domingo, 10 de março de 2013

O espírito febril de Roberto Bolaño vive

folha de são paulo

LITERATURA
Bolañismo selvagem
RESUMO Cultuado sobretudo após sua morte, que em julho completa dez anos, o prolífico escritor chileno deixou inúmeros originais por publicar. Grande mostra de seus arquivos em Barcelona, além de novos livros dele próprio e sobre sua biografia revelam personagem menos boêmio do que o mito que se erigiu à sua volta.

CASSIANO ELEK MACHADO

A 22 ESTAÇÕES de trem a partir do centro de Barcelona há uma cidadezinha chamada Blanes. Com prédios baixos, estreitos e beges, e um vento que despenteia todos os dias do ano os cabelos de seus 39.785 habitantes, Blanes passaria despercebida no recreio da escola, se os "pueblos" do litoral catalão fossem ao colégio. Não tem a exuberância da quase vizinha Cadaqués, não é a capital regional das anchovas (como poderia se gabar L'Escala), tampouco reúne a cada ano milhares de pessoas vestidas de Darth Vader, zumbis ou Frankenstein, a exemplo da colega mais ao sul Sitges, sede de um festival de cinema fantástico.
Mas no verão de 1985, um chileno magrelo de vasta cabeleira cacheada se mudou para a cidade. Sua mãe havia aberto uma lojinha de bijuterias, e o ex-lavador de pratos e ex-vigia noturno de camping vinha ajudá-la a vender brincos, pulseiras e colares baratos. O rapaz, não há mistério, era Roberto Bolaño e, usando Blanes como "cockpit", consagrou-se como "o mais admirado e influente escritor de sua geração", nos dizeres da crítica americana Susan Sontag.
As façanhas literárias empreendidas por Bolaño (1953-2003) nos seus anos de Catalunha seriam dignas de uma grande exposição num museu de ponta. Ao menos foi a essa conclusão que chegaram os diretores de um dos principais espaços culturais de Barcelona, o Centre de Cultura Contemporània de Barcelona (CCCB), que inaugurou na semana passada a mostra "Arxiu Bolaño 1977-2003".
A exposição, em cartaz até o último dia de junho, ocupa todo o andar térreo da portentosa sede da instituição, uma antiga maternidade no bairro do Raval, a três quadras do estúdio de 15 metros quadrados onde viveu Bolaño assim que chegou à Espanha, em 1977.
Centenas de pessoas, entre moleques com "dreadlocks", senhores de bengala e óculos fundo de garrafa e um sujeito corpulento e descabelado vestindo um casaco fosforescente de lixeiro (um personagem de Bolaño?), enfrentaram a noite chuvosa e fria de terça para olhar em primeira mão o arquivo do escritor, morto há dez anos. Ganharam "buttons" com os dizeres "Soy Bolañista!" e o acesso a uma espécie de Disneylândia literária.
Estão expostos mais de 400 itens, entre originais de romances, contos e poemas, cadernos, fotos, vídeos, desenhos, livros, jogos de tabuleiro e alguns objetos pessoais, como a máquina de escrever elétrica Olivetti ET Personal 55 na qual batucou parte de sua obra. Poucas peças causam alarido comparável ao produzido pelos três pares dos óculos que qualquer bolañista básico consegue visualizar encaixados no rosto do escritor.
MÉTODO Fetichismos à parte, é o conteúdo dos textos a grande atração. "Esses documentos evidenciam o método de trabalho de Bolaño", afirma a curadora literária da exposição, Valerie Miles, em entrevista num dos cafés prediletos de Bolaño, o Café-Bar Centric, em Barcelona. "Olhando o arquivo fica claro que cada anotação e cada livro é uma peça da grande máquina que é a sua obra."
Norte-americana radicada há duas décadas na Espanha, onde edita a versão local da revista literária "Granta", Miles passou os últimos quatro anos encrustada nos arquivos do escritor, que ficam no apartamento da viúva dele, Carolina López, em Blanes.
Na abertura da mostra, López trazia na ponta da língua a dimensão da papelada produzida pelo ex-cônjuge, a quem conheceu numa rambla de Girona, em 1981 ("Ele veio em minha direção, sem que nos conhecêssemos, e perguntou: "Quer jantar lá em casa?"). "São 14.374 páginas de originais, à mão e à máquina, e o equivalente a mais de 24 mil páginas impressas de computador", contabiliza a mulher alta e enérgica, ladeada pelos dois filhos que teve com o escritor: Alexandra, 11, e Lautaro, 22, estudante de cinema.
Outro cômputo de Carolina eriça o bolañismo. Por ocasião da mostra, ela revelou que é vasto o conjunto de inéditos do escritor: "Há ao menos quatro romances, 26 contos, além de dezenas de poemas e de toda a correspondência".Se a palavra "inédito" provoca pequenos choques quando acoplada ao trabalho de qualquer grande escritor morto, neste caso o espanto é maior, dado o manancial de póstumos de Bolaño. Seu histórico editorial, por isso, merece repasse.
Nascido em Santiago, filho de um caminhoneiro boxeador e de uma professora, Roberto Bolaño Ávalos foi viver no México aos 13 anos e lá publicou, em 1976, seu primeiro livro, o volume de poesia "Reinventar el Amor".
Embora tenha escrito ininterruptamente desde o final da adolescência e tenha publicado em edições regionais quase secretas, ele só viria a estrear numa grande editora em 1996, aos 43, com o romance "La Literatura Nazi en América", lançado pela Seix Barral (e inédito no Brasil). No mesmo ano, publicou seu primeiro livro pela Anagrama, casa editorial espanhola que lançou espantosos 18 livros do autor desde então, sendo um deles, o póstumo "2666", um mamute de 1.126 páginas (na edição brasileira, são 856).
"Ele era um grafômano", afirma o fundador e diretor da Anagrama, Jorge Herralde. "Vivia dentro da literatura e trabalhava, e muito, para ela", diz à Folha na sede da editora em Barcelona, num predinho alaranjado no bairro de Sarrià.
Exemplo do voluntarismo de Bolaño está numa carta enviada a Herralde, e exposta na mostra do CCCB, sobre o grandioso romance "Os Detetives Selvagens" (1998), que compõe com "2666" seus maiores sucessos (na Espanha, "Os Detetives..." vendeu 170 mil exemplares e "2666" outros 120 mil; no Brasil, o mais vendido é "2666", com quase 17 mil cópias).
"Trabalho duro, mas o texto resiste como o coelho da Duracell, e a cada página que elimino saem outras duas. Por exemplo: na segunda parte, que é a mais volumosa (na realidade, a primeira e a terceira parte são o prólogo e o epílogo do romance), há 50 personagens que falam em primeira pessoa e mais de 300 personagens que também falam e falam e a quem acontecem coisas e se apaixonam e morrem", escreve Bolaño.
Para não se perder em meio ao povaréu que criava, o autor fazia listas e mais listas, com nomes e características de cada personagem. Sobre Oscar Amalfitano, protagonista do recém-lançado no Brasil "As Agruras do Verdadeiro Tira" [trad. Eduardo Brandão, 320 págs. R$ 44,50], nono título de Bolaño pela Companhia das Letras, ele rabisca, com caligrafia clara e delicada, o seguinte: "Professor de literatura e ex-membro de grupos de extrema esquerda latino-americanos. Homossexual recentíssimo. 50 anos. Único da universidade que leu Arcimboldi".
O fato de que Amalfitano faça uma participação em "2666", ou que o citado Arcimboldi seja, com a grafia Archimboldi, um dos grandes personagens do mesmo romance, ajuda a ilustrar a maneira como trabalhava o autor, em que as obras sempre se comunicam, como num grande caleidoscópio.
CALEIDOSCÓPIO O termo não é, aliás, nada estranho a Bolaño. Por isso foi adotado no título de um dos três segmentos da exposição, cada um centrado numa das cidades catalãs onde ele viveu, seguindo uma tradição do CCCB de exposições sobre escritores e cidades (Kafka e Praga, Pessoa e Lisboa etc.). "Dentro do Caleidoscópio" é a seção dedicada a Girona, cidade a 99 km de Barcelona onde Bolaño esteve entre 1980 e 1984, quando produziu uma parte do grande farnel de inéditos anunciados por Carolina López.
No underground bolañista, um dos mais comentados inéditos se chama "O Espírito da Ficção Científica". "Eu me senti perdido e feliz no meio daquela escada. A escada em si, que antes não significa nada em especial, se transformou em algo extraordinário: metade serpente, metade desfiladeiro", escreve, num trecho exposto da obra. Os dois cadernos de rascunhos para o livro estão numa vitrine, ao lado de exemplares de obras lidas enquanto o escrevia: de obras de ficção científica de Ursula K. Le Guin a "O Idiota", de Dostoiévski.
"O Espírito da Ficção Científica" é um dos primeiros trabalhos de prosa de Bolaño, que até o fim dos anos 1970 escrevia basicamente poesia. O romance inaugural do autor é uma obra a quatro mãos, forjada com o catalão A. G. Porta, "Conselhos de um Discípulo de Morrison a um Fanático de Joyce".
A dupla faturou com esse romance policial à Bonnie & Clyde um prêmio chamado Âmbito Literário. "Bolaño chamava esses prêmios regionais, que davam algum dinheiro, de 'prêmios Búfalo', à caça dos quais um pele-vermelha tinha de sair, porque deles se sustentava", explica Jorge Herralde.
Presente na abertura da mostra, Porta, 59, diz que por muitos anos perguntaram ao chileno como eles haviam "caçado esse búfalo" a quatro mãos. "Ele era extremamente bem-humorado, e cada vez respondia uma coisa diferente."
E qual a verdadeira? "A menos divertida de todas. Eu tinha um esboço do romance. Enviei a ele para pedir a sua opinião. Ele sugeriu tantas coisas que acabamos assinando juntos", relembra Porta. "Bolaño queria escrever outras obras a quatro mãos, e cheguei a começar com ele 'La Literatura Nazi en América'. Mas era impossível acompanhar seu ritmo", diz. "Ele então já vivia em Blanes, dormia no chão da loja de bijuterias da mãe e escrevia sem parar."
Na época, o escritor gostava de distribuir um cartão de visitas que dizia "Roberto Bolaño - Poeta e Preguiçoso". Quanto ao preguiçoso, não há muita controvérsia, mas nos meios literários de Barcelona há um longo e inconclusivo debate sobre qual era a essência dele como escritor: prosador ou poeta.
Porta, cúmplice da primeira prosa, não pestaneja: "Bolaño era totalmente um poeta". Valerie Miles, curadora da exposição com o argentino Juan Insua, defende o caráter anfíbio do escritor. Ela diz ter encontrado no arquivo incontáveis exemplos de textos que estavam em poesia e ele transformaria em prosa, e vice-versa. "Sua mecânica era a da multiplicidade. Reescrevia, quebrava o texto em partes, colocava uma narrativa dentro de outra, a poesia em prosa, e a prosa, em poesia", afirma.
Miles, que só esteve com Bolaño uma vez, diz que, das anotações do escritor, emerge um personagem muito diferente daquele que imaginava e enumera uma lista de "surpresas". "Nos seus escritos mais pessoais, ele se revela um homem metódico, caseiro e familiar. Um sujeito que anotava por todos lados a frase 'sou incrivelmente feliz'. Isso tudo destoa da figura do maldito boêmio que projetam."
MORTE Um dos mitos mais difíceis de tourear é o de que a enorme produção dos últimos anos do escritor esteja diretamente ligada ao fato de que ele sabia que a morte estava próxima. No pequeno escritório sem telefone, no segundo andar de um prédio magricela, num trecho sem saída da Carrer del Lloro, talvez a rua mais estreita de toda Blanes, de fato Bolaño escreveu em alguns anos mais que a maioria dos autores numa vida inteira. E essa entrega selvagem à literatura se intensificou depois do diagnóstico da doença congênita no fígado que viria a matá-lo.
Mas alguns de seus interlocutores mais frequentes dos últimos anos, como Herralde, dizem que foram pegos de surpresa pelo telefonema recebido do Hospital Vall d'Hebron, na madrugada de 15 de julho de 2003. "Todos sabiam da gravidade da doença, mas duvido que alguém imaginasse que ele fosse partir naquele momento."
Mais do que opiniões e memórias, no caso de Bolaño o melhor é recorrer à literatura. Na abertura de "Enrique Martín", conto do livro "Chamadas Telefônicas" (1997) dedicado ao amigo escritor Enrique Vila-Matas (e que parece um texto do próprio Vila-Matas), Bolaño escreve o seguinte:
"Um poeta pode suportar tudo. O que equivale a dizer que um homem pode suportar tudo. Mas não é verdade: são poucas as coisas que um homem pode suportar. Suportar mesmo. Um poeta, em compensação, pode suportar tudo. Com essa convicção crescemos. O primeiro enunciado é correto, mas conduz à ruína, à loucura, à morte".
Usando Blanes como "cockpit", Bolaño consagrou-se como "o mais admirado e influente escritor de sua geração", nos dizeres da crítica americana Susan Sontag
Se a palavra "inédito" provoca pequenos choques quando acoplada ao trabalho de qualquer grande escritor morto, neste caso o espanto é maior, dado o manancial de póstumos de Bolaño
"Trabalho duro, mas o texto resiste como o coelho da Duracell, e a cada página que elimino saem outras duas", escreve Bolaño sobre "Os Detetives Selvagens"
A. G. Porta, cúmplice da primeira prosa, não pestaneja: "Bolaño era totalmente um poeta". Valerie Miles, curadora da exposição com o argentino Juan Insua, defende o caráter anfíbio do escritor

