sábado, 21 de dezembro de 2013

A escuta do silêncio - José Castello


A primeira imagem do rei que a escritora
alemã (nascida na Romênia)
Herta Müller conheceu não
veio dos contos de fadas, mas de
uma peça de um jogo de xadrez
que seu avô construiu na prisão.
Fazer aquele xadrez deu segurança ao avô prisioneiro.
Mais do que depois jogar com ele, fazêlo
foi o que o salvou. O avô jogou xadrez o resto
da vida. Só parou quando o último companheiro
fiel de jogo faleceu. Então, passou a jogar cartas
com a família.

Reis têm uma imagem complexa: falam da
grandeza, mas também da tirania, da insegurança,
e ainda do poder de salvar. A palavra “rei” se
tornou, por isso, uma palavra central na obra de
Herta, nascida em 1953. Desde menina, se intrigou
com a linguagem usada na imprensa da República
Democrática Alemã, a comunista, para
se referir às coisas comuns. Por exemplo, não se
falava nos “anjos das árvores de natal”, mas nas
“figuras-aladas-de-fim-de-ano”. Não falavam
em bandeirolas, mas em “elementos de abanar”,
para assim não ferir a honra dos símbolos do Estado.
Ninguém falava em caixão, mas em “móvel
de terra”, e uma repartição do serviço secreto era
chamada, em geral, de “alegria e tristeza”.

Essas contorções da linguagem levaram Herta,
desde muito cedo, a se impressionar com a
maleabilidade e a potência das palavras. Ela relata
essas lembranças no ensaio que dá título à
coletânea “O rei se inclina e mata” (Biblioteca
Azul). Muitos ecos se guardam dentro de cada
palavra, ela medita. “Móvel de terra” (para caixão)
é, por exemplo, “uma palavra em que se ouve
o medo da morte”. Conclui a escritora, ainda,
que “a verdade está nas palavras estranhas”.
Sempre que a língua é retorcida, amarrada, algo
se esconde nas entrelinhas. “Quando se quer
descobrir a verdade, precisa-se encontrar essas
palavras que se misturaram entre as outras, que
não nos dizem respeito”.

Em sua delicada reflexão sobre a linguagem
do poder, que tanto pode ser bom (alimentar)
como mau (matar), Herta Müller conclui que, entre
os diversos reis existentes, é o rei da cidade
quem se inclina e mata. “O rei da cidade não revela
as suas fraquezas, quando ele cambaleia, parece
que está se inclinando, mas ele se inclina e mata”,
justifica. Na sua história pessoal e em suas lembranças,
este rei tem um nome: o ditador romeno
Nicolae Ceaucescu (1918-1989),
que presidiu o país durante 24
anos. Herta passou a infância
em uma pequena aldeia da região
do Banat, dominada pela rotina
das cooperativas agrícolas.
Adulta, estudou literatura
germânica em Timisoara, capital
da província. Foi ali que tomou
contato com a verborragia
exagerada dos funcionários oficiais
e que passou a entender
que o poder se infiltra nas palavras
e nós o engolimos.


“Procurávamos por saídas que porém não havia
em lugar algum”, ela rememora. Aí lhe surge a literatura
(a palavra de novo) como porta de salvação
contra as próprias palavras. Todos estavam tomados
pelo medo, cada um a seu modo, e Herta
aprendeu a observar “em que posição estava o medo
de cada um”. Foi a literatura quem lhe deu a expressão
“fera d’alma” (Herztier no original), “um sinônimo
que inventei para encobrir a palavra rei”.
Na cidade, o rei estava por toda parte, estava escondido
nas coisas. “O rei estava na minha cabeça desde
a infância. Ele estava enfiado nas coisas. Mesmo
que eu nunca tivesse escrito uma palavra, ele estaria
estado presente”.


“Fera’alma”, na verdade, não
fala só do rei, mas também da
“gana de viver” que a onipresença
do rei provoca. “Eu queria
uma palavra de dois gumes, tão
de dois gumes quanto rei deveria
ser”, explica. Uma palavra
que, como um rei, salva e fere ao
mesmo tempo. A ideia de um
rei, diz Herta, surge sempre que
não há mais lugar para o pensamento.
Aquilo que fica fora do
pensamento, aquilo de que o
pensamento não dá conta, é o poder do rei. É o
impossível, talvez o absurdo. Por isso, a presença
do rei a seguiu pelo resto da vida, mesmo quando
se mudou para a Alemanha. “O rei me seguiu primeiro
do vilarejo para a cidade, depois da Romênia
para a Alemanha, como reflexo das coisas que
para mim jamais se esclareceriam”. Luta para defini-
lo com mais precisão: “Ele personifica toda
a extensão das coisas; quando não há mais palavra
que sirva na corrida errante do pensamento,
digo até hoje: opa, lá vem o rei”.


Cada vez que o real lhe dava um golpe — o
“suicídio” do amigo Roland, enforcado na prisão
— a presença do rei se impunha. Horrorizada,
Herta passou a evitar os laços e as cordas. “Após
o enforcamento do amigo passei a ver todos os
laços em todos os lugares com outros olhos”. Passou
a temer e a evitar, por exemplo, as alças de
apoio que existem dentro dos ônibus. “Se um casaco
está pendurado num cabideiro, ele tem, por
um instante, como se houvesse um estalar de
dedos no cérebro, pés que, então, desaparecem
de novo”. Herta vê a presença e a astúcia do rei
presente até nos contos de fadas romenos. Imita
o estilo retorcido das narrativas romenas para as
crianças: “Era uma vez do jeito que era. E isso foi
naquele tempo, quando era, do jeito que jamais
havia sido. Era uma vez, quando era indiferente
o jeito como era. E era uma vez, em que não se
sabe quantas vezes já fora”. A questão não estava
no que se pretendia dizer, mas na forma extravagante
e torta de dizer. As afirmações são contorções.
Contorções da linguagem, que se torna um
instrumento de muitos gumes.


Herta Müller fala (inventa) pelos poderosos:
“Tínhamos uma visão ampla de nossos labirintos
fraseológicos, possuíamos uma espécie de
soberania territorial, inseríamos tantas trilhas
e desvios até que nossas cabeças zuniam”. A
serviço dos tiranos, as palavras se enroscam e
se esgoelam. As frases tortuosas do regime romeno
ensinaram a Herta Müller a grandeza,
mas também o perigo guardado na língua. Instrumento
de dois gumes, devemos estar sempre
alertas quando a manipulamos. A grande
estratégia do rei é se fazer amar e as palavras
são muito eficazes para isso. Elas incham nos
corações. Elas se erguem no lugar de coisas que
estão acontecendo em silêncio e que não correspondem
a nome algum.

