domingo, 30 de dezembro de 2012

Redes sociais já reúnem 30 mil caronistas no Estado de SP

FOLHA DE SÃO PAULO

LEANDRO MARTINS

DE RIBEIRÃO PRETO
É fim de tarde quando quatro jovens partem em viagem de carro entre Ribeirão Preto e São Paulo. Seria apenas rotina, não fosse o fato de que nunca haviam se visto. Eles se conheceram nos dias anteriores pelo Facebook, em um grupo da rede criado para compartilhar caronas.
Se antes a prática era restrita ao boca a boca entre conhecidos, com as redes sociais a carona se disseminou, e envolve agora pessoas cujo único vínculo é a internet.
No Facebook, ao menos 25 grupos de caronas só no Estado de São Paulo reúnem cerca de 30 mil usuários.
Os maiores são os de trajetos entre cidades-sede de regiões --como São Carlos, Bauru, Campinas e Ribeirão-- e a capital. Juntos, os caroneiros dividem os custos. Há ainda sites especializados.
Edson Silva/Folhapress
Caronistas se encontram na rodovia Anhaguera, próximo a Ribeirao Preto; grupo se conheceu pelo Facebook
Caronistas se encontram na rodovia Anhaguera, próximo a Ribeirao Preto; grupo se conheceu pelo Facebook
O grupo que faz o trajeto São Paulo e São Carlos --o maior de todos-- tem pouco mais de 4.000 usuários.
A publicitária Milena Leonel, 26, mora em São Paulo e criou um dos grupos no começo deste ano para economizar nas viagens entre Ribeirão e a capital. Seu grupo tem hoje 1.400 participantes.
Nesse trajeto, o valor convencionado é de R$ 40 por pessoa --de ônibus, os usuários pagariam cerca de R$ 65.
Além da economia, eles falam em conforto e facilidade: encurtam o tempo da viagem e ainda combinam o embarque e o desembarque em pontos como estações de metrô.
Especialistas veem outros benefícios, como a redução no número de carros em circulação e até uma conscientização maior sobre trânsito.
Para o mestre em transportes Creso de Franco Peixoto, da FEI (Fundação Educacional Inaciana), ao se unirem para ações desse tipo, que independem do governo, grupos de caronas ainda dão um recado: "Mostram que há a necessidade de buscar outras soluções [para o trânsito]".
Além de universitários, há gente que busca caronas ocasionais, como para prestar vestibular, visitar parentes ou viajar a lazer para a capital.
Na última quinta, o analista de sistemas Leonardo Augusto Neves Monteiro, 27, abriu espaço em seu carro para outras três pessoas que iam de Ribeirão para São Paulo.
"Às vezes, vou com meu carro e ofereço carona, outras, pego carona. É mais barato e rápido que ônibus", diz ele, que trabalha e mora em Ribeirão, mas vai a São Paulo para ver a namorada. No carro dele, gente que viajava para aproveitar as festas de fim de ano e uma passageira que ia prestar concurso.
FICHA LIMPA
Para evitar riscos, os caroneiros têm uma espécie de manual de conduta: atrasos devem ser evitados e, por segurança, é recomendado buscar algum dado, ainda que pela internet, sobre as pessoas que vão juntas no carro.
"Mas a própria comunidade se encarrega de divulgar algo que venha a acontecer de errado ou suspeito", diz o analista de sistemas Guilherme Mourão Sansoni, 33, que oferece caronas em grupos entre São Carlos, Bebedouro e Franca, no interior.
O comando da Polícia Rodoviária em Ribeirão não recomenda carona entre desconhecidos, mas diz que não há registros de ocorrências.
A dica da corporação é compartilhar as viagens com colegas e parentes. A polícia orienta ainda que os caroneiros evitem fornecer dados pessoais --como endereços-- a desconhecidos.

Análise: Caronas são motivadas pela melhoria da circulação e da qualidade do ar


JAIME WAISMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Há alguns anos, inúmeras empresas na Região Metropolitana de São Paulo, tentaram, sem êxito, implantar programas de carona programada entre seus funcionários. As principais causas deste insucesso foram a diversidade dos perfis profissionais envolvidos e a multiplicidade dos destinos desejados após a jornada de trabalho.
Mais recentemente, a utilização da carona programada por pessoas em seus deslocamentos para o trabalho vem sofrendo grande impulso na capital, graças à utilização das redes sociais.
De fato, estas redes, envolvendo milhares de pessoas, ampliam o universo de potenciais usuários de carona do local de trabalho (um edifício) para todo o bairro ou região da cidade, ainda que sujeitas à coincidência de interesses e a requisitos mínimos de confiança.
Observa-se que a maioria dos aderentes à carona programada, na cidade de São Paulo, são proprietários de automóvel e o utilizavam em seus deslocamentos diários no trabalho. Estas pessoas não estão buscando reduzir seu tempo de viagem, que permanece praticamente o mesmo, mas dar sua contribuição à melhoria da circulação e da qualidade do ar na sua cidade.
Ainda que se visualize nesta proposta uma redução do custo de transporte (rodagem mais estacionamento), ela aponta na direção, bastante salutar, de utilização mais inteligente e moderada do automóvel particular.
No interior do Estado, por outro lado, a carona via redes sociais e sites especializados vem sendo utilizada, principalmente por estudantes nos deslocamentos entre cidades (Ribeirão Preto, São Carlos, Bauru, Franca, entre outras), visando economia ( o custo da viagem é rateado), redução de tempo e maior conforto.
Dadas as infinitas possibilidades de interação entre pessoas oferecidas pelas redes sociais, os deslocamentos por carona podem abranger qualquer motivo de viagem ou distância ou período de tempo e, portanto, atender múltiplos interessados.
A área de transportes oferece muitas possibilidades a serem exploradas pelas redes sociais, além de carona, como por exemplo, informações sobre interrupções de serviços de transporte público, grandes congestionamentos, "dicas" sobre bons serviços, etc.
Jaime Waisman, 68, engenheiro civil e economista, é professor do Depto. de Engenharia de Transportes da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Diretor da Sistran Engenharia.

Clovis Rossi

FOLHA DE SÃO PAULO

Os maias e o abismo fiscal
O mundo não acaba no dia 1º, apesar das cenas explícitas de patologia fiscal e política nos EUA
Assim como o mundo não acabou no 21/12/2012, ao contrário do que diziam certas interpretações do calendário maia, também não vai acabar no 1º/1/2013, quando os EUA despencarão no chamado "abismo fiscal", salvo acordo de última hora.
O cenário que vem sendo traçado é, de fato, apocalíptico: US$ 646 bilhões (R$ 1,323 trilhão) serão retirados da economia, entre aumento de impostos e corte de gastos, o equivalente a 5% do PIB.
Consequência: uma queda de 1,3% no PIB já no primeiro trimestre do ano e um salto do desemprego dos atuais 7,7% para 9,2%.
O mundo todo inevitavelmente sentiria o baque. Sem deixar de reconhecer que o problema é muito grave, convém ir devagar com o catastrofismo: nem o aumento de impostos nem o corte de gastos começam a operar já no dia 1º.
Daria perfeitamente para que "o Congresso vote imediatamente [depois do dia 1º] uma redução de impostos para famílias de renda baixa e média, assim como o adiamento de cortes severos de gastos", diz a "Economist Intelligence Unity", o braço de pesquisas da badalada revista britânica.
No "Politico", bem informado site norte-americano, Jonathan Allen afirma que deixar o país cair no abismo fiscal pode até ser tática dos republicanos: "Para muitos republicanos, um mergulho no abismo fiscal significaria culpar o presidente Barack Obama por um grande aumento de impostos no curto prazo e, então, votar para cortar impostos para a maioria dos americanos no mês que vem".
É claro que o raciocínio se aplica igualmente aos democratas, que deixariam os cortes forçados caírem na cabeça de muitas pessoas e instituições apenas para restabelecer alguns gastos logo depois.
O fato de que o apocalipse pode ser mitigado não significa que o prejuízo para a imagem dos EUA e para a sua economia seja desprezível. Duas coisas estão ficando claras:
1 - O sistema fiscal norte-americano é "patológico", como escreve Christopher DeMuth, pesquisador do Instituto Hudson, para "The Weekly Standard".
De fato, não dá para endividar-se eternamente como vem ocorrendo há décadas nos EUA, em governos republicanos ou democratas.
2 - O sistema político tornou-se disfuncional.
Nesse ponto, a culpa é essencialmente dos republicanos ou, ao menos, da ala que se radicalizou a tal ponto que se nega a aceitar algo que é de puro sentido comum, qual seja a regra tributária segundo a qual quem mais tem paga mais.
Os republicanos, no entanto, rejeitam um ajuste fiscal -exigido para começar a reduzir a insuportável dívida dos EUA- que equilibre aumento de impostos para os mais ricos com cortes de gastos.
Rejeitaram até proposta de um dos seus, o presidente da Câmara de Representantes, John Boehner, de retirar as isenções para quem ganha mais de US$ 1 milhão anuais (R$ 2,04 milhões ou R$ 170 mil mensais). Se esse pessoal não pode pagar mais impostos, quem poderia?
Com tais patologias, surpreendente é que o apocalipse já não tenha ocorrido.