    Efeméride traz onda biográfica
    JOCA REINERS TERRON
    EM SUA ÚLTIMA entrevista, concedida à jornalista argentina Mónica Maristain e publicada pela "Playboy" mexicana no mesmo julho de 2003 em que morreria, Roberto Bolaño brincou com a ideia da posteridade: questionado acerca do que a palavra "póstumo" lhe despertava, afirmou que soava a "nome de gladiador romano". "Um gladiador invicto."
    Adiantando-se à efeméride dos dez anos da morte do escritor, Maristain publicou no final de 2012, no México, "El Hijo de Míster Playa - Una Semblanza de Roberto Bolaño" (O filho de Mister Playa - Um perfil de Roberto Bolaño). Foi a primeira biografia dedicada ao chileno; uma leva está a caminho.
    Diz-se que a herdeira dos direitos de Bolaño, sua viúva, Carolina López, prepara a sua por sugestão do agente literário Andrew Wylie; Ignacio Echevarría, "testamenteiro" do escritor (responsável pela edição de "2666"), redige perfil encomendado pela editora da universidade chilena Diego Portales, que publicou as entrevistas selecionadas por Andrés Braithwaite em "Bolaño por Sí Mismo".
    Esses documentos têm sido antecedidos por livros concebidos em vida pelo autor -tais como "El Gaucho Insufrible" ou os poemas reunidos em "La Universidad Desconocida"- e por fundos de gaveta -como "O Terceiro Reich" e "As Agruras do Verdadeiro Tira".
    Entre uma e outra obra, a posteridade de Bolaño vem se assemelhando perigosamente à segunda parte de seu romance "Os Detetives Selvagens", na qual personagens depõem sobre as múltiplas facetas de Arturo Belano -alter ego do autor- e Ulises Lima, sem nunca completar um retrato.
    Nesse aspecto, a biografia inaugural é assombrada pela ausência de Carolina López, que se recusou a contribuir com Mónica Maristain. Questionada sobre se esse silêncio diminuía a importância de suas 362 páginas, a autora respondeu com três letras: "Não".
    O relato afetuoso e parcial da jornalista expõe a separação de Bolaño e Carolina e revela a namorada catalã do escritor, Carmen Pérez de Vega, que o acompanhou na última noite. O depoimento de Carmen (vazio certeiro do perfil a ser publicado pela viúva) é o trunfo de "El Hijo de Míster Playa".
    Construído sobre longas entrevistas, o livro retrata as horas derradeiras de Bolaño sem pudor, o que causou desagrados: "De cara, gerou a indiferença da viúva, empenhada em apagar de sua vida sua última mulher", diz Maristain. Mas não só: "Também tive problemas com Carmen, que esperava que atenuasse as partes mais duras". Essas partes, se são duríssimas, comovem pela valentia de Bolaño, que, em meio à crise hepática, só queria imprimir o original de "El Gaucho Insufrible" para levá-lo à editora. E assim o fez.
    Bolaño subsiste como polemista ácido, amante sedutor, amigo cômico e escritor apaixonado pela leitura. Se Mónica Maristain pudesse lhe fazer mais uma pergunta, qual seria? "Perguntaria se gosta da literatura de Jonathan Franzen". Impossível saber, mas feliz do americano -exímio observador de pássaros- que pode apreciar a ave rara que é Roberto Bolaño.

      E o dever do Estado? - HIRAM SILVEIRA LUCAS


      O GLOBO 10/03/2013

      O artigo 196 da Constituição
      estabeleceu que “a saúde é
      um direito de todos e um dever
      do Estado”. Não há dúvida
      que é um direito, que cada cidadão
      deve exercer; já quanto ao dever do Estado,
      entramos no território exclusivamente
      das boas intenções.

      Veja-se o câncer, que envolve um cipoal
      de leis, regulamentos etc. Há leis
      estaduais sobre a Semana Anual de
      Prevenção ao Câncer da Mama e determinando
      o diagnóstico precoce do
      câncer da mama pelos hospitais públicos.
      Outra, federal, de 2008, diz: o SUS
      deve garantir exame citopatológico a
      todas as mulheres que já tenham iniciado
      sua vida sexual, independentemente
      da idade.

      E determina exame mamográfico geral
      a partir dos 40 anos.
      Ótimas intenções. Mas e a capacidade
      médico-hospitalar para isso? Levantamento
      de 2011 mostrou que havia
      1.514 mamógrafos no País, a imensa
      maioria deles nas regiões mais desenvolvidas.

      Precisamos, para cumprir o “dever do
      Estado”, no mínimo, do dobro. Há, ainda,
      maior concentração de oncologistas
      em São Paulo e no Rio, onde ficam
      os raros centros de excelência para tratar
      o câncer. Urge, pois, descentralizar.
      Dever do Estado.

      A OMS definiu a extrema pobreza como
      maior causa de mortalidade no planeta.
      É gente que “vive” com menos de
      US$ 1 por dia. Obviamente, a extrema
      pobreza se associa à falta de saneamento.

      No Brasil,
      em 2008, houve
      206.414 mortes
      por gastroenterite
      e diarreia. E
      2.630 municípios
      — 88,5 milhões
      de pessoas
      — não tinham
      esgoto.

      E, pior, mantido o ritmo de investimentos
      no setor, só no ano 2166 haverá o saneamento
      total no país!

      Ainda sofremos com índices lamentáveis
      de câncer do colo do útero (17
      casos por cem mil mulheres — 17.540
      casos em 2012). Um tipo de câncer, aliás,
      que já foi reduzido a quase zero nos
      países desenvolvidos.

      Alardeamos nossas praias paradisíacas,
      banhadas de sol quase o ano inteiro,
      mas as campanhas que alertam sobre
      o câncer da pele são escassas. Em
      2012, houve 62.680 casos entre homens
      e 71.490 em mulheres, sem contar melanomas,
      os mais agressivos.

      Por falta de prevenção — o “dever do
      Estado” —, o câncer de mama é o que
      mais cresce no país. E muitos casos são
      detectados quando já estão nos níveis 3
      e 4, com reduzida chance de cura. No
      Hospital de Câncer Mario Kröeff, no
      Rio, foram confirmados 1.711 casos entre
      2008 e 2010. Deles, 1.140 estavam
      nos níveis 3 e 4.

      Há pouco, a presidente assinou lei
      que dá prazo de 60 dias, a partir da confirmação
      da existência do câncer, para
      o efetivo início do tratamento. Quem
      não cumprir, fica sujeito a processo judicial.
      Mais um direito. E o dever de cumprilo?
      Recentemente, O GLOBO mostrou a
      crise das instituições filantrópicas de
      assistência médica.

