o havia procurado para pedir ajuda. Muitas vezes, Plaza acompanhava Camps em suas rondas em centros de detenção e de tortura, e mais tarde elogiou as leis de anistia da Guerra Suja. Dizia que elas poupariam os policiais do destino do “pobre Eichmann”, oficial nazista responsável pelo extermínio de judeus, condenado à morte por um tribunal de Israel após ser sequestrado por agentes israelenses, em Buenos Aires, onde se escondia. Camps era antissemita (havia um número desproporcional de judeus argentinos entre os desaparecidos) e sádico. É tido como o responsável por milhares de sequestros, centenas de homicídios, dois estupros, dez roubos de bebês e dois abortos provocados por tortura. Plaza morreu em 1987. Camps foi considerado culpado de 73 acusações de tortura e, em 1986, foi sentenciado a 25 anos de prisão. Foi libertado pelas leis de perdão e morreu em 1994.
Em 1992, Estela de Carlotto pediu uma reunião com Ernestina Herrera de Noble, que designou Magnetto, o presidente de sua empresa, para falar por ela. Seguiram-se três encontros incômodos. “Como poderia la señora ter dois filhos de terroristas?”, perguntou Magnetto em tom queixoso. Acusações desse tipo só poderiam ter motivação política ou financeira, argumentou. Num encontro posterior, segundo um advogado das Abuelas, Magnetto se propôs a revelar a verdadeira identidade dos filhos, se Estela lhe dissesse quais eram as fontes daquela acusação. (O porta-voz do Clarín negou ter feito tal proposta.)
As Abuelas levaram dois anos para ter acesso aos registros de adoção de Marcela e Felipe. Na Argentina, como em todos os países da América Latina, as adoções eram regulamentadas de maneira frouxa, no melhor dos casos, mas alguns detalhes dos registros chamaram a atenção de Alcira Ríos. As duas adoções foram realizadas com uma pressa fora do comum e pelo mesmo juiz de menores, no município de San Isidro. Não havia nenhum registro do nascimento ou do hospital. Em geral, só isso já bastaria para justificar uma investigação das Abuelas. Por outro lado, as adoções de Marcela e Felipe, em maio e julho de 1976, respectivamente, ocorreram num momento precoce da ditadura e as datas não pareciam corresponder às datas conhecidas de nascimento em centros de detenção ou de roubos de bebês na jurisdição da corte de San Isidro. As Abuelas, com tantas investigações para realizar, decidiram deixar o assunto de lado.
No entanto, alguns anos depois, quando os rumores foram mencionados de novo durante o julgamento de um caso que não tinha relação com aquele, e insinuou-se que as Abuelas haviam menosprezado as suspeitas em deferência à riqueza e ao poder do Grupo Clarín, Estela e Alcira resolveram agir. Pediram à corte de San Isidro para abrir uma investigação e o juiz, Roberto Marquevich, logo tinha sobre a mesa as pastas do processo das adoções. Muitas pessoas envolvidas, inclusive o executivo do Clarín Bernardo Sofovich e a juíza que havia aprovado as adoções, Ofelia Hejt, já haviam morrido; outros, como o executivo do Clarín Rogelio Frigerio, estavam velhos demais, ou mentalmente senis, para testemunhar. Mas em 2001, Marquevich convocou todos que pôde alcançar, a fim de reconstituir a história.
Segundo os arquivos, no dia 13 de maio de 1976, Ernestina testemunhou que na manhã de 2 de maio, em sua casa de campo em San Isidro, ouviu o choro de um bebê. Quando abriu a porta da frente, deparou com uma menina numa caixa de papelão. Manteve o bebê em casa por alguns dias, para o caso de alguém aparecer para reclamar a menina. Depois a levou para o Juizado a fim de comunicar o que havia ocorrido e também a um pediatra, acompanhada por sua vizinha, Yolanda Echagüe de Aragón, que havia presenciado a descoberta do bebê dentro da caixa. Ernestina contou para o Juizado que Roberto García, administrador de uma fazenda próxima, também tinha visto o bebê na porta da casa. No dia seguinte, sem fazer o menor esforço para conferir a história nem para identificar a mãe do bebê, a juíza Ofelia Hejt concedeu a custódia da criança a Ernestina e atribuiu uma data de nascimento para a menina, 23 de março de 1976, um dia antes do golpe militar. Entre as três testemunhas que deram boas referências do caráter de Ernestina, estava o bispo Plaza.
