quinta-feira, 21 de março de 2013

Filhos da guerra suja - FRANCISCO GOLDMAN


Revista Piauí > Edição 68 > Maio de 2012‏


Filhos da guerra suja

Os órfãos roubados na ditadura argentina

por FRANCISCO GOLDMAN
No dia 24 de novembro de 1976, oito meses depois de a Junta Militar tomar o poder na Argentina, desencadeando a Guerra Suja que introduziu no mundo o termo los desaparecidos, uma casa num bairro sossegado e de ruas arborizadas em La Plata, a 65 quilômetros de Buenos Aires, foi alvo de um ataque. A investida-surpresa, que envolveu 200 homens das Forças Armadas por terra, além de bombardeio e rajadas de metralhadora pelo ar, durou quatro horas. María Isabel Chorobikde Mariani (conhecida como Chicha), professora de história da arte que morava a alguns quarteirões dali, ouviu tudo, assim como outras pessoas na cidade inteira. No dia seguinte, Chicha descobriu que a casa atacada era de seu filho. Daniel Mariani, economista, e sua mulher, estudante de pós-graduação, eram membros do grupo guerrilheiro de esquerda conhecido como Montoneros. Naquele dia, tinham estado na casa com a filha de 3 meses de idade e outros três militantes. Os vizinhos chamavam o prédio de “Casa dos Coelhos”, porque as pessoas que moravam lá criavam e vendiam coelhos, mas o negócio era uma fachada; o porão abrigava a gráfica que imprimia o jornal clandestino Evita. Os militantes tinham apenas armas leves. “Deveriam ter se rendido”, disse-me Chicha. Em vez disso, insistiram em resistir.
Daniel, soube-se depois, momentos antes do ataque tinha viajado para participar de uma reunião em Buenos Aires. Sua mulher, Diana Teruggi, foi assassinada no pátio. Ela havia escondido a filha, Clara Anahí, dentro de uma banheira, coberta com toalhas. Depois do ataque, um soldado encontrou o bebê e levou a menina para a rua. Perguntou ao comandante da operação, coronel Ramón Camps, o que fazer com ela. Dois policiais estavam sentados num carro ali perto e Camps disse ao soldado que entregasse o bebê para eles. Trinta anos depois, uma vizinha contou para Chicha que tinha visto um dos policiais colocar Clara Anahí dentro de uma ambulância. Quando o policial percebeu que ela estava olhando, gritou para que voltasse para dentro de casa, senão iria matá-la.
Assim que soube que sua neta também estava na casa, Chicha começou a procurar por Clara Anahí, buscando informações em delegacias, hospitais, juizados de menores e igrejas. Durante meses de busca, não encontrou nenhum vestígio da criança e ninguém disposto a discutir a questão. Até as amigas mais próximas de Chicha passaram a atravessar a rua para evitá-la. Por fim, uma mulher que trabalhava num Juizado de Menores teve pena. “Está muito sozinha, señora”, disse ela. Sugeriu que se juntasse a outras mulheres que estavam em busca de crianças desaparecidas e lhe deu o número de telefone de Alicia de la Cuadra. Alicia, cuja filha estava grávida quando “desapareceu”, falou para Chicha acerca do grupo ao qual ela pertencia – as Madres de Plaza de Mayo –, criado em abril de 1977, por mães que procuravam filhos detidos pelo regime militar. As Madres reuniam-se diante do Palácio Presidencial em Buenos Aires toda quinta-feira para fazer uma passeata em torno da praça, num protesto silencioso, usando lenços brancos bordados com os nomes dos filhos desaparecidos. Chicha participou de um protesto com as Madres e logo formou outro grupo, com Alicia e outras dez Madres que também procuravam netos desaparecidos. Ficaram conhecidas como Abuelas de Plaza de Mayo.
O filho de Chicha, que levara adiante sua vida de militante, foi morto numa rua de La Plata oito meses depois da morte da mulher. Anos depois, o marido de Chicha, um regente de orquestra sinfônica, continuava a ter frequentes alucinações, nas quais o chão de sua casa ficava encharcado de sangue. Passou a maior parte da vida na Itália e morreu em 2003. Chicha ficou em La Plata e dedicou-se a descobrir o paradeiro de Clara Anahí.

Durante o Processo de Reorganização Nacional – denominação pomposa que a Junta Militar deu ao período em que governou, de 1976 a 1983 – desapareceram nada menos de 30 mil pessoas, na maioria jovens argentinos. O governo justificou sua tática como parte de uma guerra contra uma insurreição revolucionária promovida por “terroristas subversivos”, embora o primeiro líder da Junta, o general Jorge Rafael Videla, definisse “terrorista” como “não só uma pessoa que instala bombas, mas aquela cujas ideias são contrárias à civilização cristã ocidental”. As forças de segurança da Junta iam ainda além dessa missão abrangente, quando tinham em mira dissidentes que deviam ser eliminados. Sessenta estudantes secundaristas do Colegio Manuel Belgrano, em Buenos Aires, desapareceram só porque ingressaram no conselho estudantil do colégio. Vítimas eram sequestradas quando desciam do ônibus, quando voltavam do trabalho ou vinham da escola para casa, ou em ataques-surpresa no meio da noite contra residências particulares e esconderijos onde membros dos grupos de guerrilha ou de organizações sindicais e estudantis banidas moravam escondidos. Os sequestrados eram levados para centros de detenção clandestinos, onde a maioria era torturada e morta.

Cerca de 30% dos desaparecidos eram mulheres. Algumas eram sequestradas com os filhos pequenos, e talvez 3% estivessem grávidas, ou engravidaram na prisão, em geral por causa de estupros cometidos pelos guardas e torturadores. Prisioneiras grávidas eram rotineiramente mantidas vivas até que dessem à luz. “A depravação do regime alcançou o auge com as prisioneiras grávidas”, escreveu Marguerite Feitlowitz, na época professora em Harvard, em seu estudo pioneiro sobre o pesadelo argentino, A Lexicon of Terror: Argentina and the Legacies of Torture. Uma ex-detenta contou para Marguerite: “Nossos corpos eram fonte de um fascínio especial. Diziam que meus mamilos inchados eram um convite para a ‘vara’” – a vara de ferro eletrificada, própria para tanger o gado, usada na tortura. “Eles representavam uma combinação francamente repulsiva – a curiosidade de meninos e a excitação violenta de homens adultos.”
Às vezes, as mães podiam amamentar seus filhos recém-nascidos, pelo menos esporadicamente, por alguns dias, ou até semanas, antes de os bebês serem tomados delas e as mães serem “transferidas” – enviadas para a morte, na famigerada nomenclatura da Guerra Suja. Um método comum de “transferir” era injetar drogas nas mulheres e empurrá-las pela porta de um avião nas águas do rio da Prata ou do oceano Atlântico. Segundo grupos de direitos humanos, pelo menos 500 bebês recém-nascidos e crianças pequenas foram separados de pais desaparecidos e, com suas identidades suprimidas, foram entregues para casais de policiais e militares sem filhos e outros favorecidos pelo regime.
Faz muito tempo que se supõe que esses roubos de bebês resultaram, em parte, do conluio entre militares e setores da Igreja Católica, que deram sua bênção aos voos da morte, mas não ao assassinato de crianças pequenas ou ainda não nascidas. O Processo de Reorganização Nacional queria definir e criar “argentinos autênticos”. Os filhos de subversivos, explicou Marguerite, eram tidos como “sementes da árvore do mal”. Talvez por meio da adoção tais sementes pudessem ser replantadas num solo sadio.

Chicha Mariani e as Abuelas de Plaza de Mayo definiram como seu propósito encontrar aquelas crianças adotadas e devolvê-las para o que houvesse restado de suas famílias biológicas. No final da década de 70, porém, a técnica do exame de DNA não estava plenamente desenvolvida e as Abuelas não tinham um modo seguro de identificar as crianças desaparecidas, sobretudo as que haviam nascido em centros de detenção. Às vezes o simples relance de um rosto de criança na rua fazia disparar seus corações. Crianças eram fotografadas na saída da escola ou eram seguidas a caminho de casa. Uma avó chegou a se fazer passar por empregada doméstica na casa de um casal que ela achava que podia estar criando uma criança roubada.
No início dos anos 80, geneticistas de universidades e de centros de pesquisas em hospitais nos Estados Unidos, alguns deles exilados da América Latina, começaram a manifestar interesse na busca empreendida pelas Abuelas. Em 1984, um ano depois do final do regime militar, Mary-Claire King, geneticista na Universidade da Califórnia em Berkeley, viajou para Buenos Aires para trabalhar com a geneticista argentina Ana María di Lonardo. Juntas, criaram o Índice dos Avós, um exame do antígeno leucócito humano, capaz de identificar um vínculo genético entre os avós e os netos. Mais adiante, naquele mesmo ano, o exame genético foi usado pela primeira vez para identificar um filho de desaparecidos políticos. A menina Paula Logares tinha sido sequestrada com os pais, em 1978, quando tinha 23 meses de vida. O policial que a criou – e que provavelmente estava envolvido na morte de seus pais – registrara a data de nascimento da menina como dois anos posteriores à data real. (Paula, mais tarde, foi devolvida à sua avó biológica.) As Abuelas começaram a pressionar o governo para criar um banco de dados genéticos nacional a fim de armazenar o perfil genético das famílias que procuravam crianças desaparecidas e, em 1987, foi fundado o Banco Nacional de Dados Genéticos, ou BNDG.
Chicha Mariani foi a presidenta das Abuelas até 1989 e, durante sua gestão, cerca de sessenta netos foram identificados e reintegrados a suas famílias biológicas. “Isso sempre nos deixava mais ou menos tão felizes como se tivéssemos encontrado nossos próprios netos”, me disse ela.