Quadrinhos


CHICLETE COM BANANA      ANGELI

ANGELI
PIRATAS DO TIETÊ      LAERTE

LAERTE
DAIQUIRI      CACO GALHARDO
CACO GALHARDO
NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES

FERNANDO GONSALES
MUNDO MONSTRO      ADÃO ITURRUSGARAI

ADÃO ITURRUSGARAI
PRETO NO BRANCO      ALLAN SIEBER

ALLAN SIEBER
GARFIELD      JIM DAVIS
JIM DAVIS
HAGAR      DIK BROWNE

Quatro poemas de amor - Caetano Galindo

FOLHA DE SÃO PAULO

IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO
CAETANO GALINDO

Poema de amor #1
Se eles inventaram nosso amor
(Ou pelo menos certa obsessão)
Talvez não seja tanta desrazão1,
Querer-se cogitar da condição
Do dito romantismo (alemão2)
Se (na língua de Goethe3) coração
Não, por acaso, rimasse com dor.
1 (Frase de efeito, ou mera fixação)
2 No "inglês", infelizmente, não há rima.
3 Ou Heine, ou Schiller, não muda a escansão.

Poema de amor #2
Num sei cumé queu póssu ti dizê,
Mais sei qui ocê é bunita pra xuxu!
Nem cus ipissilôni ô dabliú
Eu sei palavra pra ti discrevê.
Só quéru tisplicá qui ai lóvi iú
I ispéru qui cê possa mintendê,
Qui nem qui a gênti intêndi sem sabê
Us riu, as frô i a vóiz duirapuru!!!
Cê é minha frô, meu riu, meu passarim,
I túdu nêssi mundão sem portêra,
Sem êra ô bêra i sem nem tê mais fim.
Eu... sem você... eu pêrcu as istribêra!
Rosinha, vem ficá juntim di mim,
Francisco Bento Sousa, a vida intera!

Poema de amor #3
Se cá-lo, pois me calha ser só mente:
Atalho. Avio um me que em mim cabia.
Ou falo-se-me, falo em mim, se mente;
Recolho a mim, amém, a minha via.
(Retalho: ou dois, cisalho a minha frente.)
Atalho. Talho. Ou dois. Há via. Havia.
Tresmalho, aferro, em fim, meu erro quente.
(Retardo, tarde, tardo e re(torquia).?:
Serfalho, soutolo. Sou ser me incauto,
Em quanto assaltos no encanto que ex-colho
E colho no Entanto o que em não me salto.
Verparco, serdolo. Me fardo em meu olho...
Sou, quando. Pois me ralho ao que me pauto,
E Quantos. Se já Parto. Errado. Antolho.

Poema de amor
Escrevo, ou quero, ou só quimera obtusa,
a sandra mara, mais que mera musa,
que, doce, dá-se, dócil, por que aduza
a mim a minha mira, a mão profusa.
Se falo, falho, há falta, enfim, confusa
habita-me uma voz, que então abusa,
invade, vem, atroz, por que reduza
a vida a entalhe, falta, fresta oclusa.
Não leio ou lavro a língua que me usa,
se sobra simples, seca, semifusa
de música, palavra, que conduza.
Não trilho, espelho rumos rumo à eclusa,
se doce, dócil dou-me ao que me induza
a réu sem rei num rio que me recusa.

    O fim e o começo - MARTHA MEDEIROS

    ZERO HORA - 30/12/2012


    Como era de se esperar, não teve fim de mundo. Mas 2012 não foi um ano qualquer. Muitas pessoas a minha volta sentiram algo parecido com o que senti: que este foi um ano de intensidade única, com uma energia capaz de encerrar etapas. Um ano de despedidas, algumas concretas, outras mais sutis.

    Houve quem tenha terminado casos mal resolvidos, quem tenha se conscientizado de um problema que não queria ver, quem se deu conta da fragilidade de uma situação, quem tenha aceitado um desafio que exigiu coragem, quem tenha enfrentado uma situação transformadora, quem tenha se jogado num estilo de vida diferente. Olho para os lados e vejo que 2012 não passou em branco para quase ninguém. Pelo menos não para mim, nem para pessoas próximas.

    Meu microcosmo não revela o universo inteiro, lógico. Você talvez não tenha percebido nada de incomum no ano que passou, mas ainda assim seria interessante promover um fim categórico, encerrar o ano colocando uma pedra em algo que não lhe convém mais. Geralmente chegamos ao final de dezembro focados apenas no recomeço, na renovação, nos planos, sem nos darmos conta de que, para que nossas resoluções sejam cumpridas mais adiante, não basta pular sete ondas, comer lentilhas e outras mandingas. É preciso que haja, sim, o fim do mundo. O fim de um mundo seu, particular.

    Qual o mundo que você precisa exterminar da sua vida?

    Sugestão: o mundo do bullying cibernético. Ninguém é autêntico por esculhambar o trabalho dos outros, sendo agressivo e mal-educado só porque tem a seu favor o anonimato na internet. Perder horas na frente do computador demonstra sua total incapacidade de convívio. Bum! Fim desse mundo estreito.

    O mundo da prepotência, aquele que faz você pensar que todos lhe estenderão um tapete vermelho sem você precisar dar nada em troca. Qualquer um pode ser profético quanto a seu futuro: passará o resto da vida achando que ninguém lhe dá o devido valor, isolado em sua torre de marfim.

    O mundo obcecado do amor doentio, aquele amor que só persiste pelo medo da solidão, e que de frustração em frustração vai minando sua possibilidade de ser feliz de outro modo.

    O mundo das coisas sem importância. Quanta dedicação ao sobrenome do fulano, à conta bancária do sicrano, à vida amorosa da beltrana, o quanto ela pagou, o quanto ele deveu, quem reatou. Por cinco minutos, vá lá. Os neurônios precisam descansar. Mas esse trelelé o dia inteiro, socorro.

    O mundo do imobilismo. Do aguardar sem se mover. Da espera passiva pelo momento certo que nunca chega.

    2012 prenunciou um cataclismo, só que não era global, e sim individual. Impôs que cada um desse um fim à vida como era antes e que promovesse uma mudança interna, profunda e renovadora. Feito?

    Então que venha um 2013 do outro mundo para todos nós. 

