domingo, 31 de março de 2013

‘A Questão Finkler’, humor e melancolia

folha de são paulo
Raquel Cozer

“A Questão Finkler”, de Howard Jacobson, 70, ficou conhecido em 2010 como o primeiro romance de humor em quase 25 anos a ganhar o prestigioso Man Booker Prize, para títulos em língua inglesa. Descrição um tanto injusta: mesmo sem o humor seria um livraço.
A obra trata de três amigos ligados ao judaísmo, no bom e no mau sentido. Há Julian Treslove, um gói obcecado pela improvável chance de ter raízes judaicas. Há também Libor Sevcik, judeu tcheco de quase 90 anos a quem a origem importa menos que a morte de Malkie, sua mulher por mais de meio século. E há Samuel Finkler, judeu tão avesso a Israel que prefere usar “Sam”, negando a origem, na assinatura de seus best-sellers de autoajuda filosófica.
O humor predomina nas discussões em torno da questão judaica (“finkler”, sobrenome do amigo, é como Treslove chama todos os judeus), mas há também melancolia em temas nada relacionados a política. Escrevi sobre o romance na última semana na Ilustrada. Segue abaixo a entrevista com Jacobson, autor de opiniões contundentes sobre o debate em torno da questão judaica, o humor na literatura e o futuro dela como um todo.
 ***
“A Questão Finkler” aborda a experiência de ser judeu na Inglaterra. No que um judeu inglês é diferente de qualquer outro?Escrevi o livro para tentar entender isso. Ser judeu na Inglaterra não é como ser judeu em nenhum outro lugar, ao menos nos lugares que aparecem na literatura. Não é como ser judeu em Israel ou nos EUA. Os judeus ingleses sempre se comparam aos americanos com inveja pela posição confortável que estes ocupam na cultura. Em Nova York há milhões deles, escritores, músicos ou pintores. Dá para dizer que a cultura americana é quase judaica, pensando no romance americano contemporâneo, por exemplo.
Já na Inglaterra somos uma minoria, só 250 mil no país inteiro. Não fazemos barulho, não pedimos atenção. Não é como se quiséssemos sair do país. Estamos bem aqui. Mas não é uma boa ideia emanar a confiança judaica na Inglaterra. Nos EUA, eles já faziam parte da cultura quando a cultura surgia. Hollywood, os quadrinhos, a literatura, o que você pensar: os  judeus estavam lá. Aqui não, há uma cultura firme, anglo-saxã, que não lhes é hostil, mas não é selvagemente receptiva. Você tem de ir com cuidado.
Fala-se muito no humor inglês e também no humor judaico. Como o sr. definiria o seu tipo de humor?Sou um autor inglês antes de ser um autor judeu, mas, após tanto escrever sobre a questão judaica, fiquei em dúvida: “Será que pensam em mim como um autor estrangeiro?” Eles pensam e não pensam. Acho que o modo como junto comédia e tragédia, a maneira como brinco com algo sério ou trágico, o jeito como meu humor se arrisca com a dor, isso não é algo que um inglês faria com naturalidade, e eles têm certa dificuldade de entender isso. Não é uma batalha, não quero bancar o mártir. Não estive em campos de concentração, não estou em agonia, só sinto que minha voz não é bem inglesa, é um pouco estrangeira.
O sr. cita no livro uma frase do cineasta Ken Loach sobre o antissemitismo ser compreensível dada a postura do governo israelense. O próprio Finkler, personagem que dá nome ao livro, é antissionista e chega a ser acusado de antissemitismo. Como diferenciar o que é crítica e o que é antissemitismo?
Esse é um tema que exige clareza. Não acho que quem critica Israel seja necessariamente antissemita. Não é errado criticar [o premier israelense] Netanyahu e suas políticas. Muitos judeus são críticos a Israel, muitos israelenses o são. Mas há um problema quando se criticam não só as políticas israelenses, mas os judeus e o sionismo como um todo. Quando vejo isso, desconfio das motivações. A Europa não tem uma boa história com judeus. Gente da França, da Itália, da Alemanha, da Inglaterra, o primeiro país a expulsar os judeus, deveria hesitar antes de criticar o sionismo, que começou como necessidade. Quem não vê essa necessidade, ao menos isso, não entende que àquela altura tínhamos um problema. Não significa que o sionismo tenha terminado bem ou que não saibamos que é um problema para árabes e palestinos. É um problema real e sério.
E é uma discussão central no romance.Decifrar se as críticas são antissemitas ou não é algo que ocupa muito a vida dos ingleses. Na vida intelectual inglesa há uma obsessão sobre Israel, chegando a ir além de uma posição política honesta. Não há país que você possa amar politicamente e não há motivo para amar Israel politicamente, mas terá Israel cometido crimes para os quais caibam nomes como fascismo e nazismo? E, se não, porque há quem use essa denominação? Especialmente em jornais intelectuais de esquerda… Escrevo para um deles, o “Independent”, e ao longo dos anos tive discussões com outros colaboradores do jornal. Entre eles, Israel virou uma obsessão. Deixou de ser um lugar real e virou fantasia. Assim como para muita gente que ama Israel.
Para os personagens de “A Questão Finkler”, não há uma Israel real. Ninguém vai lá, não há nenhum israelense. Tudo são pessoas trocando impressões, idealizando. Isso é o que me interessa. Podemos ter essa conversa de novo e de novo, e foi o que tentei recriar, essas discussões randômicas, inclusive a parte cômica disso. Temos essa conversa tantas vezes que às vezes olhamos um para o outro e pensamos: lá vamos nós de novo…
Como é a sua relação com Israel?Já escrevi e fiz documentários sobre Israel. Anos atrás escrevi um livro, “Roots Schmoots”, uma viagem pelo mundo judaico e que termina na Lituânia, de onde veio minha família. Também fiz um documentário para TV, no qual fui crítico a coisas de que não gostei, coisas terríveis que ouvi de ambos os lados. Você já foi a Jerusalém?
Não, nunca.Jerusalém dá uma sensação extraordinária de viagem no tempo. Você se sente de volta ao mundo bíblico. As pessoas vivem batalhas lá, emocionais, intelectuais, religiosas, como há 5.000 anos. Toda vez que vou a Israel me sinto extasiado e perturbado com isso. Sou um judeu da diáspora, acostumado a viver longe de um grande número de outros judeus. E cresci amando ser alguém de fora. Para um escritor, é útil nunca se sentir em casa, porque a escrita tem a ver com expressar um distanciamento, a sensação de falta de abrigo..
Isso também é importante para o humor. Gosto dos grandes autores israelenses, Amos Oz, A.B. Yehoshua, David Grossmann, são todos maravilhosos. Mas nenhum deles é engraçado. Há uma seriedade, um sentimento de pertencimento. Ser um escritor judeu em Israel não deixa espaço para o humor, isso seria uma espécie de luxo. Quando você lê esses autores, acha que está brincando de ser judeu. Eles devem achar que sou judeu de mentirinha. Até me sinto meio culpado, como se eles fossem os verdadeiros judeus, e não eu.  Depois repenso, não, não é verdade. Porque o humor também faz parte do que é ser judeu. É o humor mais sério que existe, e no entanto é humor. Consigo entender porque os israelenses não têm isso, mas acho que a nova geração pode ser capaz. Eles conhecem essa sensação de falta de abrigo em Israel, muitos pensam que aquele não é o país em que querem viver.
Apesar do humor, “A Questão Finkler” também é bastante melancólico. Como foi conciliar essas duas características?Sempre gostei dessa mistura em obras de outros autores e não sabia se poderia fazer. Acho que esse livro resultou mais melancólico que meus livros anteriores por causa da minha idade, que já torna tudo mais melancólico, e também porque foi a primeira vez que escrevi sobre alguém bem mais velho que eu. Normalmente escrevo sobre jovens ou personagens da minha idade.
Acho que Libor, o personagem mais velho que perde sua mulher, é o melhor personagem que já criei. Muitos me disseram que ele os fez chorar, e me fez chorar, inclusive. Eu não sabia que se tornaria uma história tão dramática. Só queria escrever sobre um homem que chegou perto dos 90, ficou viúvo depois de um casamento longo e apaixonado, e não sabia o que fazer com a vida agora. Vi pessoas idosas sofrendo com a intensidade do amor, da saudade. É chocante e lindo ao mesmo tempo. É lindo que sintam isso e aterrorizante que ainda sintam isso. Isso faz você perceber que nunca haverá uma época em que sentirá paz.
Sou meio como Treslove, o personagem obcecado pela tragédia, fico imaginando como será quando ela acontecer. Temo saber como seria se minha mulher, a mulher que eu amo, morresse antes de mim, se saberia lidar com isso. Escrevi “Finkler” a partir desse medo, e foi uma nova maneira de escrever para mim. Escrever não sobre o que sei, mas sobre o que temo. O medo me fez escrever com peculiar intensidade e tristeza, e isso atravessa o livro.
O sr. acha que foi a melancolia que fez o livro ser premiado?
Acho que sim. Apesar do lado triste, esse foi o primeiro livro de humor a vencer o prêmio em muitos anos. Não é um livro propriamente cômico, embora faça rir. É um livro trágico, mas é uma boa história dizer que um romance de humor levou o prêmio. Quando o júri anunciou o prêmio e começou a descrever o vencedor, antes de falar o nome do livro, destacou  a melancolia. Jurados disseram que o livro os fez chorar. É difícil alguém ganhar um prêmio só fazendo as pessoas rirem. Ótimos romances, como “Dom Quixote”, fazem rir, mas as pessoas desmerecem isso. Não gostam de rir e de se reconhecer rindo ao ler, não reconhecem isso como algo pertencente à literatura. Eles estão errados.
De todo modo, a melancolia torna mais fácil a aceitação. A mistura de riso e dor,  juntar as duas na mesma frase, fazer alguém rir e chorar, essa é minha ambição.
O sr. escreveu um romance sobre o fracasso literário logo depois de ganhar o Man Booker Prize. Houve alguma relação entre esses dois fatos?Sim, se chama “Zoo Time” e acabou de sair na Inglaterra. Muitos ficaram surpresos com isso. É claro que isso demanda certa confiança, e ganhar um prêmio importante me fez sentir mais à vontade com um assunto tão sério.
Há um problema sério em relação ao que as pessoas estão lendo. Aqui neste país 5 milhões de pessoas compraram “Cinquenta Tons”. Antes disso adultos liam “Harry Potter”, não só crianças, mas adultos. Então você presta atenção no estado da leitura, vê o nível de degradação a que esse cenário chegou. Vejo estudantes com uma nova forma de arrogância, dizendo que não gostam de determinado livro porque ele não é bom, sem parar para pensar que talvez não gostem por incapacidade de entender.
Eu me preocupo com a saúde da literatura. Comecei a escrever esse livro antes de ganhar o prêmio, então ganhei, e quando você ganha um Booker você não faz mais nada por seis meses –aliás, se não tomar cuidado, não faz mais nada pelo resto da vida. Depois de seis meses, eu me perguntei se conseguiria voltar a esse livro e escrever sobre o fracasso literário. Descobri que sim. Poderia escrever sobre todas as coisas que me preocupam, o fato de livrarias e bibliotecas estarem fechando, a desvalorização da escrita, a perda de concentração dos mais jovens. A ideia de um romance ser algo em que você mergulha por várias semanas sem querer fazer mais nada, tudo isso está mudando.
Poder falar isso do ponto de vista de quem conhece o sucesso, de modo que as pessoas não pudessem dizer que sou apenas um velho fracassado amargo sobre a vida, bem, isso ajuda.