A pasta dos documentos de Felipe Noble Herrera foi aberta algumas semanas depois. Uma estudante de direito que se identificou como Carmen Luisa Delta, 25 anos de idade, disse que dera à luz um menino no dia 17 de abril, sem registrar o nascimento em nenhum hospital e sem nenhum pediatra. No dia 7 de julho, quando ela levou o bebê ao Juizado para entregá-lo para adoção, calhou de Ernestina estar lá e no mesmo dia recebeu a guarda da criança. No mês de maio seguinte, as duas adoções foram oficializadas.
Em 2001, Yolanda Echagüe de Aragón já havia morrido, mas constatou-se que tinha morado não na casa vizinha àquela que Ernestina dissera ser sua, mas a um quarteirão dali. A outra testemunha citada por Ernestina, Roberto García, atendeu à convocação de Marquevich. Disse ao juiz que nunca fora administrador de nenhuma fazenda em San Isidro. Tinha sido motorista de Roberto Noble e depois de Ernestina, até se aposentar em 1977. Contou que Ernestina nunca tinha morado numa casa em San Isidro, embora de vez em quando ele a levasse lá para visitar um chalé, cujo endereço exato não conseguia lembrar. Admitiu que a assinatura na declaração das testemunhas parecia ser a sua, mas disse que nunca tinha ido ao Juizado de Menores de San Isidro. Os advogados do Clarín, revelou ele, lhe trouxeram alguns documentos para assinar. Classificou de “mentiras” o relato de Ernestina das ações atribuídas a ele.
Carmen Luisa Delta, a estudante de direito que supostamente entregara Felipe para adoção, nunca existiu, pelo menos não com esse nome; o número de sua identidade correspondia à de um homem chamado Hugo Tarkowski.
A juíza Ofelia Hejt recebeu sua nomeação para o Juizado de Menores no início da ditadura. Em 1977, segundo os registros das Abuelas, ela autorizou a adoção de um bebê de 3 meses, apesar de haver indícios de que os pais do menino haviam desaparecido. Em 1984, as Abuelas descobriram o menino e restauraram sua identidade verdadeira.
No final de 2001, seis meses depois de abrir a investigação, o juiz Marquevich disse para Alcira que o caso não poderia prosseguir antes que se designasse uma parte queixosa. Nenhuma família nos registros das Abuelas estava em busca de crianças cujas supostas datas de nascimento coincidissem exatamente com as de Marcela e Felipe, mas Alcira sabia que os documentos de Ernestina estavam cheios de mentiras. Por que as datas de nascimento deveriam ser tratadas como dignas de crédito? Escolheu duas famílias que avaliou como mais prováveis, embora soubesse que eram reduzidas as chances de se descobrir que alguma delas tinha relação com Marcela ou Felipe. Um dos queixosos era a família de María del Carmen Gualdero, que estava grávida de nove meses quando foi sequestrada, em junho de 1976, perto de San Isidro; não se sabia se ela dera à luz no cativeiro ou não. A outra família estava em busca de Matilde Lanuscou. Durante anos, supôs-se que Matilde havia morrido aos 6 meses de idade, com os pais e dois irmãos numa investida de militares contra sua casa em San Isidro, em setembro de 1976. Mas quando exumaram as sepulturas, após a ditadura, o caixão de Matilde continha apenas roupas de bebê e uma chupeta. Era possível que ela continuasse viva, em algum lugar, e que pudesse até ser Marcela Noble Herrera.
