Cosa nostra
Autor de "Gomorra", Roberto Saviano lança livro inspirado em programa de TV e comenta as ligações entre a máfia italiana e o Brasil
| Zennaro Luca - 22.jan.11/Efe | |
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Roberto Saviano na Universidade de Gênova (Itália) |
MORRIS KACHANI
DE SÃO PAULO
Desde 2006, pelo menos 14 policiais com dois carros blindados à disposição se alternam 24 horas por dia na escolta do escritor e jornalista italiano Roberto Saviano, 33.
Jurado de morte pela máfia, Saviano dorme em hotéis e apartamentos alugados, nunca por mais de um mês. "Não consigo imaginar meu futuro. Gostaria de ter uma vida normal, com um pouco de liberdade", afirma o autor, que não é casado nem tem filhos.
Ele se diz "às vezes" arrependido de ter escrito "Gomorra", o livro-reportagem sobre a extensão do poder das organizações criminosas que o tornou internacionalmente conhecido em 2006.
Agora, a Companhia das Letras está lançando seu mais recente livro, "A Máquina da Lama". A obra é inspirada em um programa que foi apresentado pelo próprio Saviano na TV estatal italiana, em 2010, e que chegou a uma audiência de 10 milhões de pessoas, tendo até mesmo desbancado uma partida entre Inter de Milão e Barcelona.
"Vieni Via con Me" (vem embora comigo), título do programa, escancarou as mazelas do país. Dos empreendimentos imobiliários da máfia calabresa em Milão aos lucros da Camorra e o interesse na manutenção da crise do lixo em Napóles (que já dura duas décadas).
Um programa de TV com essas características não poderia passar incólume pelas pressões políticas, que foram encabeçadas por Silvio Berlusconi, então premiê da Itália, e logo se transformariam em censura, até que saísse do ar, mas não sem deixar um rastro de polêmicas.
Saviano se transformou em um ícone da luta contra as organizações criminosas, assinando periodicamente artigos em publicações como "The New York Times", o espanhol "El País", e o italiano "La Repubblica".
O tom de denúncia e indignação que sempre predominou em seu discurso continua, mas agora acompanhado de uma certa melancolia, como se pode observar na entrevista a seguir, concedida à Folha por e-mail.
Folha - Qual é sua impressão sobre o Brasil?
Roberto Saviano - O Brasil está vivendo um momento incrível. De ex-colônia passou a esperança para colonizadores e colonizados. A Itália de hoje sonha com o que está ocorrendo no Brasil, isto é, brasileiros que emigraram voltando a sua terra para nela investir porque acreditam no curso das reformas.
Que laços há entre a máfia e facções criminosas no Brasil?
O Brasil, como a Itália, paga um preço altíssimo ao narcotráfico. Os grandes carregamentos de cocaína (produzida na maior parte na Colômbia) passam pelo Brasil e isso equivale a dizer que a bolsa da droga está em suas mãos. É no Brasil que se decide o preço do pó.
A mercadoria sai em navios para a África Ocidental, chegando à Espanha ou a Portugal. Ou vai diretamente para a Itália -e isso é prova evidente dos laços entre as organizações brasileiras e a máfia calabresa.
Como e por que o sr. se interessou pelo tema da máfia?
Viver em uma terra onde a criminalidade pode tudo impõe uma tomada de consciência. Nascer no sul da Itália significa se perguntar constantemente que lado assumir, como reagir, o que fazer. Não dá para ficar indiferente. No sul, todos, diariamente, tomam um partido.
É possível estabelecer um vínculo entre a crise financeira global e o crime organizado?
As organizações criminosas têm em mãos uma liquidez enorme proveniente do narcotráfico e, num momento em que isso é exatamente o que falta, fica fácil de entender qual é o vulto de seu poder de aquisição.
Se as organizações não são diretamente responsáveis pela crise econômica, é certo que agora elas estão entre os principais atores e, quando houvermos saído da crise, as economias nacionais de muitos países, entre os quais a Grécia e a Itália, serão economias totalmente infiltradas por capital criminoso.