      Descontados os casos de má administração,
      restou a queixa generalizada:
      o SUS (o do “dever do Estado”) paga a
      elas menos de metade do valor dos serviços
      que prestam aos cidadãos. Como,
      então, obedecer ao direito de todos? E o
      dever do Estado? 
      Hiram Silveira Lucas é médico

      Entrevista Hamid Dabashi

      folha de são paulo

      Por um islã cosmopolita
      O mundo muçulmano pós-Primavera Árabe
      RESUMO Intelectual nascido no Irã e radicado nos EUA analisa reação islamita após queda de regimes ditatoriais na Primavera Árabe. Para professor, ascensão de grupos religiosos esconde processo mais profundo de rompimento de amarras identitárias que se dará conforme islã recupere vocação cultural cosmopolita.
      SAMY ADGHIRNI
      O Ocidente assiste, impotente e preocupado, à consolidação de governos islamitas no rastro das revoltas árabes que derrubaram ditaduras na Tunísia, no Egito e na Líbia. À convulsão social surgida com a ascensão de forças conservadoras soma-se a guerra civil na Síria, onde grupos próximos à Al Qaeda assumiram as rédeas da incompleta revolução contra o regime do ditador Bashar Assad.
      Esse cenário sombrio esconde uma profunda transformação que implica não somente a libertação dos jugos autoritários como também a das amarras identitárias e culturais remanescentes da era colonial.
      O autor dessa tese é o intelectual americano nascido no Irã Hamid Dabashi, 61. Professor de estudos iranianos e literatura comparada na Universidade Columbia, em Nova York, ele é adepto de uma filosofia da geopolítica que o tornou um dos mais respeitados especialistas em temas árabes e islâmicos nos EUA.
      Autor de vários livros, entre eles o recém-lançado "Being a Muslim in the World" (sendo muçulmano no mundo, em tradução livre), Dabashi disse à Folha, em entrevista por e-mail, que os muçulmanos estão recuperando a vocação cosmopolita de sua religião e criticou a Europa pela estigmatização dos imigrantes islâmicos.
      -
      Folha - Por que os islamitas saíram como os maiores vitoriosos das revoluções árabes?
      Hamid Dabashi - É uma vitória sem fôlego. Os islamitas foram bem-sucedidos em dominar eleições porque apostaram em redes de mobilização política costuradas ao longo de décadas de ditadura dos antigos regimes.
      Mas esses islamitas no Egito, na Tunísia e em outros países estão sendo duramente contestados, desta vez não por regimes opressores, como o do [ex-ditador egípcio Hosni] Mubarak ou do [ex-ditador tunisiano Zine el Abidine] Ben Ali, mas pela própria população.
      No Egito, os escritórios da Irmandade Muçulmana estão sendo incendiados, e o lema da revolução, "o povo quer a queda do sistema", virou "o povo quer a queda da Irmandade Muçulmana".
      Na Tunísia, os sindicatos estão mobilizados contra o partido governista Al Nahda. Essas siglas islamitas se reivindicam donas do islã e do espaço público nos países muçulmanos, e essa apropriação está sendo seriamente contestada por outros muçulmanos.
      No longo prazo, será uma batalha perdida para as forças islamitas, que na Tunísia recorreram ao assassinato do opositor Chokri Belaid e no Egito ameaçam de morte líderes oposicionistas como Mohamed ElBaradei.
      Usar e abusar do sistema eleitoral é apenas um subterfúgio, que está sendo aos poucos desmascarado.
      As sociedades árabes e muçulmanas estão se tornando mais radicais?
      De forma alguma. O que acontece é o contrário. Do Irã ao Marrocos, as sociedades estão se abrindo. Sua vocação cosmopolita, que se manifesta melhor nas artes visuais e literárias, após ter sido camuflada sob a falsa oposição secularismo versus islamismo, está desabrochando.
      Essas vozes podem ainda não ser ouvidas devido aos sons da guerra na Síria ou por causa das pressões geopolíticas mantidas por Arábia Saudita e Israel. Mas essas vozes (e essa visão) existem e estão tomando forma. Regimes conservadores, como o saudita, estão fazendo de tudo para instigar violência sectária como forma de polarizar extremos, mas essa onda de revoluções está se voltando contra isso.
      Por que o senhor contesta a distinção entre seculares e religiosos nos países árabes e muçulmanos?
      Essa distinção é uma fabricação pós-colonial, construída por meio de coação. É uma forma de conhecimento que esgotou suas possibilidades epistemológicas e que já não corresponde à realidade das experiências de vida das pessoas nem reflete seus ideais e aspirações.
      Isso se nota nos filmes, na ficção e na poesia [dos países muçulmanos]. O contorno moral e criativo de tudo aquilo que é belo e sublime não pode ser reduzido a essa distinção grosseira e equivocada. Você pode ser muçulmano e feminista, muçulmano e marxista, muçulmano e psicanalista e, para reforçar o argumento via hipérbole, até mesmo muçulmano e ateu.
      A vida das pessoas transcende esse falso antagonismo.
      O senhor acredita que as petromonarquias do Golfo Pérsico se tornaram a força motora por trás do sucesso dos partidos islamitas?
      Com certeza. As petromonarquias do golfo se sentem ameaçadas, com razão, aliás. Por isso acreditam que seu dinheiro pode comprar tudo, inclusive a capacidade de orientar o futuro dessas revoluções.
      Mas isso é um engano. Tendências históricas e movimentos políticos não são como o último modelo de Mercedes que se pode comprar. [Os regimes do golfo] acabarão atropelados por esses movimentos.
      Por que países árabes, ocidentais e a Turquia estão apoiando a rebelião islamita na Síria, hoje dominada por jihadistas perigosos?
      A revolta síria não começou como uma rebelião islamita. Como em todos os outros palcos da Primavera Árabe, começou de forma pacífica por impulso da multifacetada sociedade síria, incluindo intelectuais, jornalistas, artistas, sindicalistas, feministas etc.
      Foi Bashar Assad quem começou derramando sangue, o que levou à violência alguns setores da oposição, entre eles os islamitas.
      Mas não se pode reduzir a revolução síria a essas forças, assim como não se pode reduzir o regime em vigor ao aparato de segurança e inteligência apoiado pelo Irã, pela Rússia e pela China.
      Os Estados Unidos e seus aliados regionais, incluindo Arábia Saudita, Qatar e Turquia, estão tentando comandar por controle remoto a revolução síria. Não fosse pela presença de forças islamitas, os Estados Unidos e a Otan já teriam bombardeado o palácio de Assad há muito tempo, como fizeram com [o ex-ditador líbio Muammar] Gaddafi.
      Não atacaram até agora para dar a Bashar Assad tempo de acabar com os islamitas que o Ocidente considera indesejáveis. Depois disso, eles irão matá-lo, na esperança de ter um cenário pós-Assad mais aceitável para a Arábia Saudita e Israel.
      O problema é que sauditas e israelenses não estão na mesma sintonia. A Arábia Saudita adoraria ter salafistas [muçulmanos ultraconservadores] atuando a seu favor. Já Israel é avesso a todas as forças islamitas, vistas como variações do Hamas. Essa contradição orgânica nas forças contrarrevolucionárias acabará favorecendo o povo sírio e sua revolução.
      O que os protestos surgidos após a eleição presidencial no Irã em 2009 e a Primavera Árabe têm em comum? Por que o Irã teve mais êxito que os ditadores árabes para acabar com os protestos, e com muito menos sangue derramado?
      Os dois casos têm tudo a ver. O Irã não acabou com os protestos, simplesmente os escondeu debaixo do tapete.
      A República Islâmica do Irã está em sérios apuros. Isso se reflete tanto nos seus distúrbios internos quanto na sua perda de poder regional, com a aliada Síria afundada no caos, o Hamas autodesvinculado da Síria, o Hizbollah vivendo sua mais grave crise existencial e a população iraquiana protestando contra seu governo xiita e, por tabela, contra a influência iraniana.
      O caso iraniano foi menos sangrento porque o regime aterrorizou os pais dos jovens manifestantes para que mantivessem seus filhos em casa. Além disso, ao longo de suas três décadas no poder, o regime totalitário conseguiu incorporar ao seu aparato de segurança uma parte importante da sociedade.
      Em vez de construir universidades e criar empregos, ele consolidou suas fundações com base num aparato de segurança que, a exemplo do professor Harold D. Lasswell [1902-78], eu chamo de
      "Estado fortaleza". Mas a ameaça ao regime não vem somente de seus dissidentes, ela vem também da geopolítica regional.
      Diante das pressões de algumas comunidades islâmicas na Europa para influenciar as leis locais, não seria compreensível os europeus enxergarem os imigrantes como ameaça à sua cultura e identidade?
      Os muçulmanos não foram à Europa atrás de clima agradável e generosa hospitalidade, mas em busca de trabalho. Os franceses não têm nenhum direito de falar em cultura e identidade. Eles deveriam ter pensado nisso quando saíram de seu país para colonizar a África e a Ásia.
      Os franceses cruzaram suas fronteiras nacionais muitos antes dos africanos. O que os franceses estão fazendo no Mali neste exato momento? Quando enviam caças para bombardear a África, eles não estão preocupados com identidade nacional nem fronteiras.
      Mas, quando africanos vão até a Europa, acabam martelados com discurso sobre fronteira nacional e identidade. Portanto muçulmanos e africanos têm pleno direito de estar na França. E, se isso gera confusões de identidade para franceses racistas, eles podem pedir ao seu governo que ensine direito nas escolas a sua história imperial.
      É possível que ocorra um renascimento islâmico?
      Não precisamos de renascimento nem de reforma à moda da Europa. Essas são denominações que historiadores europeus atribuíram de forma retroativa à história do continente, e elas hoje são contestadas.
      O que nós precisamos, como explico no meu livro "Being a Muslim in the World", é renovar o espírito cosmopolita que sempre foi inerente à cultura islâmica antes de seu fatídico encontro com o colonialismo europeu e o imperialismo americano.
      O principal obstáculo nesse caminho é a hiperjuridização do islã -que ocorreu sob pressão colonial e acabou exacerbada por orientalistas cristãos e judeus que enxergavam o islã sob a lente de suas próprias religiões. Esses estudiosos acreditavam que os princípios da lei islâmica a serviço dos califados e sultanados na Idade Média representavam a essência do islã.
      Esta é categoricamente uma leitura falsa do islã, que retira a lei islâmica do contexto histórico da intelectualidade islâmica, dando lhe uma influência desproporcional sobre a integralidade da fé para depois esperar que um renascimento ou uma reforma retifique as coisas.
      A lei islâmica é parte do islã, mas não representa tudo na religião. O 1,3 bilhão de muçulmanos espalhado pelo mundo e seu mundanismo particular e sua maneira de viver num mundo não islâmico irá conduzir até um pacto renovado com sua religião cosmopolita, desta vez numa mudança epistêmica livre do pesadelo de ter que dar explicações ao Ocidente.
      "As petromonarquias do golfo se sentem ameaçadas, com razão. Por isso acreditam que seu dinheiro pode comprar tudo, inclusive a capacidade de orientar o futuro dessas revoluções"
      "Os franceses não têm nenhum direito de falar em cultura e identidade. Eles deveriam ter pensado nisso quando saíram de seu país para colonizar África e Ásia"
      "Precisamos renovar o espírito cosmopolita inerente à cultura islâmica antes do fatídico encontro com o colonialismo europeu e o imperialismo americano"

