LITERATURA
Bolañismo selvagem
RESUMO Cultuado sobretudo após sua morte, que em julho completa dez anos, o prolífico escritor chileno deixou inúmeros originais por publicar. Grande mostra de seus arquivos em Barcelona, além de novos livros dele próprio e sobre sua biografia revelam personagem menos boêmio do que o mito que se erigiu à sua volta.CASSIANO ELEK MACHADO
A 22 ESTAÇÕES de trem a partir do centro de Barcelona há uma cidadezinha chamada Blanes. Com prédios baixos, estreitos e beges, e um vento que despenteia todos os dias do ano os cabelos de seus 39.785 habitantes, Blanes passaria despercebida no recreio da escola, se os "pueblos" do litoral catalão fossem ao colégio. Não tem a exuberância da quase vizinha Cadaqués, não é a capital regional das anchovas (como poderia se gabar L'Escala), tampouco reúne a cada ano milhares de pessoas vestidas de Darth Vader, zumbis ou Frankenstein, a exemplo da colega mais ao sul Sitges, sede de um festival de cinema fantástico.
Mas no verão de 1985, um chileno magrelo de vasta cabeleira cacheada se mudou para a cidade. Sua mãe havia aberto uma lojinha de bijuterias, e o ex-lavador de pratos e ex-vigia noturno de camping vinha ajudá-la a vender brincos, pulseiras e colares baratos. O rapaz, não há mistério, era Roberto Bolaño e, usando Blanes como "cockpit", consagrou-se como "o mais admirado e influente escritor de sua geração", nos dizeres da crítica americana Susan Sontag.
As façanhas literárias empreendidas por Bolaño (1953-2003) nos seus anos de Catalunha seriam dignas de uma grande exposição num museu de ponta. Ao menos foi a essa conclusão que chegaram os diretores de um dos principais espaços culturais de Barcelona, o Centre de Cultura Contemporània de Barcelona (CCCB), que inaugurou na semana passada a mostra "Arxiu Bolaño 1977-2003".
A exposição, em cartaz até o último dia de junho, ocupa todo o andar térreo da portentosa sede da instituição, uma antiga maternidade no bairro do Raval, a três quadras do estúdio de 15 metros quadrados onde viveu Bolaño assim que chegou à Espanha, em 1977.
Centenas de pessoas, entre moleques com "dreadlocks", senhores de bengala e óculos fundo de garrafa e um sujeito corpulento e descabelado vestindo um casaco fosforescente de lixeiro (um personagem de Bolaño?), enfrentaram a noite chuvosa e fria de terça para olhar em primeira mão o arquivo do escritor, morto há dez anos. Ganharam "buttons" com os dizeres "Soy Bolañista!" e o acesso a uma espécie de Disneylândia literária.
Estão expostos mais de 400 itens, entre originais de romances, contos e poemas, cadernos, fotos, vídeos, desenhos, livros, jogos de tabuleiro e alguns objetos pessoais, como a máquina de escrever elétrica Olivetti ET Personal 55 na qual batucou parte de sua obra. Poucas peças causam alarido comparável ao produzido pelos três pares dos óculos que qualquer bolañista básico consegue visualizar encaixados no rosto do escritor.
MÉTODO Fetichismos à parte, é o conteúdo dos textos a grande atração. "Esses documentos evidenciam o método de trabalho de Bolaño", afirma a curadora literária da exposição, Valerie Miles, em entrevista num dos cafés prediletos de Bolaño, o Café-Bar Centric, em Barcelona. "Olhando o arquivo fica claro que cada anotação e cada livro é uma peça da grande máquina que é a sua obra."
Norte-americana radicada há duas décadas na Espanha, onde edita a versão local da revista literária "Granta", Miles passou os últimos quatro anos encrustada nos arquivos do escritor, que ficam no apartamento da viúva dele, Carolina López, em Blanes.
Na abertura da mostra, López trazia na ponta da língua a dimensão da papelada produzida pelo ex-cônjuge, a quem conheceu numa rambla de Girona, em 1981 ("Ele veio em minha direção, sem que nos conhecêssemos, e perguntou: "Quer jantar lá em casa?"). "São 14.374 páginas de originais, à mão e à máquina, e o equivalente a mais de 24 mil páginas impressas de computador", contabiliza a mulher alta e enérgica, ladeada pelos dois filhos que teve com o escritor: Alexandra, 11, e Lautaro, 22, estudante de cinema.