Estela de Carlotto, que assumiu o cargo de Chicha, era outra avó em busca de um bebê perdido. Em abril de 1978, Estela, na época diretora de uma escola em La Plata, soube por intermédio de uma ex-presa que sua filha, Laura, sequestrada em novembro de 1977, estava num campo de detenção chamado La Cacha e estava grávida. Estela conhecia a irmã de um general importante e foi pedir a ele que interferisse pela libertação da filha. O único efeito desse conhecimento foi que, alguns meses depois, Estela e o marido foram convocados a comparecer a uma delegacia de polícia para receber o cadáver da filha crivado de balas. Estela uniu-se às Abuelas de Plaza de Mayo alguns dias depois.
Numa viagem ao Brasil, em 1980, para entrevistar exilados sobreviventes dos campos de detenção, Estela conheceu Alcira Ríos, advogada, e seu marido, Luís Córdoba, dois dos cinco únicos prisioneiros de La Cacha, em 1978, que haviam sobrevivido ao campo. Em La Cacha, Alcira, que durante cinco meses foi mantida acorrentada a uma parede num fosso semelhante a uma caverna, conhecera Laura, que fora levada para lá dez meses antes. Quando o marido de Alcira foi cruelmente torturado e adoeceu com uma infecção, Laura cuidou dele e usou sua influência junto aos guardas para conseguir antibióticos. Nessa altura, ela já dera à luz um bebê chamado Guido, em homenagem ao avô. Depois do nascimento, disseram para Laura que seu bebê seria levado para a avó. Alcira lembrava-se de como Laura chorava e gemia: “Eu tenho um filho! Onde en mierda ele está?” Em agosto de 1978, disseram para Laura que ela ia ser levada para a Escuela Superior de Mecánica de la Armada, o mais temido campo de detenção do país, onde ela seria preparada para ser solta. Disseram que em breve estaria em casa, com seu filho e sua mãe. No dia 24 de agosto, na noite de sua “transferência”, ela teve permissão para despedir-se dos outros prisioneiros em La Cacha. Rastejou para dentro da caverna de Alcira e lhe pediu alguma coisa para poder se lembrar dela. “O que eu tinha que pudesse lhe dar?”, me disse Alcira. “Só tinha as roupas com que havia sido sequestrada. Mas eu tinha um sutiã, de renda preta. Dei para ela e Laura pôs o sutiã.” Anos depois, quando as investigações dos crimes da Guerra Suja estavam em andamento, o corpo de Laura foi exumado; tinha sido enterrada com o sutiã preto de Alcira.
Em 1984, Alcira voltou do exílio e Estela convidou-a para trabalhar para as Abuelas. A situação legal em que se viu envolvida era complexa. Um ano antes, a liderança militar argentina, humilhada pelos ingleses na Guerra das Malvinas, cedera o poder a um governo eleito democraticamente, chefiado pelo presidente Raúl Alfonsín. Em 1985, um inédito relatório da Comissão da Verdade para apurar os Crimes da Guerra Suja, intitulado “Nunca Mais”, redundou no julgamento e na prisão de, entre outros, nove ex-líderes da Junta Militar. Mas em 1986, sentindo-se ameaçado pela agitação militar que sucedeu os julgamentos, Alfonsín aprovou uma lei nova, Ponto Final, que punha um fim às investigações sobre a violência política durante a Guerra Suja. No ano seguinte, uma outra lei, Obediência Devida, determinava que as pessoas não podiam ser perseguidas por crimes cometidos no cumprimento de ordens de seus superiores. Em 1990, o sucessor de Alfonsín, presidente Carlos Menem, perdoou e libertou os líderes da Junta. Os argentinos, oficialmente livres da ditadura, eram, no entanto, obrigados a viver numa acomodação passiva com seus crimes e seus criminosos. Alguns dos mais famigerados sádicos da Junta Militar vagavam por Buenos Aires com sorrisos desafiadores e contavam suas histórias na televisão. Mulheres cruzavam no supermercado com seus torturadores e estupradores. Policiais veteranos recebiam em suas casas de campo velhos colegas de farda para parrilladas e brindavam uns aos outros como heróis que haviam salvado a nação do comunismo.

Casos de roubo de bebês forneciam uma pequena brecha às leis da anistia: pais condenados nos tribunais por terem adotado filhos de desaparecidos – ou “se apropriado” deles –, sabendo da verdade sobre sua origem, podiam ser presos. Em 1998, as Abuelas, em conjunto com outro grupo de direitos humanos, investigaram o caso de Claudia Poblete. Ela e os pais foram sequestrados em 1978, quando tinha 8 meses de idade. Seus pais foram torturados e mortos e Claudia foi criada por um militar e sua mulher. Por meio do exame de dna, as Abuelas identificaram a família de Claudia, então com 21 anos de idade, e seus pais adotivos foram condenados à prisão. (A mãe adotiva, com mais de 70 anos na época, teve permissão para cumprir a pena em regime de prisão domiciliar.) Segundo as leis da anistia, no entanto, os dois policiais responsáveis pelo sequestro, tortura e assassinato dos pais biológicos de Claudia não podiam ser processados. O juiz do caso, Gabriel Cavallo, num arrazoado de 188 páginas, argumentou que as leis Ponto Final e Obediência Devida estavam em conflito com a obrigação que a Argentina havia assumido, perante as leis internacionais, de levar a julgamento os responsáveis por crimes contra a humanidade. As duas leis foram revogadas pelo Congresso Nacional em 2003 e consideradas inconstitucionais pela Corte Suprema em 2005. Os dois policiais do caso Claudia, detidos em 2003, foram os primeiros processados por desaparecimentos desde 1987. Um morreu no hospital de uma prisão em abril de 2006, antes do começo do julgamento; o outro foi condenado a 25 anos de prisão.
Embora o caso tenha sido um triunfo histórico para as Abuelas, o grupo também sofreu repetidas frustrações: muitos exames de DNA deram negativo; nem todos os netos recuperados aceitaram os avós biológicos, para eles, pessoas estranhas. Muitos, fiéis aos únicos pais que haviam conhecido, se recusavam até a fazer o exame. Em 1983, Chicha Mariani achou que tinha encontrado sua neta, uma garota com uma história muito parecida com a de Clara Anahí. “Quando se constatou que não era ela, senti a terra se abrir debaixo de meus pés”, disse Chicha. Mais tarde, naquele mesmo ano, ela viu num jornal a fotografia de Marcela Noble Herrera, filha adotiva da proprietária da maior empresa de comunicação do país, e achou que talvez tivesse afinal descoberto a menina que tanto procurava. “A primeira vez que vi Marcela”, contou-me, sorvendo mate no café da manhã, com bananas e coalhada, em sua mesa de jantar coberta de documentos, “foi logo depois de Alfonsín tomar posse como presidente. Marcela estava de meias Morley” – meias com reforços nos joelhos – “iguais às meias que eu usava antigamente. E as pernas eram iguaizinhas às minhas. Vi as fotos dela na Inglaterra, na França, com presidentes e reis, e com o papa. Eu a vi crescer. Tem o mesmo corpo da mãe de minha nora. E sua personalidade parece ser semelhante à nossa – reservada, discreta, sincera, sensível e muito inteligente.”

Na ocasião em que conversei com Chicha, no ano passado, a questão da paternidade biológica de Marcela Noble Herrera se tornara central no relato das décadas de esforços, esperança e dor das Abuelas. Estava também no centro de um caso legal que havia envolvido a elite da mídia e da política argentina numa prolongada batalha pública. Um caso que passara a representar a reação volúvel, e não raro paradoxal, da Argentina com respeito a seu passado violento e que havia fascinado boa parte da população por mais de dez anos.
A história de Marcela começa com Ernestina Herrera de Noble, a mulher que a adotou em 1976. Ernestina era a viúva de Roberto Noble, fundador do império de mídia Clarín, que começou com um jornal, Clarín, e agora inclui estações de rádio e televisão, além do mais popular site de notícias da internet em língua espanhola na América Latina. Ernestina, de origem humilde, era 23 anos mais jovem do que o marido e foi nomeada proprietária e diretora titular do Grupo Clarín quando ele morreu, em 1969, embora a direção efetiva da empresa tenha ficado nas mãos de um círculo de executivos em quem Noble confiava. (A única filha de Noble, que ele tivera com outra mulher, aceitou um acordo em troca da renúncia a qualquer pretensão sobre a propriedade do grupo.) Em 1976, quando a Junta Militar tomou o poder, Ernestina tinha 50 anos e parecia estar no auge da crise de meia-idade. Dizem que era propensa a ceder a impulsos destemperados, a beber, e que também passava seus dias em iates com novos amigos. Segundo a jornalista Graciela Mochkofsky, que no último mês de agosto publicou, na Argentina, um livro intitulado Pecado Original: Clarín, los Kirchner y la Lucha por el Poder, os membros da diretoria do Clarín, preocupados com o futuro da empresa e com as próprias carreiras, caso algo acontecesse com Ernestina, apresentaram-lhe uma proposta. Ela adotaria duas crianças, disseram, e as nomearia herdeiras do Clarín. Então, se Ernestina morresse antes de as crianças chegarem à idade adulta, os homens da diretoria poderiam ser os regentes da empresa, até os jovens ficarem aptos a herdá-la. Ernestina concordou com o plano. Entre os executivos do Clarín estavam Rogelio Frigerio, que tinha sido o segundo homem na hierarquia do Ministério da Economia entre 1958 e 1962, e um advogado chamado Bernardo Sofovich. Esses homens incumbiram-se de encontrar dois bebês para Ernestina, uma menina e um menino, e naquele verão um Juizado de Menores conferiu a ela a guarda das crianças que se tornariam Marcela e Felipe Noble Herrera, herdeiros de uma fortuna que agora alcança muitos milhões.
O Clarín nunca se opôs abertamente ao regime militar e, em 1976, a empresa lucrou devido a suas relações amistosas com a Junta quando lhe foi oferecida uma parceria na primeira indústria de papel do país, Papel Prensa. (A maioria dos jornais concorrentes ainda tinha de importar papel.) O negócio impulsionou a expansão econômica do Grupo Clarín, dirigido por Héctor Magnetto, ex-contador da empresa e seu futuro presidente. Em 1985, o Clarín era um dos jornais em língua espanhola de maior circulação no mundo inteiro.

Durante as duas primeiras décadas depois da Guerra Suja, os presidentes argentinos geralmente encaravam o Grupo Clarín como um rival ou um adversário, a ser cortejado ou contestado. Mas o Clarín nunca seguiu um programa ideológico bem definido; a empresa estava mais preocupada com o fato de cada governo representar uma oportunidade para seus negócios ou uma barreira para sua expansão. O presidente Alfonsín resistiu à pressão do Clarín para revogar uma lei que impedia que jornais comprassem estações de rádio ou de televisão. Quando a desordem política e a vasta impopularidade afundou o governo de Alfonsín, ele culpou o Clarín. Carlos Menem, que governou como um neoliberal privatizante, revogou aquela lei e, em troca, esperava o apoio do Clarín. De início, o Clarín, cujas empresas de mídia associadas se expandiram acentuadamente, atendeu suas expectativas. Mas quando outros jornais começaram a publicar investigações sobre corrupção no governo Menem, o Clarín, para não se tornar irrelevante, imitou-os de maneira agressiva. Menem tinha tanto medo do Clarín que incentivou seus aliados ricos a construírem um império de mídia concorrente. Quando isso desmoronou, junto com as ambições de Menem, o grupo Clarín apoderou-se dos despojos.
Em 2001, a economia da Argentina entrou em colapso, desencadeando uma corrida aos bancos, o efetivo congelamento das poupanças individuais, protestos de massa nas ruas, uma série de mandatos presidenciais anulados, a repentina desvalorização do peso, um calote da dívida externa do país e o descrédito dos políticos tradicionais de todos os principais partidos. Em 2003, Néstor Kirchner, ex-governador de uma remota província na Patagônia, foi eleito presidente de uma Argentina desmoralizada e humilhada. O governo de Kirchner despejou dinheiro em programas sociais e o índice de pobreza do país caiu pela metade. Uma grande alta do preço da soja ajudou a impulsionar a recuperação da economia. Num de seus primeiros atos como presidente, Kirchner retirou os retratos dos ex-líderes da Junta Militar da galeria do Colégio Militar. Transformou em lei a revogação das Leis Ponto Final e Obediência Devida e converteu as então já idosas integrantes das Madres e Abuelas de Plaza de Mayo em ícones de seu governo, instalando-as de forma solene a seu lado em eventos públicos, e dizia: “Nós todos somos filhos das Madres e Abuelas de Plaza de Mayo.” Seu governo indicou Estela de Carlotto para o Prêmio Nobel da Paz. Em janeiro de 2006, as Madres encerraram suas passeatas semanais e anunciaram que o Palácio Presidencial não abrigava mais um inimigo.
Ao mesmo tempo, Kirchner e sua mulher, Cristina Fernández de Kirchner, acumularam uma fortuna espantosa e surgiram denúncias de corrupção e de favorecimentos ilícitos. Em 2007, Kirchner declarou que iria se afastar para que Cristina pudesse concorrer à Presidência: marido e mulheresperavam se alternar no poder por mais doze anos. Em dezembro daquele ano, porém, menos de uma semana depois de Cristina ser eleita, o Clarín publicou uma incendiária matéria de primeira página afirmando que um venezuelano detido com uma mala cheia de dinheiro no aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, no mês de agosto, trazia uma doação não declarada do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, para financiar a campanha dela. A matéria não agradou a Kirchner, que mantivera uma forte aliança com o Clarín e com Héctor Magnetto durante todo o seu mandato e, dez dias antes, havia suprimido barreiras de leis antitruste a fim de permitir que o Clarín fundisse duas empresas de transmissão de dados por cabo. (Em 2009, esse negócio representava 60% das receitas do Clarín.) A partir daí, até a repentina morte de Néstor Kirchner em 2010, causada por um ataque cardíaco, o casal Kirchner esteve unido numa feroz luta pública contra o Clarín.
Era comum dizer na Argentina que nenhum governo poderia sobreviver a quatro tapas– manchetes da primeira página do jornal – negativas e consecutivas, mas Cristina se vangloriava de que “havia batido o recorde”. A Guerra contra o Clarín, como é amplamente conhecida na Argentina, foi travada em várias frentes: Cristina aprovou leis antimonopólio e leis da mídia que já começaram a encolher o domínio do grupo. Seu governo também acusou o Clarín e outro jornal de terem adquirido suas ações da fábrica Papel Prensa com o conhecimento, senão com a efetiva cumplicidade, do sequestro, tortura e assassinato de membros da família e de sócios dos donos originais da fábrica cometidos pelos militares. (O Clarín está se defendendo de tal acusação num processo em andamento na Justiça.) Mas, em 2009, a batalha emblemática tanto para os Kirchner quanto para o Clarín dizia respeito à origem dos filhos adotivos de Ernestina Herrera de Noble.

