No passado dia 19 de fevereiro Oliver Sacks publicou no “The New York Times” um texto que sem ser dramático ou pessimista, muito longe disso, tem o sabor triste de uma despedida. Começa por dizer que aos 81 anos ainda se sente um homem robusto, capaz de nadar 1.500 metros todos os dias. Descobriu, contudo, que sofre de um tumor no fígado e lhe restam poucas semanas de vida. Reconhece que tem medo, mas logo acrescenta que o sentimento preponderante é a gratidão.
Sacks publicou “The man who mistook his wife for a hat” (“O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”) em 1985. Antes disso já publicara quatro outros títulos, um dos quais, “Awakenings” (“Tempo de despertar”), serviu de base ao filme com o mesmo nome. Mas foi “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu” que lhe trouxe fama mundial. Lembro-me de o ter lido com entusiasmo e choque. Nos anos seguintes fui lendo todos os outros, sempre com igual deslumbramento. A grande arte de Sacks é a de levar o leitor a identificar-se com os bizarros casos clínicos que descreve e explica, adicionando ao saber científico todos os recursos técnicos (e toda a paixão) de um grande ficcionista. Percebemos — aterrorizados — que as impossibilidades que narra podem acontecer com qualquer um de nós: sim, podíamos ser o simpático Dr P., professor de música que deixou de reconhecer o rosto das pessoas, além de objetos comuns, confundindo uns com os outros. Reconhecia alguém se lhe ouvisse a voz; reconhecia uma rosa, mas apenas se a cheirasse. Podíamos ser aquela moça saudável, que de um momento para o outro deixou de sentir o próprio corpo; podíamos ser aquele personagem borgeseano, incapaz de reter a memória recente, imóvel, atordoado, em meio ao inexorável fluxo do tempo.
Os bons escritores são aqueles que conseguem colocar os leitores na pele do outro. Creio ser essa a maior virtude da leitura. Ao entrar na pele de diferentes narradores, ao sentir-se parte de outras vidas, o leitor vai-se percebendo também parte da restante humanidade. Tenho para mim, e atrevome a partilhar com vocês esta convicção — ingenuidade, dirão os cínicos — que os grandes leitores tendem a ser menos inclinados à violência. Primeiro, porque a violência é sempre um recuo do pensamento. Depois, porque a leitura, enquanto exercício de alteridade, aproxima as pessoas. Venho de um país que sofreu uma das mais longas e cruéis guerras civis do nosso tempo. Os fazedores de guerras civis sabem que, para triunfarem, têm de começar por desnacionalizar o inimigo. A seguir, passam a questionar a sua humanidade. Primeiro, o inimigo é um estrangeiro, depois um monstro. Um monstro, ainda para mais estrangeiro, pode ser morto. Deve ser morto.
A boa literatura trabalha em sentido contrário. Dános a ver a humanidade dos outros, inclusive dos que nos são estrangeiros. Inclusive dos monstros.
Os livros de Oliver Sacks, esses, aproximam-nos das vítimas de
acidentes cerebrais. As diferentes sociedades humanas sempre
demonstraram enorme dificuldade em lidar com pessoas mentalmente
perturbadas. Na melhor das hipóteses transformavam-nas em figuras
sagradas, santos ou xamãs. Na pior, queimavam-nas vivas. Ainda hoje
tendemos a isolá-las.
Sacks também discute nos seus livros questões de identidade. Mais precisamente, a forma como determinadas patologias podem tornar-se parte da identidade da pessoa. Conheci, em Itália, uma moça que mandou tatuar no pulso direito a figura de um cavalo-marinho. Quis saber por que o fizera. Disse-me que tivera durante boa parte da adolescência e juventude um tumor no hipocampo (que é também o nome, em grego, do cavalo-marinho). Aquele tumor provocava-lhe incríveis alucinações visuais. Cresceu, fez-se mulher, e durante esse tempo todo viveu repartida entre o nosso mundo e o seu próprio universo, porventura mais rico, infinitamente mais extraordinário, mas também um tanto perigoso. Por fim, teve de retirar o tumor. As alucinações desapareceram. “O problema”, disse-me, “é que uma parte de mim também desapareceu. Tatuei este cavalomarinho para me lembrar de quem fui.”
O texto de Oliver Sacks tem circulado nas redes sociais. Mesmo aqueles que nunca leram os seus livros sentem-se tocados pela dignidade com que o escritor se despede. Como é que alguém tão apaixonado pela vida, e ainda tão intensamente vivo, como ele mesmo diz, se entrega assim, sem sombra de mágoa, sem um protesto de rancor, ao sombrio e irrevogável abraço da morte?
Sacks também discute nos seus livros questões de identidade. Mais precisamente, a forma como determinadas patologias podem tornar-se parte da identidade da pessoa. Conheci, em Itália, uma moça que mandou tatuar no pulso direito a figura de um cavalo-marinho. Quis saber por que o fizera. Disse-me que tivera durante boa parte da adolescência e juventude um tumor no hipocampo (que é também o nome, em grego, do cavalo-marinho). Aquele tumor provocava-lhe incríveis alucinações visuais. Cresceu, fez-se mulher, e durante esse tempo todo viveu repartida entre o nosso mundo e o seu próprio universo, porventura mais rico, infinitamente mais extraordinário, mas também um tanto perigoso. Por fim, teve de retirar o tumor. As alucinações desapareceram. “O problema”, disse-me, “é que uma parte de mim também desapareceu. Tatuei este cavalomarinho para me lembrar de quem fui.”
O texto de Oliver Sacks tem circulado nas redes sociais. Mesmo aqueles que nunca leram os seus livros sentem-se tocados pela dignidade com que o escritor se despede. Como é que alguém tão apaixonado pela vida, e ainda tão intensamente vivo, como ele mesmo diz, se entrega assim, sem sombra de mágoa, sem um protesto de rancor, ao sombrio e irrevogável abraço da morte?
Oliver Sacks dá-nos, com a sua serenidade, uma última lição. A
morte é necessária. Ou talvez seja uma mentira — mas uma mentira
necessária. Em todo o caso caminha ao nosso lado, desde que nascemos, e
não se irá embora. Se temos de partir, que partamos então gratos pela
vida e em paz com ela.
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