Em 19 de março de 2002, Marquevichordenou que Marcela e Felipe fossem ao BNDG e fornecessem amostras para a análise de DNA. Em reuniões particulares, os advogados do Clarín pressionavam para um acordo diferente: queriam que Marcela e Felipe fizessem o exame na Unidade Médica Forense, uma instituição ligada à Suprema Corte. A fim de proteger a privacidade dos irmãos, disseram os advogados do Clarín, eles poderiam ser testados com o DNA das duas famílias queixosas, mas depois as amostras teriam de ser destruídas. A Unidade Médica Forense não tinha um laboratório próprio e era considerada corrupta, por Alcira e por outros. “Lá, era possível comprar o resultado que se quisesse”, me disse Alcira. Ela fez pé firme: só o BNDG tinha autorização legal para fazer o exame e as amostras tinham de permanecer lá. Uma das advogadas do Clarín confidenciou para Alcira – “de uma colega para outra”, disse ela – que Felipe e Marcela disseram que queriam fazer o exame. Magnetto e os advogados do Clarín, no entanto, tomaram a frente da questão. Os advogados disseram para a corte que os irmãos não tinham interesse em conhecer suas identidades biológicas e não estavam emocionalmente preparados para fazer o exame. (O enorme processo de Marcela e Felipe inclui atestados psiquiátricos e médicos declarando que os irmãos haviam sofrido diversas perturbações psicológicas – insônia, ansiedade, isolamento social – provocadas pelo estresse da investigação e do escrutínio público que haviam suportado desde que aquilo começara.) Os prazos impostos pelo juiz Marquevich para o fornecimento de amostras do DNA eram repetidamente prorrogados.
Por fim, no dia 17 de dezembro de 2002, provavelmente frustrado pelas táticas protelatórias dos advogados do Clarín, Marquevich ordenou a prisão de Ernestina, então com 77 anos de idade, sob a acusação de ter falsificado documentos públicos de adoção. Ela passou três noites na cela VIP de uma delegacia e depois ficou em prisão domiciliar. A Argentina ficou escandalizada. Vários juízes de alto escalão criticaram a prisão, bem como jornalistas e outros grupos de direitos humanos. No dia 12 de janeiro, Ernestina publicou uma carta aberta no Clarín, acusando sua prisão de fazer parte de um plano para destruir a imprensa independente da Argentina. Mas a carta continha esta frase: “Falei muitas vezes com meus filhos sobre a possibilidade de eles e seus pais terem sido vítimas da repressão ilegal.” Era uma chocante admissão de que a investigação sobre as origens de seus filhos adotivos era justificada.
Marquevich, que foi afastado do caso, e por fim expulso do Judiciário por um tribunal do Congresso, foi substituído pelo juiz Conrado Bergesio, cujas decisões, segundo Alcira, “eram tomadas pelos advogados de Ernestina”. Ela acrescentou: “Durante anos, Bergesio fingiu investigar, mas não o fez.” Em 2004, Bergesio ordenou que os irmãos se submetessem ao exame na Unidade Médica Forense, mas os advogados das Abuelas e também do Clarín contestaram a ordem e nenhum exame foi realizado. Só depois que o casal Kirchner rompeu com o Clarín, em 2007, Alcira “começou a sentir uma pressão para fazer o caso andar, uma pressão mais política do que jurídica”. (Alcira deixou as Abuelas porque achou que a organização tinha se tornado excessivamente partidária, embora tenha continuado a representar famílias em busca de crianças roubadas e a trabalhar no caso de Ernestina.)
O governo de Cristina Kirchner, profundamente envolvido em sua própria guerra contra o Clarín, em 2009, persuadiu o Congresso a aprovar leis que pareciam ter em mira o caso de Ernestina. Uma delas proibia qualquer transferência de material genético para fora do BNDG a fim de fazer o exame em outro laboratório e outra lei permitia que juízes determinassem a extração de sangue compulsória em casos que envolvessem filhos de desaparecidos, se outros meios de obter o DNA fracassassem.
