terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A voz da geração Y - Sandro Vaia

Revista Piauí












O passado e o cotidiano de Yoani Sánchez, blogueira cubana que é considerada pela Time uma das 100 pessoas mais influentes do mundo

por Sandro Vaia

Yoani Sánchez planta manjericão, coentro e alecrim em pequenos vasos, no terracinho de seu apartamento
 no 14º andar de um prédio modesto na rua Factor, em Havana, onde vive com o marido Reinaldo e o filho Teo. É seu único capricho de dona-de-casa. Para chegar ao apartamento de 60 metros quadrados, que fica no
 último andar do prédio, aperta-se o botão número 12 de um velho, cansado e apertado elevador
soviético. Marca-se o 12, o elevador inexplicavelmente pára no 13, sobe-se um lance de escada, e chega-se ao apartamento de Yoani.

Ali, frágil e miúda, a filóloga cubana de 32 anos, com o cabelo preso displicentemente em rabo-de-cavalo, mostra com uma ponta de auto-ironia o "cantinho do ego", onde estão documentados, discretamente, os motivos de sua inesperada fama mundial: o xerox da página da revista
Time que a mostra como uma das
100 personalidades mais influentes do mundo, e a reprodução do prêmio Ortega y Gasset de jornalismo
digital que lhe foi concedido pela Prisa, casa editorial espanhola que é dona, entre outros
empreendimentos, do jornal El País.

Em pouco mais de um ano, seu blog, Generación Y, virou um fenômeno. Com 170 posts, ele granjeou 170

mil comentários de leitores espalhados pelo mundo. Há casos de um único post ter recebido mais de 6 mil comentários. Foi barulho o bastante para irritar o semi-aposentado Fidel Castro, que chamou o Ortega y
Gasset de "um dos tantos prêmios que o imperialismo concede para os que levam água para seu moinho" e acusou a editora espanhola de "neocolonial".

No prédio da rua Factor, que precisaria de uma demão de tinta e vidraças novas no saguão de entrada,

do tempo de Brejnev sobraram dois elevadores, mas um precisou ser canibalizado para que o outro continuasse funcionando.

(Notícia nova no Generación Y: chegaram dois elevadores novos. Eles terminariam os vinte anos de

remendos e a prática forçada do esporte de subir e descer 232 degraus todo dia, às vezes com uma
bicicleta nas costas. Os novos elevadores não levam a carga depreciativa da pesada e obsoleta tecnologia soviética. São simplesmente russos.)

O seu marido Reinaldo, de 61 anos, que é jornalista, mas foi expurgado da profissão em 1988 quando trabalhava no
Juventud Rebelde (seus artigos "não se ajustavam à linha editorial do jornal"), virou mecânico de elevadores, e assim ganhou a vida durante muitos anos.

Reinaldo também dá aulas de espanhol e ganha algum dinheiro como guia cultural em Havana. Sua especialidade é o Museu da Revolução, do qual conhece todas as minúcias e onde consegue mostrar, com opulência de datas e detalhes, todas as retificações, modificações e expurgos que foram feitos ao longo

do tempo. Ele é capaz de mostrar de onde, exatamente, foram retiradas as fotos que mostravam visitas de Fidel Castro à União Soviética. Depois de Gorbachev, a União Soviética perdeu seu nome, abandonou o
comunismo e perdeu o seu destaque no Museu da Revolução. Outra foto desaparecida do museu é uma
na qual Fidel Castro aparecia mostrando o passaporte falso com o qual Che Guevara pôde entrar na
Bolívia para a aventura guerrilheira que acabou em sua morte. Não ficava bem a pose de um chefe de
Estado exibindo e vangloriando-se de um passaporte falso.

Reinaldo festejou a vitória dos revolucionários contra os invasores da praia Girón, na baía dos Porcos,

quando cubanos exilados tentaram retomar o poder, com o apoio do governo americano, em 1961, e
foram derrotados em dois dias. Nessa época, Reinaldo estava nas montanhas, ajudando a alfabetizar camponeses. "Tenho lembranças muito intensas dessa epopéia da praia Girón, apesar de estar longe do cenário, porque a mobilização era nacional, com todas as pessoas vestidas de milicianos na rua", disse-me ele. "Havia um fervor patriótico: estávamos sendo agredidos pelo inimigo. Minha família era absolutamente revolucionária." Em 1962, Reinaldo só ficou sabendo da crise dos mísseis depois que ela terminou. Estava
 nas montanhas de Sierra Maestra, como voluntário na colheita de café.

Em Cuba, circulam hoje, paralelamente, duas moedas: o peso cubano, com o qual são pagos os salários,

e que serve para as despesas básicas do dia-a-dia, e o Cuc (abreviação de Cuban coin, moeda cubana),
 que vale mais que o dólar - um Cuc compra 80 centavos de dólar. Com o peso conversível, é possível compr
ar roupa, celulares, eletrodomésticos, comida não racionada, material de construção, móveis, e até se
hospedar em hotéis ou apenas navegar pela internet nas lan houses. Só têm acesso aos pesos conversíveis quem recebe remessas de parentes que moram no exterior (segundo avaliações de diplomatas
estrangeiros, entra em Cuba cerca de 1 milhão de dólares por dia dessa forma), médicos que participam
das missões humanitárias fora do país, funcionários de empresas do governo que desviam produtos para vender no mercado negro, ou empregados na indústria do turismo, que recebem gorjeta e também
 vendem em Cuc mercadorias desviadas.

Para Yoani e Reinaldo, ter a própria casa é uma carta de alforria. Não ter que depender do Estado para

 morar, não ter que dividir a casa com outras pessoas é uma bênção. Em Havana, como o déficit habitacional é de cerca de 1 milhão de residências, a convivência obrigatória entre gerações diferentes é um dos maiores motivos de desavenças domésticas. Morar obrigatoriamente com os pais, ou com os sogros, ou dividir
espaço com pessoas de outras famílias é um foco perene de conflitos.

Yoani é neta de imigrantes espanhóis que chegaram a Cuba na década de 20. Sua avó materna veio das Astúrias e o avô materno, das Ilhas Canárias. Eles não mantêm nenhum contato com o que restou da

família na Espanha. Chegaram com o sonho e a ilusão da maioria dos imigrantes: melhorar de vida, juntar
um pouco de dinheiro e retornar para a terra de origem. Mas quem volta? Em Cuba, dizem que quem
conhece a ilha fica "encantado" e não sai mais.

A blogueira diz que herdou dos avós a "pele branca e certa teimosia peninsular". E conta que seus pais

se conheceram ainda bem jovens. "Casaram, e mamãe teve seu primeiro filho - minha irmã mais velha -
com 16 anos", Yoani disse. "Minha irmã nasceu quando mamãe tinha 16 e papai, 19. Minha relação com
os meus pais sempre foi um pouco como a de irmãos. Eles eram crianças quando a revolução triunfou,
e depois da adolescência se envolveram na construção de uma nova sociedade."

Seu pai e sua mãe foram militantes da Juventude Comunista e depois do PC. Pediram afastamento do

partido, ela conta, "por frustração, desencanto, apatia". Yoani não acredita que seus pais fossem pessoas
de convicções políticas. Estavam centrados em sua própria sobrevivência e vinham de uma tradição muito humilde. O pai começou construindo linhas férreas e terminou como maquinista de trem.

A mãe dedicou toda a vida a trabalhar num escritório de empresa de táxi. Eles acompanham à distância as atividades da filha, sabem que ela ganhou um prêmio, não sabem direito o que é um blog, e ela procura mantê-los afastados do olho do furacão.


Yoani nasceu em 1975, em Centro Havana, que ela descreve como "uma zona um tanto marginal, muito

 popular e com bastante violência". É um bairro de vielas escuras e prédios degradados, transformados
em habitações coletivas, que por falta de pedigree histórico ninguém pensa em restaurar. Ela viveu ali
com os pais, com a avó, que morreu poucos anos depois de seu nascimento, e com a irmã. "Fiz a escola primária e secundária nessa mesma zona", contou. "Meu pai, apesar do baixo nível de estudo que tinha, sempre leu muito. Minha irmã e eu também tomamos gosto pela leitura. Líamos coisas que nem eram adequadas
à nossa idade. Com 10, 11 anos, li Victor Hugo, Dostoievski, Balzac, Emile Zola."

Ela concluiu a educação básica e entrou em um curso pré-universitário, no qual os jovens deviam ficar no campo. Era um conceito excelente, segundo Yoani, "mas, na prática, esses lugares se transformam em zonas de confinamento de adolescentes com muitos hormônios em ebulição e com pouco controle dos professores".


O exílio no campo foi um período de crise e de dor. Ele coincidiu com o momento mais crítico de Cuba - o da desintegração da União Soviética, entre 1990 e 1992. Com o fim dos subsídios, Cuba caiu em uma crise econômica abissal. Os cortes de energia eram freqüentes (tanto que os períodos em que havia luz eram chamados de "clarões"), havia colapso nos transportes, as pessoas andavam de bicicleta e a falta de

alimentos provocava uma doença de subnutrição chamada polineurite. Isso a encontrou em plena
adolescência, nesse momento em que o jovem está começando a passear e querer andar na moda, exibir
 o que tem; esse período a encontrou sem nada, sua família tinha caído numa penúria total, o pai tinha
perdido o emprego porque as locomotivas soviéticas paravam por falta de peças de reposição.