Eduardo Almeida Reis - Tradição rapace


Com imprensa falada, escrita e televisada, com internet de bandas não muito largas, ficamos cientes da tomação generalizada

Estado de Minas: 21/12/2013 


De pilhas novas, a calculadora chinesa ficou impossível e me diz que são transcorridos 372 anos desde 1641, quando Vieira pregou na Bahia perante o vice-rei Jorge de Mascarenhas, primeiro conde de Castelo Novo e primeiro marquês de Montalvão, que foi governador de Mazagão, de Tânger e do Algarve, antes de ser nomeado primeiro vice-rei do Brasil, em 1640, por Filipe IV de Espanha. Título honorífico, de caráter pessoal, pois só em 1714 foi o governo do Estado do Brasil elevado à categoria de vice-reino. Excepcionalmente, antes disso, dois governadores-gerais mereceram o título de vice-rei: Montalvão em 1640 e o conde de Óbidos em 1648. Portanto, há 372 anos o padre Antônio Vieira anotava em solo pátrio: “Perde-se o Brasil, Senhor (digamo-lo em uma palavra) porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm buscar nossos bens... El-rei manda-os tomar Pernambuco e eles contentam-se com o tomar. Este tomar o alheio é a origem da doença. Toma nesta terra o ministro da Justiça? Sim, toma. Toma o ministro da República? Sim, toma. Toma o ministro da Fazenda? Sim, toma. Toma o ministro do Estado? Sim, toma. E como tantos sintomas lhe sobrevêm ao pobre enfermo, e todos acometem à cabeça e ao coração, que são as partes mais vitais, e todos são atrativos e contrativos do dinheiro, que é o nervo dos exércitos e das repúblicas, fica tomado todo o corpo, e tolhido de pés e mãos, sem haver mão esquerda que castigue, nem mão direita que premeie; e faltando a justiça punitiva para expelir os humores nocivos, e a distributiva para alentar e alimentar o sujeito, sangrando-o por outra parte os tributos em todas as veias, milagre é que não tenha expirado”. Não havia imprensa e tevê na Bahia de 1641. Se houvesse, não adiantaria nada, como nada adiantou o sermão de Vieira pregando ao marquês de Montalvão: o pessoal continuou tomando o alheio, a tradição rapace, rapinante, roubadora é muito forte, enquanto os tributos nos sangram em todas as veias. Com imprensa falada, escrita e televisada, com internet de bandas não muito largas, mas, ainda assim, chegando devagarinho aos nossos computadores, ficamos cientes da tomação generalizada. E o substantivo feminino tomação, aqui, não deve ser entendido na rubrica bibliologia: divisão, em tomos, de uma determinada obra. É tomação no sentido de ânsia, de febre, de alegria de tomar o alheio. De vez em quando, não mais que de quando em vez, condena-se um ladrão importante, ladrão e assassino, a dois ou três anos de prisão domiciliar. Assassino de milhares de brasileiros, sim, porque ao tomar o alheio priva os mais pobres de alimentação, escolas e hospitais públicos decentes – e passa por santo. E merece a visita de um ex-presidente da República.

Moto-contínuo

Sou escolado em motos-contínuos, ou motos-perpétuos, desde o tempo de minha granja de galinhas, no ano de mil novecentos e antigamente. Na rubrica física, di-lo Houaiss, moto-perpétuo é o movimento de um mecanismo que, após iniciado, continuaria indefinidamente. Em geral, distinguem-se dois casos: o de primeira espécie, no qual o mecanismo geraria a própria energia, violando o primeiro princípio da termodinâmica, e o de segunda espécie, no qual o mecanismo converte todo o calor recebido em trabalho, violando o segundo princípio da termodinâmica. Deu-se que o meu compadre e sócio nos galinheiros, brasileiro de letras nenhumas, investiu boa parte dos caraminguás societários na construção de um moto-contínuo que começava com um motor diesel de 800RPM movimentando gerador elétrico, que por sua vez iluminaria Itaguaí e o mundo dispensando o diesel, não me perguntem como. Parece que o compadre confundia voltagem com amperagem. Não por acaso, Machado de Assis situou em Itaguaí seu conto “O alienista”, em que o dr. Bacamarte tranca a cidade inteira num hospício. O Bruxo do Cosme Velho morreu em 1908 e o gerador do sócio datava de 1958, portanto meio século depois.

Tive notícia, tempos mais tarde, de brasileiro ilustre, formado em engenharia militar, que investiu boa parte de suas economias num moto-contínuo à base de bolinhas de pingue-pongue, que obviamente nunca funcionou. Vejo, agora, que um grupo gaúcho, com ramificações em Illinois (EUA), está construindo dois motores supostos de movimentar geradores elétricos exclusivamente com as forças gravitacionais. Se o leitor de Tiro e Queda tem interesse pelo assunto, sugiro que veja as fotos dos motores montados em Porto Alegre e nos Estados Unidos por meio do site www.rarenergia.com.br. É coisa recente, de novembro de 2013.

O mundo é uma bola

21 de dezembro é o dia do solstício de dezembro, quando começa o inverno no Hemisfério Norte e o verão no Hemisfério Sul. Portanto, é o dia mais longo e a noite mais curta no Hemisfério Sul e o dia mais curto e a noite mais longa no Hemisfério Norte. Em 1620, peregrinos do Mayflower desembarcam em Plymouth Rock, na costa do Atlântico Norte, e estabelecem um assentamento permanente. Em 1844, um grupo de 28 tecelões de Rochdale, Inglaterra, estabelece as bases do cooperativismo. O Brasil é o único país em que cooperativa tem dono. Hoje é o Dia do Atleta.

Ruminanças  

“A constante do ser humano é a burrice. Para um gênio há 10 milhões de imbecis” (Nelson Rodrigues, 1912–1980). 

MEC anuncia 1,5 mil eliminações no Enem


Ministério divulga número de excluídos por tentativa de fraude neste ano, um dia depois que polícia mineira revelou esquema para burlar o teste. 396 punições foram em Minas

Pedro Ferreira
Estado de MInas: 21/12/2013 


Um dia depois da divulgação, pela Polícia Civil de Minas, de um esquema milionário de fraude que envolveria candidatos ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano, o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, anunciou ontem a eliminação de 1.522 participantes por tentativa de fraude. Desse total, 396 (26%) prestaram exame em Minas, quatro deles em Barbacena, no Campo das Vertentes, onde, segundo a investigação mineira, estuda o homem indicado como mentor do esquema – José Cláudio de Oliveira, de 41 anos –, que teria comprado na cidade provas que serviram de base para o golpe contra o teste federal.

