O Globo - 20/04/2013
A MORTE PROMETE TUDO, MAS NOS ENTREGA O NADA. COMO UM FILME QUE ABANDONAMOS PELO MEIO
Como nomear o desaparecimento?
Como encontrar uma palavra
para o que se ausenta? “Ontem
descobri que tinha me tornado
ainda menos eu para ela”, escreveu
a argentina Sylvia Molloy, para
quem o esquecimento, a queda e a morte sustentam
a escrita poética. Não é só aquele que se
despede que se desmancha e encolhe. Também
quem fica se achata e apequena. Suas palavras
agora servem de epígrafe a outra argentina, a
poeta Tamara Kamenszain. Tanto Sylvia como
Tamara falam do esmaecimento do Eu, que o
avançar dos anos estraçalham, transformando
em uma borra. Tamara usa as palavras de Sylvia
em um poema de “O eco da minha mãe” (tradução
de Paloma Vidal, 7Letras), livro que vem em
edição dupla com “O gueto” (este traduzido por
Carlito Azevedo e pela mesma Paloma).
Envelhecer, avançar lentamente para a morte,
é suportar um Eu em destroços. Reféns do Alzheimer,
mãe e filha se desencontram no mesmo
deserto, onde as palavras sobram como farelos e
onde toda tentativa de aproximação só produz
uma distância maior. Sei do que fala Tamara
porque também eu tenho uma mãe que se perde
nos corredores do Parkinson. Difícil definir essa
doença, dizem os médicos. Parkinson? Alzheimer?
Talvez os dois? A verdade é que tanto faz.
Não passam de diagnósticos com que os doutores
lutam para conter uma avalanche que os arrasta
também. Um desmoronamento, de que Tamara,
mais esperta, faz poesia.
Restam os últimos esforços, a insistência no
movimento, a luta contra a lacuna que mãe e filha
tentam vedar com o teatro lamentoso do Eu.
“Minha mãe copia o que era/ enquanto eu plagiando
o plagiário/ tento passar a limpo esse diário
de vida/ que a autora dos meus dias escreve
como pode”. Pergunto: é só a mãe agonizante
quem “escreve como pode”, ou não será isso, o
“como pode”, condição e fundamento de qualquer
escrita? Não duvido de que há um contraste
entre a palavra que, mesmo frágil, ascende, e a
outra que, lutando para manter-se forte, decai. Escreve
Tamara a respeito: “sou agora a filha que
cresce sem remédio/ pra deixá-la decrescer tranquila
entre os meus braços/ assim juntas vamos
nos separando”. Há um intervalo que, a cada avanço,
se acentua: um abismo. Há um “entre” — espaço
neutro e abissal — que, com a voracidade dos
lobos, abre sua boca.
Sinto isso, cada vez mais,
quando vejo minha mãe, Lucy.
Quanto mais dela tento me
aproximar, e quanto mais ela luta
para se agarrar em mim, mais
nos afastamos. Tem sido melhor,
bem melhor, o silêncio.
Mesmo sem sono algum, quando
a visito, ela prefere conservar
os olhos fechados. Simulando
um sono, ou vestindo a máscara
em que, lentamente, se transforma?
Para não me ver, ou para não se ver? Na verdade,
para não mirar a lacuna que se alarga entre
nós. Também Tamara a habita. Em seu belo prefácio
aos dois livros, Adriana Kanzepolsky assinala
uma identidade: “poeta do entre”. Identidade que,
em vez de identificar, anula. Em vez de aproximar,
separa. Podemos atribuir ao Alzheimer, ao Parkinson,
a qualquer nome estranho que o doutor disser.
De nada servem as palavras, o desfiladeiro se
abre e é cada vez mais íngreme, a descida irreversível.
Em contraste com a agonia, as palavras se tornam
assombrosas. Segue, por mim, Tamara: “a
gramática se torna um escândalo/ quando ela que
esqueceu as palavras/ adianta
seu bebê furioso/ a fim de dizer
tudo/ mesmo que nada se entenda”.
O desejo do tudo — pesadelo
da gramática comprimida
em uma única sílaba — só
produz incompreensão. Melhor
o silêncio, que não expõe essa
ferida. Melhor minha mãe de
olhos fechados, mesmo viva e
atenta. Melhor a morte? No primeiro
livro, “O gueto”, Tamara se
detém na morte do pai. “Sigo
para a luz/ dizia-me em sonho meu pai morto./
Seu sorriso se esfumava em dupla lonjura/ trazia
no entanto uma tranquilidade luminosa:/ havia
uma mensagem literal/ enunciando claríssimo
onde a luz é a luz é a luz é a luz”. Só a morte é fixa.
Talvez (insuportável) só a morte admita a palavra
definitiva: a própria palavra morte. Já que todas as
outras palavras se movem sem parar, e se rasgam
em múltiplos sentidos. Manobras tensas, mas
belas, a que Tamara se entrega com volúpia.
Não é só a doença (sonho dos médicos) que
nos adoece: a vida, antes dela, bem antes, também.
“Deus escreve a diferença/ no espelho da
desordem genética”, nos diz Tamara. “Diferença
idêntica/ faz rir de tanto nos parecermos”. Estamos
diante do mito da espécie, como se todos
fôssemos assinalados pela mesma luz, em vez de
carregar, cada um, com seu peso e à sua sorte,
uma luz diversa. Por isso as palavras se movem,
enlouquecidas. Por isso os poetas (Tamara) escrevem
sem parar: em uma luta, fadada ao fracasso,
para agarrar a coisa. Resta-lhes a grade da
linguagem. Cheia de furos, por eles escorre o
que não vemos. Nela sobrevivemos. Prossegue
Tamara: “Deus nos arquivará diferentes/ em seu
livro dos parentescos”. Em “O gueto”, a poeta luta
para entender de que modo se enredou — de
que modo foi arrastada — pela morte do pai. É
ele agora quem morre, ou mais: quem já morreu.
Pais quase sempre morrem primeiro.
A própria morte, porém, nos engana com sua
ilusão de conclusão. Constata Tamara: “O que é
um pai?/ Com a primeira estrela/ chega o shabbat/
e ainda não tenho resposta”. A poeta sabe
que deve persistir na busca, não até o dia em que
encontrará a resposta, mas até o dia em que conseguirá
esquecer a pergunta. “Eles se dispersaram,
mas eu/ filha de Tuvia ben Binjamin,/ continuarei
buscando acordada/ para depois/ poder
esquecer”. A morte promete Tudo, mas nos
entrega o Nada. Como um filme que abandonamos
pelo meio, um livro de que rasgamos as últimas
páginas. Tentando observar o próprio luto,
no cemitério judeu de Buenos Aires, tudo o que
a poeta vê é o imenso vazio — grande campa que
impõe o silêncio onde as palavras deviam estar.
“Com cara de cansado um rabino passa amassando/
a página de kaddish no bolso”. Palavras:
de nada servem. Restam suas migalhas, humanas,
com que os poetas constroem suas túnicas.
Inúteis: a lacuna não se deixa encobrir