Doente, abatida e com a família em crise, Yoani abandonou o pré-universitário do campo e conseguiu autorização para freqüentar o último ano do curso em Havana. Teimosa como uma peninsular, decidiu que seria a universitária da família. Queria ser jornalista, e se preparou para os exames de admissão na

Universidade de Cuba. Tinha aulas particulares de reforço e uma professora de espanhol vaticinou: "Você
 não será jornalista, será filóloga."

Para Yoani, a profecia "pesou como uma maldição, e me aborrecia muito: eu queria ser jornalista". Na

prova de admissão, foi mal em matemática e não conseguiu a vaga. Foi parar no Instituto Pedagógico de Espanhol e Literatura, uma espécie de braço menor da universidade, onde iam parar todos os alunos que
 não conseguiam vaga em cursos mais disputados.

Embora frustrada, cursou os dois primeiros anos de pedagogia, para ser professora de espanhol e

literatura, sabendo que poderia adquirir qualificações para transferir-se para um curso melhor. Foi o que aconteceu. Mas aí não queria mais ser jornalista. "Havia compreendido o que era ser jornalista em Cuba,
um lugar onde não há liberdade de imprensa e onde um jornalista se dedica a repetir como um papagaio o que dizem as autoridades", contou. "Dei-me conta que queria ser filóloga, que havia nascido para ser filóloga, embora nem soubesse como se chamava a minha profissão."

Ela entrou na Faculdade de Filologia e conheceu Reinaldo (ele tinha 46 anos e ela, 17). Resolveu sair de

casa para aprender como era a vida longe do afeto autoritário dos pais. "Reinaldo me abriu todo um
mundo de amigos, de intelectuais, de literatura", disse. Em 1988, ele foi obrigado a abandonar o
jornalismo, trabalhou dois anos como mecânico de elevadores, depois numa biblioteca, até que, com a
crise econômica, ficou desempregado. Sobreviviam vendendo café, açúcar e arroz no mercado paralelo.

"Não tínhamos roupas, não comíamos praticamente nada, mas fazíamos o que queríamos", ela contou.

"Temos orgulho de que nesta casa, nesses anos de 1993 e 1994, nasceu uma nova geração de trovadores. Reuníamo-nos aqui para cantar, compor canções, formamos uma roda de amigos de onde saíram vozes
que hoje são a novíssima trova cubana."

Teo, o filho deles, nasceu em 1995 "sem pedir permissão", como diz Yoani, e encontrou uma mãe que, em

 vinte dias, teria que começar a sua especialização em filologia e dividir-se entre ele, o latim, a fonética, a fonologia, a semântica, a lingüística e a literatura.

A rotina da vida de Yoani e Reinaldo é, segundo ela, "uma anti-rotina"; nunca um dia é igual ao outro.

Levantam às seis da manhã, porque Teo tem que estar na escola às sete e meia. Tomam um café da
manhã frugal, com a cota de pão racionado, bolacha (quando há), suco e um pouco de leite. A blogueira raramente almoça, mas leva comida para Teo na escola porque os alunos do curso secundário não ganham merenda, só um pão, o que é pouco para uma criança em fase de crescimento. De tarde, organizam as
 aulas de espanhol para turistas alemães. No verão, os alemães não vão a Cuba porque faz muito calor.

Quando não há alunos, Reinaldo e Yoani ficam em casa. É o que eles chamam de "estratégia do baixo consumo". Ficar muito tempo na rua significa ter que tomar uma água, um refresco, usar o transporte

 coletivo. Nos meses de verão, eles hibernam em casa. Se há estudantes, vão para a rua, andam pela
 cidade, fazem programas culturais e as seis ou às sete horas estão em casa. Encontram Teo, que estuda
ou brinca com as crianças do prédio, e preparam o jantar.

Os estudantes e turistas que procuram Yoani e Reinaldo têm as demandas mais variadas. A única


semelhança entre eles é o desinteresse pelo circuito convencional de turismo. Pode ser um alemão que

está terminando uma tese sobre a economia cubana, ou uma suíça querendo aprender salsa. Não que eles
ensinem ("somos péssimos dançarinos", ela diz), mas sabem a que baile levá-los, a que dançarinos
encaminhá-los. O preço de cada atividade é estabelecido de acordo com o freguês. Se for um estudante
de mochila, uma tarde de atividade pode custar dois pesos conversíveis. Se for um turista-padrão, são
cinco pesos por uma tarde.

"Não dá para ficar rico porque com cinco pesos compramos uma garrafa de azeite e meio quilo de frango", ela contou. "Mas não é possível pedir mais, porque não somos profissionais, não temos uma infra-estrutura

e, se cobrarmos mais alto, muitos não podem pagar. Tem gente que, além do dinheiro, nos dá um
presente, uma calça, um par de sapatos. Muitas vezes, ganho roupas que não me servem, mas eu não me importo, não sou muito exigente em termos de moda."

Nos últimos dois anos, esse tipo de turismo decaiu bastante. Depois que o governo decidiu valorizar o

peso conversível (da paridade com o dólar, um peso passou a valer 80 centavos de dólar), Cuba se tornou um destino caro. Os europeus preferem passar as férias na República Dominicana, que é mais barata e tem o mesmo appeal caribenho.

Nas épocas em que não aparece nenhum estudante, eles hibernam, ficam em casa, ou então vão ao

cinema ou ao teatro, que têm preços subsidiados. Automóvel, nem pensar. Em Cuba não se vendem
automóveis a particulares, só a estrangeiros residentes ou a uma pessoa que tem carta de autorização do governo. Quem consegue essa carta? Esportistas que ganharam medalhas olímpicas, músicos que fazem concertos pelo mundo e precisam de moeda conversível, cientistas de dimensão internacional, gente muito selecionada.

Ao cidadão médio, mesmo que tenha dinheiro mandado por parentes que vivem no exterior, resta a

liberdade de comprar um carro cinqüentenário. A propriedade de carros fabricados até 1959 pode ser transferida. A Yoani não interessa ter um carro. Comprar uma sucata de 1959 significa passar os fins de semana consertando a velharia, atividade que transformou os cubanos nos "melhores mecânicos do mundo", como eles dizem. Os automóveis pré-anos 60 que ainda se vêem na rua, funcionando normalmente, são verdadeiros milagres da alquimia mecânica. Muitos mantêm o desenho original por fora, e são inteiramente
reconstruídos por dentro. Sites de aficionados por modelos antigos avaliam em 50 mil o número de
automóveis americanos fabricados antes de 1959 circulando em Cuba. Grande parte deles é usada como
 táxis não-autorizados.

Guillermo Olmos, taxista clandestino, guia um incrível Ford inglês azul de 1952, com o qual transporta passageiros de boa vontade que ele consegue recrutar na porta da nova Galeria de los Paseos, centro comercial de umas quinze lojas, que para os cubanos passa por um templo de consumo.


Olmos era professor de educação física de uma universidade, mas, depois que tentou deixar o país numa

balsa e não conseguiu, teve que cavar sua sobrevivência dirigindo o velho e milagroso Ford. Diz que odeia
 essa nova profissão, mas filosofa, resignado: "Si no se mueve el culo, no se come pescado" (quem não mexer a bunda não come peixe).

Escaldada na penúria generalizada, Yoani encara a crise financeira mundial com um misto de tranqüilidade

 e ceticismo. "Para uma pessoa especializada em crises como eu, não há nenhuma novidade", ela disse, no
 fim de novembro. "Em Cuba, estamos em crise há vinte anos."

Ela diz que o sentido do Natal se perdeu em Cuba há muito tempo, quando o governo trabalhou para

esfriar as datas religiosas e as reuniões em família para ceias e comemorações foram transferidas para a
noite de 31 de dezembro, que é a véspera do aniversário da revolução. Yoani prevê festas familiares especialmente magras, mas acha que o governo vai fazer um grande esforço para levar as pessoas para
as ruas a fim de comemorar o cinqüentenário da revolução.

