Zero Hora 02/03/2014
Não gosto de pagode. Acho uma música pobre, repetitiva, enfadonha e sem
classe. Reconheço que o mesmo se poderia dizer do rock, só que de rock
eu gosto, então não leve esta crônica tão a sério.
Pois, numa noite de sábado, me encontrava no Rio de Janeiro, mais
precisamente na Lapa, e de última hora soube que haveria ali mesmo, a
poucos metros de onde eu estava, um show do Zeca Pagodinho, e ainda
havia ingressos. Se eu imaginei um dia assistir a um show do Zeca
Pagodinho, seria apenas numa circunstância como esta: sendo pega de
surpresa no habitat dele, em plena boemia carioca. Fui. Afinal, sempre
se pode mudar de ideia. Se tanta gente gosta de pagode, talvez fosse o
momento de descobrir a razão.
Lugar lotado, tribo eclética, gente de todas as idades, uma alegria
contagiante. Cheguei quando iniciava o show de abertura de um grupo que
não conhecia: Casuarina. Cinco garotos tocando samba. Excelentes
instrumentistas. E o repertório era de lavar a alma. Baden Powell,
Vinicius de Moraes, Jackson do Pandeiro, Paulinho da Viola, Dorival
Caymmi, Chico Buarque. Eu, que admito ser ruim da cabeça e doente do pé,
me senti honrada por estar escutando aqueles sambas históricos,
enquanto que, ao mesmo tempo, começava a compreender o porquê da minha
resistência ao pagode.
Quando Zeca Pagodinho entrou no palco, eu já estava mais do que
satisfeita, poderia ter ido para casa dormir. Mas fiquei. Ele cantou
uma, cantou duas, cantou três... Tudo igual. Gostoso para quem gosta,
dançante para quem curte, música popular bem popular, nada de errado com
isso. Só que era gritante a diferença de qualidade do que havia sido
exibido antes por aqueles cinco garotos menos conhecidos. Fiquei
matutando: o cara tem carisma, suingue, o que é que falta? Para os fãs,
falta nada. Para mim, falta literatura no pagode.
Não estou reivindicando letras herméticas, nada contra a
simplicidade, pelo contrário. Mas literatura faz falta em tudo: na
música, no teatro, no cinema, na arquitetura, na culinária, no amor. Um
mínimo de poesia, sutileza, refinamento: sem isso, a vida fica rasteira.
Sem a literatura como base, não se consegue dar nem mesmo uma opinião,
quanto mais criar algo que esteja dois degraus acima da mediocridade.
E literatura, aqui, não significa a leitura de uma biblioteca
inteira, mas ter uma alma ilustrada. Me acusarão de elitista, mas o
assunto não tem nada a ver com elitismo: qualquer um pode ser
sofisticado sem perder a autenticidade e a popularidade. Sofisticação,
nesse caso, é ter um olhar levemente mais aguçado, uma percepção um
pouquinho mais abrangente, uma ousadia mais intelectual do que verbal.
Estou sendo elitista? Então estou.
Mesmo sabendo que serei atacada, queria falar sobre isso, sobre como
podemos descobrir nossos gostos através daquilo que não gostamos tanto.
O que me valeu do show do Zeca Pagodinho foi ter descoberto que eu,
roqueira de carteirinha, admiro o samba muito mais do que podia
imaginar.