Alcira defendeu a lei dos exames compulsórios. Era uma decisão pesada demais para caber apenas ao adotado, mesmo quando essa pessoa já era um adulto. Não raro, os adotados sentiam-se aterrorizados com a ideia de serem os responsáveis pela prisão dos únicos pais que haviam conhecido. Alcira soube de pelo menos um pai que apontou um revólver contra a cabeça da filha adotiva para impedir que fornecesse sangue para o exame.
Em 2005, tornou-se possível obter o DNA de uma pessoa a partir da roupa e de objetos de uso pessoal. Alcira levou essa informação à Justiça e logo se instituiu uma alternativa para a extração compulsória de sangue: agora os juízes podiam determinar o confisco de objetos de uso pessoal, como escova de dentes. Um dos primeiros casos de exame desse tipo envolveu uma possível criança roubada de nome Evelyn Vázquez, que ameaçara se suicidar se tivesse de fazer o exame de sangue. Quando seu apartamento de cobertura foi invadido, em 2006, policiais protegeram as janelas a fim de evitar que ela pulasse. Evelyn tinha acabado de voltar da academia de ginástica e María Belén Rodríguez Cardozo, uma bioquímica do BNDG, confiscou sua bolsa, cheia de roupas de ginástica suadas. O exame de DNA comprovou que Evelyn era filha de Susana Pegoraro e Rúben Santiago Bauer, ambos desaparecidos em 1977. “Uma das primeiras coisas que ela fez depois da descoberta foi trocar seu nome para Evelyn Bauer”, disse Alcira. Evelyn estabeleceu uma relação com sua avó biológica, mas também continuou ligada aos pais adotivos – o pai adotivo tinha sido agente da contrainteligência –, que foram condenados à prisão no ano passado. O juiz do caso registrou em sua sentença que muitos adotados continuavam, na vida adulta, a ser “hóspedes ou prisioneiros das redes tecidas pelas pessoas que deles se apropriaram” e que a supressão da identidade imposta por tais adoções podia produzir sintomas “patológicos”.
Catalina de Sanctis, outra adotada, concorda. Ela cresceu, contou-me, referindo-se a si mesma como “Cara de Nada”, porque não se parecia com ninguém em sua família. Seus pais eram pessoas com problemas psicológicos, propensos à depressão e a bruscas mudanças de humor. “Não é qualquer pessoa que faz o que eles fizeram”, disse ela. “E ter feito isso deixou-os ainda mais doentes.” Toda vez que mencionavam as Abuelas na televisão, seu pai alcoólatra, agente da inteligência militar, tinha uma explosão de raiva e esbravejava insultos. Em 2000, Catalina pressionou a mãe, que não resistiu e confessou a verdade. O pai lhe disse que, se ela desse sangue, eles iriam para a prisão. Catalina sentiu-se paralisada. Em 2005, as Abuelas abriram uma investigação sobre suas origens; no ano seguinte, para evitar o exame de DNA, ela partiu de avião com o marido e o pai adotivo para o Paraguai, e depois voltou para a Argentina. No início de uma manhã, em maio de 2008, a polícia invadiu a casa onde ela e o marido se escondiam, com ordens de confiscar objetos pessoais. “Eu chorei”, disse ela. “Mas também foi um alívio.” No mês de setembro, ela soube que era filha de dois estudantes, René de Sanctis e Myriam Ovando; sua mãe estava grávida de seis meses quando foi sequestrada. Durante quase dois anos, Catalina se recusou a encontrar sua família biológica, mas agora está unida a eles. Diz que recuperar a verdade sobre sua origem foi a melhor coisa que aconteceu em sua vida. Seu pai adotivo, depois de sofrer um colapso nervoso, é mantido em prisão domiciliar num asilo, contou-me ela. Sobre Marcela e Felipe, Catalina disse: “As pressões que estão sofrendo devem ser muito grandes.”