Maria Esther Maciel


DONA IVONE

Maria Esther Maciel


            Há tempos queria fazer uma homenagem a Dona Ivone Lara, a grande dama do samba brasileiro. Na noite do último dia do carnaval, ao ouvir um de seus CDs, esse desejo se reavivou na mesma proporção em que cresceu o meu fascínio por ela. Não sei por quê, mas sempre que a vejo ou ouço cantar, sinto uma ternura sem limites por essa senhora de quase 92 dois anos, que compôs (em parceria ou não) sambas históricos como “Sonho meu”, “Força da imaginação”, “Não chora neném”, entre vários outros. A admiração por ela não é só por causa de suas músicas, sua voz potente e seu porte de rainha. É também por seu jeito de mãe boa e avó generosa, dessas que todo mundo gostaria de ter. É isso: acho que queria ser filha, neta ou mesmo sobrinha de Dona Ivone, para receber de perto a luz de sua presença e de sua sabedoria.
            Impressiona a força de uma mulher que, em plenos anos 1940, ingressou na ala de compositores da Escola de Samba Prazer da Serrinha, tornando-se a primeira figura feminina a compor sambas-enredos na história da música brasileira. Não bastasse isso, ainda integrou a Ala de Compositores do Império Serrano, escola que ela acompanha até hoje e que a homenageou no carnaval de 2011.
            Pelos dados biográficos disponíveis no seu site oficial, a cantora e compositora carioca começou muito cedo no mundo da música: tinha apenas 12 anos quando, após receber de presente dos primos um pássaro tiê-sangue, compôs seu primeiro samba de partido alto, intitulado “Tiê, tiê”. Nessa época, já era órfã de pai e mãe e vivia num colégio interno, onde teve aulas de música com Lucília Villa-Lobos, mulher do famoso maestro e compositor brasileiro. Ao sair do internato, foi morar com um tio músico, integrante de um grupo de choro do qual também participavam Pixinguinha e Donga. Com esse tio aprendeu a arte do cavaquinho.
            São muitos os dados interessantes sobre o percurso de Dona Ivone. Sua história sempre esteve intrinsecamente ligada à musica, já que sua mãe foi cantora de Rancho e seu pai –  um mecânico que tocava violino – foi componente do Bloco dos Africanos. Ela conviveu com os dois apenas até os seis anos, mas o suficiente para que a música se enraizasse fundo em sua vida. Além do mais, herdou da avó moçambicana a admiração pela cultura africana, incorporando-a largamente em suas composições.
            Ouvir o CD “Bodas de Ouro” é sempre uma festa para os sentidos. Faixas como “Sorriso negro”, “O samba não pode parar”, “Sonho meu” e “Alguém me avisou”, na voz de Dona Ivone, são de arrepiar. E o “Candeeiro da vovó”, então?  Feito em parceria com Delcio Carvalho (assim como várias de suas composições), o samba conta uma comovente história que, ao ritmo da melodia e da voz da diva, é “de cortar o coração”. Como não se emocionar diante do choro da avó por causa do sumiço do candeeiro – “troféu lá de Angola” –  que iluminava seus caminhos e a ajudava a enfrentar a solidão? A interpretação da cantora faz da letra uma verdadeira narrativa.
            Quem ouve Dona Ivone Lara no final do carnaval não fica triste com o término da folia, podendo dizer o que diz um dos sambas que ela compôs: “Não, meu fim de carnaval não foi ruim / A nostalgia desapareceu e a alegria se apossou de mim.”  

                        Jornal Estado de Minas, 19/02/2013

Dormindo com o Terapeuta - Iara Biderman

folha de são paulo

AS SESSÕES
Terapia colorida
Filme ressuscita tratamento que inclui sexo entre paciente e terapeuta; controverso, método criado por Master e Johnson ainda é praticado nos EUA
IARA BIDERMANDE SÃO PAULOA pessoa tem um problema sexual e vai fazer terapia para tentar resolver. Um dia, o psicólogo propõe a ela algo mais prático: sessões com um "terapeuta sexual substituto", profissional que vai para a cama com o paciente.
Pouco difundida, essa técnica do sexo explícito começa a ser mais conhecida. O motivo é o filme "As Sessões", que estreou aqui na sexta.
Premiado no Festival Sundance de Cinema de 2012, o longa fez de Helen Hunt candidata ao Oscar de melhor atriz coadjuvante de 2013.
Hunt interpreta Cheryl Cohen Greene durante terapia sexual com o poeta Mark O'Brien (John Hawkes), paralítico. Aproveitando o sucesso do filme, Greene lança seu livro "As Sessões: Minha Vida como Terapeuta do Sexo" (BestSeller, 280 págs., R$ 29,90), em que conta sua história e a de vários outros clientes, além de O'Brien.
Virgem aos 38 anos, O'Brien acaba aprendendo com Greene a manter suas ereções espontâneas, a penetrar uma mulher (ela) e a levá-la ao orgasmo.
Essa modalidade terapêutica foi criada nos anos 1960/1970 pelo casal de sexólogos americanos William Master e Virgínia Johnson, os primeiros a preconizar um tratamento exclusivamente sexual. "Eles passaram a tratar dificuldades sexuais com terapia comportamental, usando as terapeutas substitutas para 'treinar' o paciente a fazer sexo", diz a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do programa de estudos de sexualidade da USP.
Após a revolução sexual, surgiram outras técnicas, e a do substituto sexual não ficou entre as mais valorizadas.
QUESTÕES ÉTICAS
"Do ponto de vista teórico é interessante, mas na prática incide em uma série de questões. É fácil de executar? Não. É eficiente? Não temos dados. E levanta muitas dúvidas éticas", diz Abdo.
"Sexo entre terapeuta e paciente ocorre mais do que imaginamos. É danoso: a pessoa depositou confiança no profissional e fica à mercê dele. É quebra de contrato", diz Araceli Albino, presidente do Sindicato dos Psicanalistas do Estado de São Paulo.
O CFP (Conselho Federal de Psicologia) veda relação sexual entre terapeuta e paciente. Nos EUA, o trabalho do substituto sexual é legal, desde que indicado e supervisionado pelo profissional de psicologia que conduz a terapia verbal com o cliente.
A relação "terceirizada" teria vantagens. Para Abdo, se a terapia com o substituto sexual for bem conduzida, poderá evitar que o paciente fique dependente do terapeuta e prepará-lo para fazer sexo satisfatório com outros.
"Se a terapia sexual com o substituto for escolha do paciente e ele continuar a terapia verbal, vai conhecer melhor seu corpo sem deixar de trabalhar o psiquismo. O avanço pode ser maior do que ficar só falando", diz Albino.
O método é "temerário" para Aluízio Lopes de Brito, secretário de ética do CFP: "Tirar bloqueios sexuais é bom, mas desperta um mundo de emoções na pessoa e ela terá que lidar com isso".

    Homens virgens de mais de 40 são o maior público
    FERNANDA EZABELLADE LOS ANGELESEm 2013, a única associação do mundo a reunir "sex surrogates" (parceiros sexuais substitutos) faz 40 anos com os mesmos desafios do passado: defender e explicar essa profissão tão peculiar.
    A International Professional Surrogates Association (IPSA), com sede em Los Angeles, tem 50 profissionais, mais da metade mulheres. Os clientes são na maioria virgens de 40 a 60 anos.
    "Ao longo das décadas, houve uma mudança no entendimento do trabalho, mas ainda há muita confusão", disse a educadora sexual Vena Blanchard, presidente da IPSA. "Não é tudo sobre sexo. Boa parte dos que nos procuram não entende o toque, não sabe experimentar essa sensação e tem muito medo."
    Outros pacientes dessa terapia são vítimas de abusos ou têm disfunções (vaginismo, ejaculação precoce) e não contam com parceiros.
    Blanchard comanda a formação profissional, que custa o equivalente a R$ 6 mil e inclui curso de cem horas. Depois, há estágio pago com cliente real, supervisionado por um veterano e o terapeuta responsável.
    Em 2012, a IPSA certificou quatro pessoas. A procura cresceu após o filme "As Sessões", que estreou nos EUA em outubro. Há mais gente interessada em virar parceiro substituto, diz Blanchard, que critica algumas cenas, como quando a terapeuta (Helen Hunt) encontra o paciente (John Hawkes) pela primeira vez."É incomum o profissional sair tirando a roupa minutos após conhecer o paciente. Não acontece. O cliente ficaria aterrorizado."
    A IPSA foi fundada em 1973, três anos após os pesquisadores americanos Master e Johnson inventarem a terapia do parceiro sexual substituto. Em cinco anos, o grupo ganhou código de ética e padrões de treinamento.

      Terapeutas corporais criticam sexo de resultados
      DE SÃO PAULOA terapia que acaba na cama retratada no filme "As Sessões" e no livro de Cheryl Greene está distante conceitualmente de terapias que incluem o contato físico.
      "Trabalhamos o corpo que pensa, faz vínculo, tem história. Para tratá-lo não precisa ser tão concreto, pegar, manipular, transar", diz a terapeuta Regina Favre, de São Paulo. Favre é da primeira geração da terapia do corpo no Brasil, um grupo que experimentava a força libertadora do sexo nos tempos da revolução sexual.
      "Era libertador na década de 1970, não é mais. O problema, hoje, é que a pessoa quer ser perfeita, quer ter um bando de gente achando que ela é um tesão. Daí cria-se mercado para isso. E a técnica da terapeuta sexual substituta é um produto desejável."
      Um produto, porque vende a sexualidade desejada como uma questão técnica, segundo o psicólogo carioca João da Mata, da Universidade Federal Fluminense.
      Seguidor do alemão Wilhem Reich (1896-1957), Da Mata diz que as terapias de origem reichiana não são direcionadas da mesma forma que as sessões de Greene.
      "Eu não diria que o ato sexual é terapia, mas que é terapêutico: tem capacidade de transformar, mobilizar a energia vital. Podemos trazer essa experiência com o contato corporal, a troca emocional."
      Para ele, o interessante da terapeuta sexual substituta é "mostrar a importância da sexualidade inclusive como fonte de saúde física".
      Segundo Favre, "pode ser saudável e gerar bem-estar, mas tratar o ato sexual como um procedimento médico é mecanicista e simplificador".
      "A terapeuta substituta é vista como uma fisioterapeuta que vai colocar um ombro no lugar, uma fonoaudióloga que vai treinar alguém para parar de gaguejar, uma enfermeira carinhosa que não sente repulsa do paciente", diz.
      Só que não. "Nessas sessões de terapia sexual, por trás do prazer genital, tem uma pessoa, que está sendo estimulada. E isso vale para os dois lados, terapeuta e paciente. Não dá para ter um distanciamento que garanta o não envolvimento pessoal."

