terça-feira, 11 de novembro de 2014

Graça infinita A gente faz o que eles mandam a gente fazer.


Graça infinita

A gente faz o que eles mandam a gente fazer. Eles dizem que aqui é Orgulho sem Bagulho

David Foster Wallace


Na noite seguinte ao piquenique gelado e meio constrangedor de celebração conjunta do Dia da Interdependência para a Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool de Enfield, da Phoenix House de Somerville e da tristeza que era a reabilitação juvenil Nova Escolha de Dorchester, a funcionária da Ennet Johnette Foltz levou Ken Erdedy e Kate Gompert com ela para uma Discussão para Novatos do NA em que o tema era sempre a maconha: como cada viciado da reunião tinha se arranjado problemas terríveis de vício da maconha já desde o primeiro baseado, ou como tinham ficado ligados a drogas mais pesadas e tinham tentado mudar para a erva para largar as drogas originais e mas aí tinham ficado com problemas ainda mais terríveis com a erva do que tinham com as coisas pesadas originais. Essa era supostamente a única reunião do NA da Grande Boston explicitamente devotada à maconha. Johnette Foltz disse que queria que Erdedy e Gompert vissem o quanto estavam completamente não isolados e não solitários em termos da Substância que tinha derrubado os dois.






























Havia coisa de talvez duas dúzias de viciados novatos em recuperação ali na sacristia anecoica de uma igreja chique do que Erdedy imaginou só podia ser ou West Belmont ou East Waltham. As cadeiras estavam dispostas no tradicional círculo amplo do NA, sem mesas e com todo mundo equilibrando cinzeiros no colo e acidentalmente chutando copinhos de café. Todo mundo que levantava a mão concordava sobre as formas insidiosas com que a maconha tinha detonado seu corpo, mente e espírito: a maconha destrói lenta mas totalmente era o consenso. O pé balouçante de Ken Erdedy derrubou o seu café não uma mas duas vezes enquanto os NAs se revezavam para concordar sobre a pavorosa decadência psíquica que tinham suportado tanto durante a dependência ativa da maconha quanto durante a desintoxicação de maconha: o isolamento social, a lassidão angustiada e a hiperautoconsciência que então reforçava a antissocialidade e a angústia – a alienação emocional cada vez maior, a pobreza afetiva e depois a catalepsia emocional plena –, a análise obsessiva de tudo e finalmente a estase paralítica que resulta da análise obsessiva de todas as implicações possíveis tanto de levantar do sofá quanto de não levantar do sofá – e aí a dura via sintomática infinda da Abstinência de delta-9-tetra-hidrocanabinol: i. e. desintoxicação de ganja: a perda de apetite, a mania, a insônia, a fadiga crônica, os pesadelos, a impotência, a interrupção de ciclos menstruais e da lactação, a arritmia circadiana, os súbitos suores tipo-sauna, a confusão mental, os tremores motores finos, o excesso particularmente desagradável de produção de saliva – vários novatos ainda segurando copinhos institucionais de baba embaixo do queixo –, a angústia generalizada, os agouros, o pavor e a vergonha de sentir que nem os doutores nem os próprios nas das drogas pesadas tinham muita empatia ou compaixão pelo “viciado” derrubado pelo que todos achavam ser o barato mais modesto da mãe natureza, a Substância mais benigna que existia.
Ken Erdedy percebeu que ninguém ia lá de uma vez e empregava os termos melancolia ou anedonia ou depressão, muito menos depressão clínica; mas esse, o pior dos sintomas, esse logaritmo de todo o sofrimento, parecia, conquanto tácito, pender como uma névoa logo acima das cabeças do cômodo, vagar entre as colunas do peristilo e sobre os astrolábios e velas decorativas que ficavam em longos braços de castiçais, imitações medievais e declarações emolduradas dos princípios dos Cavaleiros de Colombo, um plasma gasoso tão temido que novato nenhum suportava olhar para cima e dar-lhe um nome. Kate Gompert ficava olhando para o chão e fazendo um revólver com o indicador e o polegar e se dando tiros na têmpora, depois soprando pólvora de brincadeirinha da ponta do cano até Johnette Foltz sussurrar para ela parar com aquilo já.
Como era costume dele nas reuniões, Ken Erdedy não abriu a boca e ficou observando todo mundo muito atentamente, estralando os dedos e balançando o pé. Como no NA um “Novato” é tecnicamente qualquer um com menos de um ano de sobriedade, havia graus variados de negação, perturbação e falta de noção generalizada nessa acolhedora sacristia chique. A reunião tinha a seção demográfica ampla de sempre, mas a maioria desse pessoal destruído pela erva lhe parecia urbana, dura, ferrada e vestida sem nenhuma noção de cores, gente que você não tinha dificuldade para imaginar esbofeteando o filho num supermercado ou à espreita com um porrete feito em casa na escuridão de uma ruela do centro. Igual no AA. A desrespeitabilidade mais variegada era tipo norma ali, além de olhos vidrados e excesso de cuspe. Alguns novatos ainda estavam com as pulseirinhas de identificação de plástico leitoso das alas psiquiátricas que tinham esquecido de cortar ou que ainda não tinham reunido forças para cortar.
Ao contrário do AA de Boston, o NA de Boston não tem pausa para a rifa no meio da reunião e dura só uma hora. No encerramento da Reunião de Novatos de Segunda-Feira todo mundo levantou, se deu as mãos em círculo e recitou o “Só Hoje” aprovado pela Conferência do NA, depois todos recitaram o Pai-Nosso, não exatamente em uníssono. Kate Gompert depois jurou que ouviu nitidamente o cara mais velho e esfarrapado ao lado dela dizer “E não nos deixeis cair nessa Estação” durante o Pai-Nosso.