Robert Downey Jr. show

folha de são paulo

REVISTA SERAFINA

ADRIANA KÜCHLER
DE LOS ANGELES
"Sou a melhor pessoa que você pode ter para promover o seu filme. Principalmente se eu estiver nele". Todos riem quando Robert Downey Jr. fala, mesmo que ele não esteja fazendo piada. Ele gosta da atenção. "Eu vivo para isso."
O assunto dele agora é "Homem de Ferro 3", novo longa da franquia de sucesso que transformou o antigo ator problema em garantia de boas bilheterias, e que entra em cartaz no próximo dia 26.
Aquela era a primeira entrevista da maratona de divulgação programada pelo estúdio. Ele tinha 90 dias pela frente, falando e posando para fotos. Mas não parecia se importar. Aliás, parecia estar se alimentando de tanta atenção.

Carreira de Robert Downey Jr.

 Ver em tamanho maior »
O ator americano Robert Downey Jr, 47
Os dois primeiros "Homem de Ferro", lançados em 2008 e 2010, tiveram faturamento conjunto de R$ 2,4 bilhões e "Os Vingadores" (2012), reunião de super-heróis da Marvel com participação de Robert na armadura de lata, arrecadou R$ 3 bilhões e se tornou a terceira maior bilheteria da história. A série "Sherlock Holmes", sua segunda franquia, com dois filmes lançados em 2009 e 2011, também é campeã de audiência global.
Por conta do faturamento dos filmes, o salário dele estourou: de R$ 1 milhão no primeiro "Homem de Ferro" para R$ 100 milhões em "Os Vingadores". A "Forbes" o considerou o maior arrecadador do cinema em 2012.
Nesse terceiro filme, o personagem de Robert, Tony Stark, o Homem de Ferro, vai enfrentar o vilão Mandarim, interpretado por Ben Kingsley, além de lidar com dificuldades com a armadura superpoderosa, que o deixa na mão.
A figura do bilionário Tony Stark, brilhante, irônico e sedutor, mas arrogante e nada modesto, costuma se confundir com a de Robert. Menos no figurino.
O ator faz um estilo eclético, mas nunca descuidado. Para encontrar a imprensa internacional, opta por um tricô creme por cima de uma camiseta branca manchada de rosa, com calça de veludo e botas cinzas.
CAIXA PRETA
O cabelo espetado para cima tira o foco dos pelos brancos que começam a aparecer na sua barba e das linhas de expressão que marcam sua testa. A entrevista é performática.
Ele faz caretas, cruza os braços, dá soquinhos no ar. Todos se divertem. O que pode parecer antipático em outros, nele é só charme.
Nas mãos, e há muitos anos, ele carrega uma mala preta, dura, que mais parece uma caixa de câmera fotográfica subaquática. Pergunto o que tem dentro. Ele abre a mala, compartimentada e organizada, e começa a listar:
-Ervas, chiclete de nicotina, continuo sem fumar, óculos escuros, lenços umedecidos...
Há quatro anos, quando apareceu em Serafina pela primeira vez, o ator trazia, no seu "kit salvação", chaves, um iPod, um Blackberry que ganhou de Jude Law, um charuto e um saco preto e misterioso.
Dessa vez, explica assim a onipresença da mala: "As garotas me entendem. Vocês não se sentem sempre como se estivessem pescando em suas bolsas, remexendo um monte de bolas de bingo sem nunca encontrar o que procuram?"
Todas concordam. "Odeio isso", ele continua. Aos 47 anos, o ex-junkie, chegado em crack, cocaína, heroína, prostitutas e frequentador de prisões e "rehabs", e atual superstar, Robert
Downey Jr. só é dependente da sua caixa preta. Continua sendo um obsessivo, mas tem obsessões mais saudáveis.
Minutos antes da entrevista, o diretor Shane Black, que já tinha trabalhado com ele em "Beijos e Tiros" (2005), havia descrito o ator como um caubói, um verdadeiro herói americano. "Ele disse isso?", pergunta Robert.
"Não, não me sinto um herói. Mas é importante que o diretor diga esse tipo de coisa. Faz bem pro nosso relacionamento." Todos riem.
AUTOAJUDA
Digo a ele que Shane o chamou de "gênio perdido, uma criança por dentro". "Ele acha que engoli uma criança? Adoro as coisas que ele fala". Diz também que dá muitos palpites no roteiro de "Homem de Ferro".
"Eu digo: 'Aqui, eu preciso falar algo. Nessa parte falta alguma coisa. Isso não deveria ser tão engraçado.' Caso vocês não tenham notado, gosto muito de falar!".
É óbvio que Robert gosta de falar. As frases começam com um assunto e caminham livremente por outros, muitas vezes sem pé nem cabeça. Começa a responder a uma pergunta e logo está filosofando sobre algo que não necessariamente tem a ver com o tema. Insere frases no meio da conversa como se tentasse ensinar as lições que aprendeu pela vida.
E mistura as lições com piadas como se estrelasse uma comédia "stand-up" de autoajuda: "Eu realmente acredito que, se você não estiver do seu lado, ninguém mais vai estar. Se você não confiar em você, porque o público ou um estúdio deveria confiar?", "No momento em que você determina que a causa do seu sofrimento está fora de você, você se torna a causa do sofrimento de outras pessoas".
E ele começa a atuar no mundo da autoajuda. Em fevereiro, apresentou o Prêmio Experiência, Força e Esperança, que promove tratamentos alternativos, como o humor, para pessoas viciadas em álcool, drogas ou comportamentos autodestrutivos.
Indagado sobre porque ainda não aceitou fazer o quarto "Homem de Ferro", diz que aprendeu com seu personagem Tony Stark como é difícil arrastar uma armadura inútil e sem vida por aí.
LIÇÃO DE HUMILDADE
"É terrível ver um ator repetindo um papel enquanto o público diz: 'Por favor, não faça mais isso'. Não passo por cima da minha percepção. Se sentir que não sou mais bem-vindo pelo público, não quero seguir interpretando Tony Stark".
O que não significa que ficaria confortável ao ver um outro ator vestir a armadura em seu lugar.
"É, o ego... O ego tem que ser esmagado. Se isso acontecesse [alguém substituí-lo], provavelmente seria a melhor coisa do mundo para mim. Mas eu odeio ver o ego das pessoas sofrer, odeio quando as pessoas têm que aprender a ser humildes. Tenho uma boa quantidade de humildade. No banco" (risos).
Robert também tem uma família renovada: dois filhos, Indio, 19, e Exton, 1, e a segunda mulher, Susan, com quem é casado há sete anos e sua sócia na produtora Team Downey.
Susan também tem crédito por ter tirado Robert da lama. Mas não foi só ela: a terapia, o kung fu, a meditação, o "rehab" e a ioga também foram importantes. São ecléticas as crenças desse "judeu-budista".
Quando fazia os testes para o primeiro "Homem de Ferro", ele montou em casa um "altar para a possibilidade do eu", com objetos como uma foto do herói e uma espécie de varinha de condão.
Pergunto se ele mantém esse altar. "Não, já funcionou", ele responde, pragmático. "Hoje minha vida espiritual tem muito mais a ver com manutenção do que com conquistas. E eu te garanto que a manutenção é três vezes mais difícil do que a conquista".
Robert se levanta e segura firme a maleta. Ela tem a ver com a manutenção. A maratona de entrevistas, com as conquistas. "Faltam 89 dias", ele diz. Todos riem.


Ator faz sua personalidade transbordar para vários papeis
Downey Jr., Tony Stark, Sherlock Holmes: qual é a diferença?
RODRIGO SALEMDA REPORTAGEM LOCALRobert Downey Jr. é o herói da garotada. No entanto, durante boa parte da década de 1990, o ator era a versão pioneira e masculina de Lindsay Lohan. Cheirou, bebeu, fumou, foi preso com armas e passou um ano vestindo um uniforme laranja no presídio.
Agora, controla seu lado selvagem e faz sua personalidade charmosa e vencedora transbordar para quase todos os papeis que assumiu desde que virou a identidade secreta do Homem de Ferro.
Entrevistei-o duas vezes nos últimos anos e foi difícil separar personagem e homem real. Bobby, como lhe chamam os amigos, investe no sarcasmo para desarmar perguntas mais picantes sobre seu passado -assim como Tony Stark (o Homem de Ferro) faz quando é confrontado por seus investimentos em armas de destruição em massa.
Há seis anos, perguntei como ele se descreveria em seus anos selvagens. "Louco. Sexy. Lindo. Bêbado!", disse. Agora, faça o teste. Veja as características de seus personagens, a seguir:
1) O repórter bêbado de "Zodíaco" (2007), de David Fincher;
2) O detetive brilhante e atlético dos dois "Sherlock Holmes" (2009 e 2011), de Guy Ritchie;
3) O bonitão que corre para ver o nascimento do filho em "Um Parto de Viagem" (2010), de Todd Phillips.
Todas podiam ser descrições dele mesmo. Mas isso significa que não é bom ator? Longe disso.
Em "Trovão Tropical" (2008), faz uma das grandes performances cômicas dos últimos anos, curiosamente como um ator completamente egocentrado.
Mas o fato é que o sucesso da série "Homem de Ferro" o transformou em um símbolo. E isso mudou até o perfil dos personagens que fez em seguida.
Seu Sherlock Holmes virou um Tony Stark do século 19: inteligência acima da média, bom lutador, atraente, mas problemático com mulheres. E engraçado.
Ele nem precisa sair do papel para fazer piadinhas espertas. Ou será que nem precisa entrar?