A máfia seria um subproduto da cultura italiana?
A cultura mafiosa compõe somente uma parte da tradição italiana. E tudo isso, soa estranho dizer, se liga estreitamente ao turbocapitalismo.
Então há, de um lado, o culto à virgindade, à propriedade, à terra e a regras quase medievais; e, de outro, investimentos financeiros e vanguarda econômica. A união desses dois ingredientes é que faz o DNA extremamente forte e dominante das máfias.
O sr. acha que a máfia pode ser vencida?
O juiz Giovanni Falcone, morto em um atentado mafioso na Sicília, em 1992, dizia: "A máfia é um fenômeno humano e, como todos os fenômenos humanos, tem um princípio, uma evolução própria e terá, portanto, um fim".
Eu espero com todas as minhas forças que sim; mas, sem uma mudança radical na nossa ordem econômica, não será possível.
O que o sr. acha da profissão de repórter, diante das novas tecnologias?
A internet e as agências de notícias facilitaram muito o trabalho tradicional do repórter, modificaram-no de forma profunda, não necessariamente para o mal, como alguns sustentam.
O jornalista tem agora uma tarefa mais árdua, mas mais estimulante: reunir as peças de quebra-cabeças que estão espalhadas à vista de todos.
Tudo está à mão, mas nem tudo é inteligível. É isso: o repórter agora não é instado a encontrar a informação em primeira mão, mas também (e sobretudo) a reelaborá-la, a explicá-la.
Como é seu cotidiano?
Vivo uma vida totalmente anômala. Alterno períodos de completa solidão e isolamento a outros de máxima visibilidade, quando estou na TV ou participo de eventos públicos. Isso faz a minha vida ser completamente esquizofrênica.
O sr. se arrepende? Faria algo diferente?
Eu me arrependi mil vezes de ter escrito "Gomorra" e não outro livro, que poderia ter me dado uma vida de escritor, e não de perseguido. Odiei o livro por muito tempo. Sabia que devia muito a ele, talvez até demais, mas às vezes eu gostaria de poder voltar atrás e nunca tê-lo escrito.
O sr. se sente melancólico, claustrofóbico? O que lhe faz mais falta?
Eu me sinto assim o tempo todo. Sinto falta do meu passado, da liberdade que perdi. Às vezes queria voltar ao verão de 2006, ano em que saiu "Gomorra". Lancei o livro Itália afora, com uma mochila nas costas, passando noites em trens.
As pessoas me esperavam para falar do meu livro, do estilo, do texto, queriam saber como eu tinha reunido tantas informações. Foi a melhor época da minha vida.
Era um sonho que estava se tornando realidade: depois de tanto trabalho, o mundo cultural italiano se dava conta desse rapaz que à época tinha 26 anos e tinha tanta vontade de escrever, de dividir ideias e experiências. Se tivesse como, pararia o tempo ali.
A MÁQUINA DA LAMA
AUTOR Roberto Saviano
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Joana Angélica d'Avila Melo
QUANTO R$ 29,50 (160 págs.)
Leia íntegra da entrevista
folha.com/no1173715
FRASES
"O Brasil, como a Itália, paga um preço altíssimo ao narcotráfico. Os carregamentos de cocaína passam pelo Brasil e isso equivale a dizer que a bolsa da droga está em suas mãos. É no Brasil que se decide o preço do pó"
"Quando houvermos saído da crise, as economias nacionais de muitos países serão totalmente infiltradas por capital criminoso"
"Eu me arrependi mil vezes de ter escrito "Gomorra" e não outro livro, que poderia ter me dado uma vida de escritor, e não de perseguido"
RAIO-X - ROBERTO SAVIANO
VIDANasceu em Nápoles (Itália), em 1979. Desde 2006 vive escondido e sob escolta.
CARREIRA"Gomorra", seu principal livro, já vendeu mais de 10 milhões de exemplares e inspirou um filme homônimo premiado em Cannes. Saviano escreve para publicações como "La Repubblica", "El País" e "The New York Times", entre outras.