Uma corte federal confirmou, em dezembro de 2009, a ordem anterior do juiz Bergesio para que Marcela e Felipe fornecessem amostras de sangue e saliva para serem examinadas na Unidade Médica Forense. Os irmãos concordaram; dois jogos de amostras foram submetidos ao laboratório e um deles ficou guardado num cofre no gabinete de Bergesio. As Abuelas imediatamente ameaçaram denunciar Bergesio ao Conselho de Magistrados por ter, deliberadamente, violado a lei, ao ordenar o exame na Unidade Médica Forense e não no BNDG. Bergesio talvez tenha entrado em pânico diante da possibilidade de receber uma censura ao final de uma carreira longa e tranquila. No dia seguinte, ordenou buscas nas residências de Marcela e Felipe para confiscar objetos pessoais e levá-los ao BNDG. Foram tomados alguns objetos, mas seguiram-se meses de disputas legais e nenhum resultado de exame foi anunciado. (No último mês de novembro, Bergesio se aposentou depois de ser acusado de parcialidade e morosidade na condução do processo.)
Em 22 de abril de 2010, os quatro maiores jornais do país publicaram uma carta assinada por Marcela e Felipe. “A exemplo de muitas crianças adotadas, não conhecemos nossos pais biológicos, mas como qualquer outra pessoa, formamos nossa identidade no decorrer de nossas vidas”, escreveram. “Nunca vimos nenhuma prova concreta de que sejamos filhos de desaparecidos. [...] O uso político de nossa história parece injusto. [...] Trinta e quatro anos atrás, nossa mãe nos escolheu para sermos seus filhos. E nós, todos os dias, a escolhemos para ser nossa mãe.” A carta pouco fez para dissipar a impressão de que os irmãos eram pessoas cativas, cujas palavras eram todas controladas pelo Grupo Clarín e seus advogados, e só aumentou a impressão do público de que eles tinham um sentimento de autoridade ultrajada. Toda criança adotada na Argentina em 1976, sobretudo as que apresentavam muitas irregularidades em seus registros de adoção, como Marcela e Felipe, podia estar sujeita a uma investigação. A longa história de resistência de Ernestina dava a impressão de que eles estavam desesperados em seu intento de esconder a verdade.
Chicha Mariani, ex-presidente das Abuelas, ainda alimentava a esperança de que Marcela fosse sua neta. “Se não forem filhos de desaparecidos”, disse ela, “qual o motivo para sujeitá-los a essa tortura de esperar e esperar e brincar dessa maneira com nossas emoções?”
No dia 28 de maio de 2010, a juíza Sandra Salgado, que assumira o caso após a aposentadoria de Bergesio, convocou Marcela e Felipe a comparecerem a seu gabinete. Perguntou aos irmãos se estavam dispostos apermitir que alguma das amostras ou materiais que haviam previamente fornecido fossem examinados no BNDG, e eles responderam que não. Também não queriam fornecer novas amostras. Os irmãos deixaram o tribunal num carro, seus advogados em outro, e todos seguiram para a casa de Ernestina no rico subúrbio de Martínez. Salgado ordenou que policiais armados seguissem os carros. Houve uma perseguição em alta velocidade; o carro dos advogados foi interceptado e cercado por policiais com fuzis. “O juiz havia autorizado a apreensão de roupas, em público”, disse-me Alejandro Carrió, um dos advogados da família. “Eu leciono direito criminal e nunca vi uma ordem judicial tão mal concebida. O que iam fazer? Despir Marcela e Felipe na rua?”
Martínez é um bairro muito bonito, margeado por palmeiras, sempre-vivas e laranjeiras. Ernestina mora numa casa enorme cercada por um muro, uma mansão de mármore e vidro, atrás de portões de aço preto, ladeados por guaritas de concreto. Os portões abriram para o carro de Marcela e Felipe, que entrou rapidamente, seguido pelo carro da polícia. Os advogados chegaram logo depois. Rodríguez Cardozo, o bioquímico do BNDG, e três colegas, acompanhados de dois técnicos da Unidade Médica Forense, chegaram minutos depois. Encontraram a polícia e os advogados parados no saguão da casa, à espera de Marcela e Felipe, que haviam desaparecido em seus quartos. Mais tarde, calculou-se que os irmãos ficaram fora de vista por dez minutos.
