Estado de Minas: 23/02/2013
Incêndio na Boate Kiss, uma tragédia brasileira, teve ampla cobertura também da mídia internacional |
Acontecimentos catastróficos, como o incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria (RS), ocorrido no final de janeiro, são um desafio para o jornalismo, que, muitas vezes, em casos como aquele, ultrapassa os limites da boa cobertura e entra no terreno do sensacionalismo. A jornalista Márcia Franz Amaral, professora da pós-graduação em comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), reflete sobre quais são esses limites e sugere os cuidados que se deve ter para que não sejam ultrapassados.
Escrevo de Santa Maria (RS), cidade que foi foco da imprensa no final de janeiro, com a cobertura do incêndio que vitimou mais de duas centenas de jovens. Do centro desse acontecimento, prenhe de sentidos e sensacional em si, reflito sobre os limites do jornalismo na cobertura de tragédias. O que o jornalismo pode fazer no ápice de acontecimentos trágicos, senão relatar o trágico? E quando deixa de informar e passa a fazer sensacionalismo? Não me refiro a casos extremos, como foi o do programa Balanço geral, da Record que simulou, ao vivo, com gelo seco, o cenário do incêndio, enquanto chamava o repórter direto da cena da tragédia. Nem trato de iniciativas com o fim exclusivo de aumentar a audiência ou os índices de leitura, como foi o caso da revista Época, cuja capa sobre o incêndio foi escolhida pelos curtidores do Facebook. Refiro-me a aspectos constitutivos do jornalismo informativo diário que dizem respeito às rotinas produtivas, à percepção do que é notícia e à narração de um acontecimento catastrófico.
O acompanhamento de um fato em tempo real exige muito esforço dos repórteres. As críticas exaustivas às coberturas deixam os jornalistas envolvidos perplexos. Mas é preciso perceber que as coberturas seguem rotinas e enquadramentos já estabelecidos culturalmente. Estudos anteriores sobre a cobertura de acontecimentos catastróficos nos levam a concluir que elas seguem alguns rituais.
Há uma lógica intrínseca ao jornalismo que o faz perseguir o urgente e organizar o que parece caótico. Disse a primeira linha do Diário Gaúcho (jornal popular da RBS) sobre o incêndio: ‘‘Uma faísca, o fogo se alastra pelo teto e a festa com cerca de 1,5 mil jovens termina em 233 mortes’’ (29/01/2013). As primeiras notícias dão sentido à realidade e buscam atestar que o incrível realmente aconteceu.
Quando um fato desse tipo vem à tona pelos meios jornalísticos, emerge primeiramente no tom do "ao vivo", do relato da sensação e da experiência imediata. As consequências das tragédias aparecem em primeiro lugar, em detrimento das causas. Certos discursos são interditados para que somente a singularidade tenha vez. Há, inicialmente, a preponderância da imagem sobre a análise, a personalização das vítimas, a fala dos testemunhos e a despersonalização na apuração das responsabilidades. Entra em ação um ethos consensual, o da solidariedade. Todos – jornalistas e população – constituem-se em vítimas virtuais e extravasam o sentimento de que qualquer um poderia estar lá. O mundo da política, das instituições e do poder público fica em segundo plano. Neste primeiro momento, toda a manifestação que revela inconformidade ou tensão é controlada para não tirar o foco do principal.
O enquadramento inicial da maioria das notícias dá visibilidade para as experiências e as emoções, mas não transcende o espetáculo e as histórias individuais. Os fatos singulares são exibidos exaustivamente em seus detalhes, numa tentativa de que haja maior compreensão do acontecimento. Flashes de âncoras famosos "direto do lugar da tragédia" ganham destaque, mesmo que não tenham informação alguma a acrescentar. Mantém-se o tom da gravidade e as informações, por um determinado tempo, são as mesmas e chegam à beira da fruição ou da catarse.
O recurso dos depoimentos dos testemunhos também é usual na cobertura de catástrofes. "Eu puxava os corpos. Enquanto puxava um, sentia alguém segurando minhas pernas" (Época, 04/02/2013). O trecho em si não pode ser considerado sensacionalista, afinal, trata-se do relato de uma experiência real. A principal especificidade do testemunho no jornalismo é o relato de uma vivência radical ou situação limite. Os testemunhos baseiam-se, sobretudo, na representação da sensação bruta, do concreto, do instrumental, e não operam com a explicação e o distanciamento dos fatos, como podemos perceber na frase inicial desta matéria de Zero Hora (29/01/2013): “Era o fim do mundo. A enfermeira Luciana Morales, 31 anos, não tem outra definição para o que viu quando chegou à emergência do hospital e (...)”. No jornalismo diário, o testemunho não se configura num relato acabado com fins de recuperação da memória de fatos históricos, como por vezes constatamos na literatura. Porém, as fontes testemunhais sozinhas não dão o sentido primeiro ao fato, até porque o relato de suas experiências individuais não é autoexplicativo. Elas compõem uma narrativa concebida pelo jornalismo.