De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), os 1.522 eliminados foram flagrados por fiscais no momento das provas, em outubro. As punições foram motivadas por irregularidades como uso de pontos de escuta, equipamentos eletrônicos e tentativa de consulta a conteúdos externos. No entanto, o desdobramento das investigações iniciadas em Minas, agora a cargo da Polícia Federal, pode revelar mais beneficiados por práticas fraudulentas.

No esquema identificado pela polícia mineira há indícios de que muitos candidatos conseguiram bom desempenho no Enem recorrendo à quadrilha. As investigações apontaram que José Cláudio de Oliveira adquiriu dois cadernos da prova, ambos da cor amarela, pagando um total de R$ 10 mil a um dos aplicadores do exame. Do candidato interessado na fraude era cobrado entre R$ 70 mil e R$ 100 mil pelo gabarito. Estima-se que pelo menos 40 pessoas tenham contratado o “serviço”.

 Em uma das ligações telefônicas interceptadas, golpistas chegam a comemorar o sucesso de uma cliente que recebeu o gabarito do Enem pelo celular e deixou o local de prova sem levantar suspeita. Outros receberiam respostas por pontos eletrônicos, segundo o delegado Fernando Lima, de Caratinga, no Vale do Rio Doce, onde começou a investigação.

O Inep informou que acompanha as apurações, fornece todas os dados necessários à polícia e pediu extremo rigor no esclarecimento dos fatos. Se a fraude for confirmada, candidatos envolvidos serão imediatamente excluídos do exame, reforçou o instituto.

Outros 36 candidatos haviam sido eliminados por postar fotos de provas em redes sociais. “A segurança do Enem é realizada, antes durante e após as provas, com o acompanhamento da Polícia Federal, o que tem permitido, ao longo dos anos, o aprimoramento do processo”, afirmou o presidente do Inep, Luiz Cláudio Costa.

Para o professor Francisco Soares, do Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais da Faculdade de Educação da UFMG, o Enem é uma operação de enorme complexidade, sempre sujeita a ações criminosas. Ele defende que o sistema de segurança seja continuamente aperfeiçoado, assim como o da Receita Federal. “Já tivemos vários exemplos de fraude e o Inep criou um sistema sofisticado. O que estamos observando é que vamos ter que aperfeiçoá-lo”, disse.

Segundo o Inep, este ano uma das principais medidas de segurança foi o uso de lacres eletrônicos em todos os malotes que transportaram as provas. Ainda de acordo com o instituto, cerca de 23 mil pessoas fizeram parte do esquema de segurança para a aplicação desta edição do Enem. 

ENTREVISTA/GUIOMAR DE GRAMMONT » A criação e o mercado - João Paulo


Escritora mineira fala da experiência como editora e anuncia projetos literários para o ano que vem

João Paulo
Estado de Minas: 21/12/2013 


 (Carol Reis/Divulgação)
Conhecida pela criação do Fórum das Letras de Ouro Preto, a professora e escritora Guiomar de Grammont deixa o cargo de editora de literatura brasileira da Record, uma das maiores casas editoriais da América Latina, enriquecida pela experiência e cheia de planos para sua carreira literária. “Foi uma experiência riquíssima”, reconhece Guiomar, que, ao lado da seleção dos títulos de autores brasileiros de ficção, destaca em sua passagem pela empresa o trabalho voltado para a ampliação da editora em eventos como a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

Mas Guiomar garante que sua saída da Record – quem assume a área é o editor Carlos Andreazza, até então responsável pelo catálogo de não ficção – está ligada sobretudo a seus projetos literários, que incluem romance, poesia e peça de teatro. “Quero voltar a ter tempo para escrever e me dedicar de corpo e alma à divulgação dos livros que pretendo publicar em 2014. Tenho enorme carinho e respeito pelos autores do meu catálogo, não queria me sentir dividida entre o cuidado com as obras deles e os lançamentos dos meus livros.”

Professora da Universidade Federal de Ouro Preto, Guiomar de Grammont foi curadora nas bienais do livro do Rio de Janeiro, Minas e Bahia e organizou eventos literários no exterior, como o Letras em Lisboa e a parte brasileira do Salão do Livro Latino-americano de Paris. Entre seus livros se destacam o ensaio Aleijadinho e o aeroplano: paraíso barroco e a construção do herói colonial e a coletânea de contos Sudário. Em entrevista ao Pensar, ela fala do trabalho do editor no Brasil, do difícil caminho para publicar o primeiro livro em uma editora consolidada no mercado, dos eventos literários e das novas tecnologias que conquistam cada vez mais espaço no cenário da indústria do livro.

Sempre se fala muito do autor, mas se conhece pouco o papel do editor. Que contribuição este profissional tem a dar no universo do livro, do mercado e da leitura no Brasil?

O editor é um filtro. Ele leva a público suas escolhas, as quais podem ser determinadas por diferentes critérios, tais como a qualidade literária ou o potencial de vendas de um livro. Se a editora tem também um poder de penetração na mídia e uma rede ampla de distribuição em território nacional, o editor pode fazer com que um livro seja lido por muitas pessoas, o que possibilita que seu autor saia do anonimato. Além disso, o bom editor atua em interlocução com o autor para tornar as obras mais claras e bem construídas.

Como se forma um editor e que desafios são colocados a ele no Brasil e no mundo num contexto de competição com outras mídias?

Hoje, há excelentes cursos de produção editorial, contudo, penso que a formação é muito intuitiva. É preciso que seja alguém que goste muito de ler e tenha tempo e ambiente para fazer isso com atenção. Os livros sempre dialogaram com outras mídias, mas uma prova do seu poder de permanência é o fato de que um mesmo livro pode ser matriz para diferentes adaptações ao longo do tempo. A atenção que uma obra desperta, em detrimento de outras, muitas vezes depende mais de fatores externos à literatura, sujeitos à flutuação do mercado. A verdadeira literatura deveria aspirar a uma eternidade, ou seja, ser menos circunstancial e mais universal. Infelizmente, porém, os valores do mercado imperam.

Um dos momentos mais difíceis para o novo autor é a apresentação de seu livro a uma editora consolidada no mercado. Que conselhos você daria a um jovem escritor?