    Minha História - Eliezer Ranieri, 32,

    folha de são paulo

    O islã como herança
    (...)O que mais prezo no Irã é a inocência da população (...) No Brasil os valores morais estão invertidos (...) Planejo voltar ao Brasil e mostrar o islã verdadeiro
    SAMY ADGHIRNIENVIADO ESPECIAL A QOM
    RESUMO
    Convertido ao islã, o paulista Eliezer Ranieri, 32, decidiu se instalar com a família no santuário xiita de Qom, no interior do Irã, para garantir que sua filha de um ano e cinco meses tenha uma educação muçulmana. Estudante de teologia com bolsa iraniana, Eliezer rejeita a liberdade sexual no Brasil e considera que a brasileira tornou-se uma "mulher objeto". Ele diz que a nova vida no Irã é "maravilhosa".
    -
    Nasci em Ubatuba, em São Paulo, e me criei no Guarujá, filho de pai comerciante e mãe professora.
    Meus irmãos e eu tivemos uma infância muito tranquila, brincando de esconde-esconde, mão na mula, queimada e outras brincadeiras tão boas e inocentes, apesar dos programas violentos, como "Jaspion" e "Changeman", que começaram a surgir no fim dos anos 80.
    Meus pais não eram religiosos, e eu, como eles, acreditava em Deus sem ter religião. Mas, em fevereiro de 2001, me converti ao islã sunita na mesquita de Santos, com o apoio de uma família libanesa que me mostrou o Corão e me ensinou o alfabeto árabe.
    Fui tocando minha vida, primeiro me formando em tecnologia ambiental e depois trabalhando na estação de tratamento de água da Riviera de São Lourenço.
    Em 2009 passei a trabalhar na feira do Brás, em São Paulo. Em seguida, me casei com a Latifa, que conheci na mesquita. Nossa filhinha, Amirah, nasceu há um ano e cinco meses. É a nossa princesa, que é exatamente o significado do nome dela.
    O problema do islã no Brasil é a influência wahabita [corrente sunita ultrarradical surgida na Arábia Saudita que inspirou a Al Qaeda de Osama bin Laden].
    Os wahabitas propagam uma visão incorreta do islã, com ideias extremistas e opressão contra outras opções religiosas.
    Tanto que, quando comecei a me interessar pelo islã xiita, muitos sunitas reagiram com hostilidade, chamando os xiitas de incrédulos. Essa experiência acabou me empurrando ainda mais para o xiismo.
    Sete meses atrás, me tornei muçulmano xiita.
    Logo em seguida, Deus pôs no nosso caminho a possibilidade de morar no Irã. Já vínhamos há algum tempo querendo sair do Brasil para educar nossa filha, inclusive fizemos planos de morar no Marrocos.
    Até que surgiu a chance de eu iniciar estudos religiosos na universidade internacional de Qom, com uma pequena bolsa.
    Era a chance ideal para criar nossa neném num ambiente islâmico adequado.
    Minha mãe, que se tornou evangélica há alguns anos, chorou ao saber da mudança, pois Amirah é sua primeira netinha. Mas ela entendeu que estávamos migrando no caminho de Deus e acabou aceitando.
    Ela e meu pai pesquisaram muito sobre o Irã e perceberam que o país é muito mais do que a questão nuclear ou a tensão com Israel.
    Chegamos a Qom há dois meses. Estranhei um pouco o trânsito totalmente sem regras, mas nosso dia a dia aqui é maravilhoso.
    INOCÊNCIA IRANIANA
    O que mais prezo é a inocência da população, que não tem a maldade dos brasileiros. Quando ando até o ponto de ônibus, por exemplo, é muito comum algum desconhecido parar o carro e oferecer carona, algo impensável no Brasil.
    Aqui a gente anda na rua sem medo de ter o relógio ou o dinheiro roubado.
    O custo da vida é muito baixo. Minha bolsa mensal equivale a cerca de R$ 100, mas aqui tudo é tão barato.
    O Irã não produz metade do que o Brasil produz e ainda assim consegue ter uma vida muito mais em conta. E o governo cuida da sua população, ao contrário da maioria dos outros países.
    Para nossa filha é ótimo estarmos aqui.
    No Brasil os valores morais estão invertidos. A criança na escola não respeita o professor, e a violência está em todo lugar.
    Além disso, você ensina o certo, mas seu filho sai na rua e vê homem com homem, mulher com mulher, tudo permitido em nome da democracia e da liberdade.
    No Brasil, a pessoa vai para uma balada, fica com alguém, acaba no motel e na semana seguinte faz a mesma coisa com outro parceiro.
    O sexo antes do casamento cai na banalidade e prejudica a sociedade.
    Por mais que as feministas digam que não, a mulher brasileira é, sim, um objeto.
    Poder andar na rua pelada é uma liberdade falsa.
    A brasileira sabe que, se ela não tiver um certo padrão de beleza, se sentirá inferior. Ela sabe que, se não mostrar o que tem, não conseguirá certas coisas.
    Por que ela usa decote? Para mostrar que tem peito grande. Para se exibir como um troféu a ser conquistado por quem conseguir.
    Não é isso que queremos para nossa filha.
    Desde pequena, a chamamos para ficar pertinho na oração. Hoje ela já sabe quando é hora de fazer "Alá Akbar" [Deus é maior, frase pronunciada nas orações]. Ela se ajoelha e põe as mãozinhas na cabeça.
    Mas ela não vai deixar de ser brasileira, e o português será sua língua principal.
    Além disso, nosso plano é voltar a morar no Brasil dentro de uns dez anos, quando eu estiver formado e apto a mostrar o islã verdadeiro aos brasileiros.
    Até lá, pretendo levá-la de vez em quando ao Brasil para ver a família.
    Ela talvez estranhe o ambiente quando estiver com a família brasileira, mas ela verá qual o valor da mulher no nosso país, e espero que um dia nos agradeça pela nossa escolha.
    Meu sonho é que ela construa uma família muçulmana. Mas também quero que ela passe por uma faculdade. O Corão incentiva muito os estudos.
    Por mais que eu mostre o caminho certo e queira que ela tenha Deus no seu coraçãozinho, ela é quem vai decidir seu futuro. Amirah terá total liberdade para seguir seu caminho.
    A gente faz a nossa parte, mas o futuro só Deus sabe.


    FRASES
    "Minha mãe, que se tornou evangélica há alguns anos, chorou ao saber da mudança. Mas ela entendeu que estávamos migrando no caminho de Deus"
    "O Irã não produz metade do que o Brasil produz e ainda assim consegue ter uma vida muito mais em conta. E o governo daqui cuida da sua população"

      Clovis Rossi

      folha de são paulo

      Brasil, democracia falha
      Mais um ranking mundial, mais uma colocação ruim, pela carência de cultura e participação políticas
      Acaba de sair mais um ranking internacional e, de novo, a colocação do Brasil é desagradável.
      Trata-se do "Índice de Democracia-2012" da EIU (Unidade de Inteligência da Economist, o braço de pesquisas da badalada revista britânica).
      O Brasil fica em 44º lugar, empatado com a Polônia, em um total de 165 Estados e dois territórios. Leva nota total 7,12 e é classificado como "democracia falha", o segundo degrau do índice. O primeiro é "democracia plena", o terceiro é "regime híbrido", com elementos tanto de democracia como de autoritarismo, e o último, obviamente, é "regimes autoritários".
      O ranking leva em conta cinco características; processo eleitoral e pluralismo, liberdades civis, funcionamento do governo, participação política e cultura política.
      O Brasil vai bem nos dois primeiros, como é natural após 30 anos de processos eleitorais limpos, de pluralismo (até excessivo) de vozes na arena política e de vigência das liberdades públicas clássicas.
      Mesmo o "funcionamento do governo" é avaliado como razoável (nota 7,5).
      Ou seja, nos quesitos formais da democracia, o país está bem. A falha, que rebaixa a nota geral, se dá em "participação política" (nota 5) e, pior, em "cultura política", item em que é reprovado (apenas 4,38).
      É óbvio que esse tipo de ranking pode sempre ser questionado porque envolve uma certa subjetividade. Se eu fosse "rankeador", jamais colocaria Cabo Verde (é o 26º colocado) à frente do Brasil.
      Mas é mais útil, em vez de questionar o ranking, questionar os defeitos que puxam o país para baixo. E, aí, acho que só os patrioteiros fanáticos de plantão duvidarão das baixas participação e cultura políticas do país.
      Não vou me estender a esse respeito até porque tratei um pouco do tema faz apenas uma semana (http://folha.com/no1251686).
      Melhorar no ranking de democracia não é apenas uma questão de orgulho patriótico. Basta citar os 10 países que ocupam os primeiros lugares para perceber como seria bom estar ao lado deles: Noruega, Suécia, Islândia, Dinamarca, Nova Zelândia, Austrália, Suíça, Canadá, Finlândia e Holanda.
      Nem dá para dizer que são países ótimos, mas monótonos, porque pelo menos Austrália e Holanda são divertidíssimos.
      Brasil à parte, vale registrar que pouco menos de metade da população mundial vive em democracia, plena, falha ou híbrida. Mas só 11% dos habitantes do planeta residem no que a EIU considera democracias plenas. Pior: 2,6 bilhões de pessoas, mais de um terço da população mundial, ainda vivem sob regimes autoritários, número muito influenciado pela China, 142ª colocada, com merecido zero em "processo eleitoral e pluralismo".
      O relatório constata que a crise de 2008 e seus desdobramentos "continuam a ter impacto negativo em democracias supostamente estáveis do mundo rico", numa prova de que "mesmo democracias há muito estabelecidas são vulneráveis à corrosão se não forem nutridas e protegidas". Imagine então no Brasil.
      crossi@uol.com.br