Aí, que nem no AA, a reunião do NA terminou com todo mundo gritando para o ar em frente Continue Voltando Porque Funciona.
Mas aí, de um jeito meio pavoroso, todos lá dentro começaram a andar por ali de maneira confusa, que nem uns malucos, se abraçando. Foi como se alguém tivesse ligado um botão. Não tinha nem muita conversa. Eram só abraços, até onde dava para Erdedy ver. Uma abraçação descontrolada e indiscriminada, cujo objetivo parecia ser abraçar a maior quantidade possível de pessoas por mais que você nunca as tivesse visto na vida. Carinha ia de pessoa em pessoa, de braços abertos, se chegando. As pessoas grandes se dobravam e as baixinhas ficavam na ponta do pé. Mandíbulas roçavam mandíbulas. Os dois gêneros abraçavam os dois gêneros. E os abraços homem–homem eram abraços puros, abraços sem os vigorosos tapinhas nas costas que Erdedy sempre tinha visto como uma espécie de requisito necessário para os abraços homem–homem. Johnette Foltz era quase um borrão. Ela ia de pessoa em pessoa. Ela contabilizava uma quantidade significativa de abraços. Kate Gompert estava com a sua cara desbeiçada de sempre, de uma insatisfação macambúzia, mas até ela deu e recebeu alguns abraços. Erdedy porém – que nunca tinha gostado muito de abraços – foi para bem longe da multidão, para perto da mesa de Textos-Aprovados-pela-Conferência-do-NA, e ficou ali sozinho com as mãos nos bolsos, fingindo examinar a cafeteira com grande interesse.
Mas aí um camarada afro-americano bem alto e pesado com um incisivo de ouro e um cilindro perfeitamente vertical de cabelo afro se destacou de uma espécie de abraço grupal ali perto, ele tinha detectado a presença de Erdedy, e o camarada veio e se postou bem diante de Erdedy, abrindo os braços da jaqueta camuflada para um abraço, curvando-se levemente e se aproximando da região torácica pessoal de Erdedy.
Erdedy ergueu as mãos num gesto inane de Não Obrigado e se afastou ainda mais até espremer a bunda contra a borda da mesa de Textos-Aprovados-pela-Conferência.
“Valeu, mas eu não gosto muito de abraço”, disse.
O camarada teve que meio que engatar uma ré na sua aproximação pré-abraço e ficou ali paralisado de um jeito inibido, com os braços ainda estendidos, o que Erdedy percebeu que devia ser constrangedor e vergonhoso para o camarada. Erdedy se viu tentando calcular que região subasiática remota estaria ao maior número possível de quilômetros de distância daquele ponto preciso naquele momento preciso enquanto o camarada continuava ali parado, braços estendidos e o sorriso lhe escorrendo rosto abaixo.
“Como é que é?”, o camarada disse.
Erdedy lhe ofereceu a mão. “Ken E., Ennet, Enfield. Como vai. A sua graça?”
O camarada foi abaixando os braços devagar mas só olhava para a mão que Erdedy oferecia. Uma única piscada estíptica. “Roy Tony”, disse.
“Roy, como vai?”
“Qual é”, Roy disse. O grandão agora estava com a mão que deveria ser apertada atrás do pescoço e fingia tatear a nuca, o que Erdedy não sabia que era uma megaofensa.
“Então Roy, se é que eu posso te chamar de Roy, ou sr. Tony, se você preferir, a não ser que seja um primeiro nome composto, com hífen, ‘Roy-Tony’, e depois vem um sobrenome, mas então esse negócio de abraços, Roy, não é nada pessoal, fica tranquilo.”
“Fica tranquilo?”
O melhor sorriso desamparado de Erdedy e um dar de ombros pesaroso do anoraque de Gore-Tex. “É só que eu não gosto muito de abraço. Não sou de dar abraço. Nunca fui. Era até motivo de piada na minha fam…”