A juíza orientara os especialistas a confiscar roupas dos irmãos e outros objetos de uso pessoal que tivessem consigo. Como Graciela Mochkofsky descreve a cena em seu livro, quando a ordem foi lida, Felipe começou a chorar. Marcela pediu que chamassem seu psiquiatra. Os irmãos foram separados, os especialistas homens foram para um cômodo com Felipe e as mulheres, para outro, com Marcela. Rodríguez Cardozo notou que Felipe dava a impressão de que vestia roupas de outra pessoa. Seu terno era grande demais para ele – a calça arrastava no chão – e era tão nova que ainda estava com a etiqueta plástica da loja. A roupa de Marcela era tão apertada que as calças mal fechavam em sua cintura. Mesmo assim as roupas foram confiscadas – Felipe estava sem cueca –, além do sutiã de Marcela, que também parecia novo em folha, e suas meias. “Nossa intimidade não foi respeitada”, disse Marcela naquela noite no Canal 13 da televisão, uma estação do Clarín. Ela e o irmão, disse Marcela, foram tratados como “criminosos”.
No BNDG, a equipe de Rodríguez Cardozo se pôs a trabalhar, tentando mapear perfis genéticos das roupas capturadas. A roupa de Felipe continha o DNA, em proporções iguais, de dois homens e uma mulher; a de Marcela tinha o DNA ou de um homem e uma mulher ou de duas mulheres. Nenhum DNA pôde ser obtido das meias de Felipe, que ele supostamente estaria usando havia cinco horas. As meias de Marcela tinham o DNA de três pessoas.
Foi um desastre de relações públicas para a juíza Salgado, as Abuelas e o BNDG. Perfis genéticos foram obtidos dos itens apreendidos na busca anterior, sob o comando do juiz Bergesio, e das amostras que os irmãos haviam deixado na Unidade Médica Forense, mas as Abuelas rejeitaram aqueles perfis. Como ninguém de sua confiança estava presente na hora em que Marcela e Felipe forneceram o sangue para o exame na Unidade Médica Forense, explicaram, não havia prova de que as amostras eram de fato deles. Salgado não teve opção a não ser ordenar mais uma extração de sangue e saliva para os exames. Todo mundo supunha, é claro, que os advogados de Marcela e Felipe iriam apelar em todas as instâncias, até a Suprema Corte, o que adiaria a resolução até as eleições presidenciais de outubro.
Então, nas últimas semanas de junho de 2011, houve uma surpresa: Marcela e Felipe entregaram uma carta à juíza Salgado. A fim de pôr um fim ao “constrangimento e à perseguição da mídia e dos tribunais”, e para poupar sua mãe “de mais ataques e sofrimentos”, escreveram, não só forneceriam novas amostras de sangue como também deixariam que seus perfis genéticos fossem conferidos com o de todas as 219 famílias qualificadas no BNDG.
Às oito horas da gélida manhã de 24 de junho, jornalistas, em casacos de inverno, estavam aglomerados na frente da entrada de ambulâncias de um hospital, no degradado bairro de Caballito, em Buenos Aires. O céu estava radiante; poucas árvores, retorcidas e pretas, algumas com as últimas folhas amarelas ainda penduradas nos galhos. A entrada de ambulâncias estava bloqueada por guardas e policiais federais. Quando mais soldados e policiais se juntaram à fileira, trocaram beijos no rosto com seus colegas. Fotógrafos e cinegrafistas trouxeram tripés e escadas para enxergar por cima da multidão, e apontaram as lentes para o caminho de entrada das ambulâncias, onde um portão levava diretamente para o BNDG. Do outro lado da rua, os fotógrafos se punham agachados nas janelas do 1º andar de uma garagem, na esperança de captar uma imagem de los chicos saindo de um carro e entrando no hospital.
