Autor de livros sobre Olga e Chatô, o escritor fala sobre a polêmica das biografias
Ana Clara Brant
Estado de Minas: 20/10/2013
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O assunto do momento na área de cultura são,
sem dúvida, as biografias. A discussão, que já estava na ordem do dia
há algum tempo, inflamou-se nos últimos dias, a partir da criação do
Procure Saber, formado por artistas como Roberto Carlos, Caetano Veloso,
Milton Nascimento e Chico Buarque. O grupo, liderado pela empresária
Paula Lavigne, defende a manutenção dos artigos 20 e 21 do Código Civil,
que proíbem a divulgação de informações pessoais de qualquer cidadão em
casos que "atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se
destinarem a fins comerciais”. Resumindo, querem a autorização prévia do
biografado para que as publicações cheguem às lojas.
Referência
em biografias no Brasil, o jornalista e escritor mineiro Fernando
Morais, de 67 anos, revela que ficou surpreso com o posicionamento de
gente como Chico Buarque e Milton Nascimento. “O Chico mesmo é um cara
atilado para as coisas políticas, o Milton também, são pessoas que
conheço. Não esperava isso deles. O Djavan escreveu um artigo afirmando
que os biógrafos estavam acumulando fortunas, enquanto o biografado não
recebe nenhum tostão. Queria que ele apontasse um biógrafo que se
encaixa nesse perfil. Vou mandar a conta do açougue para o Djavan”, afirma.
Casado
com uma historiadora e autor de 10 livros, sendo quatro biografias –
Olga, que narra a trajetória de Olga Benário, recrutada pelo governo
soviético para dar proteção ao líder comunista brasileiro Luís Carlos
Prestes, com quem viveria um romance; Chatô, o rei do Brasil, biografia
de Assis Chateaubriand; Montenegro, as aventuras do marechal que fez uma
revolução nos céus do Brasil; e O mago, biografia de Paulo Coelho –,
Morais assegura que nunca teve problema nenhum com seus biografados. “O
problema que tive foi com o deputado Ronaldo Caiado, que foi citado em
um dos meus livros, mas com relação aos outros, e olhe que contei a
história de gente polêmica como Assis Chateaubriand, que tem filho,
neto, bisneto. A família dele, inclusive, me ajudou muito a escrever”,
revela. Em entrevista ao Estado de Minas, o jornalista e escritor falar
sobre a polêmica ‘‘lei das biografias’’ e de seus projetos atuais, como
um livro sobre o ex-presidente Lula.
Não tem como não falar desse embate envolvendo as biografias. Qual é a sua posição sobre o tema?
Nossa
briga é pelo direito da população a conhecer a própria história. Vamos
supor que eu queira falar sobre o Getúlio. A história dele pertence à
família Vargas ou ao Brasil? Vou ter que consultar netos, bisnetos,
etc.? Essa polêmica toda não atinge só quem escreve biografia, mas todo
mundo que escreve não ficção no país.
E você tem discutido isso com seus colegas, tem se mobilizado nesse sentido?
A
gente fala sim, e espero que quando a ministra Cármen Lúcia convocar a
audiência pública para discutir o assunto, haja mobilização dos autores
para fazer política no melhor sentido da palavra. Não preciso de ninguém
para defender meus interesses. Até porque o interesse não é só meu. Não
preciso disso. Vivo há 40 anos da venda dos meus livros num país que
não lê livros. Nunca usei um tostão de incentivo fiscal, de ajuda, de
Lei Rouanet. Até poderia, porque fazer um livro como Chatô..., que
demanda muito trabalho, é caro. Mas não usei. Se essa história
progredir, será um atraso. Tenho esperanças de que não progrida.
Você chegou a ter problemas com um dos seu livros, mas não com as biografias.
Sim.
Tenho um processo do deputado Ronaldo Caiado. Fui condenado em Goiás,
em várias instâncias. Consegui reduzir a indenização e, agora, meus
advogados estão esperando para recorrer. Enquanto puder ir a uma
instância superior, a gente vai. (A Justiça condenou a Editora Planeta,
Fernando Morais e o publicitário Gabriel Zellmeister, da agência
W/Brasil, a indenizar o deputado federal Ronaldo Caiado em R$ 2,5
milhões. No livro Na toca dos leões, sobre a história da W/Brasil,
Morais diz que o deputado teria sugerido aos diretores da agência,
durante a campanha de 1989, que poderia esterilizar as nordestinas por
meio de uma substância química na água).