        Clínica contrata prostitutas para seus pacientes
        BERNARDO MELLO FRANCODE LONDRESUma casa de repouso do sul da Inglaterra manteve por anos um programa de "visitas especiais" a seus pacientes, idosos com alguma deficiência física que escolheram envelhecer em paz à beira do canal da Mancha.
        O plano ia bem até o fim do mês passado, quando uma ex-funcionária do asilo disse a um jornal local que as "visitadoras", na verdade, são prostitutas contratadas para fazer sexo com os internos.
        A história, que lembra o livro "Pantaleão e as Visitadoras", de Mario Vargas Llosa, dividiu a pequena cidade de Eastbourne, virou tema de CPI na Câmara local e deu início a um debate na imprensa: a terapia sexual é eficaz para deficientes ou uma prática moralmente condenável?
        Para a direção da Chaseley Trust, a clínica que gerou a polêmica, a resposta certa é a primeira. Em nota, disse que o acesso ao sexo é um direito dos seus pacientes.
        "Estamos conscientes dos direitos das pessoas com deficiência. Se um indivíduo expressa o desejo de ter um relacionamento físico e nós podemos ajudá-lo de forma legal e segura, vamos fazê-lo", disse a diretora Sue Wyatt.
        A administração da cidade afirmou que a prática "não é bem-vinda" e que os idosos internados na casa de repouso são "vulneráveis" e sujeitos a "exploração e abusos".
        Em Londres, a ONG Outsiders defende a terapia sexual desde o fim dos anos 1970.
        Sua fundadora, Tutty Owens, disse à Folha que pagar por sexo não é crime no país. Ela acusou os críticos de discriminar os deficientes físicos."O tratamento com terapia sexual dá resultados. Os deficientes aprendem que também podem ter e dar prazer a outras pessoas."
        Ela contou que já ajudou mulheres deficientes a ter o primeiro orgasmo depois dos 50. "É uma descoberta."

          'Tive relações com mais de 900 pessoas'
          A terapeuta Cheryl Cohen explica a diferença entre o seu ofício e a prostituição
          DE SÃO PAULOA terapeuta que inspirou a personagem de Helen Hunt no filme "As Sessões" vive em Berkeley, na Califórnia, com o marido, um ex-paciente.
          Aos 68, Cheryl Cohen Greene continua o trabalho que iniciou há 30 anos: atender clientes com impotência, ejaculação precoce ou limitações que dificultam o sexo. Em seu livro, "As Sessões: Minha Vida como Terapeuta do Sexo", que chega esta semana às livrarias brasileiras, ela conta que teve mais de 900 parceiros sexuais.
          À Folha, Greene diz como ajuda seus clientes e como entrou na profissão, que muitos consideram prostituição. "Ir a uma prostituta é como ir a um restaurante, escolher no cardápio e ser servido pelos funcionários, que esperam que você volte. Ter sessões com a terapeuta sexual substituta é como ir a uma escola de culinária: você descobre onde achar ingredientes, aprende receitas e sai fazendo pratos por conta própria."
          -
          • Folha - Como você se tornou "terapeuta sexual substituta?"*
          Cherryl Cohen Greene - No início dos anos 1970 eu morava na Califórnia, no centro da revolução de costumes nos EUA. Ganhava um dinheiro como modelo-vivo, posando nua, quando soube desse trabalho. Conversei com meu marido na época. Vivíamos um casamento aberto, eu já tinha tido vários parceiros sexuais e ele também. Ele apoiou minha decisão.
          O que é preciso fazer para ser esse tipo de terapeuta?
          Um curso. Tem quem ache que só por ser bonita e ter tido muitos parceiros pode oferecer o tratamento. Mas ajudamos pessoas que têm dificuldades -não conseguem ter ereção ou orgasmo, nunca fizeram sexo. Precisam de alguém aberto, amoroso e sensível em quem confiem para aprender a superar.
          Como é feito o trabalho?
          São oito sessões, em cada uma há experiências diferentes, não só sexuais. Ajudo a pessoa a relaxar. Ao tocar um cliente pela primeira vez não quero que pense na ereção. O ponto é fazer com que se conheça e se abra ao prazer.
          Há protocolo dessa terapia?
          Sim. Foi desenvolvido pelo casal Master e Johnson. Trabalhamos com um terapeuta convencional, que não tem contato físico com o paciente (prefiro chamar de cliente).
          É o terapeuta convencional que nos indica. Após a sessão, fazemos um relatório para esse terapeuta.
          Na primeira sessão ensino o cliente a relaxar e massageio seu corpo inteiro. Na seguinte, o cliente me massageia e eu o conduzo, mostrando do que gosto ou não. Depois vem o exercício com o espelho, a pessoa se olha nua. Daí começam carícias mais íntimas, ensino a manter a ereção por mais tempo, a penetrar uma mulher de forma mais prazerosa para ela.
          Como você encara o sexo sem envolvimento afetivo?
          Tudo o que é consensual entre adultos é válido. O lindo do meu trabalho é que você não precisa se apaixonar, mas tem que se tornar íntimo da pessoa e respeitá-la. E é lindo saber que 85% conseguem uma vida sexual satisfatória depois das sessões.
          Como evita que o cliente se apaixone por você?
          Conto detalhes da minha vida privada a ele, digo que sou casada e feliz. Isso já diminui as expectativas.
          E se você se apaixonar?
          Já aconteceu. Estou casada com ele há 32 anos. Bob me procurou depois que terminaram as sessões. Na segunda vez que saímos já fizemos sexo fora do "consultório".
          O que ele acha desse trabalho?
          Eu nem me apaixonaria se ele não aprovasse o que faço. Quando lhe perguntam, ele diz que sabe o que fiz por ele e o que posso fazer para melhorar a vida de outros.
          É outro casamento aberto?
          Não. O amor é uma coisa, o trabalho é outra. Guio o cliente, ensino. Faz parte da terapia eu mesma ter orgasmo. Muitos precisam saber que são capazes de fazer isso. Para mim, termina ali.
          Você ainda trabalha?
          Tenho três clientes. Quando comecei, atendia dez por semana. Vivemos uma onda conservadora, há menos gente fazendo. Espero que com o filme e o livro mais gente se interesse pelo trabalho.

            Ser ou não ser pai - Michael Kepp

            folha de são paulo

            OUTRAS IDEIAS
            O relógio biológico dela pode pressionar o homem quando ele não está preparado para a paternidade
            Eu disse a uma amiga que um casal que conhecíamos se separou porque ela queria ter filhos, mas ele, não. Ela comentou: "Ele não a amava o suficiente".
            Mas espere aí! Tornar-se pai é prova de quanto um homem ama uma mulher? Felizmente, não precisei fornecer essa prova, posto que minha amada já tinha dois filhos adolescentes. Assim, minha aversão crônica à paternidade não frustrou o desejo de maternidade dela, já satisfeito.
            Se ela não tivesse filhos quando o casamento começou teríamos nos separado? Ou eu teria me tornado pai só para que ficássemos juntos? O estresse de criar os filhos teria acabado com a relação? Ou eu teria gostado de cumprir esse papel?
            Quem sabe? Só sei que lamber a cria nunca foi um de meus desejos. O que me deixa ainda mais entediado do que brincar com crianças é ouvir pais monologarem efusivamente sobre elas.
            E a paciência -necessária, pois o egocentrismo de um filho pode se prolongar após a adolescência- não é uma de minhas virtudes.
            Mas será que o egoísmo é um defeito meu apenas porque me dei conta de que ter filhos exigiria grandes sacrifícios? Por exemplo, o sacrifício de encontrar trabalho mais lucrativo e menos interessante para sustentá-los, coisa que não quis fazer.
            Outros sacrifícios teriam sido responder a todos os "porquês" dos meus filhos, colocar limites e preocupar-me sem parar com eles.
            Sei que ter uma família pode ser gratificante. Amo meus enteados e tenho orgulho deles. Mas o relógio biológico da mulher pode pressionar o homem a tornar-se pai na hora em que ela precisa virar mãe. Ele pode não estar preparado para a paternidade no momento, não por insuficiência de amor, mas por uma assincronia de desejos. Ele pode estar pronto em cinco, dez ou 15 anos. Ou nunca.
            Algumas mulheres nunca estão prontas para a maternidade. Uma vez, quando perguntei a uma mulher se ela lamentava não ter filhos, ela disse que os homens fazem essa pergunta muito mais que as mulheres. "Por quê?", indaguei. "As mulheres sabem dos sacrifícios necessários e entendem as razões pelas quais algumas de nós decidimos não fazê-los", respondeu.
            Ambos rejeitamos a noção de que ter filhos é "natural" e não precisa ser justificada. Eu sempre precisei de justificativa e não a encontrei. Assim, às mulheres que dizem "ele não quis filhos porque não me amava o suficiente", eu responderia: "Nem tudo tem a ver com você".