        O jardineiro rebelde [diário de Los Angeles]

        folha de são paulo

        FERNANDA EZABELLA
        DE LOS ANGELES

        O americano Ron Finley cansou de dirigir por 40 minutos para conseguir comprar uma maçã sem pesticida. Também cansou de ver a quantidade de lanchonetes fast-food e de gente obesa circulando por seu bairro, South Los Angeles.
        Decidiu, então, plantar uma horta comunitária bem na frente de sua casa, num pedaço de terra mal-cuidado na calçada. A prefeitura reclamou, Finley batalhou pelo espaço e a horta virou um movimento. Hoje, já são 20 espalhadas pela região.
        "Jardinagem é a coisa mais terapêutica e provocadora que se pode fazer na cidade. E ainda dá morangos de brinde", disse Finley no TED, evento que acontece anualmente em Long Beach, reunindo por uma semana palestras de designers, educadores e gente do Vale do Silício.
        Segundo Finley, o índice de obesidade em South Los Angeles é cinco vezes maior que no abastado bairro de Beverly Hills, a apenas 15 quilômetros de distância. L.A. também lidera as cidades dos EUA com mais lotes abandonados, um total de 6.500 hectares de terra ou 20 vezes o Central Park de Nova York. "Ou 720 milhões de pés de tomate", brinca Finley, cofundador do grupo LA Green Grounds, que planta hortas no bairro gratuitamente.
        "Sou artista, jardinagem é meu grafite. Você precisa ver o que acontece se deixar o solo ser sua tela em branco", disse Finley, que é designer de roupas e coleciona obras de artistas negros. "Você precisa ver o que isso faz com as crianças. Se uma criança plantar couve, ela vai comer couve."
        Veja a palestra de Ron Finley no TED em bit.ly/ronfinley (vídeo em inglês).
        Fanáticos por livros
        A moda dos restaurantes "food trucks" deu origem a vários outros "trucks", como lojas de roupas ou discos sobre rodas, instaladas em simpáticos caminhões. A mais interessante de todas é a The Library Store on Wheels, uma loja móvel cujas vendas beneficiam as dezenas de bibliotecas de Los Angeles.
        Mas não são os livros que se vende ali, e sim os produtos para fanáticos por livros que chamam a atenção. Em destaque estão a caneca amarela com a frase
        "Reading is Sexy" (ler é sexy) e os pôsteres de Edgar Allan Poe e Truman Capote. Outros favoritos são capas de iPad e camisetas com a capa de clássicos de Jane Austen e Anthony Burgess.
        Há também os melhores suvenires turísticos de L.A., como bolsas de pano ou copos de vidro mostrando os principais bairros da cidade, braceletes feitos por comunidades locais e guias de restaurantes e parques.
        A Library Store está on-line (lfla.org/store) e, durante o mês de abril, sua versão móvel passará por quatro pontos da cidade: no dia 4, na biblioteca de Atwater Village; no dia 13, no Centro de Convenções; no dia 18, em frente à loja de música Amoeba; e nos dias 20 e 21, no festival de livros do jornal "LA Times".
        Desenhos de Sendak
        A primeira grande exposição do ilustrador Maurice Sendak desde sua morte, em maio do ano passado, aos 83 anos, acontece no Bowers Museum, em Santa Ana, a 50 quilômetros de Los Angeles.
        O nome da mostra, "Maurice Sendak: 50 Years, 50 Works, 50 Reasons", faz referência ao meio século de sua obra mais conhecida, o livro infantil "Onde Vivem os Monstros" (Cosac Naify, esgotado). Há trabalhos do começo de carreira e outras curiosidades, como um autorretrato no qual Sendak olha para o espelho e vê Mickey Mouse, um de seus personagens favoritos.
        Também estão na mostra ilustrações de cenas de "Macbeth", de Shakespeare, feitas aos 16 anos para sua professora de inglês, e o primeiro livro que ilustrou, "Atomics for the Millions", um texto científico tirado das aulas de física.
        Depois de Santa Ana, a exposição vai para o Walt Disney Family Museum, em São Francisco.
        Festival Cine Noir
        O cinema que recebeu a primeira pré-estreia de Hollywood, em 1922, ainda existe e hoje abriga a American Cinematheque, que em 1998 reformou o espaço por US$ 12 milhões. O Egyptian Theatre, com decoração egípcia, fica a poucas quadras de outro cinema famoso, o Chinese Theater, ambos na Calçada da Fama.
        Em 7 de abril, aniversário de Charlie Chaplin (1889-1977), será exibida a cinebiografia "Chaplin" (1992), de Richard Attenborough, com a presença de um historiador para falar sobre os bastidores do filme. Entre 5 e 21 de abril, acontece a 15ª edição do Festival de Filme Noir, com cópias restauradas em 35mm de "Justiça Injusta"(1950), "High Tide" e "Repeat Performance", ambos de 1947.

        Realidade na tela: três perguntas para Amir Labaki

        folha de são paulo

        Três perguntas a Amir Labaki, diretor do festival É Tudo Verdade (itsalltrue.com.br), que abre sua 18ª edição na quarta (4), no Rio e em São Paulo.
        Há mais receptividade hoje ao documentário do que há 18 anos?
        Sim. O documentário se reinventou, tornando-se mais próximo a cada um de nós -no cinema, na TV, na internet. Ampliou-se a receptividade também quanto ao impulso ativo de realizadores, em grande parte graças à revolução digital.
        Qual o episódio que mais o marcou?
        Escrevi todo um livro, "É Tudo Cinema" (Imprensa Oficial, 2010), para falar dos momentos marcantes dos primeiros 15 anos. Ano a ano, novos episódios se somam. Jamais esquecerei o reencontro, em 2012, de Eduardo Coutinho com parte da equipe original de seu "Cabra Marcado para Morrer" (1984).
        Qual é o documentário mais polêmico desta edição? E o mais poético?
        Sobre os da competição, não posso me manifestar. Sobre os outros -polêmico: "O Fantasma de Valentino", em que Michael Singh entrevista de Robert Fisk a Gore Vidal para desconstruir os clichês da representação dos árabes na cultura popular dos EUA; poético: "Paulo Moura - Alma Brasileira", de Eduardo Escorel, que abre o festival em São Paulo, é um tributo simplesmente sublime.