Os editores costumam ser muito ocupados, por isso, é interessante que o autor envie uma pequena sinopse, acompanhada de um currículo mínimo, por e-mail. O autor deve enviar os textos por e-mail apenas se o editor manifestar interesse. Fazer-se recomendar por um autor da casa ou por um crítico conhecido também ajuda a chamar atenção para a obra. As editoras têm pouco espaço para absorver o número avassalador de obras que recebem. Para adentrar no mundo da literatura, pode ser interessante a publicação em editoras que compartilham custos ou publicar por conta própria, até mesmo pela internet. Nesse caso, quando o livro é publicado, é preciso trabalhar o máximo possível na divulgação. Às vezes, mal o livro é lançado, os autores já começam a escrever outro, esquecendo o que acabaram de publicar. Hoje, em uma editora comercial, a publicação do próximo livro depende do sucesso do anterior. Por isso, é preciso se esforçar ao máximo para garantir que a obra chame a atenção do público e da mídia. Costumo lembrar o exemplo de Laurentino Gomes, que passa alguns anos em esforços consideráveis para divulgar seus livros, antes de pensar em escrever ou publicar novamente.

O debate sobre o fim do livro físico e o crescimento dos e-books se mantém vivo. Como você avalia o crescimento dos e-books?

Penso que o livro físico sempre existirá, contudo se tornará cada vez mais sofisticado e apreciado por sua raridade e aspectos estéticos. Os e-books oferecem inúmeras vantagens no mundo atual, em que o espaço físico em casas e bibliotecas se reduz cada vez mais, e a mobilidade das pessoas aumenta. Além disso, ampliam as possibilidades de leitura para limites que, hoje, mal conhecemos. O espaço limitado dos livros impressos se torna ilimitado, democrático, simultâneo. Podemos ler um livro quase ao mesmo tempo em que ele é escrito. Contudo, como suporte da memória, os e-books são mais volúveis, menos duráveis, é difícil imaginar as consequências do advento do e-book para a história da humanidade. Esse é o tema que começo a estudar para desenvolver em pós-doutorado, sob orientação de Roger Chartier.

Muitos autores deixaram de lado as editoras e investem em edições digitais próprias. Como você avalia essa tendência? Há uma nova literatura nas redes sociais?

Como o livro é sobretudo uma forma de comunicação, é incrível o número de leitores que um autor pode alcançar escrevendo apenas em redes sociais. De qualquer forma, pelo que observamos na prática, a publicação por uma grande editora, com seu equipamento de divulgação e distribuição, pode fazer com que se amplie muito mais o potencial de vendas e de leitura de uma obra que já fez sucesso em publicação própria ou nas redes sociais.

À frente do Fórum das Letras de Ouro Preto, como você avalia o cenário desse tipo de evento e da aproximação da literatura com o leitor?

O Fórum das Letras se coloca entre os eventos que divulgam atividades de promoção à leitura realizadas pela universidade ao longo de todo o ano, daí a sua eficácia transformadora. É preciso aproximar os leitores das obras, não apenas dos autores. Mas o boom de eventos literários no Brasil nos últimos 10 anos vem estimulando muito a literatura, forma um público e um mercado para o livro, o que é fundamental para o desenvolvimento da leitura e amplia o número e a diversidade das publicações.

Quais são seus novos projetos na literatura, como organizadora de eventos e como autora?

Teremos um Fórum das Letras grandioso, celebrando seus 10 anos, e estarei lançando, junto com o Instituto Oldemburg, um evento na região serrana do Rio de Janeiro, o Festival Literário Internacional da Serra. Estarei voltando a realizar eventos em outros países. Irei lançar o romance intitulado Na tua ausência..., que trata da presença obsedante de um parente, cujo corpo jamais foi encontrado ou enterrado; e Aeroportos, poema longo sobre a sensação do nowhere, a angústia do deslocamento do homem no mundo, a maldição do Judeu Errante, de que falava Kierkegaard. A ideia do poema me surgiu das estátuas de bronze de viajantes cansados, que vagam, com seus corpos apenas sugeridos, às vezes, incompletos, pela estação de Atocha, em Sevilha. Estou escrevendo também, junto com a diretora italiana Alessandra Vannucci, uma adaptação para o teatro do Diário da prisão, de Judith Malina.

A alma do tempo [ Yeda Prates Bernis] - Carlos Herculano Lopes


A escritora Yeda Prates Bernis lança livro de poemas Entressombras, que revela a poesia sofisticada que encantou Henriqueta Lisboa e Drummond


Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 21/12/2013



Sempre discreta, Yeda volta a publicar livro de versos incentivada por amigos e críticos literários
 (Jair Amaral/EM/D.A Press)
Sempre discreta, Yeda volta a publicar livro de versos incentivada por amigos e críticos literários

Discípula de Henriqueta Lisboa, de quem era amiga e confidente, Yeda Prates Bernis está com livro novo, Entressombras, o que é um bom motivo para comemorar. Quietinha no seu apartamento no Bairro Funcionários, em Belo Horizonte, de onde raramente sai, ela é dona de uma poesia refinada, das melhores feitas no país.

Há muito estava sem publicar. Escreve bem desde a estreia, já no distante 1967, com Entre o rosa e o azul, e prossegue com brilho sua caminhada com este novo trabalho, que só vem firmar o seu nome como uma poeta de primeira linha, na qual também se inserem, só para falar dos que ficaram em Minas, nomes como os de Bueno de Rivera, Emílio Moura, Elza Beatriz e Libério Neves.

Mineira de Belo Horizonte, onde sempre residiu, a história de Yeda Prates Bernis com a poesia vem de longe, ainda da infância, quando fazia versinhos rimados para serem lidos no colégio, muitas vezes encomendados pelas colegas. “Depois prossegui escrevendo na universidade, onde cursei letras neolatinas, e no Conservatório Mineiro de Música, quando estudava piano”, conta.

Os poemas deste novo livro, que vem com um belo trabalho gráfico feito por Marconi Drummond, são quase todos inéditos – só uns poucos foram publicados na Revista da Academia Mineira de Letras, à qual ela pertence. Yeda tem ainda trabalhos espalhados em revistas literárias da França, Hungria, Itália e Espanha.

Há algum tempo, de acordo com a poeta, ela havia decidido que não iria publicar mais livros, porque dá muito trabalho e, além do mais, está se sentindo meio cansada. Mas, no caso de Entressombras, depois de ter mostrado os originais para os amigos Márcio Sampaio e Fábio Lucas, seu colega na academia, eles a incentivaram a lançá-lo. “Colocaram-me contra a parede e não tive outra saída a não ser aceitar mais este desafio”, conta Yeda.

Purificação


Valeu a pena, pois seus poemas, que tanto encantaram Henriqueta Lisboa e Carlos Drummond de Andrade – com quem se correspondeu durante muito tempo – e chegaram a ser musicados por Camargo Guarnieri, sob o título Tríptico de Yeda, estão ainda mais bonitos em Entressombras. Com o passar do tempo, o que nem sempre acontece, seus versos foram se purificando, ficando mais lapidados.