        O passado junta pó - Silas Martí

        folha de são paulo

        DIÁRIO DO CAIRO
        O MAPA DA CULTURA
        Corredores vazios no Museu Egípcio
        SILAS MARTÍ
        NA PRAÇA TAHRIR, epicentro da revolução que derrubou há dois anos o ditador Hosni Mubarak, carcaças de carros chamuscados e pilhas de lixo se acumulam ao redor das tendas dos acampados ali, um amplo círculo de concreto aberto na massa de ruas que conformam o centro do Cairo.
        Tudo é cinza ou marrom, e as ruas que levam à praça, na trama urbana haussmaunniana da metrópole egípcia, estão bloqueadas com barreiras de concreto -uma delas isola a embaixada americana do foco dos protestos. Uma mesquita próxima parece ter se tornado ponto de encontro dos que apoiam a Irmandade Muçulmana, um pé do governo no meio da massa revoltosa.
        Enquanto isso, no enorme prédio neoclássico de cor salmão que flanqueia a praça, o passado junta pó. O Museu Egípcio, onde estão a máscara mortuária dourada de Tutancâmon e outras relíquias dos tempos dos faraós, sofre com o descaso. Corredores vazios e antigas placas em francês, inglês e árabe mais confundem do que orientam os poucos visitantes.
        Artefatos arqueológicos jazem sem identificação nas vitrines -uma visão chocante de glórias esquecidas enquanto lá fora os egípcios tentam garantir o futuro.
        Perto dali, num bairro dominado por oficinas mecânicas, a Townhouse tenta pôr ordem nos discursos desencontrados da revolução. Única galeria de arte contemporânea no Cairo, a casa exibe agora, no segundo andar de um sobrado, uma série de vídeos em que cidadãos discutem o que está em jogo nesse momento de transição.
        Uma sala foi reservada à condição feminina, com mulheres que narram episódios de assédio sexual que sofreram e clamam pela garantia de seus direitos civis. A arte aqui saiu de cena temporariamente para que se instaurasse um fórum de debates.
        QUARTEL-GENERAL
        Num canto do Café Riche, o velho gerente segura firme uma máscara de oxigênio colada ao rosto. Tenta respirar, apoiado em pilhas de livros amarelados, enquanto os garçons de túnica azul correm de um lado para o outro atendendo os clientes, na maioria estrangeiros.
        A duas quadras da praça Tahrir, o Riche sempre foi um reduto de intelectuais e escritores egípcios. Agora é o QG dos jornalistas acampados aqui. E dos ativistas contrários ao governo extremista da Irmandade Muçulmana, que se instalou no poder depois da guerra sangrenta contra Mubarak. Nas últimas semanas, protestos levaram à morte de ativistas aqui e em cidades como Port Said, a cerca de 200 km da capital.
        A tensão no ar é grande, e as amplas janelas do Riche viraram um deque privilegiado de observação da vida ruidosa lá fora -uma redoma de vidro no coração empoeirado do Cairo.
        Nas mesas ao redor, jovens ativistas conversam com repórteres estrangeiros. Sozinho, o gerente continua sua inalação, uma imagem viva do estado de suspensão que contamina a cidade.
        ÀS MOSCAS
        Em frente ao Riche, no segundo andar de um prédio afrancesado dos anos 1920, o Greek Club permanece vazio, sem a clientela habitual de ocidentais. Também já se foram os dias do Windsor, um dos poucos bares da capital egípcia.
        No salão no primeiro andar de um hotel, decorado com velhos pôsteres da companhia aérea alemã Lufthansa e um mobiliário rococó, dois garçons assistem a um jogo de futebol na televisão, o gramado na tela tingindo de verde as mesas e as cadeiras solitárias.
        NEGÓCIO LUCRATIVO
        Parte do agito parece ter migrado para Zamalek, o bairro-ilha no meio do Nilo que abriga expatriados e embaixadas. Num café quase escondido no fim de uma rua cheia de placas indicando onde comprar armas e munição, conversas acaloradas em árabe seguem até tarde da noite. Muitos ali se apresentam como artistas, e música sufi inunda o ambiente retrô como espécie de trilha sonora da discórdia.
        Livrarias do bairro também mostram como a revolução se tornou um negócio editorial lucrativo. Vitrines estão cheias de compilações dos tuítes da praça Tahrir -depois da Tunísia, o Egito levou a cabo a maior revolução da Primavera Árabe, alimentada pela força das redes sociais- e de teses acadêmicas sobre os pormenores do levante popular contra o ex-ditador Mubarak.
        Imbatível, também está lá o best-seller "As Garotas de Riad", uma espécie de "Sex and the City" árabe já em sua enésima edição.

          Jorge Wilheim no 'Memória que viram histórias'


          ARQUIVO ABERTO
          MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
          A nuvem dourada
          São Paulo, 1969
          JORGE WILHEIM
          OS TRANSEUNTES e motoristas que circulavam, naquele sábado, 13 de dezembro de 1969, pelos arredores do rio Tietê, perguntavam-se, perplexos, o que seria aquela estranha nuvem metálica, dourada ao pôr do sol, flutuando sobre os terrenos que até havia pouco eram usados pelo futebol de várzea.
          Quem se aproximasse desta região da cidade perceberia tratar-se de uma enorme estrutura metálica (quase 70 mil m2) suspensa no ar por 25 guindastes: a futura cobertura do pavilhão de exposições de um empreendimento de Caio Alcântara Machado.
          Um amigo em comum, o engenheiro Eduardo Moraes Dantas, pôs-me em contato com Caio que desejava promover a construção de um pavilhão quatro vezes maior do que aquele que improvisara no parque Ibirapuera, destinado a acolher mostras e feiras periódicas: Salão do Automóvel, Utilidades Domésticas, Fenit etc.
          Durante o Carnaval de 1966 reuni-me com ele e seus companheiros e organizamos o programa desse projeto; insisti que deveriam ser previstos auditórios para convenções, restaurantes, hotel e amplo espaço logístico, além de estacionamentos.
          Elaborado o programa e contratado meu escritório, tivemos que enfrentar um problema estrutural: como cobrir vasta área com cerca de 15 metros de altura livre? Na construção de galpões industriais era então habitual usar arcos estruturais ou "sheds", com o inconveniente de encherem o espaço de colunas ou de alcançarem uma altura livre desnecessária.
          Queria uma estrutura metálica leve que pudesse nascer e crescer feito árvore... E que pudesse ser montada no solo para evitar a construção provisória de um vasto emaranhado de andaimes, possivelmente mais caro do que a própria estrutura de cobertura.
          Um representante da Alcoa, a companhia americana de alumínio, comentou que na Expo 67, em Montreal, no Canadá, havia uma fachada com estrutura espacial parecida com a que montáramos no escritório com palitos de fósforo.
          Fui ver; e, em Montreal, aprendi que o tubo podia ser "amassado" para receber rebites. Lá conheci o professor canadense Cedric Marsh que, graças ao uso pioneiro de uma máquina chamada computador, era capaz de calcular a estrutura espacial desejada.
          O projeto de levantamento a partir do solo e a construção metálica foram realizados pela Fichet & Schwartz Hautmont, firma de origem francesa, muito ativa no Brasil. Após exame da previsão do tempo, temerosos de que o vento fizesse a estrutura no ar entrar em movimento pendular fatal, fixou-se a data para a operação de levantamento.
          Em somente oito horas ergueram-se, por meio de guindastes manuais, 70 mil m2 de estrutura, os quais logo receberiam as colunas definitivas, que jaziam no solo aguardando a vez de serem levantadas.
          Além dessa inovadora cobertura, o pavilhão foi dotado de uma infraestrutura subterrânea que permite alcançar com cabos e energia qualquer ponto da área e de um terraço, debruçado sobre a bonita praça projetada por Roberto Burle-Marx, destinado a uma série de restaurantes -um predecessor das atuais praças de alimentação.
          Infelizmente o Brasil é o país dos puxadinhos e do temporário que vira definitivo. O terraço gastronômico foi demolido, e a praça,ocupada por uma extensão do pavilhão, ficou uma ridícula imitação do principal.
          Mas somos também um país desmemoriado. A estrutura -sua beleza e sua inovação, o recorde mundial que foi sua elevação em oito horas-, merecia ser preservada, quando não tombada como patrimônio. Nada disso ocorreu.
          Por isso, é gratificante a oportunidade de relembrar aquele dia em que uma nuvem dourada anunciava uma novidade: o Parque Anhembi.

            O passado bate à porta - DORRIT HARAZIM

            O GLOBO - 10/03/2013

            No próximo dia 20 de março transcorrerá o 10º aniversário do colossal desastre estratégico, militar e político do governo do ex-presidente George W. Bush: a invasão do Iraque por tropas americanas em 2003. Trata-se de uma efeméride amarga para os Estados Unidos. A retirada das últimas unidades de combate, oito anos após o triunfal assalto a Bagdá, se deu na calada da noite, de fininho, sem olhar para trás.

            Só houve perdas. Foram 4.400 os soldados mortos em combate, sequelas em todos os veios da vida americana e será de mais de US$ 3 trilhões a conta final da empreitada.

            Sem falar no rombo moral provocado na nação, que minimizou, tolerou ou aceitou o recurso à tortura em nome de uma cruzada civilizatória em terra estrangeira. Essa conta, ao contrário do que gostariam os mandantes de hoje, permanece em aberto. É assim em todos os países com porões ainda escuros, mas a História mostra que faxinas superficiais não resistem ao tempo.