Marcela e Felipe quase nunca são vistos em público e os detalhes de suas vidas particulares são guardados a sete chaves, embora se saiba que Marcela estudou jornalismo na Universidade Católica e agora trabalha no Clarín, preparando-se para, um dia, suceder à mãe. Tem pele bonita, é loura, de rosto grande e aspecto reservado. Muitas vezes usa roupas simples e conservadoras da Zara, uma rede espanhola de lojas relativamente baratas. Felipe tem pele mais morena, é atarracado, com um início de calvície. Estudou desenho industrial e dizem ser ainda mais reservado do que a irmã.
Pouco depois do fim do regime militar, as Abuelas de Plaza de Mayo começaram a ouvir rumores de que os irmãos eram filhos de dissidentes desaparecidos. Na época, as Abuelas trabalhavam com um sistema jurídico nem um pouco cooperativo – muitos juízes ainda tinham laços com a ditadura –, nem sempre contavam com o apoio da mídia. Sob o governo da Junta Militar, o Clarín, como a maioria dos jornais argentinos, se recusava a publicar notas sobre pessoas desaparecidas enviadas pelas Madres e Abuelas. Depois, quando o governo Alfonsín recebeu aplausos por sua Comissão da Verdade, o jornal começou a publicar editoriais dando apoio à causa das Abuelas. As Abuelas sabiam que era importante manter do seu lado o jornal mais popular do país. Mas era difícil fazerem-se de surdas no caso dos filhos de Ernestina. Ainda mais quando se dizia que duas das figuras mais sinistras da Guerra Suja, o bispo Antonio Plaza e o general Ramón Camps, estavam envolvidas na tarefa de conseguir crianças para ela adotar.
Durante o regime militar, o bispo Plaza era o capelão da Polícia da Província de Buenos Aires, comandada por Camps. Plaza denunciou à polícia dúzias de pessoas que depois desapareceram, entre elas o próprio sobrinho, que o havia procurado para pedir ajuda. Muitas vezes, Plaza acompanhava Camps em suas rondas em centros de detenção e de tortura, e mais tarde elogiou as leis de anistia da Guerra Suja. Dizia que elas poupariam os policiais do destino do “pobre Eichmann”, oficial nazista responsável pelo extermínio de judeus, condenado à morte por um tribunal de Israel após ser sequestrado por agentes israelenses, em Buenos Aires, onde se escondia. Camps era antissemita (havia um número desproporcional de judeus argentinos entre os desaparecidos) e sádico. É tido como o responsável por milhares de sequestros, centenas de homicídios, dois estupros, dez roubos de bebês e dois abortos provocados por tortura. Plaza morreu em 1987. Camps foi considerado culpado de 73 acusações de tortura e, em 1986, foi sentenciado a 25 anos de prisão. Foi libertado pelas leis de perdão e morreu em 1994.
Em 1992, Estela de Carlotto pediu uma reunião com Ernestina Herrera de Noble, que designou Magnetto, o presidente de sua empresa, para falar por ela. Seguiram-se três encontros incômodos. “Como poderia la señora ter dois filhos de terroristas?”, perguntou Magnetto em tom queixoso. Acusações desse tipo só poderiam ter motivação política ou financeira, argumentou. Num encontro posterior, segundo um advogado das Abuelas, Magnetto se propôs a revelar a verdadeira identidade dos filhos, se Estela lhe dissesse quais eram as fontes daquela acusação. (O porta-voz do Clarín negou ter feito tal proposta.)

As Abuelas levaram dois anos para ter acesso aos registros de adoção de Marcela e Felipe. Na Argentina, como em todos os países da América Latina, as adoções eram regulamentadas de maneira frouxa, no melhor dos casos, mas alguns detalhes dos registros chamaram a atenção de Alcira Ríos. As duas adoções foram realizadas com uma pressa fora do comum e pelo mesmo juiz de menores, no município de San Isidro. Não havia nenhum registro do nascimento ou do hospital. Em geral, só isso já bastaria para justificar uma investigação das Abuelas. Por outro lado, as adoções de Marcela e Felipe, em maio e julho de 1976, respectivamente, ocorreram num momento precoce da ditadura e as datas não pareciam corresponder às datas conhecidas de nascimento em centros de detenção ou de roubos de bebês na jurisdição da corte de San Isidro. As Abuelas, com tantas investigações para realizar, decidiram deixar o assunto de lado.
No entanto, alguns anos depois, quando os rumores foram mencionados de novo durante o julgamento de um caso que não tinha relação com aquele, e insinuou-se que as Abuelas haviam menosprezado as suspeitas em deferência à riqueza e ao poder do Grupo Clarín, Estela e Alcira resolveram agir. Pediram à corte de San Isidro para abrir uma investigação e o juiz, Roberto Marquevich, logo tinha sobre a mesa as pastas do processo das adoções. Muitas pessoas envolvidas, inclusive o executivo do Clarín Bernardo Sofovich e a juíza que havia aprovado as adoções, Ofelia Hejt, já haviam morrido; outros, como o executivo do Clarín Rogelio Frigerio, estavam velhos demais, ou mentalmente senis, para testemunhar. Mas em 2001, Marquevich convocou todos que pôde alcançar, a fim de reconstituir a história.

Segundo os arquivos, no dia 13 de maio de 1976, Ernestina testemunhou que na manhã de 2 de maio, em sua casa de campo em San Isidro, ouviu o choro de um bebê. Quando abriu a porta da frente, deparou com uma menina numa caixa de papelão. Manteve o bebê em casa por alguns dias, para o caso de alguém aparecer para reclamar a menina. Depois a levou para o Juizado a fim de comunicar o que havia ocorrido e também a um pediatra, acompanhada por sua vizinha, Yolanda Echagüe de Aragón, que havia presenciado a descoberta do bebê dentro da caixa. Ernestina contou para o Juizado que Roberto García, administrador de uma fazenda próxima, também tinha visto o bebê na porta da casa. No dia seguinte, sem fazer o menor esforço para conferir a história nem para identificar a mãe do bebê, a juíza Ofelia Hejt concedeu a custódia da criança a Ernestina e atribuiu uma data de nascimento para a menina, 23 de março de 1976, um dia antes do golpe militar. Entre as três testemunhas que deram boas referências do caráter de Ernestina, estava o bispo Plaza.
A pasta dos documentos de Felipe Noble Herrera foi aberta algumas semanas depois. Uma estudante de direito que se identificou como Carmen Luisa Delta, 25 anos de idade, disse que dera à luz um menino no dia 17 de abril, sem registrar o nascimento em nenhum hospital e sem nenhum pediatra. No dia 7 de julho, quando ela levou o bebê ao Juizado para entregá-lo para adoção, calhou de Ernestina estar lá e no mesmo dia recebeu a guarda da criança. No mês de maio seguinte, as duas adoções foram oficializadas.
Em 2001, Yolanda Echagüe de Aragón já havia morrido, mas constatou-se que tinha morado não na casa vizinha àquela que Ernestina dissera ser sua, mas a um quarteirão dali. A outra testemunha citada por Ernestina, Roberto García, atendeu à convocação de Marquevich. Disse ao juiz que nunca fora administrador de nenhuma fazenda em San Isidro. Tinha sido motorista de Roberto Noble e depois de Ernestina, até se aposentar em 1977. Contou que Ernestina nunca tinha morado numa casa em San Isidro, embora de vez em quando ele a levasse lá para visitar um chalé, cujo endereço exato não conseguia lembrar. Admitiu que a assinatura na declaração das testemunhas parecia ser a sua, mas disse que nunca tinha ido ao Juizado de Menores de San Isidro. Os advogados do Clarín, revelou ele, lhe trouxeram alguns documentos para assinar. Classificou de “mentiras” o relato de Ernestina das ações atribuídas a ele.
Carmen Luisa Delta, a estudante de direito que supostamente entregara Felipe para adoção, nunca existiu, pelo menos não com esse nome; o número de sua identidade correspondia à de um homem chamado Hugo Tarkowski.
A juíza Ofelia Hejt recebeu sua nomeação para o Juizado de Menores no início da ditadura. Em 1977, segundo os registros das Abuelas, ela autorizou a adoção de um bebê de 3 meses, apesar de haver indícios de que os pais do menino haviam desaparecido. Em 1984, as Abuelas descobriram o menino e restauraram sua identidade verdadeira.
No final de 2001, seis meses depois de abrir a investigação, o juiz Marquevich disse para Alcira que o caso não poderia prosseguir antes que se designasse uma parte queixosa. Nenhuma família nos registros das Abuelas estava em busca de crianças cujas supostas datas de nascimento coincidissem exatamente com as de Marcela e Felipe, mas Alcira sabia que os documentos de Ernestina estavam cheios de mentiras. Por que as datas de nascimento deveriam ser tratadas como dignas de crédito? Escolheu duas famílias que avaliou como mais prováveis, embora soubesse que eram reduzidas as chances de se descobrir que alguma delas tinha relação com Marcela ou Felipe. Um dos queixosos era a família de María del Carmen Gualdero, que estava grávida de nove meses quando foi sequestrada, em junho de 1976, perto de San Isidro; não se sabia se ela dera à luz no cativeiro ou não. A outra família estava em busca de Matilde Lanuscou. Durante anos, supôs-se que Matilde havia morrido aos 6 meses de idade, com os pais e dois irmãos numa investida de militares contra sua casa em San Isidro, em setembro de 1976. Mas quando exumaram as sepulturas, após a ditadura, o caixão de Matilde continha apenas roupas de bebê e uma chupeta. Era possível que ela continuasse viva, em algum lugar, e que pudesse até ser Marcela Noble Herrera.