‘‘Não é possível, não é possível, não é possível, não é possível’’ (Zero Hora, 28/01/2013). A função dos testemunhos é ressaltar o que há de mais humano ou desumano em tal acontecimento. É denunciar, de forma sempre parcial, a vivência de um evento radical ou a sua sobrevivência. O objetivo primeiro do testemunho é afirmar a realidade. Assim como as vítimas têm necessidade de narrar o que lhes aconteceu, cabe ao jornalismo tentar reconstruir a experiência traumática. O testemunho é, muitas vezes, um relato simultâneo ao acontecimento, com características efêmeras e fragmentadas, porém convocado a dar efeito de real ao discurso da notícia.
O testemunhador ascende à condição de fonte jornalística não pelos seus capitais (culturais, sociais, econômicos). Quem fala o faz a partir de sua experiência e não a partir de seu capital. O que torna alguém fonte nestas condições é justamente sua expropriação. Se é no testemunho que muitas vezes o jornalismo se humaniza, também é por intermédio dele que se pode espetacularizar ou descontextualizar um relato jornalístico.
As formas de narrar as tragédias não dizem respeito somente aos aspectos da notícia como mercadoria, mas também ao conceito mesmo de notícia. Adelmo Genro Filho, formado pela Universidade Federal de Santa Maria, autor do clássico livro O Segredo da pirâmide, consolidou uma arquitetura teórica para explicar as especificidades do conceito de notícia. A partir de categorias filosóficas (o singular, o particular e o universal), considera o jornalismo como uma forma de conhecimento cristalizada no singular, ao contrário da ciência, por exemplo, uma forma de conhecimento baseada no universal.
Numa notícia, são os aspectos singulares dos fatos que estão nas manchetes, nos títulos e no início do texto. O singular é a alma da notícia, é o menos generalizante, o que não se repete, o que é idêntico só a si mesmo, o novo, a realidade em movimento. É a partir do relato singular que a informação jornalística constrói o mundo público. Cada veículo elege um aspecto singular para enquadrar a notícia e necessita, com o amadurecimento da apuração, realizar a contextualização, ou seja, aprofundar os aspectos particulares, mostrar o que aquele fato tem em comum com outros e em que cadeia de acontecimentos ele se localiza.
Percebe-se que, passados os primeiros momentos da tragédia, o jornalismo busca o particular. Com a contextualização, as matérias geram conhecimento e mostram que a atividade jornalística pode ser exercita de forma ética e responsável. Uma reportagem em Zero Hora (03/02/2013) relaciona a negligência que levou ao incêndio na Boate Kiss a outros aspectos da cultura do brasileiro, como a falta de atitude em diversas ocasiões. Neste caso, está levantando particularidades ainda mais alargadas do fato inicial.
Quando a cobertura jornalística retarda na apuração dos fatos, a particularização não se realiza imediatamente e as notícias ficam circunscritas ao singular e, portanto, aos aspectos sensacionais. Ou seja, os aspectos dramáticos são próprios de fatos como esses, mas não podem presidir a cobertura por demasiado tempo, por mais complexo que seja seu aprofundamento.
Assim, não é o uso de elementos dramáticos, constitutivos de tais tragédias que provoca os excessos nas coberturas das tragédias, mas sim a cristalização, no discurso, da gravidade da experiência por tempo excessivo. Os problemas da cobertura de acontecimentos catastróficos não estão no relato da emoção, mas na dimensão do seu entorno, na falta das particularidades que a cercam e na ausência do contexto.
Sim, o jornalismo baseia-se na imediaticidade e na aparência dos fatos. E possibilita que o mundo se enxergue a partir do singular. Por isso, as primeiras notícias de uma catástrofe são como são. Os fatos não emergem como íntegros e sim de forma atomizada e são reconstruídos pelo jornalismo. Cabe também ao jornalismo revelar o que há em comum entre a tragédia noticiada e as demais e mostrar as mediações sociais envolvidas. O singular precisa remeter para um contexto particular com significações universais. A notícia deve conter uma relação harmônica entre o singular e o particular para que se torne uma apreensão crítica da realidade.
Quando o jornalismo se circunscreve ao singular, borra suas fronteiras, deixa de ser uma forma de conhecimento sobre a atualidade e chega à beira do entretenimento. É da ordem da cobertura jornalística de qualidade ultrapassar a imediaticidade do fato e transcender para as suas particularidades.
Enfim, o jornalismo extrai sua força do singular, mas não pode se resumir no seu relato. Se é a informação mais singular que vitaliza a notícia, o seu entorno é que lhe dá dignidade e perpetua acontecimentos, como a tragédia em Santa Maria, na memória social.
Márcia Franz Amaral é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria, pós-doutora pela Universitat Pompeu Fabra (Espanha), líder do grupo de pesquisa Estudos de Jornalismo (CNPq), pesquisadora do CNPq, autora do livro Jornalismo popular. E-mail: marciafranz.amaral@gmail.com