            Exatamente quatro anos atrás, com Barack Obama recém-empossado na Casa Branca, o Departamento de Justiça foi obrigado pela ONG União das Liberdades Civis a liberar alguns memorandos da era Bush autorizando as polêmicas "técnicas duras de interrogatório".

            Obama já havia proibido o recurso a esses procedimentos e acreditou poder colocar uma pá no assunto.

            Seguir em frente. No dia da liberação dos memorandos, declarou: "Atravessamos um sombrio e doloroso capítulo de nossa história", disse à época, "mas não ganharemos nada se gastarmos tempo e energia apontando culpados do passado".

            Não é tão simples assim. Esse tipo de passado costuma reaparecer sem pressa, fica rondando. Um levantamento ainda sigiloso de seis mil páginas sobre detenções e interrogatórios na era Bush, produzido recentemente pela Comissão de Inteligência do Senado, concluiu que durante anos agentes da CIA iludiram o Executivo, o Legislativo e o Judiciário sobre as técnicas que usavam em prisioneiros suspeitos de serem terroristas.

            Passado incômodo para John Brennan, que esta semana foi confirmado como novo diretor da CIA. Brennan trabalha na agência há quase um quarto de século, ocupou dois cargos de combate ao terrorismo no governo Bush e foi o responsável pelo briefing diário de 20 agências de inteligência americanas. No primeiro mandato de Obama foi seu assessor para assuntos de segurança nacional e o arquiteto da atual política de eliminação seletiva de terroristas.

            Apesar de biografia tão imbricada às práticas adotadas pela CIA, o novo diretor declarou desconhecer os fatos listados no relatório. "Não sei qual é a verdade. Preciso me inteirar dos fatos com cuidado e ver qual a resposta da agência", declarou durante sua sabatina no Capitólio.

            Tem mais "passado" batendo às portas do presente neste 10º aniversário da guerra. Esta semana, o jornal britânico "The Guardian" publicou o resultado de uma investigação que levou quinze meses para ser concluída e contou com a colaboração da BBC Arabic. Ela revela a existência de um elo entre o Pentágono e os centros de detenção e tortura que funcionaram no Iraque durante a guerra.

            O elo se chama James Steele. Veterano das Forças Especiais que conduziram as chamadas "guerras sujas" dos Estados Unidos na América Central dos anos 1980, Steele se movimentava nas sombras de sua aposentadoria de coronel quando foi pinçado pelo secretário de Defesa Donald Rumsfeld para mudar o curso do insucesso americano no Iraque. Sua missão: montar, financiar e supervisionar comandos paramilitares iraquianos capazes de impor o medo, obter informações e acabar com a insurreição contra a ocupação dos Estados Unidos.

            Em El Salvador, Steele já havia cumprido missão semelhante com grande sucesso, comandando unidades locais que se transformaram rapidamente em esquadrões da morte. Ao término do conflito, havia 17 mil civis e guerrilheiros mortos e um milhão de refugiados num país de pouco mais de 6 milhões de habitantes.

            Steele aportou em Bagdá como "Consultor para Assuntos de Energia". Seus despachos confidenciais para Rumsfeld eram repassados ao presidente Bush e ao vice Cheney, que naquele ano de 2004 corriam o risco de não se reeleger se a guerra no Iraque degringolasse.

            A prioridade passou a ser uma só: evitar a qualquer custo que o claudicante governo provisório iraquiano fosse derrotado pela insurreição.

            Em pouco tempo, perto de 15 centros de interrogatório clandestino operados pelas milícias paramilitares começaram a funcionar. Steele tinha acesso a todas essas unidades.

            Além dele, outro coronel da reserva, James Coffman, também tinha entrada livre nos centros. Coffman era o principal assessor do general David Petraeus, comandante das operações no Iraque na era Bush, diretor da CIA no governo Obama e recentemente envolvido em ruidoso e ruinoso triângulo amoroso que o jogou na aposentadoria.

            Oito anos atrás, o repórter do "New York Times" Peter Maas e o fotógrafo Gilles Peress haviam publicado um longo e fundamentado artigo sugerindo a cumplicidade de Steele com o que ocorria nos centros de interrogatório montados por ele. Testemunharam, inclusive, um filete de sangue ainda escorrendo de uma das mesas da sala onde foram recebidos pelo americano.

            Mas em 2005 a opinião pública dos Estados Unidos ainda não queria ouvir relatos desse tipo. O artigo caiu no vazio, e Steele, encerrada sua missão no Iraque, retornou condecorado ao Texas, de onde administra ocasionais palestras sobre combate ao terrorismo.

            Agora, com o relatório do Senado e a investigação do "Guardian", começa a ser mais difícil colocar o gênio de volta na garrafa. A reportagem do jornal londrino veio acrescida de um documentário de 51 minutos com entrevistas de vítimas e testemunhas daqueles porões, além de depoimentos de parceiros daqueles tempos. Esse passado sombrio, do qual só apareceram pontículas até agora, não ronda apenas o presente. É a autoridade moral futura dos Estados Unidos que está atrelada a ele.

            Dois Poemas e uma entrevista com Alice Sant'anna


            ENTREVISTA - ALICE SANT'ANNA
            Um iceberg de sentidos
            Questões poéticas sobre fatos triviais e vice-versa
            RESUMO Em 1953 Vinicius de Moraes fez, para o semanário "Flan", do jornal "Última Hora", entrevista de perguntas e respostas improváveis com o músico Jayme Ovalle. Nesses moldes, Armando Freitas Filho conversa com a também poeta Alice Sant'Anna, autora de "Rabo de Baleia", que sai no dia 14 pela Cosac Naify (64 págs., R$ 28).
            ARMANDO FREITAS FILHO
            A seguir, leia a conversa que travaram os dois poetas cariocas.
            -
            Armando Freitas Filho - Cortar o cabelo machuca, Alice?
            Alice Sant'Anna - Machuca deixar crescer. Cabelo pesa.
            Não comprar antes da moça ao lado um vestido de tule illusion champagne, que esvoaça no corpo dela, é irreparável?
            É irreparável. Os vestidos bonitos demais não podem ser muitos no armário, precisam ser raros. E não devem, obviamente, ser usados todos os dias. Tule illusion champagne, com um nome desses, só tem graça depois de muita calça jeans.
            Só podendo escolher um e nenhum outro: quem você chamaria para ver o rabo da baleia? Carlos Drummond ou João Cabral?
            Essa é impossível, levo os dois comigo.
            O fantasma de Ana Cristina César existe?
            Existe, mas não dá susto.
            Pudim de leite engorda?
            Pudim, não. Culpa engorda.
            Já brigou, ou pelo menos teve vontade de brigar com algum poeta para valer, com ódio, com a caneta nos dentes, o dedo na cara, com vontade de matar o desgraçado?
            Só gosto de quem gosta de mim.
            Neste segundo pingue-pongue que nós jogamos, a sua rebatida, a sua cortada estão mais difíceis do que no primeiro?
            É um pouco diferente: no nosso livro, eu cortava, mas também sacava. Aqui eu só rebato.
            "Rabo de Baleia" não é um título usual para livro de poesia. O que fez você escolher esse nome? Foi pela surpresa?
            É como enxergar só a ponta e deduzir todo um iceberg: ver o rabo de baleia basta para imaginar que existe um bicho inteiro debaixo d'água. A gente está sempre tentando agarrar o rabo da baleia, mas ele escapa, é infalível. Quando dá a sorte de aparecer, é rápido demais, dura poucos segundos, como um pequeno milagre.

              IMAGINAÇÃO
              PROSA, POESIA E TRADUÇÃO
              Dois poemas
              ALICE SANT'ANNA
              1.
              o barulho ao lado
              uma rachadura é provável
              no prédio recém-construído
              novinho em folha
              apartamentos comprados
              na planta já tinha gente vivendo
              e todos tiveram que desocupar
              se mudar pra casa da tia
              voltar pra casa da mãe
              cada um se arranja como pode
              diante da ameaça do tombo
              mas eis que todo dia quando caminha por perto
              acha que é justo quando caminha por perto
              que o prédio vai ruir de vez
              se não ruiu até agora se não
              desabou completamente
              não encheu a gávea de poeira de asfalto
              de sofás novos e uma escrivaninha que alguém
              herdou da avó do recife
              da geladeira que guarda um último caqui
              na caixa e um presente da maison du chocolat
              o laço que não romperia com a queda
              os bombons ainda intactos
              quando chega em casa já de noite
              sente muito frio
              calça meias nos pés e durante o sono
              sem perceber tira as meias com muito calor
              sonha com montanhas que desmoronam em série
              sempre de dentro pra fora
              2.
              deitado com o dedo na boca
              o sorriso invertido
              curvado como uma montanha
              a pele da perna uma cédula
              gasta e seca
              todos os dias rigorosamente iguais
              banheiro, visitas, ampolas de sangue
              às vezes tem mordomias como
              um pedaço de pão ou uma fruta
              doces nem pensar
              da janela passa uma nuvem de carros
              um táxi amarelo convida
              a ir a qualquer lugar
              sem previsão de alta o táxi é mais
              miragem um filme
              na televisão aquele programa da tv5
              sobre casas em paris sem saneamento
              pessoas que moram hoje, você acredita?, em quartos
              sem janelas, apartamentos no sexto andar
              sem elevador, como será que fazem para subir
              com a água? não tomam banho, naturalmente
              depois se cansa da conversa
              a nuvem se torna mais espessa
              na hora do rush o táxi não tem serventia
              se não puder tomar o caminho que leva
              ao ponto mais alto
              de onde se vê a curvatura da terra
                fonte:folha de são paulo