        Porto inseguro: Salvador, 2001

        folha de são paulo

        GUILHERME WISNIK
        ESPECIAL PARA A FOLHA


        Um dos módulos expositivos que viajaram na itinerância nacional da exposição Brasil 500 Anos foi a Carta de Pero Vaz de Caminha. Eram duas páginas da carta (um bifolio), que vinham acompanhadas de uma vitrine especialmente projetada para ela, permitindo um controle preciso de temperatura e umidade. A carta e a vitrine eram também acompanhadas de uma dedicada museóloga da Torre do Tombo de Lisboa, responsável por zelar pelas perfeitas condições do documento.
        Depois de ter trabalhado no projeto expositivo da grande mostra ocorrida em São Paulo, em 2000, eu permaneci na equipe durante o ano seguinte, cuidando da instalação dos projetos de itinerância em outras capitais do Brasil. Em julho de 2001 levamos a exposição da carta de Caminha para Salvador, capital do Estado onde o documento havia sido escrito 501 anos antes. Certidão de batismo do país, a carta voltaria finalmente à Bahia, estação primeira do Brasil. O momento era muito auspicioso.
        Concentrado na montagem da exposição, já na véspera da abertura eu ainda não sabia que a Polícia Militar baiana estava havia uma semana em greve e que, naquele dia, a Polícia Civil também acabara de aderir à paralisação.
        Durante a noite, aconteceram os primeiros saques a lojas de departamento no centro, que deram ignição a uma enxurrada de arrastões e quebra-quebras que tomaram conta do dia seguinte, como num carnaval violento e sem redenção. Não dava mais tempo de cancelar a inauguração, e sabe-se lá por que razão a telefonia da cidade sofreu uma pane geral.
        O hotel ficava a apenas 200 metros do museu, mas o recepcionista fez questão de me colocar em um táxi. Muito agitado, o motorista me falou de hordas de pessoas que o apedrejaram na avenida ACM e na Paralela. Todos os conhecidos desistiram de ir ao vernissage. Os desconhecidos também.
        Uma pena, pois o bufê contratado preparou caprichadas porções de fartéis, um quitute português de gengibre que era transportado nas caravelas e foi servido aos índios, como descreve Caminha. Para piorar a situação, a notícia repentina de que a padaria vizinha ao museu acabara de ser assaltada pela segunda vez no dia nos deu a impressão de viver um estado de sítio. Apenas a equipe de montagem e o staff do museu estavam lá para prestigiar a carta. O que dizer à museóloga portuguesa? De forma sensata, ela guardou o seu higrômetro, percebendo que as condições de umidade e temperatura do ambiente já não representavam a principal ameaça.
        Era perturbador o fato de a carta voltar cinco séculos depois para o seu lugar de origem, encontrando um cenário sem véus da realidade que ela viu nascer e batizou. Porto Seguro? Mais tarde, com a normalização da telefonia, soube-se que o então presidente Fernando Henrique Cardoso tinha liberado um contingente do Exército para assegurar a paz da cidade. Eles viriam pela manhã, de diversos pontos do país, com tropas terrestres e marítimas para a Bahia, como na Guerra de Canudos, conter o foco de desregramento e agitação.
        Atinando vagamente para a convergência das coisas, deixei o pátio do museu e corri para a sala onde estava a carta, vazia àquela altura, contendo uma desoladora pintura realista com o monte Pascoal ao fundo. Tentei desvendar o conteúdo daquelas duas páginas que haviam sido aleatoriamente escolhidas para vir a Salvador, como se pudessem conter algum recado oculto sobre a situação presente.
        Mas os garranchos abarrocados, somados à luz muito tênue sobre o documento, dificultavam muito a tarefa. Finalmente, fui me acostumando pouco a pouco com a grafia antiga e, tonto, já não sei se li ou inventei: "Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas".
        Reconhecendo de algum lugar essa passagem, murmurei confiante sua continuação: "Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram."