    Entrevista Jon Lee Anderson

    folha de são paulo

    Visões da América
    O jornalista e a herança colonial
    SYLVIA COLOMBORESUMO
    Autor de recém-lançada coletânea de artigos sobre a África, repórter especializado em cobertura de zonas de conflito analisa aspectos da atualidade na América Latina. O jornalista atribui à falta do Estado de Direito na região a violência e as tentativas de controle da mídia pelo governo e pelo crime organizado.
    Na América Latina, como repórter, Jon Lee Anderson já esteve em Cuba, El Salvador, México, Venezuela e Brasil. No Oriente Médio, cobriu as guerras do Iraque e do Afeganistão. Mas é na África onde se sente mais à vontade. "Quando era adolescente, vivi um ano na Libéria com um tio geólogo", conta o veterano jornalista norte-americano, que em seu currículo tem o mérito de ter descoberto o destino do corpo de Che Guevara.
    Anderson, 55, esteve na 26ª edição da Feira Internacional do Livro de Guadalajara, no México, em novembro. Por lá, lançou "La Herencia Colonial y Otras Maldiciones" (Sexto Piso), antologia de artigos sobre a África escritos para a revista "New Yorker" entre 1998 e 2012.
    Estão ali relatos sobre mais de dez países. Entre eles, Angola, onde uma das cidades mais caras do mundo, Luanda, convive com uma população paupérrima e as chagas deixadas pela guerra civil (1975-2002). A Libéria, cujo ditador Charles Taylor o jornalista conheceu e retratou num perfil. Ou, ainda, a Líbia nos estertores do regime de Muammar Gaddafi, cuja morte descreveu.
    Leia abaixo os principais trechos da entrevista de Anderson à Folha.
    Folha - O que todos esses países retratados no livro têm em comum?
    Jon Lee Anderson - São países muito distintos quanto a origem, colonização, trajetória e modo de lidar com o mundo globalizado. Mas todos carregam a herança colonial, essa marca da opressão europeia e um sentimento de esperança com relação ao futuro.
    Como compara seu relato ao de outros narradores que estiveram na África no passado?
    Minha geração é posterior à de Ryszard Kapuscinski (1932-2007), que retratou o fim do colonialismo e da Guerra Fria. Era um período de intensa violência. Hoje, os revolucionários de seu tempo são líderes de cabelos grisalhos, metidos em ternos, dirigindo carrões e em cargos importantes. Há distintos níveis de integração com o mundo globalizado. Mas continua sendo uma experiência muito intensa escrever reportagens de lá.
    Estamos no México, país que vem enfrentando uma guerra ao narcotráfico. Em que sentido a situação se parece ao que o sr. presenciou nos anos 1980, em El Salvador?
    São outros tempos, mas há semelhanças. A ameaça aos jornalistas é a mesma. Eu trabalhava sob a pressão de esquadrões da morte, como os colegas mexicanos hoje.
    O grande problema da América Latina com relação à violência tem a ver com a não implementação, nessas sociedades, de um Estado de Direito, de governos preocupados com a estrutura do país, e não com o futuro de seus partidos ou, pior, seus interesses pessoais.
    O combate a grupos criminosos não é possível se o poder regional é exercido por supercaciques, como são esses poderosos governadores dos Estados mexicanos.
    É um problema semelhante à onda de violência em São Paulo nos dias de hoje, devido ao enfrentamento entre os traficantes e a polícia?
    Sim. Também tem a ver com a falta do Estado de Direito. No Brasil ainda há a tendência a fazer pactos com criminosos. Tendo feito uma vez, se fará sempre. É preciso quebrar esse círculo vicioso.
    A polícia em São Paulo parece estar matando ou fazendo pactos. No Rio, de repente ouvimos que já não há mais tantas mortes, que os morros estão pacificados. É claro que há um pacto por trás disso, e esse método precisa parar de ser usado. O Exército que está nas favelas hoje vai ficar lá? Ou o controle vai ser entregue para uma espécie de poder paramilitar? Não sei. Há uma parte do Estado brasileiro que opera nas trevas.
    O problema não passa pelo debate sobre a descriminalização das drogas? O que o sr. acha da iniciativa do Uruguai de estatizar a produção e a distribuição de maconha?
    Esse debate é central. Acho muito interessante o caso do Uruguai. Os agentes antinarcóticos com quem converso nunca dizem que seu método é vitorioso. Tenho certeza de que, no fundo, todos pensam o mesmo: é preciso legalizar as drogas. Porém a solução pode até nascer em Montevidéu, só que, para ter sucesso, precisa ser liderada por uma cidade como São Paulo.
    Por quê?
    São Paulo já é o futuro. É uma cidade pós-apocalíptica. De algum modo, todos vamos acabar vivendo numa cidade dessas. É "Blade Runner", é o futuro. O que se crie numa cidade assim será uma solução que pode ser aplicada em outros centros. O Brasil, por seu dinamismo e efervescência, deveria ser de onde saem ideias novas. O Bolsa Família foi uma grande iniciativa. O que se fez com a pobreza agora tem de ser feito com o crime organizado.
    Mas, ao mesmo tempo em que é um país que lida com os problemas do futuro, também convive com questões do passado, como a escravidão, a demarcação de terras, as matanças regionais. Há uma parte de faroeste que convive com problemas do século 21. O Brasil é o novo continente: se as soluções não vierem dele, estamos perdidos. Tem criatividade, população. Ninguém pode vir e fazer por ele.
    Qual a diferença entre o jornalismo de hoje na América Latina e o praticado nos anos 50 e 60?
    Há muita diferença. Naquela época, correspondentes tinham mais importância para os jornais. O ponto de vista privilegiado da pessoa que está ao lado da notícia era mais valorizado. Hoje são como agências de notícias, têm de produzir para diversas plataformas, enviar "flashes" [notícias sucintas], fazer vídeos, têm uma carga muito grande de trabalho. Visto assim, há um empobrecimento.
    Por outro lado, vejo, principalmente na América Latina, uma efervescência da produção de crônicas. Há revistas e meios digitais produzindo muita coisa boa. Não vejo mais a novidade nos jornais convencionais. Vejo nesses suportes e em outros mais tradicionais, como o livro-reportagem, que está em voga e chama a atenção de jovens. Agora a geração mais nova começa na grande imprensa, mas depois procura vias alternativas. Isso é muito bom para a profissão.
    Como você vê o enfrentamento entre mídia independente e os governos de países como Argentina, Venezuela e Equador?
    Creio que voltamos à questão da falta do Estado de Direito. Se não o temos, abre-se espaço para isso, um novo autoritarismo que tem como recurso amedrontar a sociedade pelo cerceamento à imprensa.
    Acho grave que Cristina Kirchner esteja usando a Justiça e as instituições contra o grupo Clarín, apesar de achar que o debate sobre a Lei de Mídia seja válido. No caso da Venezuela e do Equador é muito pior porque estão se calando definitivamente algumas vozes, jornalistas estão sendo presos e até expulsos do país.