Outro cômputo de Carolina eriça o bolañismo. Por ocasião da mostra, ela revelou que é vasto o conjunto de inéditos do escritor: "Há ao menos quatro romances, 26 contos, além de dezenas de poemas e de toda a correspondência".Se a palavra "inédito" provoca pequenos choques quando acoplada ao trabalho de qualquer grande escritor morto, neste caso o espanto é maior, dado o manancial de póstumos de Bolaño. Seu histórico editorial, por isso, merece repasse.
Nascido em Santiago, filho de um caminhoneiro boxeador e de uma professora, Roberto Bolaño Ávalos foi viver no México aos 13 anos e lá publicou, em 1976, seu primeiro livro, o volume de poesia "Reinventar el Amor".
Embora tenha escrito ininterruptamente desde o final da adolescência e tenha publicado em edições regionais quase secretas, ele só viria a estrear numa grande editora em 1996, aos 43, com o romance "La Literatura Nazi en América", lançado pela Seix Barral (e inédito no Brasil). No mesmo ano, publicou seu primeiro livro pela Anagrama, casa editorial espanhola que lançou espantosos 18 livros do autor desde então, sendo um deles, o póstumo "2666", um mamute de 1.126 páginas (na edição brasileira, são 856).
"Ele era um grafômano", afirma o fundador e diretor da Anagrama, Jorge Herralde. "Vivia dentro da literatura e trabalhava, e muito, para ela", diz à Folha na sede da editora em Barcelona, num predinho alaranjado no bairro de Sarrià.
Exemplo do voluntarismo de Bolaño está numa carta enviada a Herralde, e exposta na mostra do CCCB, sobre o grandioso romance "Os Detetives Selvagens" (1998), que compõe com "2666" seus maiores sucessos (na Espanha, "Os Detetives..." vendeu 170 mil exemplares e "2666" outros 120 mil; no Brasil, o mais vendido é "2666", com quase 17 mil cópias).
"Trabalho duro, mas o texto resiste como o coelho da Duracell, e a cada página que elimino saem outras duas. Por exemplo: na segunda parte, que é a mais volumosa (na realidade, a primeira e a terceira parte são o prólogo e o epílogo do romance), há 50 personagens que falam em primeira pessoa e mais de 300 personagens que também falam e falam e a quem acontecem coisas e se apaixonam e morrem", escreve Bolaño.
Para não se perder em meio ao povaréu que criava, o autor fazia listas e mais listas, com nomes e características de cada personagem. Sobre Oscar Amalfitano, protagonista do recém-lançado no Brasil "As Agruras do Verdadeiro Tira" [trad. Eduardo Brandão, 320 págs. R$ 44,50], nono título de Bolaño pela Companhia das Letras, ele rabisca, com caligrafia clara e delicada, o seguinte: "Professor de literatura e ex-membro de grupos de extrema esquerda latino-americanos. Homossexual recentíssimo. 50 anos. Único da universidade que leu Arcimboldi".
O fato de que Amalfitano faça uma participação em "2666", ou que o citado Arcimboldi seja, com a grafia Archimboldi, um dos grandes personagens do mesmo romance, ajuda a ilustrar a maneira como trabalhava o autor, em que as obras sempre se comunicam, como num grande caleidoscópio.
CALEIDOSCÓPIO O termo não é, aliás, nada estranho a Bolaño. Por isso foi adotado no título de um dos três segmentos da exposição, cada um centrado numa das cidades catalãs onde ele viveu, seguindo uma tradição do CCCB de exposições sobre escritores e cidades (Kafka e Praga, Pessoa e Lisboa etc.). "Dentro do Caleidoscópio" é a seção dedicada a Girona, cidade a 99 km de Barcelona onde Bolaño esteve entre 1980 e 1984, quando produziu uma parte do grande farnel de inéditos anunciados por Carolina López.
No underground bolañista, um dos mais comentados inéditos se chama "O Espírito da Ficção Científica". "Eu me senti perdido e feliz no meio daquela escada. A escada em si, que antes não significa nada em especial, se transformou em algo extraordinário: metade serpente, metade desfiladeiro", escreve, num trecho exposto da obra. Os dois cadernos de rascunhos para o livro estão numa vitrine, ao lado de exemplares de obras lidas enquanto o escrevia: de obras de ficção científica de Ursula K. Le Guin a "O Idiota", de Dostoiévski.