              Clovis Rossi

              folha de são paulo

              Conclave, nuvens, raios e pecados
              Excesso de segredos e falta de democracia expõem a igreja a uma séria crise de credibilidade
              Um dos cardeais que ouviram o papa Bento 16 anunciar que renunciaria definiu o aviso como "um raio em céu azul". Não parece uma descrição apta para a cor do céu no Vaticano nos últimos tempos, menos ainda agora, na antevéspera do conclave.
              O próprio papa, em suas mensagens de despedida, mencionou "nuvens e raios", falou dos "ventos contrários" que agitaram a barca de Pedro, enquanto "Deus parecia adormecido".
              Dá para acreditar que raios e nuvens desaparecerão quando os cardeais se trancarem na Capela Sistina? Difícil porque, claramente, o Vaticano enfrenta uma séria crise de credibilidade.
              Basta lembrar que recente pesquisa feita entre católicos italianos mostrou descrença até na palavra do papa: se 43,5% disseram acreditar que Bento 16 de fato renunciou por lhe faltarem as forças, uma parcela praticamente igual (42,9%) atribuiu sua decisão aos "escândalos e jogos de poder na igreja e no Vaticano".
              O secretismo que envolve as reuniões da Congregação Geral, que deveriam passar a limpo toda a agenda da igreja e traçar as linhas gerais do perfil do novo papa, não contribui em nada para deixar as coisas mais claras.
              Sobraram muitas perguntas e nenhuma resposta ao público. Dois dos cardeais brasileiros eleitores no conclave anunciaram, previamente, que gostariam de tomar conhecimento do dossiê preparado por três de seus pares, por encomenda de Bento 16, a propósito do vazamento de papéis pessoais do papa.
              A versão publicada pelo jornal "La Repubblica" e pela revista "Panorama" fala de escândalos financeiros e sexuais, além de disputas de poder. O que foi, afinal, revelado aos cardeais, se algo o foi?
              Parece evidente que o Vaticano trata de circunscrever a vida da igreja ao grupo restrito de cardeais. Juan González Bedoya, responsável pela informação religiosa em "El País", comentou outro dia que "o novo papa não será nem mulher nem leigo nem será jovem nem casado nem será pai de família (apesar de esses grupos formarem 99,9% da igreja romana)".
              Nem os 5.100 bispos, esmagadora maioria na hierarquia, têm chances, diz Bedoya. É um desmentido à ideia, repetida recentemente pelo próprio papa, de que "os cristãos somos todos o corpo vivo de Cristo".
              O cenário nebuloso que cerca o conclave, especialmente pelo segredo em torno da investigação determinada por Bento 16, provocou um comentário assustador de Juan Arias, correspondente de "El País" no Brasil, mas que foi por 14 anos correspondente em Roma e se tornou um vaticanista celebrado, além de ter sido sacerdote, o que lhe dá conhecimento das entranhas da igreja: "Há um temor que se está estendendo entre os cardeais, e é a possibilidade de eleger um papa que em pouco tempo tenha que demitir-se, não por encobrir os pecados dos outros, mas os próprios".
              Não adianta a igreja lembrar que em seus 2.000 anos de existência enfrentou nuvens, raios e ventos contrários ainda mais fortes -e sobreviveu. Os pecados de antigamente não circulavam na internet.

                Diga-me o que veneras - MARTHA MEDEIROS

                ZERO HORA - 10/03/2013

                Talvez isso diga tudo sobre aquela incômoda sensação de inferioridade que ainda não conseguimos vencer

                Venerar: prestar culto, adorar. Respeitar ou admirar muito. Reverenciar. Isso segundo os dicionários, pois eu ainda acrescentaria: ficar com os quatro pneus arriados, perder o senso, surtar. Pois é, tenho pensado nesse verbo venerar e descoberto coisas.

                O que você venera? Refiro-me a algo que você idolatra íntima e secretamente, algo que lhe parece inatingível – ao menos você supõe que é inatingível. Não estou falando de se aproximar de ídolos ou visitar lugares paradisíacos, e sim das suas carências de infância: o que você venera e que nunca possuiu, e, por não possuir, acabou tornando-se refém?

                O que você venera é seu ponto fraco.

                Digamos que você venere a inteligência e a cultura. Foi criado sem acesso a cursos, livros e cinema, e acabou desenvolvendo uma fissura por tudo o que pareça intelectualizado num grau acadêmico que você nunca sonhou roçar. Fica pasmo diante de qualquer pessoa que fale sobre o que você não conhece, extasia-se diante de tanta erudição, que talvez nem seja tanta assim, mas que você vê como imensa. Olhe para si mesmo: tão aparentemente seguro, mas embasbacado diante de qualquer um que saiba meia-dúzia de palavras em latim ou que lembre quem ganhou o Oscar em 1972.

                Digamos que você venere a beleza. Foi o patinho feio da escola, desde cedo compreendeu que não ganharia nem o título de miss simpatia, e foi o que bastou para dar pane no cérebro: diante de um belo espécime, cai de joelhos. De que adianta tanta leitura, tanto estudo, tamanho acervo de conhecimento? Basta um par de olhos verdes piscantes em sua direção e seu QI cai a níveis subterrâneos.

                Digamos que você venere a segurança, já que nunca teve certeza de que seu pai voltaria para casa ao fim do dia e de que sua mãe não fugiria com o vizinho. Basta que alguém tenha um cargo de poder, opiniões bem sedimentadas e um endereço fixo para que você o adote como pai ou mãe substitutos. Enfim, uma muleta que o sustente. A pessoa eleita sabe como conduzir o dia, articula claramente as ideias, reage bem a imprevistos. Você funda uma religião: ele ou ela é agora seu Deus, e você será um eterno discípulo.

                Digamos que você venere o dinheiro: sempre teve que implorar por trocados, nunca teve o suficiente para seus sonhos, considerava-se o mais pobre da turma, aquele que os professores, insensíveis, delatavam na frente da classe como o aluno com a mensalidade da escola atrasada. Basta saber que a parceira de escritório passa as férias em Fort Lauderdale ou que o companheiro de bar tem um carro que vale um iate, e seu conceito de “amizade de infância” se expande a uma velocidade surpreendente.

                O que você venera? Seja o que for, preste atenção. Talvez diga tudo sobre aquela incômoda sensação de inferioridade que cada um de nós, disfarçadamente, ainda não conseguiu vencer. 

                Entrevista Samuel Pinheiro Guimarães Neto

                folha de são paulo

                É um equívoco dizer que Hugo Chávez era populista
                Ex-secretário-geral do Itamaraty diz que sucesso de Nicolás Maduro vai depender de manter prioridades de antecessor
                ELEONORA DE LUCENADE SÃO PAULOHugo Chávez fez uma série de programas importantes para a população pobre. Por isso é admirado. "Mas não é mito. É uma realidade."
                Assim, se a nova liderança venezuelana prosseguir com esses projetos terá a mesma popularidade. Se, ao contrário, tiver uma orientação "mais favorável às elites hegemônicas do país", vai "perder apoio interno".
                A análise é do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães Neto, 74, ex-secretário-geral do Itamaraty. Para ele, Chávez transformou a Venezuela na economia, na política e no social, deixando um "legado extraordinário".
                Ex-alto representante geral do Mercosul, Guimarães compara Chávez a Getúlio Vargas e condena a expressão "populismo".
                -
                Folha - Qual o legado de Hugo Chávez?
                Samuel Pinheiro Guimarães - É um legado extraordinário. Ele promoveu uma verdadeira revolução social na Venezuela. Em educação, saúde, habitação, construção de infraestrutura, estímulo à industrialização. A Unesco declarou a Venezuela como um território livre do analfabetismo.
                Na América Latina, deu apoio aos pequenos países do Caribe em termos de petróleo a preços mais baixos. Apoiou a Argentina na época da renegociação da dívida.
                Em nível internacional, houve uma atitude de independência e de autonomia diante da pressão de grandes Estados e a uma reorientação das relações da Venezuela em direção à América do Sul.
                Como fica a Venezuela sem Chávez?
                Vão se realizar eleições no prazo previsto pela Constituição. Nicolás Maduro será o candidato natural. O candidato da oposição será o mesmo que enfrentou o presidente Chávez. Nas circunstâncias atuais, é muito provável que Maduro seja eleito.
                Não haverá mudanças?
                Se Maduro for eleito e sua orientação for mais favorável às elites hegemônicas do país, ele vai perder apoio interno. Coisa que eu não acredito que ele faça.
                Como o sr. analisa o enraizamento do chavismo na sociedade? Ele está muito centralizado na figura do presidente?
                As pessoas não têm admiração pelo presidente porque ele tem um determinado aspecto físico. As pessoas reconhecem nele a pessoa que executa certas políticas e lutou por programas. Por isso a popularidade de Chávez é extraordinária. Se a nova liderança prosseguir com esses programas, ampliá-los virá a ter a mesma popularidade.
                O mito Chávez vai perdurar?
                O povo tende a se lembrar daqueles governantes que fizeram políticas que lhes foram favoráveis. Veja o caso de Getúlio Vargas. Pode não ser a opinião da imprensa paulista. Mas o fato é que Vargas criou uma série de políticas, a lei trabalhista, instituiu o voto feminino. Por isso ele era apreciado e criou-se um mito. Por que não há um mito em relação a outros presidentes? É porque não fizeram.
                O sr. compara Chávez a Getúlio?
                Estou dando um exemplo. Os programas sociais, a legislação é que fazem com que haja grande apoio popular a uma liderança. Chávez executou uma série de programas para a maioria da população da Venezuela. Por isso tem essa admiração. Mas não é um mito. É uma realidade.
                E a questão do populismo? Ele se enquadra nesse termo?
                Populismo é um termo extremamente equivocado gerado pela academia. Inclusive contra o presidente Vargas, especificamente. O fato é o seguinte: se uma liderança política, um governante tem apenas promessas retóricas e não as realiza, isso seria chamado de populismo. Mas, se ele realiza os programas sociais e beneficia a maioria da população e isso é populismo, viva o populismo.
                Chávez sempre foi uma voz forte contra os EUA. Quem vai assumir esse papel?
                Os EUA apoiaram o golpe de 2002. Há fundações americanas que financiam a oposição na Venezuela há anos. Chávez nunca procurou promover mudança de governo dentro dos EUA nem financiou movimentos nos EUA.
                Os EUA estão menos intervencionistas na América do Sul?
                Hoje em dia, os EUA estão num processo econômico interno muito delicado e complexo, com a questão orçamentária, a China. Os governos progressistas na América do Sul nunca afetam de forma mais profunda os interesses norte-americanos. Isso nunca ocorreu no Brasil, nem na Argentina.
                Nem na Venezuela. Os EUA são o principal mercado para o petróleo venezuelano.
                E grande parte das importações da Venezuela vem dos EUA.
                As Forças Armadas estão alinhadas com Maduro?
                Acredito que sim. Imagino que, se os programas de Maduro vierem a ser semelhantes aos de Chávez, certamente estarão alinhadas com ele.
                A questão econômica, a excessiva dependência do petróleo, é problema?
                A dependência da economia do petróleo é algo histórico, mas tem se reduzido e estão tentando diversificar a economia. Dificuldades estão tendo as economias norte-americana e europeia.