É um verdadeiro trabalho de carpintaria, como podemos ler no texto que dá título ao livro, no qual, com muita sensibilidade, a poeta faz uma referência a um problema de visão, com o qual convive há algum tempo: “ Indesejada neblina/ ofusca antiga visão./ Em espelho embaçado/ traços difusos/ sem cor./ Na entressombra do olhar uma dúvida:/ é folha soprada ao vento/ ou passarinho a voar?”

A renda obtida com a venda de Entressombras será toda revertida para as Voluntárias do Hospital do Câncer Mário Pena. Entre os vários prêmios que Yeda já recebeu, estão o Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, e o Alejandro José Cabassa, da União Brasileira de Escritores. 

Orelha


Estado de Minas: 21/12/2013 


Obra de Benjamin sobre haxixe ganha nova tradução em português

 (Universitat Giessen/Reprodução)
Obra de Benjamin sobre haxixe ganha nova tradução em português

Para fazer
a cabeça


A Editora Autêntica lança mais um volume das obras do filósofo Walter Benjamin, dentro da série dedicada ao pensador alemão, Filô Benjamin. Trata-se de dois conjuntos de textos, que são apresentados em edição única: Imagens de pensamento – Sobre o haxixe e outras drogas, com tradução feita diretamente do alemão por João Barrento. “Imagens de pensamento” traz um conjunto de textos que foram publicados em jornais e revistas alemães e suíços, que tratam de reflexões sobre cidades europeias, sobre o método de trabalho de Benjamin, além de análises sobre o momento que vivia a Europa. Já em “Sobre o haxixe e outras drogas”, Benjamin apresenta um meticuloso estudo, como um protocolo clínico, acerca de suas experiências com o uso de drogas psicoativas.


Mapa bíblico

A Sociedade Bíblica do Brasil está lançando nova edição da Enciclopédia bíblica ilustrada. A publicação reúne informações detalhadas sobre a Bíblia e análises dentro de seu contexto cultural e histórico. Organizada de forma didática, a obra reúne mais de 300 fotos, mapas, principais temas, personagens e curiosidades, além de cronologias e gráficos.


Versão brasileira

 (Paulo Whitakerreuters)


Depois de lançar dois livros de memórias no Brasil, A arte da política e A soma e o resto, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (foto) está de volta com um terceiro título, O improvável presidente do Brasil (Civilização Brasileira). O volume é tradução do livro lançado nos Estados Unidos em 2006, que contou com a colaboração de Brian Winter e ganhou prefácio de Bill Clinton. Nele, FHC, além de recuperar passagens familiares e da infância, apresenta visão mais pessoal dos acontecimentos políticos do país nas últimas décadas.


Cozinha em verbetes

A receita é única: mais de 2 mil verbetes sobre o vocabulário da cozinha nacional. Arte da cozinha brasileira é obra feita a quatro mãos. A pesquisa realizada por Leonardo Arroyo nos anos 1960 foi completada por Rosa Belluzzo, que deu a forma final ao volume. Várias palavras foram pinçadas em dialetos indígenas e africanos e em documentos bibliográficos hoje raros, reunidas às palavras de matriz europeia. O leitor vai ficar conhecendo o sentido de termos como abunã, xequetê, piché e vigongo.


Profeta político

Zelota – A vida e a época de Jesus de Nazaré, de Reza Aslan, é uma das apostas da Editora Zahar para o Natal. O livro causou polêmica nos Estados Unidos e está entre os mais vendidos no Brasil. A tese do autor, defendida com fundamento histórico, é que Jesus de Nazaré foi um rebelde judeu carismático, nacionalista, que desafiou as autoridades romanas e a hierarquia religiosa judaica.


Inconfidência em versos

Chega às livrarias, pelo selo Global, a edição comemorativa dos 60 anos do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. O volume, além do texto integral, traz fortuna crítica com textos de Alfredo Bosi, Miguel Sanches Neto, Hélio Pólvora, Paulo Rónai, Darcy Damasceno, Walmir Ayala, Maria da Glória Bordini e Flávio Loureiro Chaves, além de caderno de fotos de Cecília Meireles pelas cidades coloniais mineiras. A organização da edição comemorativa é de André Seffrin e a apresentação de Alberto da Costa e Silva.


Sexo de menos

Grande sucesso editorial da Paralela, a série Crossfire, de Sylvia Day, tem cinco volumes previstos. Na espera dos dois últimos, ainda não publicados, a editora publica outro título da escritora especializada em romances de alto teor sexual. Não se deixe enganar. Amigo secreto, que reúne dois contos, está sendo lançado na tentativa de vender às pencas nas festinhas de fim de ano. O conto que dá título ao volume mostra a lista de desejos mais do que apimentados de dois colegas de um escritório de advocacia. O segundo, Sangue e rosas, tem um clima de policial. Pura balela, as duas histórias são mera desculpa para narrativas pobres em tudo. Até mesmo no sexo.


Sétima arte

Dando sequência aos Ensaios de crítica cinematográfica, Guido Bilharinho lança o volume O cinema de Buñuel, Kurosawa e Visconti (Revista Dimensão Edições, Uberaba), 14º título da série. O autor analisa praticamente toda a cinematografia dos três cineastas, inclusive os primeiros e poucos conhecidos filmes mexicanos de Buñuel e as produções inaugurais de Kurosawa. Informações: (34) 3312-1122.

Sob as asas do analista - Paulo Bentancur


Estado de Minas: 21/12/2013 


Romance de absoluta exceção, o 38º livro de Paulino Vergetti Neto, nascido em União dos Palmares, em Alagoas, hoje residente em Garanhuns, em Pernambuco, confirma a trajetória quase assombrosa de um escritor (Paulino também é médico, na área da oncologia) capaz de um estilo tão escorreito quanto, pela ótica que adota ao narrar, caleidoscópico.

Meu analista é um anjo trata-se de um romance de quase 400 páginas, que ocorre não só num único dia, mas apenas durante uma sessão de psicanálise. O extraordinário na criação ficcional do escritor já se mostra nesse fôlego, tipicamente joyceano – excetuada a linguagem, uma vez que, ao contrário do dublinense, o brasileiro destaca-se por ser um incansável contador de histórias.

Melhor que isso, as histórias que traz à tona estão embebidas de reflexões de quem conhece as águas mais profundas da terapia, da filosofia, da poesia, e sobretudo da vida alimentada por verdades humanas a revelar que uma pessoa não é, jamais!, um único ser, mas vários.

Freud instituiu isso há mais de um século, e depois, naturalmente, muitos artistas partiram dessa premissa para derrotar de forma contundente a linearidade. Pois Paulino é um homem adulto que, no romance, assumindo o narrador, comparece numa sessão terapêutica para a qual convergem, por meio de sua escrita sumarenta, memórias de infância, cenas impagáveis e elementos de inquestionável autobiografia.