            O remédio é ler

            folha de são paulo

            Livros de autoajuda ganham status de medicamento na Inglaterra e são receitados para pacientes com distúrbios mentais leves ou moderados
            HARVEY MORRISDO “NEW YORK TIMES”, EM LONDRESMédicos da Inglaterra vão prescrever livros, além de medicamentos, para pacientes com ansiedade e depressão.
            Numa iniciativa endossada pelo governo e que tem o apoio de associações médicas, médicos vão encaminhar pacientes a bibliotecas em busca de uma série de títulos de autoajuda voltados a pessoas com problemas de saúde mental entre leves e moderados.
            Os pacientes também estão sendo encorajados a buscar o que a revista "The Bookseller" descreve como "romances e livros de poesia edificantes ou inspiradores".
            Destacando a capacidade terapêutica da literatura, a organização Reading Agency (que promove a leitura no Reino Unido) citou pesquisas indicando que ler reduz os níveis de estresse em 67%.
            A entidade -que é parceira do programa "Livros sob Receita", anunciado no início deste mês- disse que, de acordo com o "New England Journal of Medicine", a leitura reduz o risco de demência em mais de um terço.
            PRESCRIÇÃO MÉDICA
            A lista dos 30 títulos de autoajuda que estarão disponíveis sob receita a partir de maio inclui obras como "The Feeling Good Handbook" (manual para se sentir bem), "How to Stop Worrying" (como deixar de se preocupar) e "Overcoming Anger and Irritability" (superando a raiva e a irritabilidade).
            "Há evidências crescentes de que obras de autoajuda podem beneficiar quem tem problemas de saúde mental", disse Miranda McKearney, diretora da Reading Agency.
            Os doentes frequentemente recorrem à internet para buscar orientações às vezes pouco confiáveis sobre sintomas e curas. Agora os médicos poderão emitir uma receita com a qual os pacientes ganharão inscrição imediata em sua biblioteca local e acesso a títulos recomendados.
            É a primeira iniciativa de biblioterapia a ganhar apoio oficial de autoridades de saúde e bibliotecas.
            Os responsáveis por campanhas de promoção de bibliotecas públicas aplaudiram o programa, mas acham que não está sendo feito o suficiente para proteger as próprias bibliotecas. Duzentas instituições foram fechadas no ano passado, e outras 300 correm o risco de fechar ou de ser entregues aos cuidados de voluntários neste ano.
            Enquanto isso, a Reading Agency redigiu uma lista básica de livros inspiradores que promovem o bem-estar do leitor. A lista inclui clássicos conhecidos como "O Jardim Secreto", de Frances Hodgson Burnett, e títulos alegres de autores como Bill Bryson, que escreveu best-sellers de humor.
            A iniciativa foi paga pelo Conselho de Artes da Inglaterra, que distribui verbas públicas para projetos de arte. Segundo a Reading Agency, o país gasta US$ 22 bilhões por ano com tratamentos de doenças mentais.
            Então pessoas que sofrem depressão ou ataques de pânico serão aconselhadas a lerem? Ou a recomendação não passa de um novo modismo na busca de uma alternativa a medicações de alto custo?
            O projeto está pedindo sugestões de livros que aliviam o estresse, que podem ser enviadas pelo Twitter com a "hashtag" #moodboosting.

              Filosofia também tem uso terapêutico
              GIULIANA DE TOLEDOCOLABORAÇÃO PARA A FOLHAA adoção da leitura como parte do tratamento psicológico é vista com ressalvas por profissionais brasileiros. O método, implantado na Inglaterra, teria aqui uma dificuldade: a má compreensão dos textos por uma população de baixa escolaridade, o que poderia ser perigoso, conforme o neurocientista Iván Izquierdo, da PUC-RS.
              "Doentes mentais são sugestionáveis. Um paciente depressivo pode achar frases que o façam se sentir mais inclinado ao suicídio."
              O uso terapêutico de livros não é novidade. Na terapia cognitiva, o paciente é estimulado a participar do seu tratamento. "Certos textos são indicados como lição de casa e 'cobrados' na sessão seguinte, como na escola", diz José Roberto Leite, psicólogo e professor da Unifesp.
              PLATÃO E PROZAC
              O uso do pensamento como terapia foi popularizado nos best-sellers "Mais Platão, Menos Prozac" (1999), do canadense Lou Marinoff, e "As Consolações da Filosofia" (2000), do suíço pop Alain de Botton. Na terapia filosófica ou filosofia clínica, filósofos atendem e dão aconselhamento com base nas ideias de grandes pensadores.
              A Associação Nacional dos Filósofos Clínicos foi criada em 2008, mas a profissão não é reconhecida no Brasil.
              Para ter efeito positivo no tratamento, a indicação de autoajuda deve evitar os livros que prometam soluções milagrosas, diz o psiquiatra Elko Perissinotti, do Hospital das Clínicas de SP. "Autoajuda boa é a que faz o paciente pensar sobre sua condição. Aquela coisa robotizada de olhar no espelho e falar 'bom dia, dia' tem duração fugaz."
              Cético em relação ao gênero autoajuda, o neurologista Paulo Caramelli apoia a indicação de obras de memórias e ficção que tratem de doenças. "Contribui para que o doente conheça experiências de outros com problemas semelhantes. Serve de apoio e entretenimento."

                Denise Fraga - Vida real

                folha de são paulo

                VIDA REAL
                DENISE FRAGA - denise-fraga@uol.com.br
                Amor, ordem e progresso
                Hino une. Cantá-lo em coro me arrepia. Se sua poesia não fosse tão truncada, seria ainda mais emocionante
                Tenho uma vontade danada de por a mão no peito quando eu canto o hino nacional. Não ponho. Fico constrangida. Nosso material cívico foi um tanto manchado pelo ufanismo do governo militar, e demonstrações de amor à pátria usando o hino e a bandeira ainda têm certo peso para mim. Sou legítima filha do golpe.
                Nasci em 1964 e, apesar da letra difícil, aprendi nosso hino inteirinho e em detalhes. Na minha escola, ele era cantado todos os dias. O castigo que minha professora dava para a bagunça da turma era o pedido de cópias da letra em folhas pautadas de papel almaço. Quem errasse uma vírgula tinha de refazer.
                Foi por conta disso que Tia Eda e minha mãe, também professora, tiveram longa querela, me fazendo carregar livros pra cá e pra lá, a respeito da existência ou não de crase no "as margens plácidas". Negativo. As margens do Ipiranga saíram de sua placidez e ouviram mesmo o brado retumbante.
                Mas, apesar dos militares e do trauma causado pelas centenas de cópias da Tia Eda, eu sempre adorei cantar o hino. Hino une. É a canção que todo mundo sabe, é quase uma reza. Eu me arrepio quando tenho a oportunidade de cantá-lo em coro. Se sua poesia não fosse tão truncada e pudéssemos todos entender que nossa vida tem mais amores nesta mãe gentil que é o Brasil, seria ainda mais emocionante.
                Por falar em amor, recentemente eu descobri de onde vem o nosso "ordem e progresso", que eu sempre associara ao meu vizinho que saía fardado todas as manhãs, mas que nada tem a ver com os militares.
                Para quem não sabe, as palavras de nossa bandeira vêm da frase positivista do filósofo francês Augusto Comte [1798-1857]: "O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim". Simplesmente tiraram o amor. Apenas o amor!
                A frase original faz total sentido pra mim. Você ama uma coisa, se organiza e ela progride. Mas acharam que o amor não fazia falta. Ou que já estava implícito. Vai ver foi até por falta de espaço.
                Fico imaginando a reunião dos barbudos: "Não cabe tudo, vamos tirar a 'ordem'". "Não, sem ordem não se chega a lugar algum." "'Progresso' não dá pra tirar, é mau agouro..." "Tira o 'amor'. Amor todo mundo tem."
                Amor todo mundo tem?? Era apenas uma palavra, mas, mesmo que não se importassem em garantir o amor, não custava nada deixá-lo na bandeira para, no mínimo, nos ajudar a lembrar que ela é o tal do lábaro estrelado, o símbolo de amor eterno que o Brasil ostenta.