                  Cientistas tentam 'driblar' malária resistente

                  folha de são paulo

                  Análise do ciclo de vida do parasita mostra que sua sensibilidade aos remédios varia a cada fase de seu desenvolvimento
                  Maior resistência do plasmódio aos medicamentos tem agravado o quadro da doença no mundo
                  RICARDO BONALUME NETODE SÃO PAULOUm estudo sobre a sensibilidade do parasita da malária a drogas deu uma excelente pista de como contornar o problema do aumento da resistência desse micróbio a medicamentos e, com isso, criar tratamentos mais eficazes contra uma doença que afeta meio bilhão de pessoas por ano em todo o mundo.
                  O parasita é transmitido por picadas de mosquitos do gênero Anopheles. Conhecido como plasmódio, o parasita tem um complexo ciclo de vida tanto dentro do mosquito como no homem, infectando em formas diversas a glândula salivar do inseto, o sangue e o fígado humanos.
                  O novo estudo, feito pela equipe de Leann Tilley, da Universidade de Melbourne, Austrália, mostrou que diferentes estágios de vida do parasita têm diferentes sensibilidades às artemisinas, drogas populares hoje no tratamento da malária.
                  "Nosso estudo sugere que a razão pela qual o parasita é capaz de se tornar resistente às artemisinas é que elas têm uma sobrevivência curta na corrente sanguínea", disse Tilley à Folha
                  A equipe conseguiu realizar experimentos "em proveta" capazes de imitar o que acontece na infecção pelo plasmódio no ser humano.
                  Os resultados mostram como a resistência a drogas pode surgir da ação combinada da curta sobrevivência do medicamento no organismo e do momento do desenvolvimento do parasita.
                  "Felizmente, esse novo trabalho também sugere que novos medicamentos antimaláricos, os endoperóxidos semelhantes à artemisina, vão ajudar a evitar o desenvolvimento de resistência", declara a pesquisadora.
                  Para ela, vai ser difícil parar a tendência do parasita de adquirir resistência. "Ele vai eventualmente desenvolver resistência a qualquer droga que desenvolvermos."
                  O que é possível, afirma ela, é tornar mais lento o desenvolvimento da resistência, ao garantir que as drogas sempre sejam usadas em certas combinações.
                  A estratégia, segundo Tilley, também precisa incluir o fim do tráfico de medicamentos falsificados, que costumam conter doses menores das drogas -uma praga típica do Terceiro Mundo, onde, aliás, se concentram os casos da doença.

                    Marcelo Gleiser

                    folha de são paulo

                    Matemática e futebol
                    A beleza de uma jogada vem do uso inusitado da criatividade sob regras predeterminadas
                    Certos resultados da matemática têm a força de verdades absolutas, independentemente de qualquer interpretação ou contexto.
                    Quando afirmamos que 2+2=4 sabemos que isso sempre será correto, ao menos para entidades inteligentes capazes de contar. Saindo da aritmética para a álgebra, dada uma equação, por exemplo, x + 3 = 4, sabemos que só existe uma solução para x, x = 1.
                    O mesmo se dá com a geometria euclidiana, que aprendemos na escola. Armados de certos axiomas (asserções tomadas como verdadeiras que servem como ponto de partida para a elaboração de resultados), podemos provar uma série de resultados que são únicos.
                    Por exemplo, que a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180 graus ou que a circunferência de um círculo de raio R é 2piR.
                    Esse tipo de aplicação cristalina da razão traz uma profunda sensação de controle: dadas certas regras, sabemos construir resultados verdadeiros. A tentação de extrapolar a matemática como sinônimo de verdade torna-se enorme: se a natureza obedece a leis matemáticas, devemos poder entendê-la de forma absoluta. Mas será que podemos afirmar que a matemática é critério de verdade no mundo natural?
                    O poder da matemática vem da sua independência de contexto. Mesmo que os conceitos tenham sido derivados da necessidade de medir distâncias e intervalos de tempo ou de contar cabeças de gado e calcular o seu valor, uma vez criados podem ser usados em qualquer situação adequada: um triângulo é um triângulo aqui ou em Marte.
                    O exercício da matemática é um jogo que segue regras predeterminadas. A inovação vem da liberdade controlada propiciada pelas regras, aliada à criatividade humana. O mesmo ocorre num jogo de xadrez: as regras são rígidas, mas duas partidas jamais são iguais.
                    O mesmo ocorre no futebol. O que torna esportes empolgantes é a variabilidade que existe a partir das mesmas regras. Se jogos se repetissem, esportes perderiam a graça. A diversão vem da surpresa.
                    Na matemática e nos esportes, o novo vem de uma estrutura rígida. Ambos são expressão de uma criatividade controlada. A beleza numa jogada vem do uso inusitado dessa criatividade dentro dos padrões permitidos pelas regras. Gol de mão não vale, mas um gol de bicicleta bem no ângulo é sensacional.
                    Na matemática, pode-se inventar mundos estranhos, geometrias em mais de três dimensões e noções diferentes de infinito ou conceitos como pontos e linhas, objetos sem volume que determinam as propriedades do espaço.
                    Essas regras e abstrações são criações da mente humana, ferramentas que usamos para ordenar a realidade que percebemos.
                    Da mesma forma que um partida de futebol só pode ser jogada se as regras forem seguidas, as "verdades" da matemática só fazem sentido dentro da estrutura em que foram criadas. Como nós criamos estas estruturas, a matemática é criação nossa, do nosso jeito de pensar o mundo. Outras inteligências podem inventar a matemática delas, e dicionários podem ser criados traduzindo as "verdades" de cada um.
                    A diferença entre a matemática e a natureza é que esta segue apenas as suas regras.

                      Danuza Leão

                      folha de são paulo

                      Triste país
                      Tem horas que nem sei o que dizer. Será que esse país não vai ter jeito nunca?
                      Lembro bem; era um domingo de sol em outubro ou novembro de 1955, e acordei com o rádio noticiando que o hotel Vogue estava pegando fogo.
                      O Vogue era na Princesa Isabel, no Rio, e no andar térreo funcionava a boate mais famosa da cidade.
                      Era lá que se encontravam os políticos (a capital da República ainda era aqui), as beldades e o high society em geral. Não havia jantar, coquetel, festa, que não terminasse no Vogue, onde as crooners eram Linda Batista e Araci de Almeida, olha que luxo; às vezes aparecia Dolores Duran para dar uma canja.
                      Só saiamos de lá com o sol raiando, e vivíamos intensamente os anos dourados, onde se nem todos eram felizes, todos pareciam ser. Foi a melhor boate que o Rio já teve.
                      No dia do incêndio a cidade inteira foi para a porta do hotel. Ou pelo menos todos os amigos dos que lá moravam. A agonia foi lenta, durou horas. As escadas do hotel eram forradas de madeira, o que ajudou o fogo a rapidamente chegar ao último andar (eram 12).
                      Como num incêndio não se pode usar o elevador, e pelas escadas em chamas ninguém podia descer, ficaram todos em seus quartos esperando por um milagre, o que não aconteceu. Chegaram os bombeiros, mas suas escadas iam só até o 4º andar; um boêmio muito conhecido na época, o Dantinhas, teve sangue frio para conseguir se salvar.
                      Ele pegou os lençóis, amarrou um no outro, molhou, para que os nós não se desfizessem, se vestiu inteiro -conta a lenda que não se esqueceu nem de botar a pérola na gravata- e desceu pelos lençóis até encontrar, mais abaixo, a escada dos bombeiros.
                      Foi o único que se salvou (e quando chegou na rua não falou com ninguém; foi para um bar ali perto, onde tomou uma garrafa de uísque inteira).
                      Os recém casados Glorinha e Waldemar Schiller foram encontrados abraçados, mortos, dentro da banheira, e duas pessoas se jogaram da janela, entre elas um cantor americano que fazia o show do Vogue naquele momento. Foi uma tragédia que abalou o Rio de Janeiro; quem viu nunca esqueceu.
                      Promessas foram feitas pelo chefe do Corpo de Bombeiros, pelas autoridades; aquilo havia sido uma lição, nunca mais nada de parecido aconteceria. Pois esta semana, 57 anos depois, a história se repetiu.
                      Um prédio no Leblon pegou fogo -e a tragédia só não foi maior porque o prédio tinha apenas quatro andares. Mas um casal não resistiu às chamas, se atirou e morreu- ela com 33 anos, ele com 57; eles pareciam muito felizes.
                      A assessoria do Corpo de Bombeiros declarou que no Rio existem apenas três unidades que têm plataformas e escadas; escadas tão curtas que nem chegam ao quarto andar. E o hidrante não tinha água, claro.
                      Dizer o quê? Que o Brasil continua o mesmo de 57 anos atrás, que ninguém faz nada para melhorar os serviço mais elementares, que os bueiros explodem, as escadas dos bombeiros são pequenas, mas que, segundo nossos dirigentes, o Brasil -o Rio, sobretudo- está bombando?
                      O governador declarou que o socorro foi de padrão internacional, que tal? Claro, ele deve estar comparando com Paris, onde passa a maior parte do tempo; já o nosso prefeito só pensa em carnaval, em samba, em alegria. Eu preferia ter um prefeito e um governador mais sérios, que cuidassem mais da nossa cidade e de seus habitantes.
                      Aliás, não me consta que o prefeito esteja estudando uma solução para os blocos, que este ano passaram de todos os limites; ele acha que é legal uma cidade animada.
                      Tem horas que nem sei o que dizer. Será que esse país não vai ter jeito nunca? As escadas dos bombeiros eram e continuam sendo pequenas? Então, feche-se o Corpo de Bombeiros, por sua inutilidade.
                      E aproveitando o embalo, fecha-se Brasília.