Não há aspecto emocional, afetivo, que o autor não aproveite. Nesse sentido, podemos afirmar, sem nenhuma hesitação, que Meu analista é um anjo (nada a ver com autoajuda, é conficção mesmo) trata-se de um livro até mesmo desconcertante por mais de uma razão.

Primeiro, porque a narrativa é toda ela costurada por transições entre o presente na análise (uma análise, aliás, sui generis), e uma série de digressões que passam tanto pela memória quanto pela reflexão.

Um livro a exigir uma maturidade enorme experiência de vida, alimento riquíssimo para adensá-lo, e maturidade estética, fazendo-o, de algum modo, uma espécie de “plurirromance”, para usar-se aqui um neologismo necessário.

Presença da poesia Uma presença nesta narrativa poderosa, de arquitetura engendrada com muita criatividade, surpreende a quem abre as páginas de um romance dentro do qual percebe, de imediato, que uma existência dotada de riquíssimas nuances nos será revelada, é a poesia. Não a poesia que encontramos no poema, evidentemente, mas aquela transcendência que acaba em lirismo, lirismo como sinônimo metaforizado de zelo em ser uma pessoa ética, consciente em grau máximo de si e dos que lhe convivem no entorno, do temperamento dotado de uma afetividade rara.

Em suma: o romance de Paulino Vergetti Neto nos traz uma trama que se ramifica em várias direções, mesmo que pregada no presente (o tempo presente desse autor nunca esquece tudo que, lá atrás, o trouxe até aqui). As situações que ocorrem quase sempre chegam tomadas de uma emoção (é desta poesia que falo), emoção que, mais que simplesmente marca registrada dos que buscam uma sintonia humanizadora, nos toma como parceiros dessa vivência que jamais admite o raso.

Em suma. A natureza humana, condenada à profundidade, muitas vezes, por temor ou fragilidade, tenta escapar dela. Meu analista é um anjo faz exatamente o caminho contrário: vai cada vez mais fundo na direção de cada uma das diversas facetas que compõem o nosso espírito multiplicado.

Um romance, enfim, que depois de lido exige releitura. Porque ele também é mais de um romance.

Paulo Bentancur é escritor e crítico.

Rolezinho, consumo e maconha - João Paulo


Estado de Minas: 21/12/2013 


Presidente Mujica dá uma lição consequente de liberdade de direitos humanos ao mundo (Andres Stapff/Reuters)
Presidente Mujica dá uma lição consequente de liberdade de direitos humanos ao mundo

Um dos fenômenos que vêm chamando a atenção da sociedade brasileira é a invasão de shopping centers por jovens, perturbando a falsa paz social que reina nos galpões de lojas espalhados pelo país. O evento ganhou o nome de rolezinho. Uma espécie de ocupação legítima do espaço por novos personagens sociais até então dotados de invisibilidade social.

A sociedade brasileira sempre foi criativa em matéria de exclusão. Não precisamos de apartheid legal, pois as ferramentas simbólicas cumpriam esse papel. Sem leis ou cartazes, havia uma fronteira imaginária que foi sendo transposta aos poucos. Quem não se lembra do mal-estar da classe média quando os aeroportos começaram a receber novos viajantes?

O Brasil é o único país do mundo que tem elevador de serviço para separar pessoas por classes, funções e cor. E não é só isso: muitas empresas se esmeram em construir elevadores privativos pelo único e exclusivo medo de fazer conviver no mesmo espaço os dois lados do clássico binômio capital/trabalho.

A mesma sanha excludente pode ser observada em vários espaços sociais, como os condomínios fechados, que impedem a livre circulação de pessoas, ou o direito constitucional de ir e vir, em nome de uma pretensa segurança. Aliás, esse mesmo medo da violência deu a shoppings o papel de rua e praça que sempre foi cumprido pelas… ruas e praças. Com temor da vida real, as pessoas criaram espaços artificiais que têm praças (de alimentação) e ruas (de lojas). E expulsaram de lá a diferença.

O fenômeno do rolezinho é apenas a expressão de uma nova realidade política. No entanto, as interpretações são quase sempre empurradas para a sociologia ou para o comportamento. O que está em ação é um novo patamar de autorreconhecimento do cidadão como portador de direitos, e não apenas como consumidor.

Que o fato mostre sua dimensão num centro de compras é duplamente significativo: reforça a dinâmica do consumo como forma de expressão e expõe a ilegitimidade das estratégias de divisão dos espaços sociais. Depois de ocupar as praças do mundo, nada mais natural que ocupar as praças dos shoppings.

Há um equívoco de base nessa história. Para parte dos intérpretes sociais, trata-se da emergência de uma nova classe média. Está errado, pelo menos conceitualmente. Os novos habitantes de centros de compra e aeroportos não são da classe média, o que indicaria posição mais próxima do capital, mas classe trabalhadora que autopostula direitos em razão da melhoria do consumo. O consumo não é a ponta do sistema, mas uma estratégia de localização. A classe social não é definida pelo consumo, mas o consumo aproxima comportamentos sociais de classes distintas.

Para entender a diferença, basta analisar como se comportam os jovens de diferentes classes sociais na mesma operação de consumir em um shopping. Os dois grupos se movimentam coletivamente, possuem códigos próprios, expressam-se por meio das marcas que consomem. No entanto, a relação com o consumo é distinta. Um grupo reafirma sua distinção; o outro emula para não se distinguir. O primeiro reclama de falta de segurança; o outro sofre nas mãos dos seguranças.

O período do Natal é sintomático para compreender essa situação. A festa que tem raízes religiosas, todo mundo sabe, há muito foi assumida pela lógica do consumo. Não se trata apenas de estimular as compras, mas de traduzir o sentido espiritual por um substrato material. O que era para ser uma aproximação de dinâmicas celestiais se torna um inferno.

No entanto, é curioso como os consumidores, sempre que perguntados por repórteres, afirmam que vale a pena passar pela provação das compras, pois é uma forma de expressar o amor aos filhos e parentes. O consumismo não precisa ser apenas tradução material do afeto, mas deve carregar todos os elementos morais da oferta do dom ao ser amado: o trabalho para ganhar dinheiro (mesmo que se traduza em distância dos filhos) e a provação das compras (mesmo para desagradar por definição o presenteado, que sempre quer mais do que ganha – afinal, não se trata de um aparelho eletrônico de última geração, mas de amor).

O consumismo não faz bem ao indivíduo, não é um motor eficiente para a economia (pela necessidade de obsolescência programada), não é uma base moral para a sociedade. Ao investir contra os liames de solidariedade em favor de distinção, o consumismo evidencia o que o homem tem de pior e menos solidário. Uma das traduções desse processo de divórcio social é a criação, no seio de uma sociedade mais dividida, de novas lâminas que cortam os grupos sociais: as áreas vips, os fura-filas, os cartões especiais, os clientes de agências prime etc.

