Solidão, angústia e fragilidade, em vez de esperança, dão o tom dos contos de Natal escritos por quatro autores a pedido da Folha
A ÚLTIMA CEIA
JULIÁN FUKS
Sobre a mesa o maior frango da venda, farofa de banana, arroz com frutas secas, cravos fincados no tênder: de fome ninguém vai morrer. Quatro cadeiras em volta, alinhadas com diligência. Acomodados, apenas três, e o silêncio montado no tempo, galgando a noite com indiferença.
Aquele moleque é um inconsequente, o pai disfarça a inquietação em impaciência, tomando de empréstimo a palavra do chefe, preto inconsequente, é o que o chefe lhe diz quando alguma coisa não sai bem. A filha está mais entretida com seus problemas, comprida demais sua saia de renda, a que horas será que a festa começa, por que não comer de uma vez se já é óbvio que ele não vem. A mãe crava a unha entre os dentes, crava os olhos na parede, roga à estatueta de gesso que também esperou seu filho numa noite como essa, indaga o rosto de madeira com suas lágrimas vermelhas, por que é que ele não chega, que foi que lhe fizeram, bom rapaz que ele é. Não é desses que se perderam, ele sabe cuidar de si, não é nenhum pixote, não é nenhum guri; só tem o estranho vício de habitar as ruas e frequentar vielas.
Um jovem o abismo de fardas guardou consigo. Deve dar meia-noite a qualquer momento. O governador não vai ligar para prestar suas condolências.
JULIÁN FUKS é autor de "Procura do Romance" e "Histórias de Literatura e Cegueira" (ambos editados pela Record).
HOJE É UM BOM DIA
Luisa Geisler
A família viajou. Na cozinha, Ana, a diarista, encara o telefone celular. 24/12/2012, terça-feira, 22:30, menu, contatos, 0 chamadas perdidas. Odeia o Natal sozinha.
Se ela poderia sair também? Não, passagens durante feriados são sempre caras. Não era a sua folga. E alguém vai cuidar de Lola, a poodle. Ana odeia o natal sozinha em Curitiba.
Se algo falhasse, seria a terceira família em seis meses. Ana se sentiria deslocada em qualquer família já completa, fosse no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Nos cursos de capacitação, sempre recomendavam: mudem pouco, eles conferem a carteira. Após catar suco na geladeira, Ana odeia o natal sozinha em Curitiba, Paraná.
Celular em mãos, Ana se senta. O papel de parede brilhante da ausência que todos os familiares são. Ana vê Lola e sente raiva. Fria e lógica, de um psicopata que sabe -num ensaio acadêmico de 137 folhas- o que e por que odeia. Não é só Lola. Ana odeia o natal sozinha em Curitiba, Paraná, no bairro do Juvevê.
O celular toca o hino do Atlético Mineiro. Ana deixa tocar por um instante. Quem sabe estejam todos bem. Quem sabe haja solução. Ana pega o celular e sorri ao atender a chamada. É um bom dia.
LUISA GEISLER é autora de "Quiçá" e "Contos de Mentira" (ambos editados pela Record).
GAROTA MEDALHA
PAULO SCOTT
A garota medalha é a garota das medalhas (e o anjo das vitórias), ganha a vida entregando medalhas nas competições de natação. É um trabalho como outro qualquer e pode ser bem divertido se as duas outras garotas forem do tipo de gente que sabe se divertir. Os atletas não se divertem porque estão concentrados e precisam vencer. Nem todo atleta sabe dar valor a uma garota medalha. Ser garota medalha é apenas um dos trabalhos da nossa garota medalha. Neste mês, ela também será a garota animadora na festa da madrugada do dia vinte e cinco. Ganhará quase dez vezes mais do que ganha sendo a garota medalha, mas não terá tempo para sentar e conversar. A garota medalha teve oito empregos diferentes durante este ano, mas este ano não acabou. A garota medalha ganhará um vestido vermelho para trabalhar na tal festa. Fazer parte de um momento de vitória é fazer parte de um momento de beleza. A garota da medalha é comprovação da beleza e da sorte. A beleza não é a sorte e não é a inteligência. Um atleta precisa ser inteligente. A garota da medalha tem família, mas eles não são daqui. A garota da medalha acordou. A beleza, o vestido para a festa. A garota medalha se esforça. Nossa garota medalha. A beleza é um presente.
PAULO SCOTT é autor de "Habitante Irreal" (Alfaguara) e "Ainda Orangotangos" (Bertrand).
MELANCOLIA
Paloma Vidal
Quando o dente de leite que a Fada tinha levado embora apareceu na caixinha colorida da sua mãe, foi mais um sinal de que as coisas não eram como pareciam. "Suspeito", anotou no caderno que ela tinha lhe dado "para desenhar". Ele só conseguia fazer uns pauzinhos que rematava com círculos de diferentes tamanhos e depois chamava de bonecos, esperando que sua mãe se conformasse. Quase sempre ela não se dava por satisfeita: "e isso aqui?". "É uma árvore", improvisava. "Mas não tem folhas". Sem paciência, acaba dizendo que suas árvores eram assim, para encerrar a discussão. Tudo aquilo era chato e o distraía das suas tarefas como agente secreto. A Fada do Dente, o Coelhinho da Páscoa e o Papai Noel passavam sempre de madrugada, quando ele estava dormindo. Quanto a isso não havia nada a fazer, pois se ficasse acordado eles desistiriam de vir, o que não só não resolveria seu problema como o deixaria sem as recompensas. Sua mãe voltava sempre a esse ponto. Era evidente que eles se comunicavam com ela ou o dente não teria ido parar na caixinha, mas se lhe perguntasse ela nunca admitiria o óbvio. Isso tornava a chegada do Natal um tanto melancólica: de que adiantaria pedir um DS se sua mãe acabaria por convencer o Papai Noel de que ele estava mesmo era precisando de uma mochila nova?
PALOMA VIDAL é autora de "Mar Azul" (Rocco) e "Algum Lugar" (7 Letras).