                        Pastor diz sofrer perseguição e se compara a blogueira cubana

                        folha de são paulo

                        Recém-eleito para presidir Comissão de Direitos Humanos da Câmara, deputado nega homofobia
                        Marco Feliciano afirma se sentir como Yoani Sánchez e que 'culpa' por ter sido escolhido para posto 'é do PT'
                        TAI NALONDE BRASÍLIARecém-eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, o pastor Marco Feliciano (PSC-SP) se compara à ativista cubana Yoani Sánchez ao afirmar que sofre perseguição de simpatizantes de uma "ditadura da desinformação".
                        Em entrevista à Folha, Feliciano disse que sofre ameaças de morte desde que foi indicado para a vaga destinada ao seu partido na comissão, e avalia pedir proteção policial para ele e sua família.
                        "A situação está tomando dimensões muito estranhas. É assustador, estou me sentindo perseguido como aquela cubana lá. Como é o nome? A Yoani Sánchez", disse, em referência à blogueira crítica do governo de Cuba, que enfrentou protestos no Brasil.
                        Acusado por movimentos sociais de homofobia e intolerância racial e religiosa, Feliciano foi alvo de uma avalanche de críticas ao ser eleito na última quinta-feira presidente de uma comissão que tem como uma das atribuições lidar com demandas de homossexuais, negros e outras minorias.
                        Feliciano já sofre pressão para renunciar ao posto. Há na internet petições de movimentos sociais com mais de 50 mil assinaturas pedindo seu afastamento. "Não estou preocupado. Isso é democracia", disse. "Tenho no meu site uma petição muito maior. São 120 mil e só faz crescer."
                        O presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), afirmou ontem em Natal que a escolha de Feliciano pode ser eventualmente revista se aparecerem "fatos novos".
                        "A Câmara poderá avaliar a situação da comissão, mas respeitando o direito de cada parlamentar e de cada partido", disse Henrique Alves.
                        Segundo Feliciano, "todo pedido de audiência será acatado, qualquer pessoa que nos procurar será ouvida".
                        "Não sou homofóbico, estou sendo mal interpretado. Peço apenas uma chance. Não fiz mal a ninguém e, se alguém acha que fiz, que me perdoe o mal-entendido."
                        O deputado diz não ter "culpa" por assumir a comissão e que foi criada uma "celeuma" em torno da "omissão" de líderes da Casa. "Se há algum culpado, é o PT."
                        As vagas nas comissões são distribuídas pelo tamanho das bancadas. O PT tinha direito a três -e o partido, que antes presidia a de Direitos Humanos, agora preferiu ficar com outras.
                        Ele disse que, ao se informar sobre as matérias que passaram na comissão em 2012, ficou "assustado" com a "apatia" dos deputados.
                        "Quero criar uma agenda mais dinâmica." Ele afirma querer trabalhar por imigrantes presos no exterior que estão em "prisões desumanas", sem ajuda de consulados.

                          Gleisi Hoffmann e Antonio Anastasia no Tendências/Debates

                          folha de são paulo

                          GLEISI HOFFMANN
                          TENDÊNCIAS/DEBATES
                          Brasil: a hora da competitividade
                          Até 2015, a capacidade instalada dos portos organizados brasileiros estará esgotada. É preciso autorizar novos terminais
                          A medida provisória 595, que altera regras de exploração dos portos, não trata de privatização por uma razão simples: a operação do sistema portuário no Brasil já é privada. O objetivo da medida é melhorar a competitividade do setor, levando em conta a necessidade de aumentar o desenvolvimento do país.
                          Não se deve analisar a medida de forma isolada. Na verdade, estamos em meio a uma nova trajetória de transformação, que implica investimentos públicos e privados em gargalos logísticos de rodovias, ferrovias, portos e aeroportos.
                          Nossos produtos podem e devem custar menos. Assim como nossos portos e aeroportos podem e devem ser comparáveis aos melhores do mundo. Para isso, é necessário quebrar reservas de mercado que não se justificam no mercado global.
                          Superar as deficiências da estrutura logística e aumentar nossas exportações são tarefas essenciais para responder às dificuldades do presente e encarar com esperança os desafios do futuro.
                          Exemplo dessa necessidade ocorre com a produção de milho destinada ao mercado externo. No ano passado, exportamos 22 milhões de toneladas do produto. Conseguimos esse ótimo resultado porque os Estados Unidos tiveram dificuldades com a safra e alguns países, principalmente a China, buscaram milho no Brasil, mesmo pagando quase três vezes mais a tonelada movimentada no sistema portuário.
                          Neste ano, a safra dos norte-americanos deverá ser melhor e a grande compra de milho deve acontecer lá, mas estamos dispostos a lutar para reverter a situação. Afinal, a conquista de mercado para nossos produtos é questão de Estado.
                          A demanda por novas fronteiras produtivas se estabelecendo em regiões diferenciadas do Brasil exige que o governo tenha linhas estratégicas de orientação e prioridades. Não podemos deixar de dar suporte para nossa crescente e pujante produção agrícola, nossa produção mineral e industrial.
                          Hoje, a capacidade instalada dos portos organizados brasileiros é de cerca de 370 milhões de toneladas. Até 2015, quando se projeta movimentação de 373 milhões de toneladas, essa capacidade estará completamente esgotada.
                          Santos e Paranaguá já operam acima de suas capacidades, o que explica a demora nas operações de embarque e desembarque.
                          É nesse contexto que a medida provisória 595 faz todo o sentido. A autorização para que novos terminais portuários sejam instalados, feita de acordo com as regras constitucionais e as leis trabalhistas, é uma forma de atender a demanda da produção, provocar competição, reduzir custos e tentar garantir a melhoria nos serviços, em benefício de todos.
                          Para diminuir a burocracia, haverá a implantação da Comissão Nacional das Autoridades nos Portos (Conaportos), que integrará e disciplinará a atuação dos órgãos públicos. E, para maior movimentação com menor tarifa, reduzindo o custo dos operadores, será mudado o critério de outorga para arrendamento dos terminais do porto organizado.
                          Na ampliação da infraestrutura e na modernização da gestão portuária, o governo decidiu investir R$ 6,4 bilhões nos portos públicos nos próximos anos. Serão R$ 2,6 bilhões em acessos terrestres e R$ 3,8 bilhões em dragagens. Haverá mais empregos e todos os direitos dos trabalhadores estão preservados. Sem qualquer alteração na legislação trabalhista em vigor.
                          Os portos contribuíram para nosso desenvolvimento e podem contribuir ainda mais. Em quase 20 anos de vigência da atual Lei dos Portos, os terminais públicos e privados conviveram e ambos cresceram. Aliás, a convivência entre portos organizados e terminais de uso privado, além de normal, é necessária e deve continuar.
                          Ao definir, de forma democrática, os parâmetros de um novo sistema portuário para melhorar a logística por meio da competitividade, quebrando barreiras e reservas de mercado, o governo, além de agir de forma acertada, faz mais que o dever de casa.
                          Na verdade, o governo está fazendo a projeção do futuro e apostando em um novo salto de desenvolvimento, que, seguramente, estará ao alcance dos brasileiros com o apoio do Congresso. Não é por acaso que o Brasil é um dos poucos países do mundo onde a democracia e o pluralismo se realizam todos os dias.



                          ANTONIO ANASTASIA
                          TENDÊNCIAS/DEBATES
                          É preciso restaurar a Federação
                          O atual pacto federativo sufoca os Estados e tem concentrado a arrecadação tributária na esfera federal. Não há como adiar: estamos em risco de colapso
                          A apenas quatro meses de findar o prazo dado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para o Legislativo reexaminar a partilha dos recursos que a União deve destinar à Federação -por meio do Fundo de Participação dos Estados (FPE)-, os 27 governadores estão sendo chamados ao Congresso.
                          A intenção é discutir, nos próximos dias, não só um acordo para o FPE, mas também as bases de um novo -e mais do que urgente- pacto federativo. Além do FPE, estão na pauta, entre outros, o fim da guerra fiscal, que passa pela unificação do ICMS, e a renegociação da dívida dos Estados.
                          Esses pontos já estão detalhados em três Propostas de Emenda à Constituição e quatro projetos de lei complementar entregues ao Senado, em outubro, por uma comissão que buscou soluções para resgatar a autonomia e a saúde financeira dos Estados. O assunto preocupa o próprio governo federal, que encaminhou ao Congresso a medida provisória 599/12, bem como proposta legislativa que altera aspectos relativos à dívida dos Estados.
                          É hora de as bancadas federais se mobilizarem em direção a um novo modelo federativo. Não apenas em decorrência da decisão do STF, que considerou inconstitucional os atuais critérios do FPE, mas devido ao fato de seus Estados natais estarem sufocados pela absoluta atonia da Federação. Não há mais como postergar: estamos em risco de colapso federativo.
                          Vamos começar pelo FPE, composto por percentuais do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).
                          Desde 2009, com a crise internacional, a arrecadação vem caindo e, com isso, os repasses para os Estados. Para tentar manter a economia aquecida, o governo federal isentou vários setores de impostos. Em 2012, as desonerações, com destaque para o IPI, chegaram a R$ 45 bilhões -quase o valor total do FPE de 2011, que somou R$ 48 bilhões. As previsões de renúncia fiscal para 2013 se mantêm nesse patamar.
                          Por outro lado, a União tem preservado a receita das contribuições sociais, que não são divididas com os Estados. Isso impõe um quadro de concentração tributária na esfera federal, delineado há décadas e agravado pela Constituição de 1988.
                          Na prática, com as vinculações de receitas, os Estados são impedidos de aplicar seu Orçamento e de traduzir em políticas públicas peculiaridades e diferenças. A revisão do pacto federativo é fundamental para garantir, via descentralização, a qualidade e a eficiência dos serviços públicos -as quais perseguimos sem trégua há dez anos, ao implantar, em Minas Gerais, o choque de gestão.
                          Hoje, os governos estaduais acumulam aumento de despesa e perda de receita, de autonomia e de competência. E ainda têm com a União uma dívida monstruosa, antiga e interminável, que sufoca a atividade das administrações. Sem recursos, os gestores públicos se engalfinham numa disputa fiscal predatória.
                          É preciso restaurar a Federação e salvar os princípios republicanos que já permitiram aos Estados prover suas próprias despesas, com liberdade de legislação tributária, sem prejuízo da União. O espírito federativo de solidariedade, cooperação e harmonia deve ser o nosso guia nessa dura jornada em que o FPE é apenas o começo.