Os rolezinhos e seus atores não são o avesso do mundo do consumo, mas seus mais fiéis apóstolos.

Fumaça A decisão do Uruguai de permitir o consumo da maconha em seu território, seguidas as diretrizes da lei (forma de produção, distribuição e quantidade por pessoa), é um exemplo que merece reflexão em todo o mundo. Fora da histeria proibitivista e do libertarismo inconsequente, o país dá uma lição a nações, como a Holanda, que já tentaram a liberação sem atentar para aspectos que fazem a diferença. O Uruguai não chegou à liberação pela evidência do fracasso das políticas de proibição, mas como consequência de ações no âmbito dos direitos humanos, que obrigaram ao responsável processo de tirar do usuário a pecha de criminoso.

No Brasil, que começa a falar da liberação como alternativa séria, a situação ainda está distante exatamente pelo acercamento criminal da questão. O Uruguai soube tratar a droga como uma questão humana, que diz respeito ao desejo e suas incontroláveis consequências. Nosso país não consegue efetivar uma política de descriminalização exatamente por seguir as diretrizes do crime e da economia. Para nós, a droga não é uma inclinação controlável, mas um bom negócio. Quanto mais proibido, melhor.

O Uruguai é um país pequeno, mas pensou grande e se preparou para dar esse passo, que certamente terá resultados eficientes a longo prazo. Quanto ao Brasil, a continuar na mesma onda moralista, deverá seguir discutindo sobre internação compulsória e cracolândia como campo de extermínio de pobres. A liberação responsável do consumo da maconha é um avanço inegável. Atraso é apostar na repressão e incentivar o crime organizado. Onde há fumaça há fogo. Prometeu roubou o fogo e desagradou os deuses. O Brasil precisa desagradar os traficantes.

Patrono dos invisíveis - Walter Sebastião


Para o teólogo Leonardo Boff, mesmo pouco presente nos evangelhos, José simboliza a figura masculina do pai, trabalhador e companheiro, e traz lições para os dilemas do nosso tempo

Walter Sebastião
Publicação: 21/12/2013 04:00
Leonardo Boff (Renato Weil/EM/D.A Press)
Leonardo Boff
Na cena de nascimento de Jesus, sintetizada nos presépios, reina o menino Deus recém-nascido. Maria irradia luz, emoção e alegria. Mas deixando o olhar flutuar ao sabor da atmosfera criada pelos dois personagens descobre-se o encanto de figura discreta, séria, silenciosa: São José. Elementos que tanto fazem parte da poesia que emana dele, mas que também pontua certa invisibilidade do terno carpinteiro na iconografia cristã. Fica na sombra personagem fascinante, com história dramática antes e depois do nascimento de Jesus.

São José, conta o teólogo Leonardo Boff, curiosamente, sem grande importância para a Igreja, nunca foi esquecido pelo povo de Deus. “São milhões de Josés no mundo, infindáveis nomes de escolas, de ruas, sem falar das igrejas a ele dedicadas. De alguma forma os fiéis intuem que aí está uma referência do pai bom, educador, trabalhador, companheiro e defensor de Maria e de Jesus. Se os evangelhos oficiais falam pouco dele, os outros evangelhos, chamados de apócrifos (porque não foram oficialmente reconhecidos pela Igreja), falam muito. As pinturas que temos de São José, no presépio, indo para o Egito junto com Maria, se inspiram nesses documentos”, explica.

Leonardo Boff tem um livro sobre São José, produto de 20 anos de pesquisa (São José a personificação do Pai, Verus Editora). “Não se pode pensar concretamente no mistério da encarnação sem a presença de José. Foi ele quem acolheu Maria grávida e criou as condições reais para uma vida de família. Mas na tradição nunca se deu muita importância a ele. Só se pensa em sua missão e, uma vez cumprida, ele pode desaparecer e ser esquecido”, observa o teólogo, lembrando que Maria, sem José, não teria condições de cuidar da vida de Jesus. Os primeiros sermões sobre São José só começaram a ser feitos a partir dos anos 800. “Por aí se percebe a pouca importância que lhe era atribuída”, exemplifica Boff.

“A razão é que vivemos num tipo de Igreja na qual o que conta é quem detém a palavra e poder de decisão, que são os bispos e os padres. De São José não temos nenhuma palavra. Ele apenas teve sonhos. Nem sabemos sua origem e quem foram seus pais”, lembra Leonardo Boff. “A Igreja não sabia o que fazer com São José. Em 1870, foi proclamado patrono da Igreja. Mas, na verdade, ele é patrono da Igreja dos invisíveis e anônimos, dos milhões e milhões de cristãos que vivem no seu dia a dia os valores do evangelho”, acrescenta. E vê, em São José, representações de milhões de cristãos que nunca aparecem nem podem falar e decidir sobre suas vidas e os rumos da sociedade em que vivem.

Qual o sentimento do senhor diante da cena do nascimento de Jesus?
Precisamos resgatar a inteligência emocional que vai além da razão intelectual. Quando nasce uma criança, nos enchemos de admiração e dizemos: sempre que nasce uma criança é sinal de que Deus ainda acredita na humanidade. Assim devemos entender os relatos bíblicos sobre o nascimento de Jesus. A comunidade cristã, quando escreveu os evangelho, cerca de 30-40 anos depois da crucificação de Jesus e de sua ressurreição, já havia entendido que atrás daquela criança se escondia o próprio filho de Deus. Por isso cercam a cena do Natal de significados celestiais, como anjos que cantam, a estrela no céu, os sábios que vêm de longe. Como tudo historicamente aconteceu não o sabemos pela razão intelectual, mas pela inteligência emocional intuímos que aí há um mistério ao qual nos acercamos com reverência e respeito. E criamos símbolos adequados que conferem relevância a esse fato, que, em si, pareceria banal.

Que tipo de paternidade São José enseja ou inspira?

A teologia cristã diz que ele exerceu todas as funções de pai, que foi a de cuidar de Maria em sua gravidez e de proteger Jesus e sua mãe, Maria, quando tiveram que fugir para o exílio. Viveu como esposo e iniciou o filho nas tradições religiosas do povo e na profissão de carpinteiro. Dogmaticamente, nada impede que ele tivesse sido pai biológico de Jesus. Os evangelhos falam que “Jesus é filho de José”, ou “o filho do carpinteiro”. Mas não é isso que testemunha toda a tradição cristã. A gravidez de Maria se deve à ação do espírito que veio morar nela e deu origem a uma nova humanidade, totalmente purificada do peso da história, marcada pelo pecado. Ele foi pai adotivo e legal no sentido semita, aquele que dá o nome à criança e assim se torna o pai social. De toda forma, Maria e Jesus formam a família de José.