        O neofeminismo corporativo discute se carreira e filhos são incompatíveis

        folha de são paulo

        PATRÍCIA CAMPOS MELLO
        DE SÃO PAULO

        "Não podemos mais ignorar a voz interior das mulheres que diz: 'Eu quero algo mais do que ter um marido, filhos e um lar", decretou a feminista Betty Friedan, no seminal "A Mística Feminina", há 50 anos. Desde então, mulheres chegaram à presidência da República, ao Supremo Tribunal Federal, foram lançadas ao espaço, lutaram em guerras, comandaram multinacionais. Mas ainda não conseguiram fazer o básico: conciliar uma carreira bem-sucedida com a criação dos filhos.
        "Não dá para fazer tudo. Ninguém consegue ter dois empregos, filhos perfeitos, preparar três refeições por dia e ter orgasmos múltiplos [...] a supermulher é a inimiga do movimento feminista", definiu a ativista Gloria Steinem em entrevista à apresentadora Oprah Winfrey, no ano passado.
        Se a geração "heroica" de feministas se ocupava de bandeiras como a liberalização do aborto, o direito ao sexo casual, os métodos anticoncepcionais e a paridade de remuneração, a nova geração se concentra em uma questão mais prosaica. Afinal, há poucas mulheres em posição de liderança porque o sistema não ajuda quem precisa conciliar carreira e filhos (com babás, horários flexíveis, trabalho em casa), ou porque falta ambição às mulheres?
        Quem põe a questão nesses termos é uma das chamadas "supermulheres": Sheryl Sandberg, diretora de operações do Facebook (e mãe de dois filhos) que acaba de lançar seu livro "Faça Acontecer" [trad. Denise Bottmann, Companhia das Letras, 288 págs., R$ 34,50]. Apesar de várias ressalvas diplomáticas, o livro de Sandberg basicamente sustenta que não adianta culpar a falta de condições para a ascensão feminina na hierarquia corporativa. É preciso ir à luta. O que falta é ambição.
        "Nós nos refreamos de várias maneiras, em coisas grandes ou miú-
        das, por falta de autoconfiança, por não levantar a mão, por recuar quando deveríamos fazer acontecer. Interiorizamos as mensagens negativas que ouvimos ao longo da vida -as mensagens que dizem que é errado falar sem rodeios, ter iniciativa, ser mais poderosas do que os homens. Reduzimos nossas expectativas do que podemos realizar. Continuamos a cumprir a maior parte do trabalho doméstico e da criação dos filhos. Comprometemos nossas metas profissionais para dar espaço a companheiros e filhos que às vezes ainda nem existem."
        Outra representante das supermulheres é Marissa Mayer, que em julho de 2012 foi contratada como CEO do Yahoo quando estava no ultimo trimestre de gravidez. O fato foi comemorado como o começo do fim da discriminação professional contra grávidas.
        Mas logo Marissa anunciou: "Minha licença-maternidade vai ser de duas semanas e eu vou trabalhar durante o período". Ela não só montou uma sala de amamentação no escritório como acabou com a possibilidade de os funcionários do Yahoo trabalharem em casa, esquema essencial para muitas mães que tentavam conciliar filhos e carreira.
        TER TUDO
        Do outro lado da trincheira está Anne Marie Slaughter, ex-diretora da Woodrow Wilson School of Public and International Affairs e ex-diretora de planejamento de políticas do departamento de Estado dos EUA, cargo prestigiadíssimo que pertenceu a George Kennan.
        No ano passado, Slaughter gerou enorme controvérsia com um ensaio publicado na revista "Atlantic", "Por que as mulheres ainda não podem ter tudo".
        Escrito como resposta a uma palestra de Sandberg no TED Talks, que daria origem a seu livro, o texto afirma que as mulheres só vão conseguir chegar ao topo quando as barreiras institucionais forem removidas -e não quando as mulheres conseguirem se livrar das barreiras internas, como sustenta a executiva do Facebook. Slaughter pediu demissão de seu cargo no departamento de Estado para ser professora em Princeton, pois não estava dando conta de criar os dois filhos adolescentes, um dos quais tinha problemas de comportamento.
        Para ela, mulheres que conseguem ser mães e superprofissionais ao mesmo tempo são sobre-humanas, milionárias ou autonômas que podem organizar seus horários. Sem a possibilidade de trabalhar em casa, ter horários flexíveis, acesso facilitado a berçários ou babás, as mulheres não vão conseguir "ter tudo".
        Para ela, os conselhos de Sandberg "têm um tom de reprovação" e "fazem milhões de mulheres se sentirem culpadas por não conseguirem ascender na hierarquia profissional tão rápido quanto os homens e terem também vida familiar ativa (e, para completar, serem bonitas e magras)", escreve Slaughter.
        "Questões mundanas como a necessidade constante de viajar, os conflitos de horário da escola dos filhos e do trabalho, a insistência em que o trabalho precisa ser realizado no escritório -nada disso vai ser resolvido com mais ambição por parte das mulheres", escreve Slaughter.
        O pressuposto de Sandberg está certo. A revolução feminina veio, mas não venceu. Homens ainda mandam no mundo. De 195 países independentes, apenas 17 são liderados por mulheres. Apenas 21 dos CEOs das 500 maiores empresas da lista da revista "Fortune" são mulheres. Em 1970, mulheres recebiam 59 centavos para cada dólar ganho por um homem em cargo semelhante. Em 2010, recebiam 77 centavos.
        Mulheres volta e meia se subestimam, enquanto homens se superestimam. Sandberg cita uma pesquisa com estudantes de cirurgia mostrando que , quando instadas a se autoavaliar, mulheres sempre se davam notas menores do que os homens, mesmo quando seu desempenho era nitidamente superior. Quando estimuladas a explicar seu sucesso, mulheres frequentemente dizem: "trabalhei muito duro", "tive sorte", "tive ajuda". Homens, em contrapartida, costumam creditar suas habilidades a si mesmos.
        LUXO
        O problema é que a tese das supermulheres como Sandberg só leva em conta metade da história. "O objetivo é nobre, ter mais mulheres em cargos de liderança; não critico, acho errado a mulher abrir mão do emprego para criar filhos, pesquisas mostram que as que fazem isso não são necessariamente melhores mães por causa disso", disse à Folha Stephanie Coontz, diretora de pesquisas do Conselho das Famílias Contemporâneas. "Mas falta de ambição não explica os problemas enfrentados pela maioria das mulheres, que não podem se dar ao luxo de ter uma sala de amamentação no escritório."
        Para Madeleine Kunin, primeira mulher a governar o Estado americano de Vermont e autora do livro "The New Feminist Agenda", o problema da tese de Sandberg é que ela acaba culpando as mulheres por sua baixa presença em cargos de chefia.
