segunda-feira, 2 de março de 2015

A morte anunciada de Oliver Sacks - José Eduardo Agualusa

O GLOBO 02/03/2015

No passado dia 19 de fevereiro Oliver Sacks publicou no “The New York Times” um texto que sem ser dramático ou pessimista, muito longe disso, tem o sabor triste de uma despedida. Começa por dizer que aos 81 anos ainda se sente um homem robusto, capaz de nadar 1.500 metros todos os dias. Descobriu, contudo, que sofre de um tumor no fígado e lhe restam poucas semanas de vida. Reconhece que tem medo, mas logo acrescenta que o sentimento preponderante é a gratidão.

Sacks publicou “The man who mistook his wife for a hat” (“O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”) em 1985. Antes disso já publicara quatro outros títulos, um dos quais, “Awakenings” (“Tempo de despertar”), serviu de base ao filme com o mesmo nome. Mas foi “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu” que lhe trouxe fama mundial. Lembro-me de o ter lido com entusiasmo e choque. Nos anos seguintes fui lendo todos os outros, sempre com igual deslumbramento. A grande arte de Sacks é a de levar o leitor a identificar-se com os bizarros casos clínicos que descreve e explica, adicionando ao saber científico todos os recursos técnicos (e toda a paixão) de um grande ficcionista. Percebemos — aterrorizados — que as impossibilidades que narra podem acontecer com qualquer um de nós: sim, podíamos ser o simpático Dr P., professor de música que deixou de reconhecer o rosto das pessoas, além de objetos comuns, confundindo uns com os outros. Reconhecia alguém se lhe ouvisse a voz; reconhecia uma rosa, mas apenas se a cheirasse. Podíamos ser aquela moça saudável, que de um momento para o outro deixou de sentir o próprio corpo; podíamos ser aquele personagem borgeseano, incapaz de reter a memória recente, imóvel, atordoado, em meio ao inexorável fluxo do tempo.

Os bons escritores são aqueles que conseguem colocar os leitores na pele do outro. Creio ser essa a maior virtude da leitura. Ao entrar na pele de diferentes narradores, ao sentir-se parte de outras vidas, o leitor vai-se percebendo também parte da restante humanidade. Tenho para mim, e atrevome a partilhar com vocês esta convicção — ingenuidade, dirão os cínicos — que os grandes leitores tendem a ser menos inclinados à violência. Primeiro, porque a violência é sempre um recuo do pensamento. Depois, porque a leitura, enquanto exercício de alteridade, aproxima as pessoas. Venho de um país que sofreu uma das mais longas e cruéis guerras civis do nosso tempo. Os fazedores de guerras civis sabem que, para triunfarem, têm de começar por desnacionalizar o inimigo. A seguir, passam a questionar a sua humanidade. Primeiro, o inimigo é um estrangeiro, depois um monstro. Um monstro, ainda para mais estrangeiro, pode ser morto. Deve ser morto.

A boa literatura trabalha em sentido contrário. Dános a ver a humanidade dos outros, inclusive dos que nos são estrangeiros. Inclusive dos monstros.

Os livros de Oliver Sacks, esses, aproximam-nos das vítimas de acidentes cerebrais. As diferentes sociedades humanas sempre demonstraram enorme dificuldade em lidar com pessoas mentalmente perturbadas. Na melhor das hipóteses transformavam-nas em figuras sagradas, santos ou xamãs. Na pior, queimavam-nas vivas. Ainda hoje tendemos a isolá-las.

Sacks também discute nos seus livros questões de identidade. Mais precisamente, a forma como determinadas patologias podem tornar-se parte da identidade da pessoa. Conheci, em Itália, uma moça que mandou tatuar no pulso direito a figura de um cavalo-marinho. Quis saber por que o fizera. Disse-me que tivera durante boa parte da adolescência e juventude um tumor no hipocampo (que é também o nome, em grego, do cavalo-marinho). Aquele tumor provocava-lhe incríveis alucinações visuais. Cresceu, fez-se mulher, e durante esse tempo todo viveu repartida entre o nosso mundo e o seu próprio universo, porventura mais rico, infinitamente mais extraordinário, mas também um tanto perigoso. Por fim, teve de retirar o tumor. As alucinações desapareceram. “O problema”, disse-me, “é que uma parte de mim também desapareceu. Tatuei este cavalomarinho para me lembrar de quem fui.”

O texto de Oliver Sacks tem circulado nas redes sociais. Mesmo aqueles que nunca leram os seus livros sentem-se tocados pela dignidade com que o escritor se despede. Como é que alguém tão apaixonado pela vida, e ainda tão intensamente vivo, como ele mesmo diz, se entrega assim, sem sombra de mágoa, sem um protesto de rancor, ao sombrio e irrevogável abraço da morte?

Oliver Sacks dá-nos, com a sua serenidade, uma última lição. A morte é necessária. Ou talvez seja uma mentira — mas uma mentira necessária. Em todo o caso caminha ao nosso lado, desde que nascemos, e não se irá embora. Se temos de partir, que partamos então gratos pela vida e em paz com ela.      
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Estranho - Eduardo Almeida Reis

O tanque de louça sempre foi de uso exclusivo da deusa do lar, o que explica o gosto que as verdadeiras mulheres têm pelos homens com barriga de tanquinho

Estado de Minas: 02/03/2015



Dois amigos, no carro de um deles, circulavam em altíssima velocidade pelo Centro da cidade de São Paulo. Trombaram num poste, que se quebrou, o motorista fugiu e o passageiro, no banco do carona, morreu carbonizado. Descobriram que o morto era o dono do carro. O noticiário televisivo informou que o motorista estava sendo procurado para ser indiciado por homicídio doloso, aquele em que há dolo \ó\, em direito penal a deliberação de violar a lei, por ação ou omissão, com pleno conhecimento da criminalidade do que se está fazendo.