Como anda o produção do livro sobre o Lula?
Queria
terminar o trabalho de campo em setembro, não consegui. Ainda tenho
muitas entrevistas para fazer e alguns arquivos para mexer. Tem um
pacote de fitas que o frei Betto me deu de inéditas do Lula, que ainda
tenho que mandar digitalizar. Aparece muita coisa nova a todo momento,
muitas contribuições. Sai uma notícia no jornal de que estou fazendo um
livro sobre tal pessoa e aí muita gente entra em contato. ‘‘Ah, eu fiz
segurança pro Lula quando ele era sindicalista ou ele era candidato’’. E
eu vou atrás de tudo. Se o cara disser que está em Manaus e que tem um
depoimento pra dar, eu vou. Tem que ver o que é.
Mas não chega a ser uma biografia dele?
Não.
É um período da vida do Lula; uma fatia. Que vai da cadeia, em 19 de
abril de 1980, ao fim da presidência. Acho que conto com duas vantagens
com relação aos demais candidatos a esse trabalho. Primeiro, pelo fato
de não ser do PT, não tenho ligação de nenhuma natureza com o partido.
Segundo é que conheci Lula em 1979, e convivi muito com ele até a
presidência. O Itamar Franco dizia uma coisa bem curiosa: que as pessoas
são divididas entre as que são e as que não são percevejos do palácio. E
sou um antipercevejo do palácio. Então, Lula virou presidente e perdi o
contato.
E como começa a história desse livro?
Começa
na noite em que o sindicato de São Bernardo foi invadido. Estávamos na
cidade (eu, que era deputado pelo MDB, Fernando Henrique Cardoso, que na
época era suplente de senador, e um deputado do PT, o Geraldinho
Siqueira). Eu estava sempre lá, porque tinha muita repressão e tudo.
Naquela noite, FHC apareceu e fomos comer frango com polenta num
restaurante. Na hora que terminou o jantar, Lula intuiu que o governo ia
fazer alguma coisa contra o sindicato nas próximas horas. FHC
discordou, achava que Figueiredo não estava com muita força. Depois do
jantar, eu e Geraldinho Siqueira fomos para o sindicato. Começamos a
jogar baralho e à 1h30 da manhã olhamos pela janela. A sala do Lula
ficava no último andar do prédio. Ouvimos um barulho estranho e a Tropa
de Choque já tinha cercado o sindicato. O interventor (Romeu Tuma)
estava subindo com uma ordem para o Lula deixar a diretoria. Olhe a
ironia do destino. Ele tinha me prendido uns anos antes, numa das minhas
voltas de Cuba, se tornou meu carcereiro. Anos depois, permitiu que eu
levasse frutas escondido para os presos, tanto o Lula quanto os outros
diretores do sindicato.
E por que esse interesse em contar a história do presidente do Lula?
Estou
cercando o Lula desde 2002, ele nunca topou. Em julho de 2011, eu
estava passando férias na França e ele me ligou. Começamos a conversar e
ele finalmente quis fazer. Muita gente acha que ele tomou essa decisão
depois que descobriu o câncer. Mas ele decidiu antes. A doença só foi
diagnosticada em outubro... A doença atrasou muito o livro. Mesmo depois
de ele descobrir, gravamos. Tenho fotos com ele já sem barba, sem
cabelo. Enquanto estava sendo submetido à quimioterapia, conseguimos
fazer. Mas quando começou a radioterapia, não deu mais. Afetou muito a
voz dele. Ficamos de dezembro de 2011 a julho de 2012 sem trabalhar.
Então, fui entrevistar outras pessoas. Só voltamos quando o médico
liberou. Mas ainda tem muita coisa a fazer.
Você se considera amigo do Lula?
Não.
Não frequento a intimidade dele. Ele foi à minha casa umas quatro
vezes. Uma para comer uma canjiquinha que o frei Betto cozinhou. Noutra,
eles precisavam de uma casa que não fosse visada pela imprensa para uma
conspiração dele, do Brizola, da Martha Suplicy e o do Quércia. Uma
tentativa de fazer a aliança PMDB/PT/PDT para a eleição presidencial de
1998. O mais engraçado é que a casa do FHC era do outro lado da rua. Eu
brincava que se ele subisse num caixote e olhasse para a minha casa, ia
saber que estávamos conspirando contra ele (risos). Então, essa pequena
convivência com o Lula, pra mim, muito rica, porque é de primeira mão.