      O trovador dos oprimidos

      FOLHA DE SÃO PAULO

      CRÍTICA
      Crônicas da vida de Woody Guthrie
      Associated Press
      Woody Guthrie, cujo centenário se celebrou em 2012, em foto de 1944
      Woody Guthrie, cujo centenário se celebrou em 2012, em foto de 1944
      RODOLFO LUCENARESUMO
      Três livros, entre eles uma autobiografia, reconstituem a vida de Woody Guthrie, ícone da música folk americana e fonte de inspiração para artistas como Bob Dylan. As obras enfatizam sua infância pobre, as andanças de uma ponta a outra dos EUA e a militância como compositor de protesto durante a Grande Depressão e a 2ª Guerra.
      Vagabundo, peregrino, agitador, comunista, vidente, mulherengo, pintor, poeta, cantor: um amplo rol de rótulos tenta abarcar a personalidade de Woody Guthrie (1912-67). Não só nos Estados Unidos, que ele cruzou levando seu violão, mas mundo afora, eventos lembraram neste ano o centenário desse andarilho que se tornaria, talvez, o mais engajado artista norte-americano do século passado.
      Hoje conhecido sobretudo por "This Land is Your Land" -"esta terra é sua terra", composição que, retomada nos anos 1960 como canção de protesto, tornou-se uma espécie de hino de seu país-, Guthrie influenciou gerações de músicos folk que se tornaram muito mais famosos do que ele, como Bob Dylan e Joan Baez.
      Carregando sob o apelido com que se tornou célebre o nome de Woodrow Wilson -homenagem feita pelo pai, um ex-caubói e político democrata local, àquele que seria o presidente do país entre 1913 e 1921- ele desde pequeno tratava de deixar sua marca no mundo. Ou, pelo menos, em troncos de árvores e bancos escolares, nos quais costumava entalhar os dizeres: "W. G. Garoto de Okemah, nascido em 1912".
      O declínio da cidadezinha no interior de Oklahoma, engrandecida nos anos 1920 pela descoberta de petróleo e jogada no centro da pobreza que se abateria sobre os EUA na década seguinte, fez com que, adolescente ainda, Woody Guthrie pegasse a estrada.
      MIGALHAS
      Buscando o sonho da Califórnia dourada, viveu de migalhas, ganhando centavos pelas músicas que cantava acompanhado de seu violão, de um canto a outro do país. Sua parada mais permanente, porém, sempre foi Nova York -não por acaso, a cidade motiva um dos mais recentes livros lançados na esteira das homenagens ao trovador dos oprimidos.
      "My Name is New York" [Woody Guthrie's Archives/ powerHouse Books, 100 págs.,
      R$ 37,60] -também o título de uma canção do músico- foi concebido por uma das filhas de Woody, Nora, como um guia de caminhadas para que o fã encontre na cidade desde os prédios onde o ídolo viveu e se apresentou até o local onde suas cinzas foram jogadas, numa praia da península de Coney Island.
      Ainda que belamente editado, cheio de fotos históricas e fac-símiles, o guia não é a porta de entrada ideal para a vida e obra de
      Guthrie. Seus textos curtos e cheios de referências a músicas e a outros trabalhos do compositor são dirigidos aos fãs de carteirinha.
      Ao neófito, aquele que tenha chegado a Guthrie por vias transversas, descobrindo-o por meio de músicos que receberam sua influência, é mais proveitoso buscar outros caminhos, garimpando em obras não tão recentes, mas que fogem do culto à personalidade.
      Uma boa primeira parada é ler Woody por ele mesmo, mergulhando em "Bound for Glory" [Plume, 320 págs., R$ 46,50]. Nessa autobiografia, publicada originalmente em 1943, ele conta sua infância e adolescência, relembra o tempo em que vagueou sem destino e sobrevoa seus primeiros encontros com o sucesso e as promessas de fortuna -que não se configuraram, pois vinham sempre casadas com exigências para mudar seu estilo.
      O título, que significa "destinado à glória", pareceria revelar uma tendência do autor a delírios de grandeza. É um engano, no entanto, que se esclarece logo no começo do livro: a expressão foi pinçada de versos cantados por vagabundos que, como ele, buscavam melhor sorte, viajando clandestinamente em vagões de trem.
      É num deles que Woody começa a sua história. "Nós nos empilhávamos, um sobre os outros. Fazíamos uns aos outros de travesseiro. Dava para sentir o fedor amargo de suor que empapava minha camisa, minhas calças e as roupas molambentas e sujas dos outros caras".
      O universo de desesperados que fugiam da miséria, às vezes conseguindo vagas temporárias e mal pagas como boias-frias nas plantações californianas, é o mesmo descrito com maestria em "Vinhas da Ira", de John Steinbeck (1902-68), cujos caminhos cruzaram os de Guthrie várias vezes nos primeiros anos da carreira do cantor.
      Do vagão sórdido, Woody volta ao passado para narrar sua infância de pobreza e tragédias. Um incêndio destruiu a casa da família. Mais tarde, Clara, sua amada irmã mais velha, morreu com terríveis queimaduras em um acidente doméstico de origem nebulosa.
      A mãe, Nora, de quem ouvia canções tradicionais cantadas em tom nasalado, morreu abandonada em um hospício. Sua fala incompreensível e súbitos movimentos descoordenados, interpretados como demonstrações de loucura, eram sintomas do mal de Huntington -hereditária, essa doença degenerativa que afeta o sistema nervoso central seria também a causa da morte de Woody e de duas de suas filhas do primeiro casamento.
      As desgraças acabaram por dividir a família. Pai e filhos restantes tomaram cada um seu rumo. Woody encontrou o seu na música e na militância política, cantando a vida e o trabalho dos homens que construíam o país. "Bound for Glory" é um documento dessa jornada e, apesar da simplicidade e do tom direto de sua escrita, saltam do livro, como de suas canções, frases memoráveis.
      PRECOCE
      Guthrie tinha apenas 31 anos quando escreveu sua autobiografia. Por sua natureza precoce, ela se configura como um relato parcial e insuficiente, levando o leitor a procurar outras fontes. Uma das mais saborosas é "Woody Guthrie: A Life" [Dell, 480 págs., R$ 58,10], escrita em 1980 pelo repórter Joe Klein, que ganharia fama em 1996 por "Cores Primárias", romance calcado nos bastidores da primeira campanha presidencial de Bill Clinton.
      Antes de começar o trabalho, Klein pouco ou nada conhecia sobre o músico. Interessou-se por ele quando fez, para revista "Rolling Stone", um perfil de Arlo, filho de Guthrie e, como o pai, cantor e compositor de protesto.
      Klein produziu um retrato minucioso baseado em pesquisas e profícuas entrevistas com parceiros e parentes do artista.
      Especialmente interessantes são os relatos da militância de Woody -nos tempos da Segunda Guerra (1939-45), ele escreveu em seu violão: "This machine kills fascists" (esta máquina mata fascistas). O instrumento certamente não matava ninguém, mas acompanhava canções em homenagem aos heróis da batalha: uma das músicas de Guthrie é um tributo a Liudmila Pavlichenko, atirador de elite do Exército soviético no conflito mundial. O melhor, porém, vem das centenas de cartas escritas por Woody e guardadas fielmente por Marjorie Greenblatt Mazia -segunda das três mulheres de Guthrie, que teve oito filhos.
      Bailarina da companhia de Marta Graham, Mazia se tornaria mãe de Arlo, Nora e Joady, além de Cathy, a primogênita, que morreu garotinha depois de um incêndio na casa dos Guthrie em Nova York.
      O livro segue a ordem cronológica, indo da apresentação dos antepassados do artista à discreta cerimônia familiar em que as cinzas de Guthrie foram jogadas ao mar.
      Fala dos amores frustrados, das paixões arrebatadoras, das brigas com amantes e ex-mulheres, do sofrimento com a doença que vagarosamente o destruía. Mostra a gênese das principais obras de Woody e comentários que o cantor fazia sobre seu próprio trabalho.
      No caminho, traça um panorama da política e da economia dos Estados Unidos, dos anos 1920 ao pós-Guerra, passando pelas atividades do Partido Comunista, a construção das grandes centrais sindicais, o macarthismo e o período da Guerra Fria. No âmbito cultural, viaja ainda mais longe, chegando aos meados dos anos 1960 e ao encontro de Bob Dylan com Guthrie, já quase moribundo.
      Dylan, talvez o herdeiro mais notável de Guthrie, por várias vezes visitou seu ídolo no Brooklyn State Hospital -uma das paradas mencionadas no guia "My Name is New York". O livro de Nora Guthrie merece ser revisitado com carinho depois que o leitor tiver feito da vida de Woodie Guthrie parte da sua própria, embalado por "Bound for Glory" e "A Life".

        Como o filólogo J. R. R. Tolkien inventou a tradição da Terra-média


        FOLHA DE SÃO PAULO
        associated press
        O escritor J.R.R. Tolkien, autor de "O Senhor dos Anéis" e de "O Hobbit"O escritor J.R.R. Tolkien, autor de "O Senhor dos Anéis" e de "O Hobbit"