Por volta das nove e meia, veículos estacionaram embaixo da passarela de pedestres. A visão da entrada do hospital ficou bloqueada pela porta aberta de um carro esportivo, do lado do passageiro, enquanto Marcela e Felipe entravam correndo. A mídia esperou durante uma hora, outra hora, e depois mais uma. Logo depois de uma hora da tarde, Alan Iud, advogado das Abuelas, saiu para fazer uma declaração: os irmãos tinham fornecido amostras para o exame de DNA e o processo estava concluído. No dia seguinte, jornais publicaram as cobiçadas fotografias dos irmãos saindo do BNDG: Felipe, de paletó e gravata, no banco traseiro do carro, prendendo seu cinto de segurança; Marcela saindo do hospital, fechando o colarinho de um casaco amarelo, o cabelo louro preso num rabo de cavalo.
Por que Marcela e Felipe de repente aceitaram fazer o exame? Alcira achou provável que tivessem simplesmente resolvido pôr um fim naquele assunto. A controvérsia se tornara um fardo desmoralizante para muitos que trabalhavam no jornal, do qual Marcela, um dia, seria diretora. Durante anos, os noticiários pró-Cristina Kirchner na tevê estatal focalizaram as adoções quase todas as noites e rotineiramente aplicavam palavras como “impunidade” ou “apropriadora” para Ernestina de Noble. “É uma empresa que tem em seus alicerces um pacto de cumplicidade com o genocídio.” Era assim que o Clarín era definido em tais noticiários. Os repórteres do Clarín estavam cansados de ouvir provocações nas ruas, de pessoas que gritavam: “Devolvam os filhos.” Panfletos de propaganda amplamente distribuídos, que diziam “Você pode ser um jornalista independente e servir a proprietária de uma empresa de mídia acusada de se apropriar de filhos de desaparecidos?”, vinham acompanhados de fotografias e nomes de jornalistas respeitados.
Mas, como vim a saber, havia um outro motivo. Em 2010, geneticistas do BNDG haviam examinado as amostras da Unidade Médica Forense e o primeiro jogo de objetos pessoais confiscados, e descobriram na mesma hora que não combinavam com nenhum dos perfis existentes no banco de dados. “Soubemos disso porque somos obcecados por nosso trabalho aqui”, disse-me minha fonte no BNDG. “Afinal, não passam de listas de números.” Alguém do banco de dados forneceu essa informação a um executivo do Clarín e Marcela e Felipe provavelmente concluíram que havia um risco muito pequeno de que seus exames combinassem com o DNA de alguma família. Parecia provável que as Abuelas soubessem disso também, embora elas neguem. Provavelmente foi por esse motivo que elas contestaram a autenticidade daquelas amostras.
O PRIMEIRO EXAME DE DNA DEU NEGATIVO. A manchete do dia 12 de julho enchia metade da primeira página do Clarín e era seguida pelo anúncio de que Marcela e Felipe não tinham relação genética com nenhuma das duas famílias de queixosos. A juíza Salgado ordenou que o exame fosse feito em três etapas. A segunda envolvia verificar se o exame batia com os perfis genéticos de famílias que procuravam os descendentes de familiares sabidamente desaparecidos em 1975 e 1976; a terceira etapa consistia em confrontar os exames com o DNA das famílias restantes. No dia 15 de julho, os resultados da segunda etapa, em que o perfil de Marcela foi confrontado com o de 55 famílias – inclusive a de Chicha Mariani – e o perfil genético de Felipe, com o de 57 famílias, também foram declarados negativos.