                  Rosely Sayão

                  folha de são paulo

                  Meu filhos, meus bens
                  Após o fim conturbado de uma união, crianças são usadas e passam a ocupar o mesmo lugar das coisas materiais
                  Uma leitora me contou que tem o hábito de assistir a novelas, mesmo sem gostar muito, porque as considera um passatempo bom para relaxar do estresse do trabalho.
                  Depois de jantar com o filho de seis anos e colocá-lo para dormir, essa mãe tem o costume de sentar-se em frente à TV e acompanhar o desenrolar das tramas da novela das nove. As cenas da ficção que a afetaram violentamente foram as relacionadas à história de um casal recém-separado que briga pela guarda da filha.
                  O que deixou nossa leitora muito perturbada foi ter se dado conta de que ela mesma tem vivido essa história e ainda não havia percebido: só percebeu depois de se envolver e de se identificar com os personagens.
                  Essa mulher separou-se recentemente do pai de seu filho e, desde o rompimento do casamento, está enfrentando uma situação muito semelhante à que viu na novela. Ela e o pai do menino têm brigado, inclusive na Justiça, para obter a guarda do menino e, ao mesmo tempo, impedir que o outro desfrute da companhia da criança.
                  O que ela não havia pensado até então, e foi ao assistir a algumas cenas da novela é que passou a refletir a respeito, é que tudo o que tem feito pode estar prejudicando o seu filho. E é esse o tema de nossa conversa de hoje.
                  Casamentos, divórcios e recasamentos são acontecimentos cada vez mais comuns no tempo em que vivemos. No século 21, esses fatos não causam espanto. As novas famílias resultantes dessas uniões e desuniões fazem parte do nosso cotidiano.
                  Mas há ainda um número muito grande de ex-casais que, à semelhança de nossa leitora e dos personagens da novela, ainda usam o filho como um instrumento para atingir o ex-parceiro. Por que será que isso ocorre?
                  Talvez o fato de o filho, hoje, ser considerado um bem leve o ex-casal a disputar a posse dele. Crianças e adolescentes passam, então, a ocupar o mesmo lugar que as coisas materiais ocupam após a dissolução conturbada de um casamento.
                  Longas batalhas judiciais são travadas para que cada uma das partes sinta que não saiu perdendo muito após o rompimento, não é verdade?
                  Mas os filhos sofrem com isso porque, primeiramente, nada podem fazer para sair da situação criada por seus pais. E quando tal situação ocorre, certamente eles é que saem perdendo.
                  Eles perdem a confiança em um dos pais ou em ambos e perdem também a segurança e a proteção de que tanto precisam. Os filhos são levados a assumir a defesa de um dos lados e perdem, principalmente, um direito que ninguém deveria poder tirar deles: o de crescer em companhia de seus pais, mesmo que eles não estejam mais juntos.
                  Quem tem filhos precisa saber que assumiu um compromisso para o resto da vida. Seu casamento pode terminar, mas o vínculo com a mãe ou o pai de seus filhos não deveria terminar nunca. Além disso, é importante lembrar, também, que um filho não é um bem sobre o qual se pode obter a posse.
                  Parece que as crianças que nascem no mundo da diversidade têm se adaptado muito bem às mudanças pelas quais a família vem passando. Mas assistir aos pais brigando pela sua guarda não pode fazer bem a elas.
                  Os mais novos precisam de nossos cuidados e, para honrar esse compromisso assumido, os pais precisam, de qualquer maneira, agir com maturidade.

                    Nizan Guanaes

                    folha de são paulo

                    A diferença é a marca
                    A construção de uma marca é uma obra empresarial suada, que leva tempo, feita com disciplina
                    A diferença entre um tablet fabricado na China e o mesmo tablet igualzinho, só que com a marca Apple, é a marca da Apple.
                    A marca não é só um logo estampado num produto, mas um conjunto de valores e atributos tangíveis e intangíveis que essa marca carrega e aquele logo anuncia. A construção de uma marca é uma obra empresarial suada, que leva tempo, feita com disciplina e profissionalismo.
                    A marca não é, como muitos pensam, fruto só de publicidade. Ela é uma verdade, um sonho ou uma fantasia. A única coisa que ela não pode ser é uma mentira. É uma verdade mesmo que essa verdade seja a fantasia da Disney.
                    Uma marca também é definida por coisas que não é. Louis Vuitton, por exemplo, não é barato. A marca se gaba de nos últimos anos não ter feito liquidação. Por isso, quem a usa carrega não só uma bolsa, mas uma bolsa cara, que leva toda a história da casa Vuitton.
                    As marcas não vendem só luxo, exclusividade ou frescura. Quem compra na Zara, por exemplo, ostenta inteligência: "Sou mais inteligente porque me visto bem na Zara, comprando o que está na moda sem pagar o preço alto da moda".
                    Para isso, a Zara é um prodígio de seguir a moda sem copiar seus custos, abrindo lojas bem na frente das marcas de luxo.
                    As marcas, assim como os grandes jornais que amamos, têm que ter conselho editorial e editor-chefe. Steve Jobs foi o maior editor-chefe empresarial dos últimos tempos. Construiu a marca Apple pelas coisas que fez e não fez, como não dar ouvidos ao consumidor, impondo sua própria vontade.
                    Num mundo onde virou moda certos clientes maltratarem suas agências de propaganda (refluxo da arrogância das agências nas décadas de 70 e 80), Jobs colocou a agência TBWA dentro, fisicamente, do prédio da Apple e construiu junto com ela alguns dos melhores momentos da publicidade, a ponto de em alguns comerciais ele mesmo fazer textos e até locução.
                    Jobs soube também explorar com maestria as relações públicas. Todos temos no imaginário o Steve Jobs de jeans e gola rolê apresentando a um auditório lotado e em frenesi o próximo lançamento.
                    Ele fez da coletiva um instrumento midiático moderno, global e excitante. E usou o design para tornar um aparelho único porque o design o fazia parecer único mesmo quando não era tão único assim.
                    O silêncio, a discrição e quase nenhuma publicidade podem também construir uma marca.
                    A família Safra é um exemplo. Discretos, construíram uma marca e várias casas bancárias com uma ferramenta de marketing poderosa, o "no marketing".
                    O "no marketing" não é só ser discreto e "low profile". É também ter fama de discreto e "low profile". Construir a cultura do "no marketing" é repeti-la com exaustão dentro da organização e fazer com que todos a conheçam e se comportem assim.
                    Indo de um polo a outro, marcas como Redbull foram inventadas com todo o barulho e ferramentas de marketing, de forma tão revolucionária quanto o silêncio dos Safra.
                    Adotando os esportes radicais, o gênio de seus criadores fez de uma bebida de gosto estranho marca de aceitação global. Redbull é a energia do novo novo. Com o patrocínio dos esportes de alto risco e alta energia, tornou-se sinônimo mundial de energia, uma ação de "branding" maciça que consumiu, pasmem, 35% do seu faturamento.
                    Apple, Safra e Redbull são "brandings" diferentes, unidos pelo alinhamento total entre a marca e a cultura da organização empresarial. Como Ralph Lauren, cuja vida se confunde com a marca e a empresa que levam seu nome. Criou valores, processos e crenças, conhecidos por todos, que terão de ser respeitados mesmo quando ele não estiver aqui para lembrá-los.
                    O mundo da moda é o mais dinâmico usuário dos instrumentos de marketing. Como fica velha todo ano, a moda tem que se tornar anualmente jovem e renovada. As diferenças podem vir nas embalagens, no produto, na publicidade, no preço ou na tecnologia e na inovação.
                    Num mundo lotado de marcas e ferozmente competitivo, ninguém sobrevive ou constrói marca se não tiver uma diferença clara e se a organização não estiver alinhada, consciente e doutrinada a trabalhar para não esquecer nem deixar o consumidor esquecer aquela diferença.

                      Médicos que se formam 'fora de casa' vão trabalhar nas capitais, diz estudo

                      folha de são paulo

                      Levantamento aponta que faculdades não fixam profissional no interior
                      JOHANNA NUBLATDE BRASÍLIA
                      Abrir cursos de medicina no interior do país não vai resolver a falta localizada de médicos, afirma o Conselho Federal de Medicina com base no estudo "Demografia Médica no Brasil 2".
                      Os dados colhidos durante as últimas três décadas indicam que o médico que se forma em uma cidade diferente da sua cidade natal tende a se fixar em capitais, como Rio de Janeiro e São Paulo, diz Mario Scheffer, coordenador do estudo.
                      Do total de médicos que saíram de sua cidade natal para cursar medicina, entre 1980 e 2009, apenas 25,3% ficaram na nova cidade -60% desses em grandes capitais.
                      Outros 37% voltaram ao município natal -um terço desses para São Paulo e Rio.
                      "A escola de medicina não está fixando o médico. Essas escolas de interior funcionam mais como repúblicas de estudantes que saem dos grandes centros e depois voltam", diz.
                      O estudo não verifica a fixação do profissional após a residência médica.
                      Há duas semanas, a Folha revelou que o governo vai direcionar a abertura de novos cursos de medicina para cidades que carecem dessas escolas, de médicos e que têm estrutura para receber alunos -incluindo a residência médica.
                      "Vem o governo, com efeito cosmético, tentar enganar e dizer 'com mais escolas, e trazendo médicos de fora, e sem avaliar sua competência, o problema [da falta de assistência] estará resolvido'. É um equívoco", diz Roberto D'Ávila, presidente do CFM.
                      Para a entidade, a solução passa por melhorar a estrutura da rede pública de saúde e criar uma carreira de Estado para o médico do SUS.
                      INTERIOR x CAPITAL
                      Segundo o estudo, o país atingiu a marca de 2 médicos por 1.000 habitantes em 2012 -índice que chega a 2,67 no Sul e cai para 1,01 no Norte.
                      Há disparidade, também, dentro dos Estados. A proporção de médicos em capitais chega a ser até quatro vezes maior que a proporção no Estado como um todo -e, assim, que cidades do interior.
                      A pesquisa mostra, ainda, que os médicos formados no exterior -brasileiros ou estrangeiros- estão em maior número nas grandes capitais.
                      O Ministério da Saúde diz que as novas regras levam em conta a fixação, pois demandam estrutura na rede de saúde e vinculação à residência médica (união que tende a fixar mais o médico).