Estranhei a informação porque me parece inconcebível que um sujeito, dirigindo um automóvel, trombe num poste com a intenção de matar um amigo que viaja no mesmo carro. Mas o noticiário anda tão maluco, que a gente já não se assusta com mais nada. No mesmo dia, a polícia paulista descobriu um depósito com 472 televisores LG ainda nas caixas e um tanque de guerra “de uso exclusivo das Forças Armadas”.

Um tanque de guerra seria de uso normal em outras atividades? Todo santo dia a polícia prende cavalheiros e damas portando armas “de uso exclusivo das Forças Armadas”. São fuzis, metralhadoras, granadas e agora um tanque gigantesco, que pesa toneladas. Como as quatro vigas da Perimetral, cada uma pesando 40 toneladas, que foram roubadas sem que até hoje se saiba quem levou as peças de aço especial, suposto de durar 300 anos.

O tanque de louça, ele sim, sempre foi de uso exclusivo da deusa do lar, o que explica o gosto que as verdadeiras mulheres têm pelos homens com barriga de tanquinho.

Processo

Obrou muitíssimo bem o economista Nestor Cuñat Cerveró quando ameaçou processar aqueles que fizessem máscaras com o seu rosto. Carnaval é alegria, folia curtida por todos os que gostam do período de três dias anteriores à quarta-feira de cinzas dedicado a festejos, bailes e folguedos populares. Não é justo que naqueles dias os foliões e as folionas se assustem com a máscara do ilustre economista.
Em menino, forçado pela família, andei fantasiado de marinheiro. Devo admitir que o guri das fotos ficou bonitinho. Rapazola, curti carnavais para farrear nos raríssimos motéis que havia no Rio, um deles no lugar onde hoje fica a “comunidade” da Rocinha, com UPP e tráfico. Chamava-se Trampolim do Diabo e não tinha as modernidades e os luxos dos motéis atuais.
Em matéria de carnaval, que Houaiss informa “inicial por vezes maiúscula”, recordo com funda saudade os 16 anos em que morei na capital de todos os mineiros, pelo seguinte: BH desconhece o tríduo momesco. Era uma paz, uma tranquilidade só interrompida em 2015 pela crise financeira que impediu o carnavalesco belo-horizontino de viajar para cidades onde há carnaval.

Volto ao doutor Cuñat Cerveró para informar que andei procurando o significado de seu sobrenome em diversos dicionários. Austrália e Nova Zelândia têm Nat como membro do National Party, partido político que também existiu na África do Sul. Nat. em inglês é national, native, natural. Com ñ pensei que fosse nascimento em catalão, mas não tenho dicionários da Catalunha. Se o leitor tiver, me diga, por favor, se é o nascimento do símbolo do cobre, Cu, “o nascimento do cobre” ou da Idade do Cobre, um dos períodos da proto-história situado cronologicamente entre o Neolítico e a Idade do Bronze, aproximadamente 2500 a 1800 a.C.
Ontem, tarde da noite, fechei este belo suelto em 1800 a.C., mas hoje cedo, bem dormido, me lembrei do tradukka.com, que deve ter dicionário de catalão. Tem! Procurei ñat e não achei, mas NAT é NAT em português, alemão, inglês. Fiquei na mesma. Aproveitei o tradukka.com aberto para ver como são na língua da Catalunha algumas palavras usadas pelos nossos narradores esportivos: joelho (genoli), tornozelo (turmell), pé (peu), músculo (múscul), coxa (cuixa), canela (canyella) e falta (manca).


O mundo é uma bola

2 de março de 1498: depois de enfrentar medonhos temporais e revoltas dos marinheiros, o navegador português Vasco da Gama contorna o sul da África e aporta onde hoje fica Moçambique, que tem consulado em BH.
Em 1630, os holandeses tomam o Forte de São Jorge, em Recife.

Em 1775 o padre Francisco Bueno de Azevedo funda Caconde no interior de São Paulo. Andei por lá meio século atrás: havia tantos chagásicos, que se dizia que um cachorro, para latir, precisava encostar na cerca.

Em 1897, na Guerra de Canudos, terceiro ataque das forças de Moreira César aos conselheiristas. Depois desse ataque, as forças do maluco Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, ficaram municiadas e armadas com centenas de fuzis. Antônio Conselheiro pirou depois de ter sido corneado, sumiu do mapa e reapareceu anos depois metido num camisolão dizendo coisas sem nexo. Logo surgiram centenas, milhares de fiéis andando atrás dele, fenômeno muito comum até hoje. Meu espaço felizmente Zé Fini, porque sou capaz de falar horas sobre Canudos e o leitor não merece esse despautério.
Hoje é o Dia da Oração e o Dia Nacional do Turismo.


Ruminanças

“Somos pela religião contra as religiões.” (Victor Hugo, 1802-1885)