O jornal Clarín saudou os resultados com apelos para que o processo contra Ernestina Herrera de Noble fosse suspenso. O jornal e outros membros da mídia também clamaram que Estela de Carlotto e o governo pedissem desculpas a Ernestina e seus filhos. Numa entrevista coletiva no dia 18 de julho, Estela respondeu: “Eles dizem para pedirmos desculpa, mas quem deve pedir desculpa são os membros do Estado terrorista que apagaram todos os traços de nossas famílias e aqueles que escondem informações, para que não possamos encontrar nossos netos, e que usam nossa dor por oportunismo político.” Estela negou que o resultado dos exames tinha sido negativo. Não fora possível confrontar o DNA dos irmãos com o de quatro famílias cujos perfis genéticos ainda estavam incompletos. O caso, concluiu ela, ainda não estava encerrado. A ira de Estela servia para que os outros lembrassem que ela mesma era a mãe de uma filha brutalmente assassinada e que seu neto ainda não fora encontrado. As Abuelas, muitas delas agora com 80 ou 90 anos de idade, transmitem às vezes uma comovente sensação de premência.
O livro de Mochkofsky, publicado em agosto, afima que Héctor Magnetto, o atormentado executivo do Clarín, certa vez confidenciou a um colega que Ernestina não tinha a menor ideia de onde tinham vindo seus filhos. “E isso é que é o pior”, lamentou. Mochkofsky concluiu que isso significava que era simplesmente o fato de não saber –e não se atrever a descobrir – que levou Ernestina e o Grupo Clarín a expor Marcela e Felipe a dez anos de assédio e incerteza, ao mesmo tempo que permitia que o caso deles ganhasse a dimensão de um polarizador debate nacional, político, legal e de direitos humanos. E quanto a Marcela e Felipe? Seu silêncio, seu ar de isolamento fortificado, parecia impenetrável.
Em setembro, a juíza Salgado publicou uma sentença do caso de Ernestina de Noble Herrera. Num longo parecer, argumentou, tal como Estela, que como quatro famílias em busca de crianças nascidas em 1976 tinham perfis genéticos incompletos, a segunda etapa da tentativa de comparar o DNA estava inacabada e a terceira etapa não podia começar. Qualquer outro exame no caso, portanto, estava suspenso. Em dezembro, foi anunciado, com pouco alarde, que três daqueles perfis genéticos tinham sido concluídos e comparados, e o resultado foi de novo negativo. A juíza Salgado não indicou quando seria realizada a última rodada de exames, nem mesmo se seria feita.
Se a terceira rodada de exames for cumprida e o resultado for negativo, nem todos vão considerar o caso encerrado. Desde 2006, o BNDG incorporou em seu banco de dados 74 novas famílias. No dia em que visitei o BNDG, um homem idoso de Mendoza veio depositar uma amostra de seu sangue no banco de dados. A ideia de que sua filha talvez estivesse grávida quando desapareceu, trinta anos antes, havia afinal impelido o homem a dar aquele passo. Por mais remota que seja, sempre existe a possibilidade de que a próxima pessoa a cruzar aquela porta venha a ser um parente de Marcela ou de Felipe.
No último mês de agosto, as Abuelas anunciaram a 105ª correlação genética confirmada entre uma criança roubada – agora, uma médica de 34 anos, mãe de dois filhos – e seus avós biológicos. Três meses depois, tornou-se pública a notícia da gravidez de Marcela Noble Herrera. Marcela, que dizem morar com um namorado de muito tempo, deu à luz no início de fevereiro.
Chicha Mariani tem, hoje, 88 anos e está quase completamente cega. Transformou num museu a casa em La Plata de onde sua neta foi levada – seus escombros bombardeados estão guardados numa caixa de plástico transparente – e ela dirige uma fundação que tem o nome de Clara Anahí. “Estou sozinha no mundo”, disse-me ela. “Sempre tive esperança de encontrar Clara Anahí. Toda manhã acordo e penso, não quero, não quero continuar. Depois de um tempo, penso: Mas se eu não me mexer, o que vai acontecer? E aí me levanto e saio à procura dela. Quem vai procurar por ela quando eu partir?”