"O Espírito da Ficção Científica" é um dos primeiros trabalhos de prosa de Bolaño, que até o fim dos anos 1970 escrevia basicamente poesia. O romance inaugural do autor é uma obra a quatro mãos, forjada com o catalão A. G. Porta, "Conselhos de um Discípulo de Morrison a um Fanático de Joyce".
A dupla faturou com esse romance policial à Bonnie & Clyde um prêmio chamado Âmbito Literário. "Bolaño chamava esses prêmios regionais, que davam algum dinheiro, de 'prêmios Búfalo', à caça dos quais um pele-vermelha tinha de sair, porque deles se sustentava", explica Jorge Herralde.
Presente na abertura da mostra, Porta, 59, diz que por muitos anos perguntaram ao chileno como eles haviam "caçado esse búfalo" a quatro mãos. "Ele era extremamente bem-humorado, e cada vez respondia uma coisa diferente."
E qual a verdadeira? "A menos divertida de todas. Eu tinha um esboço do romance. Enviei a ele para pedir a sua opinião. Ele sugeriu tantas coisas que acabamos assinando juntos", relembra Porta. "Bolaño queria escrever outras obras a quatro mãos, e cheguei a começar com ele 'La Literatura Nazi en América'. Mas era impossível acompanhar seu ritmo", diz. "Ele então já vivia em Blanes, dormia no chão da loja de bijuterias da mãe e escrevia sem parar."
Na época, o escritor gostava de distribuir um cartão de visitas que dizia "Roberto Bolaño - Poeta e Preguiçoso". Quanto ao preguiçoso, não há muita controvérsia, mas nos meios literários de Barcelona há um longo e inconclusivo debate sobre qual era a essência dele como escritor: prosador ou poeta.
Porta, cúmplice da primeira prosa, não pestaneja: "Bolaño era totalmente um poeta". Valerie Miles, curadora da exposição com o argentino Juan Insua, defende o caráter anfíbio do escritor. Ela diz ter encontrado no arquivo incontáveis exemplos de textos que estavam em poesia e ele transformaria em prosa, e vice-versa. "Sua mecânica era a da multiplicidade. Reescrevia, quebrava o texto em partes, colocava uma narrativa dentro de outra, a poesia em prosa, e a prosa, em poesia", afirma.
Miles, que só esteve com Bolaño uma vez, diz que, das anotações do escritor, emerge um personagem muito diferente daquele que imaginava e enumera uma lista de "surpresas". "Nos seus escritos mais pessoais, ele se revela um homem metódico, caseiro e familiar. Um sujeito que anotava por todos lados a frase 'sou incrivelmente feliz'. Isso tudo destoa da figura do maldito boêmio que projetam."
MORTE Um dos mitos mais difíceis de tourear é o de que a enorme produção dos últimos anos do escritor esteja diretamente ligada ao fato de que ele sabia que a morte estava próxima. No pequeno escritório sem telefone, no segundo andar de um prédio magricela, num trecho sem saída da Carrer del Lloro, talvez a rua mais estreita de toda Blanes, de fato Bolaño escreveu em alguns anos mais que a maioria dos autores numa vida inteira. E essa entrega selvagem à literatura se intensificou depois do diagnóstico da doença congênita no fígado que viria a matá-lo.
Mas alguns de seus interlocutores mais frequentes dos últimos anos, como Herralde, dizem que foram pegos de surpresa pelo telefonema recebido do Hospital Vall d'Hebron, na madrugada de 15 de julho de 2003. "Todos sabiam da gravidade da doença, mas duvido que alguém imaginasse que ele fosse partir naquele momento."
Mais do que opiniões e memórias, no caso de Bolaño o melhor é recorrer à literatura. Na abertura de "Enrique Martín", conto do livro "Chamadas Telefônicas" (1997) dedicado ao amigo escritor Enrique Vila-Matas (e que parece um texto do próprio Vila-Matas), Bolaño escreve o seguinte:
"Um poeta pode suportar tudo. O que equivale a dizer que um homem pode suportar tudo. Mas não é verdade: são poucas as coisas que um homem pode suportar. Suportar mesmo. Um poeta, em compensação, pode suportar tudo. Com essa convicção crescemos. O primeiro enunciado é correto, mas conduz à ruína, à loucura, à morte".