        Do mundo primário à poesia élfica

        REINALDO JOSÉ LOPESRESUMO
        Frequentemente desprezado pela academia, o britânico, que se notabilizou por "O Senhor dos Anéis", fez mais do que escrever uma saga de sucesso. O "mundo secundário" que forjou em sua literatura, com a qual pretendia erigir uma mitologia para a Inglaterra, se baseia em um complexo arcabouço linguístico.
        Vamos começar com uma declaração de conflito de interesses. O presente escriba passou três anos de mestrado e quatro anos e meio de doutorado envolvido com a tentativa de demonstrar o valor literário da obra do inglês John Ronald Reuel (ou J.R.R.) Tolkien (1892-1973), o autor de "O Senhor dos Anéis" e de "O Hobbit".
        Não se trata de tarefa das mais simples, admito. Alguns dos críticos mais respeitados do século 20 tiveram a oportunidade de resenhar a Saga do Anel quando seus três volumes foram publicados originalmente, entre 1954 e 1955, e não foram lá muito gentis.
        O americano Edmund Wilson (1895-1972), por exemplo, escreveu que a popularidade daquela "porcaria ininteligível" se devia ao fato de que "certas pessoas, especialmente na Grã-Bretanha, talvez, possuem um apetite por lixo juvenil que dura a vida toda".
        Já o britânico Philip Toynbee (1916-81), após classificar os livros como "mal escritos, amalucados e infantis", declarou estar aliviado porque eles estavam caindo "num esquecimento misericordioso". Ironicamente, poucos anos após a declaração de Toynbee, uma edição pirata de "O Senhor dos Anéis" caiu nas graças dos adeptos da contracultura nos EUA, fazendo a obra virar o fenômeno de massa que continua sendo até hoje.
        Mais recentemente, a crítica feminista australiana Germaine Greer, ao comentar as enquetes que elegeram Tolkien como "autor do século", disse que o resultado era "um pesadelo" e que a obra tolkieniana não passava de "fuga da realidade".
        Em meio a esse coro, poucas vozes de peso se levantam a favor de Tolkien. A principal talvez seja a do poeta W.H. Auden (1907-73), que se apaixonou pelo épico medieval "Beowulf" ao ouvir Tolkien recitá-lo no original em inglês antigo quando estudava em Oxford. Para Auden, "O Senhor dos Anéis" merecia o status de obra-prima.
        Diante de tal quadro, portanto, almas menos caridosas podem enxergar este ensaio como um exercício de dissonância cognitiva, uma tentativa de provar que eu não perdi o meu tempo nem dilapidei os recursos da Universidade de São Paulo defendendo a qualidade literária de um autor que, no máximo, é bom entretenimento. Peço a paciência do leitor para tentar mostrar por que vale a pena cerrar fileiras ao lado dos hobbits.
        São, de fato, tempos interessantes para os entusiastas da obra tolkieniana -e, paradoxalmente, também para seus detratores.
        De um lado, o rolo compressor de mais uma trilogia cinematográfica baseada na obra do filólogo está mobilizando nerds dos quatro cantos da Terra.
        Enquanto escrevo estas linhas, o primeiro filme da nova série,
        "O Hobbit: Uma Jornada Inesperada", já arrecadou mais de meio bilhão de dólares no mundo todo após duas semanas de exibição. Não é preciso ter clarividência élfica para prever que os três filmes estão fadados a ter bilheterias bilionárias.
        De outro lado, a falta de apreço do "mainstream" literário pela mitologia da Terra-média (como Tolkien denomina o continente que é o palco do grosso de suas tramas) continua firme.
        O mais recente argumento vindo desse contingente lança mão de comparações entre a obra de Tolkien e a série "As Crônicas de Gelo e Fogo", de George R.R. Martin, mais conhecida pelo nome do primeiro livro, "A Guerra dos Tronos", que batiza a adaptação para a TV da rede HBO.
        Quem exalta Martin e rebaixa Tolkien diz que o primeiro produz literatura de fantasia melhor que o segundo porque "A Guerra dos Tronos" retrata violência e sexo de forma explícita, além de dar voz e um ponto de vista até para os personagens mais moralmente ambíguos (para não dizer canalhas). Em resumo, Tolkien seria para crianças; Martin, para adultos.
        GUETO
        Desconfio que essa avaliação tenha a ver, em parte, com o fato de que, fora do gueto dos fãs -um gueto no qual cabem milhões de pessoas, mas ainda assim um gueto-, as pessoas tenham lido apenas "O Hobbit" e "O Senhor dos Anéis".
        Somadas, as obras têm por volta de 1.500 páginas, mas ainda assim são apenas a proverbial ponta do iceberg do universo concebido pelo escritor. Quem vê o triunfo do "bem" e o (relativo) otimismo da Saga do Anel esquece que Tolkien passou 50 anos de sua vida trabalhando nas lendas sombrias de "O Silmarillion", que representam, grosso modo, a pré-história da Terra-média.
        Esse passado mítico ao qual os personagens de "O Senhor dos Anéis" volta e meia aludem está cheio de guerras fratricidas, anti-heróis sanguinolentos e até uma ou duas paixões incestuosas. O espantoso, no fim da leitura, é que alguém tenha sobrevivido à carnificina dos chamados Dias Antigos.
        Mas é melhor deixar de lado a discussão sobre a suposta falta de complexidade moral e profundidade psicológica na obra de Tolkien. Quero me concentrar em algo que pode ser demonstrado de forma mais objetiva.
        Embora o autor encarnasse, em temperamento e estilo, boa parte do que a "corrente principal" da literatura do século 20 queria destruir, suas realizações têm um paralelo irônico com as de gente como James Joyce (1882-1941), Ezra Pound (1885-1972) -ou mesmo Guimarães Rosa (1908-67). Isso porque a pedra angular do edifício tolkieniano é um experimento radical de invenção linguística.
        LEGADO
        Quando digo isso, não estou falando apenas, nem principalmente, das cerca de dez línguas ficcionais que Tolkien chegou a esboçar quando criou a Terra-média -embora elas sejam, sem dúvida, parte importante do legado estético do autor.
        A criação de novos idiomas integra um fenômeno bem mais amplo na obra do filólogo, que poderíamos chamar de "invenção da tradição".
        O problema que Tolkien precisava atacar era o seguinte: como se arquiteta uma nova mitologia? Esse era o objetivo declarado dele -a criação de uma "mitologia para a Inglaterra"- desde as trincheiras da Primeira Guerra Mundial, na qual Tolkien, como oficial subalterno durante a batalha do Somme (em 1916), viu todos os seus amigos mais próximos morrerem.
        Foi convalescendo de "febre das trincheiras" que ele começou a esboçar seu conjunto de mitos. Para alguém com o profundo conhecimento filológico do autor, o fio da meada para realizar esse tipo de tarefa só poderia vir da criação -ou recriação- linguística.
        Essa, em essência, tinha sido a tarefa dos ancestrais intelectuais de Tolkien ao longo de todo o século 19. Nessa era de ouro da filologia, descobriu-se não apenas que era possível mostrar que línguas há muito separadas, e um bocado distintas, tinham um ancestral comum mas também esboçar leis fonéticas, aparentemente tão regulares quanto as da física, para explicar como o grego "ekklessía" desembocou no português "igreja", por exemplo.
        Começando com a reconstrução de fonemas e palavras ancestrais, pioneiros da filologia saltaram para o desafio de refazer textos inteiros, como a célebre fábula de August Schleicher (1821-68) em proto-indo-europeu, o ancestral hipotético de quase todos os idiomas entre Portugal, a oeste, e a Índia, a leste.
        E, de textos para tradições culturais inteiras, o pulo era relativamente curto.
        Alguns filólogos preferiam usar os cacos do passado para, digamos, reconstruir o conjunto "original" de deuses cultuados pelos indo-europeus; Tolkien, por sua vez, usou todas as ferramentas filológicas à sua disposição para criar um panteão ficcional que é funcionalmente indistinguível dos do "mundo real" -ou "mundo primário", como ele costumava dizer, em oposição ao "mundo secundário" que forjou.
        O que diabos quero dizer com "funcionalmente"? Começando com as línguas ficcionais: qualquer um pode inventar uma sequência aleatória de fonemas e dizer que eles são frases de um idioma inventado. Não era assim que Tolkien operava.
        Ele começava com raízes em uma língua ancestral hipotética (qualquer semelhança com o proto-indo-europeu não é mera coincidência) e derivava, então, "línguas-filhas" com tendências fonéticas e semânticas próprias.
        É claro que, como no caso de idiomas do "mundo primário", essas tendências não caem do céu, mas são frutos da história: isolamento e contato com outras culturas e até a interferência estatal moldam tais características (a língua ficcional preferida do autor, o quenya ou alto-élfico, teve seu uso público proibido em dado momento da trajetória do "mundo secundário" tolkieniano, por exemplo). Todos esses detalhes foram cuidadosamente simulados por Tolkien antes que fossem escritos os fragmentos de poesia élfica em "O Senhor dos Anéis".
        Esse é apenas o aspecto mais nerd da coisa, no entanto. Conforme os leitores mais atentos costumam perceber, quase toda a obra de ficção de Tolkien é apresentada como traduções de manuscritos antigos que teriam chegado às mãos do filólogo.
        O procedimento, conhecido como pseudotradução, é no mínimo tão velho quanto "Dom Quixote" -Cervantes também o emprega no começo do século 17-, mas nenhum autor supera Tolkien ao usá-lo para simular uma boneca russa literária, com camadas e mais camadas de transmissão cultural.
        Para começar, como o inglês é a "língua de tradução" fictícia -representando, no caso de "O Senhor dos Anéis", a fala dos hobbits-, Tolkien tem o cuidado de representar idiomas aparentados a ela na trama com equivalentes do inglês no "mundo primário": anglo-saxão, escandinavo antigo e até gótico, a mais arcaica das línguas germânicas registradas.
        Em segundo lugar, o filólogo sabia melhor do que ninguém que manuscritos antigos não são artefatos neutros. Representam uma história textual e um ponto de vista dentro da corrente de transmissão em que se inserem.
        É assim que eles aparecem em "O Senhor dos Anéis" e "As Aventuras de Tom Bombadil", por exemplo, na qual toda uma genealogia de códices, com diferentes edições e anotações de escribas, é postulada em detalhes. Esse expediente foi usado até para explicar discrepâncias na trama entre uma edição e outra de "O Hobbit" -cada uma delas teria sido produto de uma mão diferente ao longo da tradição textual.
        Essa simulação cuidadosa de diversidade linguística aparece ainda no emprego cuidadoso de palavras e expressões raras, dialetais ou arcaicas, em variações sintáticas e de estilo discursivo que ajudam a caracterizar personagens ou culturas com grande economia.
        Aquela que talvez seja a maior realização da inventividade linguística de Tolkien, no entanto, só fica de fato clara quando se olha não apenas para "O Senhor dos Anéis" mas também para a imensa massa de textos só publicados após a morte do autor. No conjunto, destaca-se a longa tradição de narrativas, anais e poemas editada por seu filho Christopher em "O Silmarillion".
        Em essência, as muitas versões dos episódios centrais da mitologia ficcional, envolvendo formas literárias diferentes, múltiplos graus de detalhamento e pontos de vista -aspectos que podem ser vislumbrados nas alusões e citações feitas em "O Senhor dos Anéis", por exemplo-, deram à tradição cultural de Tolkien a mesma complexidade das tradições culturais do "mundo primário".
        De fato, a submersão de fontes num único texto que se vê na Bíblia, ou o emprego de fórmulas poéticas tradicionais para montar um texto novo presente em Homero, para usar exemplos das duas grandes mitologias do Ocidente, aparecem na tradição de "O Silmarillion" e podem ser apreciados pelo leitor que tiver olhos para vê-los.
        Não é pouca coisa. E são instrumentos colocados a serviço de uma visão épica -trágica, porém corajosa-, da existência, ao alcance de qualquer um que se dispuser a enxergar um pouco além das caras redondas e joviais de hobbits que também podem se tornar heróis.