                      Francisco Daudt

                      folha de são paulo

                      Que mãe?
                      Tendo sido importante, a memória dela se conecta com praticamente todas as vivências do filho
                      Aparecem notícias de que um cientista russo foi queimando neurônio por neurônio no cérebro de um paciente que queria se livrar das memórias de sua mãe que o atormentavam. Finalmente, bingo, o paciente nem sabia mais que havia tido mãe! O cientista queimara o "neurônio-chave" da lembrança de mãe.
                      Todo o meu prezado ceticismo veio à tona ao ler essa notícia. Um neurônio para mãe?
                      Mas... Que mãe? Sua mãe da infância, da adolescência ou a atual? A que o atormentou e a que o encantou? A que ele comparava com inveja com a mãe de seus colegas? A que o levava ao colégio ou a que o esquecia lá? A que usava Joy do Jean Patou nos anos 50 e passou para Diorissimo, nos 60? A que pedia que ele a ajudasse a abotoar a cinta? A que o espancava com o cinto? A que o seduzia e depois o abandonava? A chantagista emocional? A mãe idealizada que convive em todos nós? O ódio dela que ele cultivou por anos? Os mil ressentimentos entrelaçados em suas relações com as mulheres e com a vida?
                      O próprio conceito de mãe, maternidade, instinto materno, vocação maternal, matriz, a mãe gentil dos filhos deste solo, língua-mãe, "mater ecclesiae", Santa Maria, mãe de Deus, "alma mater", matriarcado, o indissociável conceito de filho, filial/matriz, mamãe, mamãe, o avental todo sujo de ovo, o churrasquinho de mãe, do Teixeirinha ("O maior golpe do mundo que eu tive na minha vida foi quando, com 12 anos, perdi minha mãe querida" -veja no YouTube, se você não conhece), "Minha nossa (senhora)!", mãe em outras línguas, "motherfucker", mãe das águas Iemanjá, "É a mãe, seu...!", matricídio?
                      Uma coisa é certa: essa mãe foi de uma importância enorme na vida do sujeito/objeto dessa experiência, senão ele nem iria pensar nela -quanto mais se sujeitar a um procedimento tão arriscado. Tendo sido importante, sua memória se conecta com praticamente todas as vivências que ele teve, através de vários graus de separação (diz-se que estamos ligados a quase todas as pessoas do planeta por até seis graus de separação: minha mãe conheceu Hitler em Berlim, na Olimpíada de 1936, logo, estou ligado a ele por dois graus, e por aí vai).
                      Se assim é com pessoas, que dirá com memórias. Uma puxa a outra porque se vinculam pelas conexões neuronais, numa rede gigantesca.
                      Freud dizia que se poderia reconstituir a vida inteira de uma pessoa a partir de um único sonho. Ele vislumbrou o que era a rede neuronal e a complexidade que ela tem, muito antes da neurociência e das ressonâncias magnéticas funcionais.
                      Eis porque não acredito na experiência do russo. A menos que ele esteja a reproduzir o feito que deu ao português Egas Moniz, em 1949, o primeiro prêmio Nobel que seu país recebeu: a invenção da lobotomia como método de tratar violentos incuráveis (e transformá-los em vegetais ambulantes). Seria a única maneira de erradicar a memória de mãe numa pessoa para quem ela fez diferença (para o bem ou para o mal, não importa).
                      Um caso típico de, como no antigo ditado, "jogar fora o bebê junto com a água do banho".

                        Clovis Rossi

                        folha de são paulo

                        Saem intrigas, entra o Espírito Santo
                        O cardinalato, ainda atônito com a renúncia, invoca ajuda dos céus para decidir em quem votar
                        ROMA - Luigi Accattoli, vaticanista que não presume ter linha direta com o Espírito Santo, pôs ontem na capa do "Corriere della Sera" um sentimento que flutua claramente nas ruas de Roma, entre fiéis e não tanto: a Igreja Católica ainda está tonta com a renúncia de seu chefe, faz uma semana.
                        "O ambiente eclesiástico parece ter chegado ao encontro [com o desafio representado pela renúncia] totalmente despreparado".
                        Para Accattoli, uma renúncia era previsível, visto que, "de Pio 12 em diante (papa de 1939 a 1958), todos os papas estudaram a possibilidade de demitir-se".
                        Agora que Bento 16 de fato demitiu-se, os cardeais remetem ao Espírito Santo a decisão sobre o novo papa, como o fez um dos "papabili" mais citado, o norte-americano Timothy Dolan, 63, em entrevista a "La Stampa". Perguntado com qual espírito vai a Roma para o conclave, respondeu: "Como primeira coisa, procurarei a ajuda do Espírito Santo, porque precisamos que nos inspire nesta escolha".
                        Sei que os não-crentes e mesmo alguns fiéis (ou muitos?) duvidarão que o Espírito Santo se intrometa entre os humanos para decidir o voto. Mas os cardeais refugiam-se nele mesmo quando em conversas informais.
                        Aconteceu comigo na véspera da votação anterior, em 2005, em uma conversa com um dos eleitores, que agendei na vã ilusão de que ele me abriria as portas para os segredos do conclave.
                        Dolan pelo menos leva a vantagem de parecer despachado, tanto que dispensou o Espírito Santo para dizer que quem o coloca entre os "papabili" favoritos "fumou maconha". Meu neto não diria coisa diferente e não é cardeal.
                        Ajuda no desconcerto do "ambiente eclesiástico" o fato de que dois inimigos cordiais comandarão o período chamado de "sede vacante", ou seja, a fase posterior à morte/renúncia de um papa em que o Vaticano fica sem chefe. São Angelo Sodano, decano do Colégio Cardinalício, e Tarcisio Bertone, o camerlengo.
                        Bertone substituiu Sodano como secretário de Estado e logo afastou os homens ligados a seu antecessor, uma das lutas fratricidas que "desfiguraram o rosto da igreja", como Bento 16 diria na Missa de Cinzas.
                        "Ninguém gostaria de assistir à prolongação do conflito", escreve Accattoli.
                        Quando não remetem ao Espírito Santo, os cardeais refugiam-se na negativa, como Giuseppe Versaldi, 69, que diz, sobre o escândalo financeiro que acabou com a demissão do presidente do chamado "Banco do Vaticano":
                        "Estou há cerca de um ano e meio na presidência dos assuntos econômicos da Santa Sé, e não tenho a sensação de escândalos financeiros nos últimos tempos. Ao contrário, à parte acusações infundadas de quem quer falar mal da igreja de qualquer jeito, já está em ação uma renovação do sistema econômico-financeiro em respeito às exigências de transparência e credibilidade da igreja."
                        Se for verdade, o Espírito Santo já cuidou dessa parte. Falta agora ajudar os atônitos cardeais a votar.

                          Marcelo Coelho


                          ANÁLISE
                          No fundo, queremos que a igreja pense como nós
                          O celibato e a ordenação de mulheres também são temas sempre invocados quando se pensa numa agenda de renovação
                          MARCELO COELHOCOLUNISTA DA FOLHAA Igreja Católica não muda nada. Tudo precisa mudar na Igreja Católica.
                          As duas frases provavelmente resumem o pensamento geral sobre o que se espera do novo papa.
                          Começo a perceber que nenhuma das duas é tão verdadeira assim. Uma primeira surpresa veio ao ler o livro do jornalista John Allen Jr, "All the Pope's Men" (ed. Doubleday), um relato para lá de respeitoso a respeito de como funciona a Santa Sé.
                          Para dar uma ideia de como as coisas mudam no Vaticano, Allen Jr cita um exemplo notável: a pena de morte.
                          Embora o discurso "pró-vida" pareça estabelecido desde sempre no mundo católico, os papas não simplesmente apoiavam a pena de morte como a aplicavam até uma data relativamente recente.
                          O ano de 1868 marca a última vez em que a guilhotina foi utilizada no Vaticano. Pode-se dizer, claro, que os papas demoraram quase dois milênios para se convencerem do seu desacerto.
                          Uma vez aceita a mudança, entretanto, tudo se passa como se a Igreja Católica sempre tivesse pensado assim.
                          Não digo com isso que o aborto venha a ser aceito com facilidade nos próximos anos. Mas divergências já foram registradas entre os cardeais ultimamente.
                          Um dos papáveis, Marc Ouellet, chocou o Canadá quando disse, a respeito de uma gravidez por estupro, que a mãe não deveria cometer um segundo crime só por ter sido vítima do primeiro.
                          Já o cardeal O'Connor, antigo primaz da Inglaterra, defende posição oposta em caso de estupro. Para um não católico, trata-se de atitude mais razoável.
                          Tudo precisa mudar na Igreja Católica -sou dos primeiros a concordar com isso. Mas é curioso como no fundo torcemos para que mude no rumo de nossas convicções.
                          Fosse por uma questão de popularidade, os bispos brasileiros poderiam muito bem abandonar sua crítica à pena de morte e, em especial, sua defesa dos direitos humanos.
                          Achamos que a igreja perde muitos fiéis ao condenar o uso da camisinha. Pode ser verdade. Mas não sabemos quantos fiéis a igreja descontenta ao falar em direitos humanos -garantia absoluta de perda de votos para candidatos a cargo eletivo na periferia das cidades brasileiras.
                          O celibato dos padres e a ordenação de mulheres também são temas sempre invocados quando se pensa numa agenda de renovação.
                          Talvez não sejam coisas tão difíceis de adotar, afinal; sem dúvida, estamos falando de assuntos menos vitais (literalmente) que o aborto.
                          Argumenta-se com frequência, entretanto, que o celibato e outras chateações são responsáveis pela constante queda no número de padres.
                          Ocorre que, mundialmente, o número de padres (e seminaristas) cresce desde 2000. Segundo o último "Anuário Pontifício", publicado em março do ano passado, a igreja conta com 1.643 padres a mais, no intervalo entre 2009 e 2010. De 2005 a 2010, o número de seminaristas aumentou 4%.
                          Verdade que a Ásia e a África são as principais responsáveis por esse crescimento. O decréscimo de padres é visível na Europa e nas Américas; de um ponto de vista global, contudo, faz sentido imaginar que esse não seja o maior problema nas cogitações do Vaticano.