Em 19 de março de 2002, Marquevichordenou que Marcela e Felipe fossem ao BNDG e fornecessem amostras para a análise de DNA. Em reuniões particulares, os advogados do Clarín pressionavam para um acordo diferente: queriam que Marcela e Felipe fizessem o exame na Unidade Médica Forense, uma instituição ligada à Suprema Corte. A fim de proteger a privacidade dos irmãos, disseram os advogados do Clarín, eles poderiam ser testados com o DNA das duas famílias queixosas, mas depois as amostras teriam de ser destruídas. A Unidade Médica Forense não tinha um laboratório próprio e era considerada corrupta, por Alcira e por outros. “Lá, era possível comprar o resultado que se quisesse”, me disse Alcira. Ela fez pé firme: só o BNDG tinha autorização legal para fazer o exame e as amostras tinham de permanecer lá. Uma das advogadas do Clarín confidenciou para Alcira – “de uma colega para outra”, disse ela – que Felipe e Marcela disseram que queriam fazer o exame. Magnetto e os advogados do Clarín, no entanto, tomaram a frente da questão. Os advogados disseram para a corte que os irmãos não tinham interesse em conhecer suas identidades biológicas e não estavam emocionalmente preparados para fazer o exame. (O enorme processo de Marcela e Felipe inclui atestados psiquiátricos e médicos declarando que os irmãos haviam sofrido diversas perturbações psicológicas – insônia, ansiedade, isolamento social – provocadas pelo estresse da investigação e do escrutínio público que haviam suportado desde que aquilo começara.) Os prazos impostos pelo juiz Marquevich para o fornecimento de amostras do DNA eram repetidamente prorrogados.
Por fim, no dia 17 de dezembro de 2002, provavelmente frustrado pelas táticas protelatórias dos advogados do Clarín, Marquevich ordenou a prisão de Ernestina, então com 77 anos de idade, sob a acusação de ter falsificado documentos públicos de adoção. Ela passou três noites na cela VIP de uma delegacia e depois ficou em prisão domiciliar. A Argentina ficou escandalizada. Vários juízes de alto escalão criticaram a prisão, bem como jornalistas e outros grupos de direitos humanos. No dia 12 de janeiro, Ernestina publicou uma carta aberta no Clarín, acusando sua prisão de fazer parte de um plano para destruir a imprensa independente da Argentina. Mas a carta continha esta frase: “Falei muitas vezes com meus filhos sobre a possibilidade de eles e seus pais terem sido vítimas da repressão ilegal.” Era uma chocante admissão de que a investigação sobre as origens de seus filhos adotivos era justificada.
Marquevich, que foi afastado do caso, e por fim expulso do Judiciário por um tribunal do Congresso, foi substituído pelo juiz Conrado Bergesio, cujas decisões, segundo Alcira, “eram tomadas pelos advogados de Ernestina”. Ela acrescentou: “Durante anos, Bergesio fingiu investigar, mas não o fez.” Em 2004, Bergesio ordenou que os irmãos se submetessem ao exame na Unidade Médica Forense, mas os advogados das Abuelas e também do Clarín contestaram a ordem e nenhum exame foi realizado. Só depois que o casal Kirchner rompeu com o Clarín, em 2007, Alcira “começou a sentir uma pressão para fazer o caso andar, uma pressão mais política do que jurídica”. (Alcira deixou as Abuelas porque achou que a organização tinha se tornado excessivamente partidária, embora tenha continuado a representar famílias em busca de crianças roubadas e a trabalhar no caso de Ernestina.)

governo de Cristina Kirchner, profundamente envolvido em sua própria guerra contra o Clarín, em 2009, persuadiu o Congresso a aprovar leis que pareciam ter em mira o caso de Ernestina. Uma delas proibia qualquer transferência de material genético para fora do BNDG a fim de fazer o exame em outro laboratório e outra lei permitia que juízes determinassem a extração de sangue compulsória em casos que envolvessem filhos de desaparecidos, se outros meios de obter o DNA fracassassem.
Alcira defendeu a lei dos exames compulsórios. Era uma decisão pesada demais para caber apenas ao adotado, mesmo quando essa pessoa já era um adulto. Não raro, os adotados sentiam-se aterrorizados com a ideia de serem os responsáveis pela prisão dos únicos pais que haviam conhecido. Alcira soube de pelo menos um pai que apontou um revólver contra a cabeça da filha adotiva para impedir que fornecesse sangue para o exame.
Em 2005, tornou-se possível obter o DNA de uma pessoa a partir da roupa e de objetos de uso pessoal. Alcira levou essa informação à Justiça e logo se instituiu uma alternativa para a extração compulsória de sangue: agora os juízes podiam determinar o confisco de objetos de uso pessoal, como escova de dentes. Um dos primeiros casos de exame desse tipo envolveu uma possível criança roubada de nome Evelyn Vázquez, que ameaçara se suicidar se tivesse de fazer o exame de sangue. Quando seu apartamento de cobertura foi invadido, em 2006, policiais protegeram as janelas a fim de evitar que ela pulasse. Evelyn tinha acabado de voltar da academia de ginástica e María Belén Rodríguez Cardozo, uma bioquímica do BNDG, confiscou sua bolsa, cheia de roupas de ginástica suadas. O exame de DNA comprovou que Evelyn era filha de Susana Pegoraro e Rúben Santiago Bauer, ambos desaparecidos em 1977. “Uma das primeiras coisas que ela fez depois da descoberta foi trocar seu nome para Evelyn Bauer”, disse Alcira. Evelyn estabeleceu uma relação com sua avó biológica, mas também continuou ligada aos pais adotivos – o pai adotivo tinha sido agente da contrainteligência –, que foram condenados à prisão no ano passado. O juiz do caso registrou em sua sentença que muitos adotados continuavam, na vida adulta, a ser “hóspedes ou prisioneiros das redes tecidas pelas pessoas que deles se apropriaram” e que a supressão da identidade imposta por tais adoções podia produzir sintomas “patológicos”.
Catalina de Sanctis, outra adotada, concorda. Ela cresceu, contou-me, referindo-se a si mesma como “Cara de Nada”, porque não se parecia com ninguém em sua família. Seus pais eram pessoas com problemas psicológicos, propensos à depressão e a bruscas mudanças de humor. “Não é qualquer pessoa que faz o que eles fizeram”, disse ela. “E ter feito isso deixou-os ainda mais doentes.” Toda vez que mencionavam as Abuelas na televisão, seu pai alcoólatra, agente da inteligência militar, tinha uma explosão de raiva e esbravejava insultos. Em 2000, Catalina pressionou a mãe, que não resistiu e confessou a verdade. O pai lhe disse que, se ela desse sangue, eles iriam para a prisão. Catalina sentiu-se paralisada. Em 2005, as Abuelas abriram uma investigação sobre suas origens; no ano seguinte, para evitar o exame de DNA, ela partiu de avião com o marido e o pai adotivo para o Paraguai, e depois voltou para a Argentina. No início de uma manhã, em maio de 2008, a polícia invadiu a casa onde ela e o marido se escondiam, com ordens de confiscar objetos pessoais. “Eu chorei”, disse ela. “Mas também foi um alívio.” No mês de setembro, ela soube que era filha de dois estudantes, René de Sanctis e Myriam Ovando; sua mãe estava grávida de seis meses quando foi sequestrada. Durante quase dois anos, Catalina se recusou a encontrar sua família biológica, mas agora está unida a eles. Diz que recuperar a verdade sobre sua origem foi a melhor coisa que aconteceu em sua vida. Seu pai adotivo, depois de sofrer um colapso nervoso, é mantido em prisão domiciliar num asilo, contou-me ela. Sobre Marcela e Felipe, Catalina disse: “As pressões que estão sofrendo devem ser muito grandes.”

Uma corte federal confirmou, em dezembro de 2009, a ordem anterior do juiz Bergesio para que Marcela e Felipe fornecessem amostras de sangue e saliva para serem examinadas na Unidade Médica Forense. Os irmãos concordaram; dois jogos de amostras foram submetidos ao laboratório e um deles ficou guardado num cofre no gabinete de Bergesio. As Abuelas imediatamente ameaçaram denunciar Bergesio ao Conselho de Magistrados por ter, deliberadamente, violado a lei, ao ordenar o exame na Unidade Médica Forense e não no BNDG. Bergesio talvez tenha entrado em pânico diante da possibilidade de receber uma censura ao final de uma carreira longa e tranquila. No dia seguinte, ordenou buscas nas residências de Marcela e Felipe para confiscar objetos pessoais e levá-los ao BNDG. Foram tomados alguns objetos, mas seguiram-se meses de disputas legais e nenhum resultado de exame foi anunciado. (No último mês de novembro, Bergesio se aposentou depois de ser acusado de parcialidade e morosidade na condução do processo.)
Em 22 de abril de 2010, os quatro maiores jornais do país publicaram uma carta assinada por Marcela e Felipe. “A exemplo de muitas crianças adotadas, não conhecemos nossos pais biológicos, mas como qualquer outra pessoa, formamos nossa identidade no decorrer de nossas vidas”, escreveram. “Nunca vimos nenhuma prova concreta de que sejamos filhos de desaparecidos. [...] O uso político de nossa história parece injusto. [...] Trinta e quatro anos atrás, nossa mãe nos escolheu para sermos seus filhos. E nós, todos os dias, a escolhemos para ser nossa mãe.” A carta pouco fez para dissipar a impressão de que os irmãos eram pessoas cativas, cujas palavras eram todas controladas pelo Grupo Clarín e seus advogados, e só aumentou a impressão do público de que eles tinham um sentimento de autoridade ultrajada. Toda criança adotada na Argentina em 1976, sobretudo as que apresentavam muitas irregularidades em seus registros de adoção, como Marcela e Felipe, podia estar sujeita a uma investigação. A longa história de resistência de Ernestina dava a impressão de que eles estavam desesperados em seu intento de esconder a verdade.
Chicha Mariani, ex-presidente das Abuelas, ainda alimentava a esperança de que Marcela fosse sua neta. “Se não forem filhos de desaparecidos”, disse ela, “qual o motivo para sujeitá-los a essa tortura de esperar e esperar e brincar dessa maneira com nossas emoções?”