          Situação financeira será problema para Haddad, diz Kassab [entrevista]

          FOLHA DE SÃO PAULO

          Prestes a passar o cargo para o novo prefeito, Kassab diz que pagamento de R$ 4 bilhões por ano à união compromete gestão
          DENISE CHIARATOEDITORA DE COTIDIANOEVANDRO SPINELLIDE SÃO PAULOO maior problema que Fernando Haddad (PT) vai enfrentar é a situação financeira da Prefeitura de São Paulo. Quem fala é o terceiro prefeito com mais tempo no cargo na história da cidade, Gilberto Kassab (PSD), que termina amanhã seu mandato.
          Kassab recebeu a Folha no início da noite de quinta-feira em seu gabinete praticamente vazio. Gavetas e armários já estavam limpos. Sua mesa de trabalho ainda tinha dois computadores ligados e uma pilha de papéis, a maioria portarias de exoneração de servidores de confiança.
          Ele afirmou que pretende continuar na vida pública, admitiu que pode concorrer a governador do Estado em 2014, falou sobre as promessas não cumpridas em sua gestão e elogiou Haddad.
          Folha - O sr. termina o mandato mal avaliado nas pesquisas de opinião. Para quem pretende ter um futuro político, não é ruim sair assim?
          Gilberto Kassab - A avaliação é um sentimento que muda com o tempo. Pega a última pesquisa Ibope, 30 dias atrás deu avaliação de 19% de ótimo e bom e agora está dando 27%. Cada pesquisa tem um momento, mas existe uma tendência, passado o período eleitoral, de as pessoas passarem a tomar consciência das realizações da gestão. Eu tenho uma confiança muito grande de que, com o tempo, a avaliação tende a melhorar.
          Durante a campanha, Haddad disse que o sr. era o pior prefeito que São Paulo teve...
          Todos os candidatos focam os problemas da cidade. É o processo eleitoral. Findo o processo eleitoral, a tendência é que as atenções se voltem também para as realizações, não para os problemas.
          Para o sr., por que Haddad ganhou a eleição?
          Numa cidade como São Paulo, com tantos problemas, apesar de ter uma gestão que realizou muito, o sentimento de mudança é muito presente. Eu representei o sentimento de mudança num determinado momento. O Haddad representou. A Dilma representou. Acho que o sentimento de mudança prevaleceu, ajudou a sua vitória.
          O sr. tem dito que estaria à disposição para ser candidato a governador. O PSDB já está há 20 anos no governo. O sentimento de mudança pode jogar a seu favor em 2014?
          O que eu tenho dito, quando me perguntam em relação ao partido, é que existe uma diretriz recomendando aos Estados que deem prioridade à candidatura própria. Em São Paulo não é diferente. Isso não quer dizer que o candidato deva ser eu.
          O sr. topa a parada?
          Se tiverem circunstâncias e tiver o apoio partidário, não tem por quê [negar]. Seria uma honra muito grande ser candidato e, em caso de vitória, servir ao Estado. Como foi ser prefeito de São Paulo.
          O sr. completa 20 anos em cargos eletivos. Vai conseguir ficar sem um cargo?
          Eu tenho já duas missões. Eu recebi um convite da USP, aceitei, e vou ficar lá aproximadamente um ano e meio criando um núcleo de estudos voltado à gestão de cidades. E também vou ter uma atuação no campo partidário.
          O sr. deixa algumas marcas na prefeitura e promessas não cumpridas. A principal marca da segunda gestão é a ciclofaixa e a ocupação do espaço público. O sr. concorda?
          É a ocupação do espaço público, seja pelas pessoas, seja pelos veículos: a restrição em relação aos fretados, ocupação das calçadas pelos pedestres, o combate à ocupação dos camelôs que vendiam carga ilegal, a restrição à circulação do abastecimento na cidade durante o dia, passando para a noite, a ocupação do espaço pelas bicicletas, ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas, que foi um sucesso. Como tem sido referência a Lei Cidade Limpa.
          O sr. abriu 150 mil vagas em creches. A Marta construiu 21 CEUs. Ela tem a marca dos CEUs, mas o sr. não tem a marca das creches.
          Na educação, nós temos a marca da eficiência. Isso marca para o usuário. Na hora que você vincula o serviço à gestão, cresce. Isso é só com propaganda partidária, porque é ilegal qualquer outro tipo de propaganda. É isso que eu tenho dito, não é possível que essa avaliação não melhore, como melhorou quando da nossa reeleição.
          Em 2008, as principais promessas eram três hospitais, 60 km de corredores de ônibus, e aqueles ônibus bonitos, modernos, R$ 1 bilhão para o Metrô. O sr. não cumpriu nenhuma dessas três promessas.
          Para o Metrô foi sim. Foi nesta gestão.
          O sr. prometeu R$ 1 bilhão na primeira gestão e R$ 1 bilhão na segunda gestão.
          Não são R$ 2 bilhões. Na outra, encerrou a gestão e não foi R$ 1 bilhão. Foi justificado, encerrou. Tínhamos o compromisso de, nesta gestão, transferir R$ 1 bilhão...
          E os outros?
          Os hospitais nós estamos sendo ousados. Deixamos o modelo para a próxima gestão de parceria público-privada que nos permitiria não apenas construir, mas reformar e ampliar toda a rede. Foi paralisado pelo Tribunal de Contas. Veio o processo eleitoral e nós entendíamos que não era bom retomar, deixaríamos para a próxima gestão. E não cumprimos essa meta. Cumprimos outras.
          Em relação ao corredor, demorou um pouco, mas nós avançamos bastante. Nós definimos o trajeto, conseguimos licitar o projeto, habilitamos no PAC para receber recursos, iniciamos o processo de licitação da obra. Esse processo está bem adiantado. Não avançamos 100%, mas avançamos bastante.
          O sr. não acha que é ruim prometer uma coisa na campanha, depois não cumprir e dizer que deixou encaminhado?
          Tudo que você fez é muito gratificante. Tudo que não foi feito é muito frustrante. O importante é que todos tenham a certeza do dever cumprido, que foi feito o melhor possível. Imprevistos acontecem.
          Haddad prometeu 150 km de corredores de ônibus, 55 mil casas...
          Então, vamos dizer que o Haddad faça 27.500 casas. Vai falar que a meta é zero? Claro que não. Ele concluiu 50%.
          O sr. acha que dá para fazer 150 km de corredores e 55 mil casas?
          Eu torço para que sim.
          É possível?
          Circunstâncias podem haver. Ele está com praticamente 70 km garantidos. Você vê que tem já um bom começo. Eu torço para o seu sucesso.
          Qual é o principal problema que Haddad vai enfrentar?
          A prefeitura está numa situação financeira muito difícil, pagar R$ 4 bilhões anualmente ao governo federal é muito. Ele conseguindo finalizar essa discussão [da renegociação da dívida] com o governo federal, poderá sobrar recursos para investimentos. Ele conhece a área financeira, tenho certeza que deve ter essa como sua principal preocupação.
          Vai sentir saudade, prefeito?
          Vou.
          Mas não volta mais?
          Não, não volto. Como tenho saudades de todas as fases da minha vida, vou ter saudades da prefeitura. Não ter saudades seria um sentimento muito ruim. Gostei muito, convivi aqui com uma excelente equipe, conheci melhor a cidade, fiz amigos. Saio muito feliz, convencido de que fizemos o nosso dever.
          Leia no site da Folha a entrevista completa
          folha.com/no1207832

            FRASES
            "A prefeitura está numa situação financeira muito difícil, pagar R$ 4 bilhões anualmente ao governo federal é muito. Ele [Haddad] conseguindo finalizar essa discussão [da renegociação da dívida], poderá sobrar recursos para investimentos
            "Seria uma honra muito grande ser candidato [a governador] e, em caso de vitória, servir ao Estado"
            GILBERTO KASSAB
            prefeito de São Paulo

              AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Por falar em futuro‏


              Estado de Minas: 30/12/2012 
              Eis uma frase perturbadora: “O futuro já está aqui. Só que distribuído de forma desigual”. É de Willian Gibson, que criou a palavra “ciberespaço”. 

              Se isto é verdade, então, o futuro está ocorrendo agora, no presente, mas muitas pessoas não sabem disto. Por exemplo: só fomos tomar conhecimento da internet em 1990. No entanto, nos anos 60 os militares americanos já a utilizavam. Eles estavam no futuro e nós no passado. Igualmente, nos laboratórios mais avançados, as pessoas vivem em 2020, 2050 e a gente aqui pregado neste 2012, aspirando ao 2013.