                            Twitter, usado por 9 cardeais, está vetado no conclave

                            folha de são paulo

                            DO ENVIADO ESPECIAL A ROMAO Twitter invadiu até o retiro espiritual que a igreja iniciou domingo, preparando-se para o conclave que elegerá o novo papa.
                            Foi o próprio condutor das meditações, o cardeal Gianfranco Ravasi, responsável pela área de cultura no Vaticano, quem se incumbiu de tuitar pelo menos 20 frases ontem.
                            Mas, em 140 caracteres, não é possível contar a história das meditações.
                            Ravasi tuitou, por exemplo, que "a fé é antes de tudo um dom, mas ao mesmo tempo uma conquista".
                            Ou "respirar, pensar, lutar, amar, os verbos da pregação".
                            Com a sua função de pregador para religiosos, inclusive o papa Bento 16, que, no entanto, assiste sem ser visto, Ravasi está subindo na bolsa de apostas sobre o futuro pontífice.
                            Giulio Anselmi comenta no "La Repubblica" que os religiosos presentes dizem que Ravasi, desde domingo, "tem uma marcha a mais" que os carros dos demais "papabili".
                            Mas, durante o conclave, o Twitter está vetado pelo Vaticano.
                            Decisão que afeta apenas nove dos 117 eleitores, os únicos que têm conta no Twitter.
                            São eles: Ravasi (@CardRavasi, 36 mil seguidores); Angelo Scola, arcebispo de Milão (@angeloscola, 17 mil); Lluís Martínez Sistach, de Barcelona (@sistachcardenal, 2.400); Timothy Dolan, dos EUA (@CardinalDolan, o mais seguido, com 81 mil); Roger Mahony, do escândalo da pedofilia (@Cardinalmahony, 371); Séan Patrick O'Malley (Boston,@CardinalSean, 9 mil); Odilo Scherer (São Paulo,@DomOdiloScherer, 23 mil); Rubén Salazar Gómez, de Bogotá (@cardenalrubem, 3.000) e Wilfrid Naper (África do Sul, 3.200).
                            Ontem, foi revelado que o papa Bento 16 receberá uma aposentadoria mensal de € 2.500 (R$ 6.550) após renunciar ao cargo, no dia 28.

                              PT mira 2014 e opõe juros baixos a 'desastre' neoliberal

                              folha de são paulo

                              Partido adota forte tom ideológico em cartilha para celebrar 10 anos no poder
                              Documento petista ignora mensalão e foca ataques a tucanos para exaltar 'decênio glorioso' de Lula/Dilma
                              NATUZA NERYDE BRASÍLIAO PT começou a construir, em um documento a ser distribuído amanhã à militância da sigla, a narrativa que servirá de base para a campanha presidencial do ano que vem.
                              Com forte tom ideológico e números de comparação entre a gestão petista e a administração tucana, o partido lançará na comemoração de seus 10 anos de governo uma cartilha que opõe o projeto de Lula e Dilma, que chama de "glorioso", ao modelo de Fernando Henrique Cardoso, que classifica como "desastroso".
                              Embora ninguém admita publicamente, os termos da cartilha serão usados como matriz da disputa pela reeleição em 2014. O texto foi produzido pelo Instituto Lula e pela Fundação Perseu Abramo e supervisionado pelo presidente da sigla, Rui Falcão.
                              Ele exalta, por exemplo, a redução dos juros na gestão petista -um dos pilares da propaganda de Dilma Rousseff por mais um mandato.
                              Sobre o período de FHC, ataca: "Enquanto o salário médio dos trabalhadores caiu, aumentou a derrama contínua de recursos públicos para os segmentos mais ricos e enriquecidos por uma dívida em expansão e por taxas reais de juros incomparáveis internacionalmente".
                              Na gestão tucana, a Selic chegou a ultrapassar a taxa de 40% ao ano. Hoje, está em 7,25%. Analistas apostam, porém, que o Banco Central terá que subir os juros neste ano para conter a inflação.
                              A cartilha não traz autocrítica nem faz menções ao mensalão, tampouco ao julgamento que condenou à prisão alguns de seus líderes. Dirigentes argumentam que também não fizeram menção a escândalos de tucanos.
                              O livreto de 15 páginas, encapado com a imagem de Lula e Dilma, como se fossem rostos de um mesmo corpo, não economiza em adjetivos ideológicos. "Consenso de Washington" é um deles, adotado de forma pejorativa para identificar o receituário econômico de privatizações e de Estado mínimo.
                              "Foram anos de enaltecimento da 'economia política do bonsai'. Para qualquer broto de crescimento com possível distribuição menos ingrata da renda que ousasse aparecer no Brasil havia a tesoura dos delegados do Consenso de Washington a amputá-lo", afirma.
                              Ao citar desemprego, salários, pobreza e distribuição de renda sob FHC, a cartilha diz que "o desastre do neoliberalismo é contundente".
                              "Por meio de privatizações sem critérios e [sem] decência administrativa, cerca de meio milhão de trabalhadores foram demitidos", diz.
                              Sob Dilma, o Executivo construiu uma agenda extensa de concessões públicas ao setor privado. Mas sempre renegou o termo "privatização" e exaltou exigir contrapartidas, como redução de tarifas.

                                A CARTILHA PETISTA
                                "Os governos neoliberais no Brasil consagraram a velha e surrada perspectiva das tradicionais elites conservadoras"
                                "A armadilha na qual os governos neoli-berais aprisionaram o país foi sendo desarmada graças a uma nova maioria política, capaz de estabelecer um novo ciclo de mudanças"
                                "Os dez últimos anos mudaram o Brasil, permitindo reverter a decadência induzida pela rota da neocolonização neoliberal. O povo voltou a protago-nizar mudanças"
                                "A política e a economia soberanas andaram de mãos dadas e os resultados positivos têm sido crescentes"

                                PSDB menciona mensalão para atacar Dilma
                                DE SÃO PAULOO presidente nacional do PSDB, deputado Sérgio Guerra (PE), atacou ontem a participação da presidente Dilma Rousseff no evento para comemorar os 10 anos do PT no poder.
                                Em contraposição aos petistas, que evitam falar do mensalão, o tucano fez questão de associar o ato do partido ao escândalo.
                                "Na quarta-feira a presidente Dilma vai encontrar o José Dirceu e o [ex-presidente] Lula numa grande reunião em São Paulo. Será possível que a presidente da República pode ir para uma reunião com um cara que faz semanas foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal?", disse.
                                Na divulgação do evento à imprensa, o PT não menciona a participação de Dirceu no ato. Fala apenas da presidente Dilma e de seu antecessor.
                                A expectativa sobre a ida do ex-ministro foi informada ontem pela coluna Mônica Bergamo, da Folha.
                                Segundo Guerra, um eventual encontro da presidente com o ex-ministro José Dirceu, condenado pelo STF no processo do mensalão, mostraria uma Dilma "sem respeito às instituições" e que tem o combate à corrupção apenas como fachada de governo.
                                "A Dilma tem ou não respeito tem pelas instituições? Ela é ou não é a favor do mensalão? Se ela for lá [no ato do PT] ela é favor do mensalão. Não tem nada dessa história de austeridade. Tudo é falso."
                                O tucano deu as declarações em um seminário para o PSDB de São Paulo. No evento, marcado por críticas ao PT, Guerra defendeu que o senador Aécio Neves se apresente como pré-candidato à Presidência "o mais breve possível".
                                Guerra disse que o PSDB deverá fazer prévias para consagrar seu candidato e pediu unidade.
                                "Não existe São Paulo versus Minas. Se Aécio quiser ser presidente da República, sabe que tem que fincar o pé em São Paulo."
                                O PSDB se reúne amanhã, em Brasília, para definir sua mobilização para se contrapor à dos 10 anos do PT no poder.

                                  SEM MISÉRIA
                                  Ampliação de programa é anunciada
                                  O governo Dilma anuncia hoje uma ampliação de seus programas sociais para retirar 2,5 milhões da miséria e, com isso, zerar o número de extremamente pobres de seu Cadastro Único. Mas, como a Folha mostrou no sábado, o Ministério do Desenvolvimento Social estima que ainda continuam fora do cadastro oficial cerca de 700 mil famílias miseráveis.