No dia 28 de maio de 2010, a juíza Sandra Salgado, que assumira o caso após a aposentadoria de Bergesio, convocou Marcela e Felipe a comparecerem a seu gabinete. Perguntou aos irmãos se estavam dispostos apermitir que alguma das amostras ou materiais que haviam previamente fornecido fossem examinados no BNDG, e eles responderam que não. Também não queriam fornecer novas amostras. Os irmãos deixaram o tribunal num carro, seus advogados em outro, e todos seguiram para a casa de Ernestina no rico subúrbio de Martínez. Salgado ordenou que policiais armados seguissem os carros. Houve uma perseguição em alta velocidade; o carro dos advogados foi interceptado e cercado por policiais com fuzis. “O juiz havia autorizado a apreensão de roupas, em público”, disse-me Alejandro Carrió, um dos advogados da família. “Eu leciono direito criminal e nunca vi uma ordem judicial tão mal concebida. O que iam fazer? Despir Marcela e Felipe na rua?”
Martínez é um bairro muito bonito, margeado por palmeiras, sempre-vivas e laranjeiras. Ernestina mora numa casa enorme cercada por um muro, uma mansão de mármore e vidro, atrás de portões de aço preto, ladeados por guaritas de concreto. Os portões abriram para o carro de Marcela e Felipe, que entrou rapidamente, seguido pelo carro da polícia. Os advogados chegaram logo depois. Rodríguez Cardozo, o bioquímico do BNDG, e três colegas, acompanhados de dois técnicos da Unidade Médica Forense, chegaram minutos depois. Encontraram a polícia e os advogados parados no saguão da casa, à espera de Marcela e Felipe, que haviam desaparecido em seus quartos. Mais tarde, calculou-se que os irmãos ficaram fora de vista por dez minutos.
A juíza orientara os especialistas a confiscar roupas dos irmãos e outros objetos de uso pessoal que tivessem consigo. Como Graciela Mochkofsky descreve a cena em seu livro, quando a ordem foi lida, Felipe começou a chorar. Marcela pediu que chamassem seu psiquiatra. Os irmãos foram separados, os especialistas homens foram para um cômodo com Felipe e as mulheres, para outro, com Marcela. Rodríguez Cardozo notou que Felipe dava a impressão de que vestia roupas de outra pessoa. Seu terno era grande demais para ele – a calça arrastava no chão – e era tão nova que ainda estava com a etiqueta plástica da loja. A roupa de Marcela era tão apertada que as calças mal fechavam em sua cintura. Mesmo assim as roupas foram confiscadas – Felipe estava sem cueca –, além do sutiã de Marcela, que também parecia novo em folha, e suas meias. “Nossa intimidade não foi respeitada”, disse Marcela naquela noite no Canal 13 da televisão, uma estação do Clarín. Ela e o irmão, disse Marcela, foram tratados como “criminosos”.
No BNDG, a equipe de Rodríguez Cardozo se pôs a trabalhar, tentando mapear perfis genéticos das roupas capturadas. A roupa de Felipe continha o DNA, em proporções iguais, de dois homens e uma mulher; a de Marcela tinha o DNA ou de um homem e uma mulher ou de duas mulheres. Nenhum DNA pôde ser obtido das meias de Felipe, que ele supostamente estaria usando havia cinco horas. As meias de Marcela tinham o DNA de três pessoas.
Foi um desastre de relações públicas para a juíza Salgado, as Abuelas e o BNDG. Perfis genéticos foram obtidos dos itens apreendidos na busca anterior, sob o comando do juiz Bergesio, e das amostras que os irmãos haviam deixado na Unidade Médica Forense, mas as Abuelas rejeitaram aqueles perfis. Como ninguém de sua confiança estava presente na hora em que Marcela e Felipe forneceram o sangue para o exame na Unidade Médica Forense, explicaram, não havia prova de que as amostras eram de fato deles. Salgado não teve opção a não ser ordenar mais uma extração de sangue e saliva para os exames. Todo mundo supunha, é claro, que os advogados de Marcela e Felipe iriam apelar em todas as instâncias, até a Suprema Corte, o que adiaria a resolução até as eleições presidenciais de outubro.
Então, nas últimas semanas de junho de 2011, houve uma surpresa: Marcela e Felipe entregaram uma carta à juíza Salgado. A fim de pôr um fim ao “constrangimento e à perseguição da mídia e dos tribunais”, e para poupar sua mãe “de mais ataques e sofrimentos”, escreveram, não só forneceriam novas amostras de sangue como também deixariam que seus perfis genéticos fossem conferidos com o de todas as 219 famílias qualificadas no BNDG.

Às oito horas da gélida manhã de 24 de junho, jornalistas, em casacos de inverno, estavam aglomerados na frente da entrada de ambulâncias de um hospital, no degradado bairro de Caballito, em Buenos Aires. O céu estava radiante; poucas árvores, retorcidas e pretas, algumas com as últimas folhas amarelas ainda penduradas nos galhos. A entrada de ambulâncias estava bloqueada por guardas e policiais federais. Quando mais soldados e policiais se juntaram à fileira, trocaram beijos no rosto com seus colegas. Fotógrafos e cinegrafistas trouxeram tripés e escadas para enxergar por cima da multidão, e apontaram as lentes para o caminho de entrada das ambulâncias, onde um portão levava diretamente para o BNDG. Do outro lado da rua, os fotógrafos se punham agachados nas janelas do 1º andar de uma garagem, na esperança de captar uma imagem de los chicos saindo de um carro e entrando no hospital.
Por volta das nove e meia, veículos estacionaram embaixo da passarela de pedestres. A visão da entrada do hospital ficou bloqueada pela porta aberta de um carro esportivo, do lado do passageiro, enquanto Marcela e Felipe entravam correndo. A mídia esperou durante uma hora, outra hora, e depois mais uma. Logo depois de uma hora da tarde, Alan Iud, advogado das Abuelas, saiu para fazer uma declaração: os irmãos tinham fornecido amostras para o exame de DNA e o processo estava concluído. No dia seguinte, jornais publicaram as cobiçadas fotografias dos irmãos saindo do BNDG: Felipe, de paletó e gravata, no banco traseiro do carro, prendendo seu cinto de segurança; Marcela saindo do hospital, fechando o colarinho de um casaco amarelo, o cabelo louro preso num rabo de cavalo.

Por que Marcela e Felipe de repente aceitaram fazer o exame? Alcira achou provável que tivessem simplesmente resolvido pôr um fim naquele assunto. A controvérsia se tornara um fardo desmoralizante para muitos que trabalhavam no jornal, do qual Marcela, um dia, seria diretora. Durante anos, os noticiários pró-Cristina Kirchner na tevê estatal focalizaram as adoções quase todas as noites e rotineiramente aplicavam palavras como “impunidade” ou “apropriadora” para Ernestina de Noble. “É uma empresa que tem em seus alicerces um pacto de cumplicidade com o genocídio.” Era assim que o Clarín era definido em tais noticiários. Os repórteres do Clarín estavam cansados de ouvir provocações nas ruas, de pessoas que gritavam: “Devolvam os filhos.” Panfletos de propaganda amplamente distribuídos, que diziam “Você pode ser um jornalista independente e servir a proprietária de uma empresa de mídia acusada de se apropriar de filhos de desaparecidos?”, vinham acompanhados de fotografias e nomes de jornalistas respeitados.
Mas, como vim a saber, havia um outro motivo. Em 2010, geneticistas do BNDG haviam examinado as amostras da Unidade Médica Forense e o primeiro jogo de objetos pessoais confiscados, e descobriram na mesma hora que não combinavam com nenhum dos perfis existentes no banco de dados. “Soubemos disso porque somos obcecados por nosso trabalho aqui”, disse-me minha fonte no BNDG. “Afinal, não passam de listas de números.” Alguém do banco de dados forneceu essa informação a um executivo do Clarín e Marcela e Felipe provavelmente concluíram que havia um risco muito pequeno de que seus exames combinassem com o DNA de alguma família. Parecia provável que as Abuelas soubessem disso também, embora elas neguem. Provavelmente foi por esse motivo que elas contestaram a autenticidade daquelas amostras.

PRIMEIRO EXAME DE DNA DEU NEGATIVO. A manchete do dia 12 de julho enchia metade da primeira página do Clarín e era seguida pelo anúncio de que Marcela e Felipe não tinham relação genética com nenhuma das duas famílias de queixosos. A juíza Salgado ordenou que o exame fosse feito em três etapas. A segunda envolvia verificar se o exame batia com os perfis genéticos de famílias que procuravam os descendentes de familiares sabidamente desaparecidos em 1975 e 1976; a terceira etapa consistia em confrontar os exames com o DNA das famílias restantes. No dia 15 de julho, os resultados da segunda etapa, em que o perfil de Marcela foi confrontado com o de 55 famílias – inclusive a de Chicha Mariani – e o perfil genético de Felipe, com o de 57 famílias, também foram declarados negativos.
O jornal Clarín saudou os resultados com apelos para que o processo contra Ernestina Herrera de Noble fosse suspenso. O jornal e outros membros da mídia também clamaram que Estela de Carlotto e o governo pedissem desculpas a Ernestina e seus filhos. Numa entrevista coletiva no dia 18 de julho, Estela respondeu: “Eles dizem para pedirmos desculpa, mas quem deve pedir desculpa são os membros do Estado terrorista que apagaram todos os traços de nossas famílias e aqueles que escondem informações, para que não possamos encontrar nossos netos, e que usam nossa dor por oportunismo político.” Estela negou que o resultado dos exames tinha sido negativo. Não fora possível confrontar o DNA dos irmãos com o de quatro famílias cujos perfis genéticos ainda estavam incompletos. O caso, concluiu ela, ainda não estava encerrado. A ira de Estela servia para que os outros lembrassem que ela mesma era a mãe de uma filha brutalmente assassinada e que seu neto ainda não fora encontrado. As Abuelas, muitas delas agora com 80 ou 90 anos de idade, transmitem às vezes uma comovente sensação de premência.
O livro de Mochkofsky, publicado em agosto, afima que Héctor Magnetto, o atormentado executivo do Clarín, certa vez confidenciou a um colega que Ernestina não tinha a menor ideia de onde tinham vindo seus filhos. “E isso é que é o pior”, lamentou. Mochkofsky concluiu que isso significava que era simplesmente o fato de não saber –e não se atrever a descobrir – que levou Ernestina e o Grupo Clarín a expor Marcela e Felipe a dez anos de assédio e incerteza, ao mesmo tempo que permitia que o caso deles ganhasse a dimensão de um polarizador debate nacional, político, legal e de direitos humanos. E quanto a Marcela e Felipe? Seu silêncio, seu ar de isolamento fortificado, parecia impenetrável.
Em setembro, a juíza Salgado publicou uma sentença do caso de Ernestina de Noble Herrera. Num longo parecer, argumentou, tal como Estela, que como quatro famílias em busca de crianças nascidas em 1976 tinham perfis genéticos incompletos, a segunda etapa da tentativa de comparar o DNA estava inacabada e a terceira etapa não podia começar. Qualquer outro exame no caso, portanto, estava suspenso. Em dezembro, foi anunciado, com pouco alarde, que três daqueles perfis genéticos tinham sido concluídos e comparados, e o resultado foi de novo negativo. A juíza Salgado não indicou quando seria realizada a última rodada de exames, nem mesmo se seria feita.
Se a terceira rodada de exames for cumprida e o resultado for negativo, nem todos vão considerar o caso encerrado. Desde 2006, o BNDG incorporou em seu banco de dados 74 novas famílias. No dia em que visitei o BNDG, um homem idoso de Mendoza veio depositar uma amostra de seu sangue no banco de dados. A ideia de que sua filha talvez estivesse grávida quando desapareceu, trinta anos antes, havia afinal impelido o homem a dar aquele passo. Por mais remota que seja, sempre existe a possibilidade de que a próxima pessoa a cruzar aquela porta venha a ser um parente de Marcela ou de Felipe.

No último mês de agosto, as Abuelas anunciaram a 105ª correlação genética confirmada entre uma criança roubada – agora, uma médica de 34 anos, mãe de dois filhos – e seus avós biológicos. Três meses depois, tornou-se pública a notícia da gravidez de Marcela Noble Herrera. Marcela, que dizem morar com um namorado de muito tempo, deu à luz no início de fevereiro.
Chicha Mariani tem, hoje, 88 anos e está quase completamente cega. Transformou num museu a casa em La Plata de onde sua neta foi levada – seus escombros bombardeados estão guardados numa caixa de plástico transparente – e ela dirige uma fundação que tem o nome de Clara Anahí. “Estou sozinha no mundo”, disse-me ela. “Sempre tive esperança de encontrar Clara Anahí. Toda manhã acordo e penso, não quero, não quero continuar. Depois de um tempo, penso: Mas se eu não me mexer, o que vai acontecer? E aí me levanto e saio à procura dela. Quem vai procurar por ela quando eu partir?”

PAULO SANT’ANA - Emílio Santiago

Zero Hora - 21/03/2013

O Ricardo Chaves, inquilino da página anterior à minha em ZH, veio me perguntar anteontem sobre a página que publicou ontem, em que elegeu o cantor Gasolina como seu personagem.

O Kadão queria subsídios sobre o Gasolina. Dei-lhe-os.

O Gasolina, um gaúcho pretinho simpático de sorriso aberto, fez sucesso nacional em filmes e emissoras de rádio na década de 50, depois de ter sido varredor na Rádio Gaúcha.

Foi então que o Kadão me perguntou se o Gasolina já tinha morrido, ele queria anotar esse detalhe em sua página.

E eu respondi: “Mas é claro que o Gasolina já morreu. Eu, que sou eu, já morri, imagina o Gasolina...”.

Quando tive o câncer na rinofaringe há dois anos, fui submetido a 35 sessões de radioterapia no Mãe de Deus (que saudade da equipe que me atendeu lá durante aquele período preocupante).