              Isto me faz lembrar do que ouvi num sermão: o pastor contou que um missionário na África conseguiu converter o chefe de uma tribo ao cristianismo. Mas o convertido fez-lhe uma queixa grave: “Como é que esse Cristo morreu há 2 mil anos e só agora o senhor vem me contar isto?”.

              Entrar numa religião, numa ideologia, numa filosofia de vida, é habitar outro tempo e espaço.

              Bem dizia Santo Agostinho, na verdade o tempo é uma ilusão e só existe o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro.

              Agora, durma com o “presente” desses!

              O fato é que nesses dias pus-me a ler o livro A física do futuro (Editora Rocco). É uma ideia conveniente na passagem do ano. Não estamos indo para o amanhã? Então temos que saber o que é isto. O autor Michio Kaku é professor de física e tenta explicar aos leigos também em programas de rádio e televisão a teoria quântica e os buracos negros.

              Como já lhes disse, gosto de ler coisas sobre ciência, porque ela é poesia pura. Os cientistas vivem no mundo da Lua. E tentam melhorar a vida dos que vivem na Terra.

              Enquanto na passagem do ano as pessoas estão jogando na Mega-Sena e fazendo previsões assombrosas, esse Michio Kaku faz uma coisa mais rasteira e perturbadora. Nos contou as coisas que já estão ocorrendo nos laboratórios e que nós, pobres mortais, ignoramos. Coisas que só saberemos em 2030, 2050 e 2100. Mas que já existem.

              Ou seja, o futuro está acontecendo aqui e ali, e nós estamos por fora. Pior, estão inventando o futuro e não estão pedindo nossa opinião, porque o nosso futuro não nos pertence. A ciência nos roubou o futuro. Ou, se quiserem: a ciência quer nos dar de presente (um futuro) sem nos perguntar se queremos.

              Isto está parecendo a frase daquele filme Forest Gump: o tenente que foi salvo da morte na guerra do Vietnã reclama: “Você roubou meu destino”. É isto: andam mexendo com nossa vida e com nossa morte sem nos pedir licença.

              Claro que algumas coisas serão maravilhosas: vão curar todas as doenças, melhorar as colheitas e moveremos objetos com o pensamento. 

              Estou nesse clima de fim de ano, pensando no futuro, lendo esse livro e resolvo cair no real do cotidiano, ler o jornal. Claro, o jornal, como se sabe, já é coisa do passado, quando ele chega a internet já o ultrapassou. 

              Mas algo me chamou a atenção, ou melhor, deixou-me boquiaberto: li a notícia de que acabam de disponibilizar uns óculos que substituem o computador. Havia acabado de ler naquele livro que isto ia ser inventado futuramente. 

              E o futuro estava ali, presentificado, aos meus olhos.

              “O futuro já está aqui. Só que distribuído de forma desigual.”

              Marcos Coimbra - 2012 na política: o governo‏


              Estado de Minas: 30/12/2012 
              Um governo que é avaliado como “ótimo” ou “bom” por 62% das pessoas tem muito que comemorar. Uma presidente cujo trabalho é aprovado por 78% da população também. Esses são os números da pesquisa CNI/Ibope feita entre 6 e 9 de dezembro, em que foram ouvidas 2002 pessoas.

              Dilma chega à metade de seu mandato com avaliação melhor que a de qualquer um de seus antecessores em momento parecido. Desde quando existem dados comparáveis, ninguém obteve números semelhantes. 

              Fernando Henrique, por exemplo, nunca alcançou esse índice, sequer na época em que atravessava sua fase áurea. A vitória contra a inflação, a equivalência do real com o dólar, o quilo de frango que valia uma moeda, a sensação de que a economia entrava em rota de crescimento, nada disso fez com que ele chegasse ao número que Dilma tem hoje.

              É uma lembrança que mostra quão inadequada é a interpretação que as oposições, especialmente seu braço midiático, oferecem para a popularidade do governo Dilma. 

              Na enésima repetição do velho chavão de que “é a economia, estúpido!”, limitam a explicação a um único fator: para elas, as pessoas comuns, que constituem a grande maioria, pensam com a barriga. Quando estão de pança cheia, aprovam o governo. 

              Trata-se de um equívoco baseado em puro preconceito, segundo o qual o povo só é capaz de avaliações unidimensionais. Ao contrário dos bem pensantes, que conseguiriam fazer raciocínios complexos. 

              Assim como a população não gostava de Fernando Henrique por vários motivos – ainda que aprovasse sua atuação no controle da inflação –, gosta de Dilma por diversas razões, mesmo reconhecendo que há políticas que não funcionam de maneira satisfatória. 

              O tamanho da aprovação do governo neste fim de ano foi duplamente decepcionante para a oposição partidária e seus aliados. Ao invés de subir, esperavam que caísse, na confluência do desgaste da imagem do PT causado pelo julgamento do mensalão e do agravamento da situação objetiva da economia.

              Dilma ultrapassou, no entanto, os percalços. Por mais que os economistas da oposição estejam pintando quadros fúnebres para o Brasil e insistam em falar em crises, as pessoas se sentem satisfeitas com o presente e otimistas em relação ao futuro. Por maior que seja a culpabilização do PT, ninguém associa a presidente a qualquer malfeito, real ou inventado. 

              Não é surpresa, portanto, que ela tenha a vantagem que tem nas pesquisas para a eleição de 2014. Frente a quaisquer candidatos, venceria, com larga margem, a eleição no primeiro turno. Seu desempenho só é inferior ao de Lula – e por pouco. 

              Para tentar mudar esse quadro de favoritismo, entrou na moda o argumento de que o país “poderia estar melhor” e só não está por “incompetência gerencial do governo”. Na opinião de nove entre 10 analistas da mídia conservadora, Dilma não seria a boa gerente que é apresentada. 

              Trata-se de uma tese de escassa capacidade de convencimento. Primeiro porque as pessoas levam mais em consideração os benefícios que estão a seu alcance que os que poderiam, hipoteticamente, obter. Se acreditam que o governo vai bem, porque trocá-lo por algo que não existe? 

              Em segundo lugar, porque não enxergam alguém melhor que ela. Na opinião da maioria, a oposição teve sua oportunidade nos oito anos em que Fernando Henrique foi presidente e não convenceu. Ao contrário, em retrospecto, mostrou-se inferior aos petistas. 

              Ainda que a situação da economia piorasse no próximo ano, seria difícil que afetasse significativamente a popularidade da presidente e a eleição de 2014. Como não é isso o mais provável, são poucas as nuvens no horizonte para Dilma. Salvo as de todo dia, com as quais ela já se acostumou. 

              Cautela a presidente tem que ter é com a Copa do Mundo. Ela não será cobrada se a Seleção Brasileira for mal, nem aplaudida se for bem nos gramados. Mas pagará um preço de imagem pessoal muito alto se as pessoas ficarem com o sentimento de que o Brasil perdeu a copa que mais interessa: a da organização do evento e do bom funcionamento das coisas durante sua realização. 

              Essa, para a população, é mais importante que o hexacampeonato. 


              A publicação da coluna será interrompida em janeiro, sendo retomada no domingo, 3 de fevereiro.

              Tereza Cruvinel - Boa sorte, prefeitos‏


              Estado de Minas: 30/12/2012 
              Os governantes que deixarem o cargo sem fechar as contas enfrentarão os tribunais de Contas e o Judiciário, responderão a processos e serão incluídos na Lei da Ficha Limpa

              Os novos prefeitos que tomam posse na terça-feira vão encontrar, quase sempre, o caixa vazio, quando não pendências financeiras deixadas pelos antecessores. Muitos vão se deparar com salários, ou pelo menos com o décimo-terceiro atrasados. Terão que fazer logo um ajuste fiscal e buscar ajuda federal para atravessar o primeiro ano.

              Com sorte e trabalho, tudo pode ser resolvido para os que ainda têm quatro anos pela frente. Ainda mais se a economia pegar mesmo um vento de crescimento no início do ano. Já os que deixam o cargo com irregularidades administrativas enfrentarão os tribunais de Contas e o Judiciário, responderão a processos e serão incluídos na Lei da Ficha Limpa, não podendo disputar eleições enquanto não acertarem o passo com a Justiça. Por ordem do TCU, os que saem devem deixar um minucioso relatório de transição para os que estão assumindo, mas nem todos estão tomando essa providência.