Não estou entrevistando ninguém para saber dessas histórias. São coisas
que vi e vivi, que testemunhei. Isso acaba contribuindo para que eu faça
o livro com certa vantagem sobre outras pessoas. Tem boa parte da
história de que eu mesmo participei.
O projeto do livro do José Dirceu foi interrompido. Você vai retomá-lo?
Não
sei. Até porque estou me inclinando cada vez mais a pendurar as
chuteiras. Já estou meio de saco cheio de escrever livro. É muito
cansativo. Mesmo para a pessoa que tem a sorte de vender muito, como eu,
não compensa. Tenho 67 anos e não tenho nada. Nem a casa onde moro; a
metade é da minha mulher. Se ficar três meses sem trabalhar, não tenho
como pagar o supermercado, o condomínio. É um trabalho infernal. Já
escrever, nem tanto, eu gosto. É trabalho de campo, porque sou
minucioso, detalhista, do tempo em que a arte do jornalismo era a arte
de sujar o sapato. Esse negócio de fazer entrevista pelo telefone, pela
internet, não dá. Vou entrevistar você e quero saber se você é careca,
gordo, se tem dentes, se está com um sapato furado. Você pode até dizer
que isso não tem a menor importância para a história. Mas tem para o
leitor. Contar para as pessoas que estou fumando um charuto e tomando
uma cachaça não vai mudar nada do que vou dizer. Mas é mais saboroso.
Você dá um presentinho a mais ao leitor. E acho que o leitor tem que ser
bem tratado sempre.
Mesmo falando em pendurar as chuteiras, quais as histórias você ainda gostaria de escrever?
Nossa,
um monte. A história da luta armada no Brasil, a do Partido Comunista
Brasileiro. Tem personagens interessantes. E tem muita coisa que
gostaria de ter feito e não consegui por estar metido em outros
projetos. Por exemplo, ia fazer a história de Salvatore Cacciola. Alguém
fez uma ponte entre nós. Cacciola ia dar a versão dele, dando nome aos
bois. Fui para Roma, jantamos, a história parecia saborosa
jornalisticamente. Mas eu precisava de prazo. Ele queria pra já. Como eu
estava envolvido com outro livro, a editora já estava esperando, não
foi pra frente.
Apesar de ter escrito tantos livros de
reportagens, você se destacou mesmo pelas biografias. Por que esse
interesse do leitor pelo gênero?
Tem uma série de
ingredientes. Primeiro, há enorme curiosidade das pessoas, mesmo as mais
velhas, porque houve o período da ditadura em que não se podia falar de
nada. E os mais jovens também têm interesse pela história recente do
Brasil, e por outras histórias. Em segundo lugar, acho que tem uma
preocupação com o texto. O escritor tem que ter essa preocupação com um
texto elegante, saboroso, com minúcia. No Olga, por exemplo, conto,
respeitosamente, que o Prestes era virgem aos 37 anos, e foi para a cama
com a Olga pela primeira vez, e ela já tinha vasta experiência com
homens. Foi o próprio Luiz Carlos Prestes que me contou isso. Não foi
uma coisa que descobri. Usei isso respeitosamente, para não transformar
numa bisbilhotice.
Você nunca escreveu nada ficcional. Tem vontade?
Nem
pensar, com uma realidade tão boa igual a esta. Nunca escrevi um
parágrafo ficcional. Não tenho vontade. Fiz uma experiência de roteiro
semificcional para uma minissérie da TV Globo chamada Sociedade secreta,
sobre a Revolução de 1930, em São Paulo. E teve a série Cinco dias que
abalaram o Brasil, no GNT, sobre o Getúlio Vargas. Mas ali tudo eram
fatos. A parte de ficção, que eram os jornalistas narrando a história,
era só uma fachada.
O que você acha das adaptações dos seus livros para o cinema?
Teve
o Olga, do Jayme Monjardim, e Corações sujos, do Vicente Amorim. Gosto
dos dois. São duas adaptações completamente diferentes. O Jayme fez uma
escolha, foi fazer um filme popular e acertou, porque deu 5 milhões de
espectadores. Os chamados intelectuais não gostam, mas eu gosto. Até
porque foi um filme que popularizou uma história que era privilégio de
meia dúzia de pessoas. O Corações sujos já é um filme mais cabeça. Mas
ambos me agradam.