A radioterapia me tirou a saliva, o paladar e o apetite e isso fez com que eu emagrecesse 24 quilos.

Então, as pessoas me encontram na rua e dizem que estou esbelto, magro, elegante. E me perguntam como devem fazer para ficarem elegantes e magros assim.

E eu lhes respondo rapidamente: “Peguem um câncer!”.

Faleceu agora no Rio de Janeiro o maior cantor brasileiro. Emílio Santiago era grande sambista, grande jazista de estilo inconfundível, tinha uma bossa e uma voz incomparáveis.

Quando, ontem, soube de sua morte, senti-me órfão de seu talento. Vou tentar me consolar e para isso já mandei comprar todos os seus discos.

Que saudade, Emílio.

Estamos acompanhando aqui em Zero Hora com interesse e atenção o tratamento de saúde do nosso colega David Coimbra.

O que posso dizer é que torcemos avidamente para que o David saia íntegro desse impasse e volte inteirinho novamente para seus leitores e para nós.

Tenho experiência com esse tipo de doença e digo ao David que o maior fator de sucesso para dar a volta por cima é a pertinácia, a insistência em curar-se e voltar à vida normal, e a observação de todas as prescrições médicas.

Mas é absolutamente inequívoco que cedo, logo em seguida, o David voltará a trabalhar.

No lançamento do site de venda de vinhos do Vanderlei Luxemburgo, encontrei-me com ele e o treinador Dunga, numa roda.

Foi então que desafiei Dunga na frente do Luxemburgo: “Agora, na Taça Farroupilha, segundo turno do Gauchão, tu vais ver a força do carvão de pedra: o Luxemburgo vai escalar titulares e não reservas contra o Inter, acabou a tua moleza”.

E o Dunga respondeu: “Mas nós vamos jogar com 11 homens”.

Dunga se referia ao Gre-Nal em que o Inter jogou apenas com nove homens durante quase todo o segundo tempo, e o Grêmio, mesmo assim, empatou em 0 a 0.

Dunga nocauteou a mim e ao Luxemburgo de corpos presentes.

Jorge Polydoro, presidente do Grupo Amanhã, mandou-me ontem comunicar oficialmente que fui agraciado pelo 23º ano consecutivo como o colunista de jornal mais lembrado no RS.

A entrega das láureas será na noite do próximo dia 13 de maio.

Este reconhecimento da Revista Amanhã, pela seriedade da pesquisa popular, é o meu maior orgulho profissional.

Vinte e três anos seguidos e encarreirados! Graças a Deus.

LETICIA WIERZCHOWSKI - Tudo junto e misturado

Zero Hora - 21/03/2013

É claro que o Facebook, o Instagram e outras redes sociais facilitam a nossa comunicação com amigos queridos, os de perto e os de longe, e que, até mesmo, ajudam a fazer e a solidificar novas amizades. Dicas culturais e um desabafo eventual, o Facebook é maravilhoso para isso.

Acompanhar alguns momentos da viagem de um bom amigo, ver o sobrinho crescendo, longe, longe: salve o Instagram. Mas, como todo espaço de troca humana que se preze, certas bizarrices, grandes e pequenas, vêm à tona nas redes sociais.

Que me perdoem os meus amigos queridos que fazem isso a toda hora, mas não é fácil a gente ter assunto para crônicas sem, eventualmente, pisar no dedinho de alguém. De qualquer modo, queria dizer aqui que fico meio constrangida quando alguém publica coisas como “Amo você” ou “Meu amor, fulano de tal, eu te adoro”.

Cá entre nós, dizer que se ama alguém foi, desde sempre, um ato absolutamente privado. O amor que dedicamos ao outro só interessa, em última instância, ao objeto do nosso amor. É claro que amar uma pessoa é maravilhoso, e às vezes dá gosto gritar aos quatro ventos que a gente ama, mas, se a pessoa em questão está do nosso lado, vale ainda aquele jeitinho antiquado de olhar nos olhos e dizer, a meia-voz, “te amo”.

Mais difícil ainda, para mim, é quando encontro posts do tipo “meu tio morreu” ou “perdi meu amigo”. Triste, é claro. Mas eu fico ainda mais constrangida. Tratando-se de um anúncio fúnebre, o que é que a gente pode fazer? “Curtir” isso? O simples fato de que não existe na tela uma opção do tipo “Meus sentimentos”ou “Minha solidariedade” parece já indicar que o Facebook não foi feito exatamente para esse tipo de situação.

Nesses casos, acho mais sensato o uso do bom e velho e-mail ou ainda a mensagem “inbox” para comunicar o fato aos amigos de verdade. Porém, estamos num mundo onde todos falam as maiores intimidades ao celular ao lado de desconhecidos no ônibus, em mesas de restaurante ou salas de cinema antes que o filme comece e, como disse o meu filho de quatro anos: “Um pedaço de coisa se junta na outra, e tudo junto e misturado é que forma o mundo”. Estamos juntos e misturados de uma vez por todas e, quando não se pode fugir para um refúgio seguro (um bom livro, talvez), o jeito mesmo é respirar fundo e “curtir”.

Marina Colasanti - Um tal de Francisco‏


Estado de Minas: 21/03/2013 

Pela segunda vez, Francisco está em Roma. A primeira aconteceu em 1210, quando o frade de Assis, acompanhado por seus 12 primeiros discípulos, buscou com o papa Inocêncio III aprovação para a Primeira Regra dos Frades Menores. Não foi bem recebido. Era ainda um leigo, vestido pobremente, que pregava a aplicação integral do Evangelho, quase um insulto para a cúria rica e arrogante diante da qual se apresentou.

Conta o cronista inglês Mateus Paris que com “sua pobre túnica, sua cabeleira em desordem e suas imensas e negras sobrancelhas” foi confundido por Inocêncio III com um guardador de porcos. “Deixe-me tranquilo com tua regra” – lhe disse – “vá primeiro reencontrar teus porcos e pregar-lhes todos os sermões que queiras”. Francisco obedeceu, foi até uma pocilga, revirou-se na lama fétida, e voltou. “Senhor, agora que fiz o que me tínheis mandado fazer, tenha por sua vez a bondade de me conceder o que solicito.” Assim, conseguiu Francisco uma nova audiência.

Modesto e obediente, o Poverello se revelou no episódio um bom político. E foi recompensado, porque, entre um e outro encontro, Inocêncio teve o famoso sonho em que viu a basílica de Latrão se inclinar como se fosse desabar, sendo sustentada por um religioso “pequeno e feio”. E talvez cheirando a esterco de porco.

Jorge Mario Bergoglio nem precisou ter um sonho para ver o colossal edifício da Igreja em péssimo estado. Não apenas por amor aos pobres escolheu o nome Francisco, mas porque sabe que lhe cabe a tarefa de botar ordem na casa e restabelecer o equilíbrio. Esse nome aparentemente simples, tão cheio de significados que pode ser considerado um motto, ecoou imediatamente no mundo como um plano de pontificado.

Em sua primeira audiência com jornalistas, papa Francisco não usou os tradicionais sapatos vermelhos. Não houve quem não reparasse, o significado da escolha era claro. Bergoglio calçou seus velhos sapatos pretos de cadarço.

 Os sapatos vermelhos da tradição representam o sangue dos mártires, e usá-los significa estar disposto ao sacrifício. Mas tudo tem sempre mais de um significado, e a tradição dos muleos – assim se chamam – remonta à Roma antiga, quando só podiam ser usados por patrícios e senadores de primeira ordem. Algo de poder ficou guardado nessa pisada de sangue confeccionada sob medida. Francisco, o de Assis, caminhou muito, pregando descalço. Só na Segunda Regra admitiu para seus frades o uso de calçados, e ainda assim, apenas em caso de necessidade. O calçado que os franciscanos adotaram era o mais pobre de todos, aquele com duas tiras sobre o pé, que não aquece no inverno e só viria a perder em simplicidade para a sandália japonesa.

Vi duas roupas que pertenceram a Francisco de Assis, uma em Assis, outra em Cortona, na Igreja de São Francisco. Eram ambas claras – ao contrário da cor parda do burel tradicional –, o mais próximo de branco que se podia alcançar naquele tempo, com aquela lã rústica ainda tão irmã da ovelha. Remendadas, cerzidas, muitas vezes consertadas. E pequenas, como se de garoto. São as roupas que ele se permitiu usar quando muito doente e tomado por dores, já perto da morte.

É provável que o papa Francisco se veja constrangido a usar um par de sapatos novos. Mas vermelhos, só trocando de nome.

Tv Paga

Estado de Minas - 21/03/2013

Barulho
As bandas mineiras Cartoon e Dias de Truta (foto) estão entre as cinco finalistas de Breakout Brasil, disputa musical que começa hoje, às 21h, no canal Spin, com reprise no Sony aos sábados, às 18h. As outras concorrentes são Mr. Armeng (Bahia), Paranoika (Paraná) e Hewie (São Paulo). Criada em Divinópolis em 2007, Dias de Truta admite influências de Raul Seixas, Tim Maia, Barão Vermelho e também do rock progressivo. Já o Cartoon é velho conhecido da cena de Belo Horizonte, desde que surgiu em 1995. A banda vencedora do programa vai assinar contrato e gravar um disco pela Sony Music.

Como o cinema mundial
está enxergando o Brasil?


Baseado no livro O Brasil dos gringos, de Tunico Amâncio, o documentário Olhar estrangeiro, de Lúcia Murat, mostra a visão que o cinema mundial tem do país, a partir do que se vê em filmes em que o Brasil era um local, um tema ou mesmo uma referência, e o que está por trás das produções. O objetivo é revelar os mecanismos que produzem essa imagem. As histórias, motivações e pressões que estão por trás dessas produções. Confira às 19h, no canal Arte1.

Uma história verídica de
sacrifício e perseverança


Outro documentário que merece a atenção do assinante é Errol Kerr: Team of one, às 23h, no canal Off. Filho de pai jamaicano e mãe americana, o esquiador olímpico Errol Kerr começou a esquiar aos 4 anos e aos 11 já competia profissionalmente. O documentário mostra a ascensão de Kerr e sua incrível jornada até as Olimpíadas de Inverno de 2010, onde ficou em nono lugar e se tornou o melhor atleta do Caribe de todos os tempos.

Policiais de Southland
retornam às ruas de LA


O canal Space retoma hoje, às 21h, a série policial Southland. Nessa quinta temporada, os agentes John Cooper (Michael Cudlitz) e Ben Sherman (Ben McKenzie) continuam combatendo o crime nas ruas de Los Angeles, agora com novos colegas. Permanece também a certeza de que a teoria ensinada na Academia pode não ter muito espaço em um dia a dia conturbado e de difíceis decisões.

Viva reprisa a minissérie
As noivas de Copacabana


O Viva também aposta em seriado. No caso a minissérie As noivas de Copacabana, em reprise a partir de hoje, na faixa das 23h15, de segunda a sexta-feira. Escrita por Dias Gomes e exibida pela Globo em 1992, a minissérie conta a história do maníaco assassino Donato Menezes (Miguel Falabella) que seduz e mata mulheres em vestidos de noiva.

TNT apresenta um longa
e quatro curtas da Pixar


No pacote de filmes, a TNT abre espaço para os estúdios Pixar, exibindo hoje o longa Ratatouille, às 22h, além dos curtas Boudin, One man band e Mater & The Ghost Light, às 17h50; e Quase abduzido, à 0h05. Na faixa das 22h, o assinante tem 10 opções: Feminices, no Canal Brasil; A invenção de Hugo Cabret, no Telecine Premium; Através de um espelho, no Telecine Cult; O olho do mal, na MGM; Sem vestígios, no FX; Millennium – Os homens que não amavam as mulheres, na HBO Plus; O corvo, na HBO2; Target, no Max; Tudo o que o céu permite, na Cultura; e Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo mas tinha medo de perguntar, no TCM. Outros destaques da programação: Monstros vs alienígenas, às 19h, no Nickelodeon; Dias incríveis, às 20h20, no Universal Channel; e Eleição, às 21h, no Comedy Central.