              Na sexta-feira passada, dia 28, o governo federal repassou a última cota anual do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), de apenas R$ 1,6 milhão. Distribuído por mais de 5 mil prefeituras, o dinheirinho federal não dará para nada. Uma das razões da penúria municipal deriva exatamente da queda nos repasses do FPM. Os estados, da mesma forma, sofreram com o encolhimento das cotas do FPE. Ao desonerar as empresas de impostos que alimentam os dois fundos para estimular o crescimento, o governo federal acabou atingindo os cofres estaduais e municipais. Se a economia tivesse respondido positivamente, teria havido compensação na arrecadação, mas isso não ocorreu. Para o conjunto de prefeituras, o novo salário mínimo terá um impacto de R$ 1,88 bilhão.

              O panorama não é animador para os que assumem mas a crise nas relações federativas é problema nacional. Deve merecer a atenção presidencial em 2013.

              A volta de Genoino

              José Genoino já foi procurado pela Secretaria Geral da Mesa da Câmara para tratar de sua posse como deputado, na suplência aberta pela renúncia de Carlos Almeida, que tomará posse como prefeito de São José dos Campos. Condenado pelo SFT, Genoino se diz preparado para voltar à Casa onde sempre integrou a elite parlamentar. Diz ele: “Estou sendo convocado pelas regras da representação popular, inscritas na Constituição, produto da luta do povo brasileiro pela democracia. Em 2010, apesar do escândalo de 2005, obtive o voto de 92 mil pessoas, que também devem ser respeitadas. Não farei provocações mas, também, não me submeterei a intimidações. Como sempre, observarei o regimento e participarei do debate político. Lá ficarei até quando for legal e possível. Mesmo tendo discordâncias com o julgamento, acatarei as determinações do Judiciário, não deixando, nunca, de externar minha verdade sobre os fatos julgados, que é diferente da narrativa apresentada. Isso farei enquanto viver. Essa é a maior das liberdades.”

              Três vértices

              As transmissões ao vivo das sessões do julgamento do mensalão pelo STF produziram alguma discussão sobre a conveniência da exposição dos ministros em plena deliberação, enfrentando divergências e mesmo dúvidas diante de situações complexas e até inéditas. Nem por isso faltaram louvores ao trabalho da TV Justiça, garantindo transparência a um dos poderes historicamente mais fechados e distantes do grande público. Faltou, porém, falar da natureza daquela emissora. Teria sido útil e ainda é tempo.

              No período em que implantei e presidi a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e sua emissora pública, a TV Brasil, esforcei-me para colocar o debate sobre o tema em suas bases legais. O artigo 223 da Constituição federal determina a complementaridade entre canais privados, estatais e públicos na radiodifusão brasileira. Os privados existiram desde o início da radiodifusão no Brasil, ocupando quase todo o espectro eletromagnético. Depois da Constituinte, com base no citado artigo, surgiram os canais estatais dos diferentes poderes: TV Senado, TV Câmara, TV Justiça e TV NBr, do Executivo. Esta, na falta de espaço no espectro, ainda opera apenas por satélite e TVs por assinatura. Em 2007, surgiu a TV pública federal, subordinada, quanto aos conteúdos, não ao Estado, mas a um conselho de representação da sociedade. Formaram-se os três vértices. A emissora foi implantada, apesar das limitações no espectro analógico, caminha para o digital e transmite conteúdos brasileiros para 68 países. 

              O governo atual não lhe confere alta prioridade, como o de Lula, mas aparentemente garante sua gestão. Não optou pelo desmonte, como ocorreu com outras tentativas no passado. Os outros dois poderes têm fortalecido seus canais. Lamentavelmente, as TVs públicas estaduais enfrentam dificuldades. Inclusive a pioneira TV Cultura de São Paulo. Mas, percalços à parte, o que está feito deve ser mantido, porque expressa uma ordem democratizante ditada pela Constituição. A atuação da TV Justiça no julgamento deve servir a essa reflexão.

              CIÊNCIA » Internet do futuro - Marcela Ulhoa‏

              Consórcio de instituições brasileiras e europeias começa a testar, no próximo ano, a chamada rede definida por software, que garante acesso mais rápido e barato 

              Marcela Ulhoa
              Estado de Minas: 30/12/2012 

              No primeiro semestre de 2013, mais de 10 universidades e instituições de pesquisa no Brasil e cerca de seis centros da Europa se conectarão a uma rede experimental que abrirá as portas para a internet do futuro. O projeto Fibre (Future Internet Testbeds Experimentation Between Brazil and Europe) é um consórcio de cooperação bilateral em que pesquisadores europeus e brasileiros poderão dividir experiências para implementar e validar o revolucionário conceito de rede definida por software (SDN, pela sigla em inglês). 

              Pelo Fibre, pesquisadores de instituições como a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD) terão a oportunidade de desenvolver softwares de rede próprios que podem ser, inclusive, livres (com códigos abertos), em um ambiente de teste repartido. Ou seja, o que uma instituição fizer, não necessariamente vai influenciar na rede em conjunto, já que haverá como repartir a rede. Além disso, haverá também a possibilidade de criar uma rede na nuvem, por meio de máquinas virtuais, em que o software rode em apenas um computador, mas que os fluxos de dados sejam transmitidos a vários outros. Os testes começam no começo do ano que vem e prometem mudar os paradigmas da internet.

              Para tanto, uma das principais tecnologias envolvidas é o OpenFlow, criado em 2008 pela Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Entender os avanços trazidos por essa interface exige antes uma melhor compreensão de como web é operada atualmente. Para montar uma rede de internet hoje, é preciso utilizar equipamentos como roteadores e switches. Os primeiros são aparelhos que transmitem a rede de internet e possibilitam a comunicação entre computadores distantes entre si. O switch, por sua vez, foi criado para que um único sinal de internet possa ser dividido por mais computadores de uma LAN (local area network). Para que a internet de um escritório seja dividida entre os vários computadores do local, por exemplo, basta colocar o cabo do modem no switch e, a partir do aparelho, levar vários cabos aos computadores da empresa.

              “Os switches e roteadores são caixas-pretas. As pessoas não têm a mínima ideia do que têm dentro. Elas simplesmente os usam. Esses equipamentos, no entanto, são divididos em duas partes. Uma é a parte da inteligência, que toma as decisões sobre o que fazer com os dados que chegam ao aparelho (o software). A outra segue essas decisões e faz com que o tráfego de dados que chega por um lado saia pelo outro (hardware)”, explica Marcos Rogério Salvador, gerente de Evolução de Tecnologia de Redes Convergentes do CPqD, instituição responsável por implantar a tecnologia OpenFlow no Fibre.

              Um dos grandes problemas desse sistema é que somente o próprio fabricante tem condições de alterar a inteligência que está no aparelho e, dessa forma, a tecnologia fica concentrada na mão de poucas empresas. O resultado: menos competição, preços mais altos e poucas aplicações de rede. “Quando você compra um equipamento desses, você tem que se adequar ao que ele oferece”, critica Salvador. O ponto principal do OpenFlow é justamente reverter essa limitação e permitir que o software que define a rede seja retirado dos roteadores e switches para começar a ser gerenciado fora desses equipamentos, nos próprios computadores.

              Soluções “Atualmente, quando você compra um roteador, ele já vem com o software embutido. Você não pode mexer nele, ele foi dado pela empresa que vendeu o equipamento. O OpenFlow permite que as pessoas façam um programa de rede separado da caixa”, explica Cesar Marcondes, professor do Departamento de Computação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Coordenador regional do projeto Fibre, Marcondes esclarece que uma das grandes vantagens é possibilitar que o próprio usuário possa programar sua rede de acordo com demandas específicas. 

              Ou seja, na era da rede por software, o usuário continua comprando equipamentos como o roteador, mas eles não vêm com a inteligência embutida. Estima-se que, com isso, o preço desses equipamentos caia cerca de 80%. “O Google, em março deste ano, disse que está rodando OpenFlow na rede de data centers dela. Ela tem data centers espalhados pelo mundo todo. Isso significa que ela pode programar a rede dela para que certas conexões sejam encaminhadas para um local em vez de outro e programar melhor seus recursos”, exemplifica. 
              A rede Fibre, nesse sentido, tem suporte a OpenFlow, mas também a outros mecanismos que permitirão aos pesquisadores experimentar soluções novas para a internet do futuro. Marcondes acrescenta que é por isso que, em cada país, existem projetos de pesquisa que desenvolvem uma rede de experimentação que permite ao pesquisador testar novas soluções sem prejudicar a conexão dos usuários. “A internet é um bem tão valioso que ninguém quer deixar de fazer testes com ela. Os usuários dependem muito dela, estão sempre conectados, por isso a rede não pode ficar caindo e falhando”, explica.