Usando Blanes como "cockpit", Bolaño consagrou-se como "o mais admirado e influente escritor de sua geração", nos dizeres da crítica americana Susan Sontag
Se a palavra "inédito" provoca pequenos choques quando acoplada ao trabalho de qualquer grande escritor morto, neste caso o espanto é maior, dado o manancial de póstumos de Bolaño
"Trabalho duro, mas o texto resiste como o coelho da Duracell, e a cada página que elimino saem outras duas", escreve Bolaño sobre "Os Detetives Selvagens"
A. G. Porta, cúmplice da primeira prosa, não pestaneja: "Bolaño era totalmente um poeta". Valerie Miles, curadora da exposição com o argentino Juan Insua, defende o caráter anfíbio do escritor
Efeméride traz onda biográfica
JOCA REINERS TERRONEM SUA ÚLTIMA entrevista, concedida à jornalista argentina Mónica Maristain e publicada pela "Playboy" mexicana no mesmo julho de 2003 em que morreria, Roberto Bolaño brincou com a ideia da posteridade: questionado acerca do que a palavra "póstumo" lhe despertava, afirmou que soava a "nome de gladiador romano". "Um gladiador invicto."
Adiantando-se à efeméride dos dez anos da morte do escritor, Maristain publicou no final de 2012, no México, "El Hijo de Míster Playa - Una Semblanza de Roberto Bolaño" (O filho de Mister Playa - Um perfil de Roberto Bolaño). Foi a primeira biografia dedicada ao chileno; uma leva está a caminho.
Diz-se que a herdeira dos direitos de Bolaño, sua viúva, Carolina López, prepara a sua por sugestão do agente literário Andrew Wylie; Ignacio Echevarría, "testamenteiro" do escritor (responsável pela edição de "2666"), redige perfil encomendado pela editora da universidade chilena Diego Portales, que publicou as entrevistas selecionadas por Andrés Braithwaite em "Bolaño por Sí Mismo".
Esses documentos têm sido antecedidos por livros concebidos em vida pelo autor -tais como "El Gaucho Insufrible" ou os poemas reunidos em "La Universidad Desconocida"- e por fundos de gaveta -como "O Terceiro Reich" e "As Agruras do Verdadeiro Tira".
Entre uma e outra obra, a posteridade de Bolaño vem se assemelhando perigosamente à segunda parte de seu romance "Os Detetives Selvagens", na qual personagens depõem sobre as múltiplas facetas de Arturo Belano -alter ego do autor- e Ulises Lima, sem nunca completar um retrato.
Nesse aspecto, a biografia inaugural é assombrada pela ausência de Carolina López, que se recusou a contribuir com Mónica Maristain. Questionada sobre se esse silêncio diminuía a importância de suas 362 páginas, a autora respondeu com três letras: "Não".
O relato afetuoso e parcial da jornalista expõe a separação de Bolaño e Carolina e revela a namorada catalã do escritor, Carmen Pérez de Vega, que o acompanhou na última noite. O depoimento de Carmen (vazio certeiro do perfil a ser publicado pela viúva) é o trunfo de "El Hijo de Míster Playa".
Construído sobre longas entrevistas, o livro retrata as horas derradeiras de Bolaño sem pudor, o que causou desagrados: "De cara, gerou a indiferença da viúva, empenhada em apagar de sua vida sua última mulher", diz Maristain. Mas não só: "Também tive problemas com Carmen, que esperava que atenuasse as partes mais duras". Essas partes, se são duríssimas, comovem pela valentia de Bolaño, que, em meio à crise hepática, só queria imprimir o original de "El Gaucho Insufrible" para levá-lo à editora. E assim o fez.
Bolaño subsiste como polemista ácido, amante sedutor, amigo cômico e escritor apaixonado pela leitura. Se Mónica Maristain pudesse lhe fazer mais uma pergunta, qual seria? "Perguntaria se gosta da literatura de Jonathan Franzen". Impossível saber, mas feliz do americano -exímio observador de pássaros- que pode apreciar a ave rara que é Roberto Bolaño.