        Os EUA estão ao lado de Libéria e Papua Nova Guiné como os únicos países do mundo que não preveem nem sequer um dia de licença-maternidade remunerada. Há apenas a obrigação de licença não remunerada de três meses para mulheres que trabalham em empresas com mais de 50 funcionários. Mas quantas pessoas podem se dar ao luxo de ficar três meses sem receber?
        "Marissa Mayer e Sheryl Sandberg falam do ponto de vista de quem chegou ao topo, mas não reconhecem que é bem mais difícil para a maioria das pessoas, que não são privilegiadas como elas, não podem contar com várias babás, abrir mão de salário, negociar com o chefe para sair do escritório às 17h30", disse Kunin à Folha. "As mulheres costumam se culpar por tudo, e o livro de Sandberg contribui para isso."
        "Parece um retrocesso que feministas como eu, que lutamos para nos libertar dos papéis limitados de esposa e mãe, tenhamos dado a volta para nos focarmos, novamente, na família", afirma Kunin. "No início da revolução feminina, não nos ativemos à questão de quem iria cuidar dos filhos. Partimos do pressuposto de que as coisas iam se ajeitar. Surgiriam locais para cuidar de crianças e o ambiente de trabalho magicamente se transformaria para atender às nossas necessidades."
        E será que todas as mulheres querem ser líderes, trabalhar 60, 70 horas por semana, sacrificar finais de semana com os filhos? Pesquisa de 2012 da McKinsey, com mais de 4 mil funcionários de grandes empresas, mostra que 36% dos homens gostariam de chegar à direção, diante de apenas 18% das mulheres.
        Algumas talvez queiram apenas ter um emprego menos desafiador, que lhes permita passar mais tempo com os filhos e não perder reuniões de pais, apresentações de dança, campeonatos de natação. E isso não é necessariamente ruim.

        Imaginação: Cor da Lua

        folha de são paulo

        ANTONIO GERALDO FIGUEIREDO FERREIRA
        ESPECIAL PARA A FOLHA

        um mastiff fulvo-prateado
        macho da cor da lua
        dizia
        passeava com o cão todas as manhãs
        comprava a melhor ração, uma nota
        veterinário da cidade vizinha
        o melhor, professor de faculdade e tudo
        ela amava de verdade aquele cachorro de 92 kg bem pesados
        ganhou das amigas
        dois meses depois que o marido sumiu de casa
        um mastiff fulvo-prateado da corzinha da lua em certas noites
        cresceu rápido
        e ela pegou amor, pegou
        deixou de pensar bobagens
        e isso foi a salvação
        meu marido fugiu com aquela biscate?
        deixa
        ele volta pro enterro
        o remorso, vocês vão ver
        que é isso, menina?
        deixa de ser besta
        e ganhou o cachorro
        (as amigas fizeram uma vaquinha)
        isso faz uns três anos, já
        e agora isso, meu deus
        foi nesses dias, coitada
        um vizinho enxerido espalhando
        subiu na jabuticabeira do quintal, o pé carregado
        e viu
        ele disse que viu
        ficou espiando um tempão
        ela engatada no cachorro
        é, engatada, entende?
        isso na semana passada
        falou que o negócio se repetiu nos outros dias
        pensa bem
        é muito triste ser sozinho no mundo, é ou não é?
        sei, sei, às vezes não
        bom, pode ser coincidência,
        ontem, quando ela passeava com seu mastiff fulvo-prateado
        o cachorro deu um troço e escapou de repente
        nunca tinha feito isso, nunca
        quem pra segurar?
        escapou correndo e se enfiou debaixo de um caminhão que passava
        não, acho que não viu nada do outro lado, não
        ele enfiou a cabeça debaixo da roda porque quis
        *
        super-herói
        quando era pequeno, sabia que não poderia voar, apesar da vontade, claro, amarrava uma toalha no pescoço e era um super-herói que corria, voando com os pés no chão, como faziam muito gosto de que assim eu estivesse pelo resto da vida, e é mais ou menos o que tem acontecido, acho, em todo caso sabia que era tudo mentira, voar, estou falando de voar, mas vale pra vida, também, não disse isso, mas fica dito, então, pai, se pular de um prédio e abrir um guarda-chuva tem jeito?, ele ficava bravo, com medo de que eu pudesse me matar, esse moleque tem cada ideia, coisa da televisão, pondo minhoca na cabeça dessa criançada, deviam proibir, bem, na época tinha noção do que seria um suicídio, seis anos, hoje parece tão pouco, mas sabia o que era suicídio, tenho certeza, não imaginava, porém, que uma criança, bom, foi um primo, de vez em quando brincávamos, ele morava em são paulo e vinha pra cá nas férias, tínhamos a mesma idade, ele saltou do sétimo andar, ninguém soube o motivo, os pais apenas ouviram o baque, aquela gritaria, contaram, a polícia técnica foi incisiva, lembro-me do meu pai dizendo isso, na cozinha de casa, embasbacado diante da estupidez humana, suicídio, o menino se suicidou, repetiu, minha mãe chorando muito, sem querer me olhar, um menino tão normal, dizia, a minha avó estava conosco, meio passada, um menino tão bom, tão bom, e perguntavam a deus o porquê daquilo, naquele momento me lembrei daquela história das minhocas na cabeça, os vermes querendo voltar pra terra, pra um lugar que fosse mais perto da felicidade, e arrastaram meu primo pro buraco sem que ele percebesse, será?, na época comecei a desconfiar seriamente dos anjos da guarda, também, o que muito depressa contaminou toda a corporação religiosa, dos santos subalternos ao chefão, nada-poderoso, explico meu ateísmo desse jeitinho, hoje, sempre que alguém vem encher o saco, um menino pulando do sétimo andar, eu sabia que ele voara, pouco, mas voara, puxa vida, ele deu uma voadinha, pensava, vi o defunto com muito medo, meu pai me levantou, eu não queria, minha mãe também não, ele é criança, altair, vai impressionar o menino, deixa disso, leva ele lá pra fora, dá uma volta com ele, tem tempo pra aprender isso, não houve meio, meu pai me pegou no colo, fez questão de me tirar do solo onde em meu tamanho me fincara, protegido do primo morto, naquele instante um inimigo do mal, mas ele me levantou, eu não queria olhar, mas queria, também, então vi meu primo inchado, a cara achatada, é, ele não tinha nenhum superpoder, mesmo, a cabeça enfaixada, encobrindo os cabelos, olha aí o que acontece com quem não tem juízo, falou baixinho, só pra mim, olha aí, e aquilo ficou pra sempre na cabeça, então, até hoje, quando vejo algum menino com a fantasia do homem-aranha, do super-homem, não sei, dá um negócio ruim por dentro, um frio na barriga, acredita?