Tereza Cruvinel - Um ponto no mapa‏

É grande a curiosidade do meio político sobre o tom que Eduardo Campos adotará no dia 25, ao discursar ao lado de Dilma Rousseff 


Estado de Minas: 21/03/2013 

Foi na Região Nordeste que a presidente Dilma Rousseff obteve a maior aprovação a seu governo e a seu modo de governar, na pesquisa CNI/Ibope divulgada esta semana, em que os índices nacionais, nestes dois quesitos, são de 63% e 79%, respectiovamente. Na eleição de 2014, o Nordeste poderá ajudá-la a compensar perdas em Minas, onde Aécio Neves é fortíssimo, e em São Paulo, historicamente resistente ao PT. Ainda assim, o quadro político-eleitoral de Pernambuco preocupa particularmente o PT.

Dilma teve 11 milhões de votos a mais que José Serra no segundo turno de 2010, dos quais mais de 3 milhões obtidos no estado hoje governado pelo cada vez mais candidato do PSB, Eduardo Campos. Provavelmente ele colherá em Pernambuco uma votação tão hegemônica quanto a que Aécio deve ter em Minas Gerais. Os petistas admitem que as perdas em Pernambuco podem reduzir a vantagem de Dilma no conjunto da região, onde Eduardo deve ampliar sua penetração. Precisam, no mínimo, montar uma palanque próprio para Dilma no estado mas, hoje, as condições para fazer isso não são nada favoráveis.

Campos deve ter um candidato à sua sucessão inteiramente subordinado a seu próprio projeto, leal e desprovido de ambições próprias, tal como Geraldo Júlio, o “poste” que elegeu para a Prefeitura de Recife. Fala-se muito no senador Armando Monteiro, do PTB. Ele é um aliado de peso mas claramente não se enquadra neste perfil. Seja quem for o candidato, entretanto, contará com a força do atual governador.

 Já o PT local continua dividido e não superou ainda o racha interno do ano passado que o levou a perder a prefeitura. Nem tem um candidato que seja forte e de unidade. O ex-ministro e senador Humberto Costa pode ter as melhores condições eleitorais, mas o ex-prefeito João Paulo está se colocando para a disputa. Para completar, o aliado PMDB é liderado no estado pelo senador Jarbas Vasconcelos, desafeto que se recompôs com Eduardo Campos e hoje apoia sua candidatura. Humberto Costa admite que a situação é crítica mas acha que só o processo de eleições diretas para a nova direção, o PED estadual, em novembro, estabelecerá uma maioria que poderá juntar os cacos do PT pernambucano. Lula poderia estar dando uma ajuda mas parece evitar se envolver no estado porque acreditaria, quase solitariamente, que a candidatura Campos ainda pode ser evitada.

Olhando o quadro, os petistas recordam que ele foi criado por eles mesmos, pela deferência de Lula para com Eduardo e pelo volume de recursos despejados no estado em seu governo e no atual. O resto, Eduardo conseguiu como bom gestor que é e como político habilidoso.

Na segunda-feira, 25, em Serra Talhada, ele terá o primeiro encontro com Dilma depois que subiu o tom de suas críticas ao governo federal e explicitou mais sua candidatura, embora criticando sempre os que já se apresentam como candidatos. É grande a curiosidade do meio político sobre tom que adotará ao lado dela.

Volta da polêmica

O deputado Natan Donadon, condenado pelo STF a 13 anos de prisão por participação num esquema de corrupção em Rondônia, recorrerá ao tribunal contra a discrepância entre sua pena e a de outros participantes do mesmo esquema, julgados pela primeira instância no estado. Ainda que não recorra, entretanto, cresce entre os deputados o entendimento de que ele só poderá ser preso depois de perder o mandato, em processo conduzido pela Casa. O STF continua informando que ele será preso quando esgotados os recursos, na condição de deputado, porque os crimes não foram cometidos no exercício do mandato. No horizonte, a possibilidade de nova fricção entre os dois poderes.

Serra e Aécio

Na conversa de terça-feira, em nenhum momento o ex-governador José Serra externou desejo de presidir o PSDB a partir de maio. Conversa inconclusiva. “Eles vão continuar conversando, nós vamos continuar ajudando na busca da unidade. Mas no dia 25 Aécio dará um passo importante que já devia ter dado ao iniciar o diálogo com o conjunto da valorosa representação paulista do PSDB”, diz o atual presidente, Sérgio Guerra.

O crooner do Brasil - EMÍLIO SANTIAGO‏

Morte cala um dos cantores mais importantes do país 


Carolina Braga e Eduardo Tristão Girão

Estado de Minas: 21/03/2013 

Morte cala um dos cantores mais importantes do país (Lívio Campos e Cris Costa/Divulgação)
Morte cala um dos cantores mais importantes do país

Calou-se a voz do Brasil. Com essas palavras, o compositor e produtor Roberto Menescal se despediu do cantor Emílio Santiago, que morreu ontem, aos 66 anos, no Rio de Janeiro, em decorrência de acidente vascular cerebral (AVC). O enterro será hoje, no Cemitério do Caju, na capital fluminense.

Com 33 discos lançados, Emílio era o crooner dos brasileiros. Seu repertório foi uma espécie de antologia do cancioneiro nacional. Gravou “do oito ao oitenta”, como bem definiu Menescal: de Ary Barroso, Ataulfo Alves e Lamartine Babo a Caetano Veloso, Chico Buarque, Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Djavan, passando por Benito di Paula, Paula Toller e Herbert Vianna. Fez disco com o celebrado João Donato, destruiu corações ao interpretar versos de Cassiano e da dupla Erasmo e Roberto.

Emílio estourou com Aquarela brasileira, série de sete discos produzida por Menescal. Marcada por repertório eclético, vendeu 3 milhões de cópias de 1988 a 1995. Advogado para agradar à família, ele havia trocado a Constituição pelo microfone desde a década de 1970. Ex-crooner da banda de baile de Ed Lincoln, o cantor frequentava palcos chiques, FMs e churrascarias com seu repertório romântico embalado pelo aclamado vozeirão. Era uma espécie de sucessor de Cauby Peixoto no país das cantoras.

A oitentista Pelo amor de Deus (Paulo Debétio e Paulinho Resende) apenas abriu caminho para Saigon (Claudio Cartier, Paulo César Feital e Carlão), mais conhecida como “aquela música do Emílio Santiago”, e para Verdade chinesa (Gilson e Carlos Colla) – as joias mais populares de seu repertório.

“Com a partida do Emílio e do Pery Ribeiro, perdemos as duas vozes mais bonitas do país. Dizia para ele: agradeça a Deus todos os dias, porque essa voz que sai de dentro de você não tem preço”, lamentou a cantora Leny Andrade.

Roberto Menescal relembrou a surpresa ao ouvi-lo pela primeira vez, no programa de Flávio Cavalcanti: “Com aquele suingue e a voz maravilhosa, pensei: preciso deste cantor. Igual a Emílio, só Wilson Simonal”. Altos e baixos fizeram parte da carreira de 40 anos. “Muitas vezes ele me dizia: ‘Mas eu quero lançar as coisas?’. Eu respondia: ‘Deixa o Caetano Veloso lançar, depois você vai cantar melhor do que ele. Você é o grande intérprete”, contou Menescal.

Há poucas semanas, a dupla gravou Amanhecendo, antiga canção de Menescal. O lançamento estava marcado para o show em 6 de abril, no Rio de Janeiro. Só danço samba (2010), último disco de estúdio de Emílio, homenageava Ed Lincoln. Em 2012, chegou às lojas a versão ao vivo desse CD. O cantor planejava fazer álbum com o repertório de Tito Madi, autor de sucessos como Balanço Zona Sul.

Repercussão

“A MPB está de luto. Uma de suas maiores vozes se calou! Permanecerá eternamente em nossas vidas musicais e em nossos corações”
>> Rosa Passos, cantora e compositora

“Meu Deus, que pecado. O Emílio era uma pessoa da maior qualidade, um dos maiores cantores que já ouvi. Vou sentir muito a sua falta. Que descanse em paz”
>> Djavan, cantor e compositor

“Maior cantor do Brasil, Emílio Santiago partiu para o plano espiritual. É um gigante”
>> Ed Motta, cantor e compositor

DISCOGRAFIA

>> Só danço samba   Ao vivo (2012)
>> Só danço samba (2010)
>> De um jeito diferente (2007)
>> O melhor das Aquarelas Ao vivo (2005)
>> Emílio Santiago encontra João Donato (2003)
>> Um sorriso nos lábios (2001)
>> Bossa nova (2000)
>> Preciso dizer que te amo (1998)
>> Paixões do Brasil (1998)
>> Emílio Santiago (1997)
>> Dias de luna (1996)
>> Aquarelas álbum (1996)
>> Emílio Santiago (1996)
>> Perdido de amor (1995)
>> Aquarela brasileira 7 (1994)
>> Aquarela brasileira 6 (1993)
>> Aquarela brasileira 5 (1992)
>> Aquarela brasileira 4 (1991)
>> Aquarela brasileira 3 (1990)
>> Aquarela brasileira 2 (1989)
>> Aquarela brasileira (1988)
>> Tá na hora (1984)
>> Mais que um momento (1983)
>> Ensaios de amor (1982)
>> Amor de lua (1981)
>> Guerreiro coração (1980)
>> O canto crescente de Emílio Santiago (1979)
>> Emílio (1978)
>> Feito para ouvir (1977)
>> Brasileiríssimas (1976)
>> Emílio Santiago (1975)


Cantoras de luto 



Carolina Braga e Eduardo Tristão Girão

Nana Caymmi:
Nana Caymmi: "Foi-se a voz mais bonita do Brasil"


O silêncio de Emílio Santiago – “ave” quase rara no país das cantoras – deixou as colegas inconsoláveis. “Foi-se a voz mais bonita do Brasil. E não é de hoje que estamos perdendo, pois já se foram Wando e Pery Ribeiro. Emílio era uma pessoa jovial, alegre, feliz, que se achava um touro. Nunca o vi se queixar nem de gripe”, lamentou Nana Caymmi.

Inconsolável, Alcione declarou: “Como o Brasil vai poder viver sem essa voz? Como vou poder viver sem meu amigo? Emílio só cantou o amor e a beleza deste país”. Aclamado talento da nova geração, Maria Rita – filha de Elis Regina – escreveu no Twitter: “Bacanudos que não o conheciam, por favor, deem uma busca. Afinação e interpretação impecáveis, seus primeiros discos tinham gingado de dar orgulho. Mais um nome para o qual não devemos medir esforços: ele não pode ser esquecido”.

A cantora carioca Áurea Martins, de 69 anos, era velha amiga. Os dois se conheceram no extinto programa de calouros A grande chance, de Flávio Cavalcanti, nos anos 1970. O bom gosto de Emílio para montar repertório sempre a impressionou. “Tudo em que ele botava o dedo virava ouro. Todos os cantores brasileiros devem tê-lo como referência, ao lado de Wilson Simonal, Orlando Silva e Cauby Peixoto”, conclui.

Pura música

Walter Sebastião

Quem nunca assistiu a um show de Emílio Santiago não sabe o que perdeu. No palco, via-se um artista extremamente elegante. Simpático, mas contido em sua relação com a plateia, ele deixava a sensação de querer afastar da cena qualquer elemento extramusical. Totalmente concentrado, entregava-se à arte da voz. Cada palavra se transformava em pura – puríssima – música. Sua exuberante musicalidade chegava suavemente, assim como Nat King Cole.