Como a dimensão do masculino se afirma a partir de São José?
José mostra o lado melhor da paternidade, que é o de estar sempre ao lado da esposa e do filho. A Bíblia fala que era um “homem justo”. Na linguagem da época significava que socialmente assumia uma liderança e era considerado um ponto de referência para todos. Hoje, sofremos com o eclipse da figura do pai. Isso produz sentimento de insegurança nos filhos e a falta de limites. José foi um educador. Se Jesus mais tarde vai chamar Deus de “paizinho querido” isso significa que ele teve uma experiência de grande intimidade com o pai José. Freud mostrou que a base para uma imagem boa de Deus provém de uma relação boa com o próprio pai. Os tempos de José e os nossos são diferentes. Mas a missão é a mesma: ser aquela figura que cuida, que provê tudo o que a família precisa, que inicia nos valores éticos e espirituais do povo e que aceita correr riscos em defesa da família, como quando teve que enfrentar o deserto a caminho do Egito. Aí aparece a dimensão do masculino (a coragem, a determinação), que junto com o feminino (o cuidado e o amor) ajudam a constituir uma personalidade integrada e feliz, pois cada pessoa carrega seu lado feminino e masculino.

Qual a importância teológica de São José?
Tenho defendido a tese de que São José é a personificação do Pai celeste. Haveria um equilíbrio no mistério de Deus que se revelou à humanidade. O Espírito Santo, segundo Lucas, veio sobre Maria e fez morada nela. Em seu seio, por causa da presença do Espírito Santo, começou a se formar a santa humanidade do Filho do Pai. O Filho se encarnou em Jesus. E o Pai não ficou de fora desse processo. Ele é bem representado pela figura de José, porque o Pai é o mistério absoluto representado pelo silêncio (não fala, quem fala é o Filho), é o criador de todas as coisas. São José também é o homem do silêncio e o trabalhador. Não fala com a boca, mas pelas mãos que constroem a casa, os bancos, as janelas e os telhados. O Pai celestial é o que cuida de todo o universo e de cada um de nós, à semelhança de São José, que cuidou da família em tudo o que fosse necessário. São José comparece como a figura mais adequada para receber em sua vida a vinda do Pai que também veio morar conosco. Identifiquei na Igreja de São Francisco Xavier, na pequena vila de Saint François du Lac, em Quebec, no Canadá, um quadro de 1742 que representa são José com o mesmo rosto do Pai celeste que aparece no alto. Daí me veio a ideia de que São José é a personificação do Pai celeste. Assim temos a família divina encarnada na família humana. A totalidade do mistério da Santíssima Trindade entrou em nossa história e a santificou. São José é parte desta entrega total do Deus-família à família humana. Os cristãos deveriam refletir mais sobre essa conexão para se sentir mais envolvidos pela presença divina e ficar sabendo que o nosso Deus é um Deus próximo e que se revelou assim como é, como Pai (em José) como Filho (em Jesus) e como Espírito Santo (em Maria).

Tv Paga

Estado de Minas: 21/12/2013 (Apaches Entertainment/Divulgação)

 É um ou outro Drama ou comédia?

 Esses são os gêneros das duas principais estreias do pacotão de filmes de hoje. No Telecine Premium, Naomi Watts e Ewan McGregor encabeçam o elenco de O impossível (foto), que conta a história de uma família separada pela tragédia do tsunami que destruiu a Tailândia em 2004. Na HBO, a alternativa é o humor e romantismo de Celeste e Jesse para sempre, com Rashida Jones e Andy Samberg. Os dois filmes serão exibidos às 22h.


 Veja como Redford fez sua estreia na direção

 O Telecine Cult continua com a seleção “Grandes diretores, primeiros takes”, reservando para hoje, às 19h40, o drama Gente como a gente, dirigido por Robert Redford. O Megapix passou a reprisar os melhores filmes que exibiu em 2013, agendando para hoje Cartas para Julieta, às 22h. No TCM, a mostra “Grandes sucessos vol.1” conta com Velozes e furiosos, também às 22h. Ainda na faixa das 22h, o assinante tem mais oito boas opções: As afinidades eletivas, no Futura; MIB – Homens de preto 3, na HBO HD; Batman – O Cavaleiro das Trevas ressurge, na HBO 2; A fada, no Max; Príncipe da Pérsia – As areias do tempo, no Max HD; O escritor fantasma, na MGM; Prometheus, no Telecine Pipoca; e Idas e vindas do amor, na Warner. Outras atrações da programação: Uma noite de amor e música, às 19h, no Comedy Central; Família vende tudo, às 21h30, no Sony; O melhor amigo da noiva, às 22h05, no Universal Channel; Hitman – Assassino 47, às 22h30, no FX; e Luzia, homem, às 23h, na Cultura.

 Mobilização popular étema de documentário

 Entre os documentários, o destaque é Pátria amada, que vai ao ar às 21h30, na TV Senado, analisando as manifestações nas ruas de todo o país, com a população pedindo a melhoria dos serviços prestados pelo poder público. No canal History, às 20h, Contato extraterrestre relata casos de avistamentos de luzes, supostamente de óvnis, que põem em risco voos comerciais e militares. No mesmo horário, o Nat Geo exibe, na série Access 360º world heritage, o episódio inédito “Sagrada família”.

 Atrações culinárias dão boas dicas para as festas

 O canal Bem Simples preparou episódios especiais para este fim de ano só com receitas típicas do Natal. A programação vai ao ar às 19h30, com edições temáticas de A confeitaria, Brasil no prato, Cozinha caseira e Homens gourmet. O GNT faz algo parecido com Tempero de família e Decora em um bloco e Que marravilha! no outro, repetindo a dose para o réveillon no sábado que vem, sempre às 21h30.

 Pacote musical vai do sertanejo aos clássicos

 Entre as atrações musicais, a Cultura sai na frente com o rapper Crônica Mendes no Manos e minas, às 17h, e a banda Gork no Cultura livre, às 18h. Às 21h30, no canal Viva, tem roda de samba com Jorge Aragão. No Canal Brasil, às 22h, será exibido o documentário Coração vagabundo, que registra uma turnê internacional de Caetano Velloso em 2005. No Multishow, às 22h30, a escolha foi a música sertaneja de Jorge & Mateus ao vivo, às 22h30. E no Arte 1, às 23h30, vai ao ar um especial sobre a 18ª edição do festival de música erudita de Verbier, na Suíça.