Agora um ominoso indicador de agressão-de-rua apontado, esse tal de Roy indicando primeiro o peito de Erdedy, depois o seu: “Então, meu, quer dizer que cê tá dizendo que eu sou de dar abraço? Cê tá dizendo que eu ando dando abraço por aí?”
As mãos de Erdedy estavam com as palmas viradas para cima e se sacudiam num gesto de bonomia, de quem quer eliminar qualquer possibilidade de mal-entendidos: “Não mas ó a questão aqui é que eu não ia me dar esse direito de te classificar como quem gosta ou não gosta de abraço porque eu não te conheço. Eu só estou dizendo que não é nada pessoal, que tenha a ver com você enquanto indivíduo, e eu vou ficar mais do que satisfeito de apertar a tua mão, até com um desses apertos de mão étnicos complicadões com as duas mãos e tal se você aguentar a minha inexperiência nesse tipo de aperto, mas é que eu simplesmente não fico à vontade com essa coisa de abraços.”
Quando Johnette Foltz conseguiu se liberar e ir até eles, o camarada estava segurando Erdedy pela lapela impermeável do anoraque e inclinando o rapaz por cima da borda da mesa com os textos de modo que a bota de trilha de Erdedy estava fora do chão e a cara do camarada bem em cima do rosto de Erdedy numa claríssima demonstração de agressividade.
“Você acha que eu gosto dessa porra de ficar abraçando essa negadinha daqui? Você acha que alguém aqui gosta dessa merda? A gente faz o que eles mandam a gente fazer. Eles dizem que aqui é Orgulho sem Bagulho, aqui. A gente entregou a porra da nossa vontade aqui, mano”, Roy Tony disse. “Bichinha”, acrescentou. Roy enfiou a mão entre eles para apontar o próprio peito, o que significava que ele agora estava segurando Erdedy no ar apenas com uma mão, fato que não passou despercebido pelo sistema nervoso de Erdedy. “Eu tive que dar quatro abraços na minha primeira noite aqui, e aí eu saí correndo pra porra do lixo e vomitei. Vomitei”, disse. “Não tá à vontade? Quem é que você tá pensando que é, meu? Nem venha tentar me vim com essa de dizer que eu tou aqui à vontade com isso de tentar abraçar essa tua caveira de mané com esse cheirinho de loção de barba Calvin Klein e essas roupinhas James River Traders do caralho.”
Erdedy observou uma das mulheres afro-americanas que estavam olhando bater as mãos e gritar “Ai, doeu!”
“E agora você vem me desrespeitar na frente de toda a minha galera limpa e bria bem quando eu tinha ido correr o risco de dividir a minha vulnerabilidade e o meu desconsolo com você?”
Johnette Foltz estava meio que dando tapinhas nas costas da jaqueta camuflada de Roy Tony, estremecendo mentalmente ao pensar como ficaria no Registro de Funcionários um relatório de um residente da Ennet atacado numa reunião do NA aonde ela o tinha levado pessoalmente.
“Agora”, Roy disse, puxando a mão livre e apontando para o chão da sacristia com um gesto que era uma estocada, “agora”, ele disse, “você vai correr o risco da vulnerabilidade e do desconsolo e vai abraçar o meu caveirão, ou eu vou ter que arrancar a porra da tua cabeça e dar um cagão no teu pescoço?”
Johnette Foltz segurava o casaco do dito Roy com as mãos, tentando arrancar o camarada dali, derrapando de Keds no parquê, tentando conseguir apoio, dizendo: “Ô Roy T. chegado, sussa aí, véio, Meu, Chapa, Cupincha, Mano, Dez, Do-Bem, De-Casa, Mó-Legal, Irmão mesmo, ele só é novo e tal”; mas a essa altura Erdedy estava com os braços em volta do pescoço do cara e lhe dava um abraço tão vigoroso que Kate Gompert depois disse a Joelle van Dyne que parecia que Erdedy estava tentando escalar o sujeito.