Amadurecido e elaborado, o requinte das interpretações de Emílio ficava ainda mais evidente ao vivo. O cantor gravou os mestres da MPB, mas também composições banais. Encantar, sem afetações pretensamente “artísticas”, é mágica exclusiva dos grandes. A extensa discografia traduz um artista de horizontes amplos, embora seja conhecido apenas pelos hits.

O legado de Emílio Santiago levará tempo para ser valorizado em toda a sua extensão, elegância e generosidade. Mas é lição de canto moderno, popular. Brasileiro.

Palha de aço provoca polêmica na passarela-Flávia Duarte e Grasielle Castro‏

Ronaldo Fraga queria criticar preconceito da elite branca. Mas ativistas negros classificaram a ideia de desrespeitosa 


Flávia Duarte e Grasielle Castro

Estado de Minas: 21/03/2013 


Peruca que imitava "cabelo ruim" sofreu críticas nas redes sociais

O desfile do estilista mineiro Ronaldo Fraga ontem, na Semana de Moda de São Paulo, provocou polêmica nas redes sociais, por adornar com palha de aço a cabeça das modelos brancas. A ideia era fazer uma referência ao cabelo dos negros, ao mostrar coleção inspirada no futebol brasileiro dos anos 1930. A proposta, porém, não foi entendida desse jeito. Ativistas da causa não aprovaram a peruca que imitava um suposto cabelo “ruim”, o que consideraram desrespeitoso. O estilista, no entanto, se defende com o argumento de que houve um mal-entendido.

Segundo Fraga, o cabelo de palha de aço não era uma homenagem aos negros, como foi divulgado, mas uma crítica sutil ao preconceito da elite branca da época. “Não queria colocar na passarela modelos com seus cabelos loiros e lisos para ironizar esse preconceito”, justificou o estilista. Em conversa com a reportagem, ele lamentou o episódio. “Fiquei surpreso, mas toda discussão é válida. Estamos vivendo em uma época em que não se pode criticar nada”, considerou.

No Twitter, internautas reclamaram do desfile. Disseram que se sentiram ofendidos e que o estilista apenas reforçou o preconceito. A ouvidora da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial do Distrito Federal (Sepir-DF), Jacira Silva, reconheceu a intenção do estilista de lembrar o dia contra a discriminação racial, mas considerou a representação incoerente. “A prática não ajuda na conscientização da população brasileira, por usar um estereótipo negativo”, destaca.

Sylvany Euclênio, secretária de Comunidades Tradicionais da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), conta que, por causa desse preconceito, já teve que incentivar crianças a tocar no cabelo crespo para sentir que não é palha de aço. “Essa associação é feita com algo áspero, desagradável.” O coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade de Brasília (UnB), Nelson Inocêncio, considerou a imagem usada pelo estilista uma representação jocosa e caricata. “É uma atitude que, se não foi ingênua, foi cínica. É difícil que alguém não entenda, depois de tanto tempo, o que representa mostrar uma pessoa com peruca de bombril ‘representando’ o cabelo dos negros. Essas práticas estão desgastadas e reiteram que o Brasil precisa avançar muito”, ressalta.

O cabeleireiro e maquiador Marcos Costa, que assinou a beleza do desfile de Ronaldo, definiu a peruca de aço como uma “escultura”. “A ideia para o look do desfile era ressaltar a beleza de cabelos que podem ser moldados como esculturas, não importando o fato de serem crespos. Foi também uma forma de subverter um preconceito enraizado na cultura brasileira. Por que o negro tem de alisar seus fios? Eles são lindos”, disse em um comunicado postado no Facebook.

Lena Fraga, irmã do estilista, também saiu em sua defesa na rede social: “Quando vi o desfile e vi as perucas me lembrei dela (da avó Ana, que era negra) no ato, e me emocionei. Agora vêm uns e outros se fazendo de rogados (…), acusando a doce homenagem do estilista de racismo”.


Sai o leite, entram os "refris" e sucos de caixinha-Humberto Siqueira‏

Estudo mostra aumento do consumo de bebidas açucaradas entre brasileirinhos. Em algumas faixas etárias, elas representam, sozinhas, 15% de toda a demanda calórica diária organismo 


Humberto Siqueira

Estado de Minas: 21/03/2013 

A influência norte-americana no Brasil vai muito além da ocupação quase integral de filmes nas salas de cinema, do vestuário ou da verticalização das cidades. Os hábitos alimentares dos brasileiros também estão sendo construídos dentro do fracassado modelo da terra de Tio Sam, que levou milhares de pessoas à obesidade naquele país. Instigados pela adoção da alimentação estrangeira por aqui, os professores Rubens Feferbaum, do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), e Luiz Carlos de Abreu, do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da USP, se debruçaram sobre os reflexos do aumento do consumo de refrigerantes, sucos de caixinha e outras bebidas altamente calóricas entre as crianças e adolescentes de cinco capitais brasileiras. 

O estudo “Padrões de ingestão de fluidos: um estudo epidemiológico de crianças e adolescentes no Brasil” acompanhou 831 meninos e meninas entre 3 e 17 anos, para avaliar a evolução do consumo dessas bebidas ao longo dos anos. Os pesquisadores buscaram descobrir quantas calorias diárias são consumidas com esses líquidos, comparando os resultados com as recomendações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

À medida que as crianças crescem, o consumo de leite cai, abrindo espaço para o aumento da ingestão de sucos e refrigerantes. Os resultados mostraram que entre os adolescentes de 11 a 17 anos, a maior parte das calorias consumidas vem de refrigerantes ou sucos de caixinha, que representaram uma média diária de 207 quilocalorias (kcal), ou 42% do total de calorias obtidas apenas pelo consumo de líquidos. Bebidas açucaradas ficam em segundo lugar, com índices entre 37% e 45% de calorias nos grupos de 3 a 6 anos, e de 7 a 10 anos, respectivamente. Entre crianças de 3 a 10 anos, o estudo levantou que leite e derivados estão entre os líquidos mais consumidos. 

“A substituição do leite e da água por sucos artificiais e refrigerantes é uma catástrofe. Os pais não devem nunca oferecer essas bebidas com calorias vazias. Isso pode até causar deficiência de proteínas que afeta não só o crescimento como também o desenvolvimento do cérebro. Ou ainda alterações na síntese dos neurotransmissores (moléculas químicas produzidas dentro do neurônio) que podem afetar o funcionamento dos neurônios e causar doenças de alteração do comportamento social, entre várias outras”, alerta Luiz Carlos de Abreu. 

Para Rubens Feferbaum, “os profissionais de saúde devem estar atentos ao consumo excessivo de bebidas adoçadas entre as crianças e adolescentes. Padrões alimentares saudáveis podem ajudar a melhorar os programas de prevenção de sobrepeso e obesidade”, afirma. Em todas as faixas etárias o consumo de água entre os líquidos se manteve em 30%, quando deveria ser de pelo menos 60%. As bebidas doces aumentam sua participação nos hábitos diários à medida que a criança cresce, chegando a representar, sozinhas, 15% de toda a demanda calórica diária do organismo, no caso dos adolescentes, caindo para 12% entre aqueles de 7 a 10 anos e 8% de 3 a 6 anos.

Débora Fernandes da Silva, de 15 anos, chegou a pesar próximo de 90 quilos. A mãe, Luciana Fernandes Coelho, de 35, percebeu que precisava fazer algo e tem ajudado a filha na reeducação alimentar. “Antes ela tomava refrigerantes todos os dias. Sempre tínhamos na geladeira. A solução foi parar de comprar. Hoje, só suco, e preferencialmente natural. Mas a praticidade às vezes nos leva aos sucos de caixinha. E tem dado resultado. Em pouco tempo ela já chegou a 83 quilos e vai continuar nesse caminho. A alimentação, claro, também tem melhorado. Pizza e biscoitos recheados, antes frequentes, agora são raros na mesa”, garante Luciana.

Para Abreu, a questão virou um problema de saúde pública. “A obesidade abre as portas para  comorbidades (doenças relacionadas) como a aterosclerose, infarto, hipertensão, diabetes, déficit de atenção e hiperatividade”, diz. O estudo mostra que todas as capitais avaliadas estão no mesmo barco: a população infantil e jovem tem tendência à obesidade por uso dessas bebidas, registrando aumento de 62% no consumo. “Percebemos que há um movimento uniforme em direção a padrões alimentares alterados. É preciso agir desde as creches até as universidades para reduzir esses índices de obesidade dentro dos próximos 20 a 30 anos. Caso contrário, estaremos gerando uma bomba-relógio para o sistema público de saúde brasileiro e para a previdência social, pois teremos uma pandemia de doenças relacionadas ao excesso de peso que vão superlotar os hospitais e afastar essas pessoas do trabalho”, conclui o pesquisador.


 Obesidade se  alastra pelo país

A obesidade é considerada um problema de saúde pública em países desenvolvidos e uma epidemia global, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Dados atuais mostram que a prevalência de sobrepeso entre crianças e adolescentes é alta também nos países em desenvolvimento. Isso é reflexo de problemas nutricionais na infância. No Brasil, a Pesquisa de Orçamentos Familiares realizada no biênio 2008-2009 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indica que a proporção de meninos entre 10 e 19 anos que estão acima do peso aumentou de 3,7 % em 1974-75 para 21,7% em 2008-09. Entre as meninas na mesma faixa etária, a proporção passou de 7,6% para 19,4% durante o mesmo período. A pesquisa analisa os gastos das famílias e do consumo de acordo com a renda. O consumo regular de calorias na forma líquida é tido como um dos principais responsáveis pelo ganho de peso, devido à sua baixa saciedade e alto teor de açúcar adicionado. Com reflexos no aumento do risco cardiovascular e da diabetes mellitus tipo 2 em crianças e adultos.

Para Rubens Feferbaum, “estudos epidemiológicos são geralmente projetados para avaliar a ingestão de alimentos sólidos. Mas as bebidas também devem ser consideradas na abordagem nutricional de indivíduos e populações, especialmente em ambientes tropicais como o Brasil, onde a temperatura elevada pode contribuir para a desidratação”, sugere.


 A metodologia do estudo

O estudo incluiu 831 crianças e adolescentes de ambos os sexos, que variaram de 3 e 17 anos de idade, de Belo Horizonte, São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Recife. Os setores censitários são unidades territoriais definidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para orientar a distribuição espacial da população, dados os critérios após a coleta, em que apenas um pesquisador de recenseamento pode cobrir toda a área. A partir do universo de setores censitários nas principais áreas urbanas do Brasil, 90 setores censitários foram selecionados aleatoriamente de atingir o tamanho amostral calculado, afim de representar a diversidade socioeconômica, de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

Quando um líquido foi ingerido, o tempo, tipo e volume da bebida foram registados utilizando as fotografias dos utensílios e recipientes utilizados, o que aumentou a confiabilidade dos dados. Os líquidos foram classificados em 11 grupos: água, água com sabor de leite e produtos lácteos, bebidas quentes (incluindo café e chá), bebidas carbonatadas (refrigerantes), sucos naturais (sucos de frutas sem adição de açúcar), bebidas artificiais (contendo alimentos corantes, aromatizantes e adição de açúcar), néctares (polpa de frutas com adição de açúcar), bebidas funcionais (energia e bebidas isotónicas), álcool e outros, que incluíam bebidas à base de soja e sopas instantâneas. Para avaliar a contribuição de energia diária de cada tipo de bebida, o número médio de kcal foi determinado com base nos rótulos.