        O Proust (escrachado) do subúrbio carioca

        folha de são paulo

        O excêntrico sr. Normal

        PUBLICIDADE
        ÁLVARO COSTA E SILVA
        ESPECIAL PARA A FOLHA

        RESUMO
        Médico de formação, escritor e compositor, Aldir Blanc fez de sua obra uma notável galeria de tipos suburbanos. Autor de clássicos da MPB, refugiou-se na Muda, no bairro carioca da Tijuca, onde vive em reclusão quase total. Biografia traz vida e obra de volta à cena, além de uma centena de letras inéditas.
        *
        Quem conhece Aldir Blanc de perto acha que ele é um cara absolutamente normal. Tem aquela barba e os cabelos longos de careca rebelde, a pele branca de leite, a voz grave com sotaque inconfundível da Zona Norte carioca, sujeito alto e emotivo, claudica da perna esquerda, seus olhos ternos às vezes se perdem na contemplação do vazio... Absolutamente normal.
        Aliás, um de seus melhores amigos, o escritor Ivan Lessa -na medida em que duas pessoas podiam ser amigas, uma delas morando em Londres, a outra no Rio- insistia que ele deveria virar personagem de quadrinhos: Aldir, o Normal, de preferência desenhado por Robert Crumb ou Jaguar.
        Anda meio esquecido, é verdade. Suas crônicas não são mais publicadas com a regularidade e a repercussão dos tempos do "Pasquim". Subir aos palcos para cantar suas próprias composições tornou-se impossível por causa de fobias e da necessidade de reclusão. Há também o fato de que, com a queda vertiginosa da venda de discos e do pagamento de direitos autorais, os compositores estão acuados.
        Mesmo um que mereça o reconhecimento de Chico Buarque -"Aldir Blanc é uma glória das letras cariocas, bom de ler e de ouvir, bom de se esbaldar de rir"-, a preferência de Elis Regina, que o elegeu seu letrista predileto, autor de algumas das mais importantes peças da música brasileira: "O Mestre-Sala dos Mares", "O Bêbado e a Equilibrista", "Catavento e Girassol", "Resposta ao Tempo".
        "O Brasil precisa conhecer melhor o Aldir", diz o jornalista Luiz Fernando Vianna, autor do livro "Aldir Blanc: Resposta ao Tempo" [Casa da Palavra, 352 págs., R$ 55], que chega às livrarias nesta semana. -"Com o tempo, ele foi se fechando em casa e em si mesmo. Além do trauma que representou a morte das filhas gêmeas e da mãe, ainda sofreu um grave acidente de carro em 1991, que deixou sua perna esquerda quase sem movimento. Andar na rua passou a ser perigoso. Some-se a isso a diabetes 2, diagnosticada às vésperas da Copa do Mundo de 2010, cuja dieta necessária exigiu o fim do consumo de álcool, e você vai entender por que ele prefere, aos 66 anos, viver cada dia de uma vez, recebendo em sua biblioteca as pessoas que realmente ama e, sempre que possível, fazendo música".
        Aldir estudou sete anos de medicina, com especialização em psiquiatria, e depois largou tudo para se tornar compositor. A história remonta aos tempos em que andava de calças curtas. Num dia de entrega de boletim, o pai comentou: "Você sempre tira dez em biologia. Quem sabe você não vai ser médico...".
        Ingressou em 1965 na Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, de onde saiu em 1971. Trabalhou no Hospital Gustavo Riedel, dentro do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro - o manicômio citado na música "Que Loucura", de Sérgio Sampaio: "Fui internado ontem/Na cabine 103/do Hospício do Engenho de Dentro/Só comigo tinham dez".
        Eram 40 leitos para mais de 80 pacientes. Todos eram dopados com uma mesma droga. O uso de eletrochoques, rotineiro -Aldir se negou a adotá-lo. Não aguentou a barra e, após um ano, saiu para abrir consultório próprio na rua da Assembleia, no Centro do Rio. Às vezes, chamava o paciente para conversar na rua ou num bar. Assim foi até 1973.
        A ideia de viver só de música vinha ficando cada vez mais forte. Na época, Aldir já era um compositor gravado por Elis Regina, letrista do sucesso "Amigo É Pra Essas Coisas", e a parceria com João Bosco andava a mil.
        A gota d'água foi a morte, em 1974, de Maria e Alexandra, gêmeas que seriam as primeiras filhas de seu casamento com a professora Ana Lúcia. Nasceram prematuras de sete meses. Maria morreu logo, Alexandra ainda resistiu na incubadora enquanto deu: "Ela morreu sangrando por todos os orifícios: ouvidos, nariz, boca. Aí o seguinte: se não salvo as minhas filhas, não salvo ninguém. Tô fora, não é isso que eu quero fazer".
        O drama está contado em "Aldir Blanc: Resposta ao Tempo". Rica em detalhes conhecidos apenas dos mais íntimos, a obra privilegia a trajetória do compositor Aldir, como explica o outro subtítulo: "Vida e Letras". Estão reproduzidas mais de 450 delas (de quase 600 já compostas), e é incrível como elas sobrevivem bem na página fria, sem a música.
        "Praticamente a seleção foi do próprio Aldir, que preferiu deixar algumas de fora, por julgamento estético ou de foro íntimo, e incluir cerca de 100 inéditas", conta Luiz Fernando Vianna, que elege entre as suas canções prediletas "Gol Anulado" e "Transversal do Tempo", ambas do disco "Galo de Briga", de 1976.
        Na "Introdução Pessoal" que abre o volume, o jornalista rememora seu deslumbramento ao ouvir pela primeira vez, aos seis anos, as 12 faixas do LP da dupla Bosco-Blanc: "Aldir era um barbudo sem vocação para galã, que fazia letras estranhas, aparecia no encarte jogando sinuca e andando em uma rua deserta e suja, além de morar na Zona Norte, como eu. Para um menino meio 'esquizoide', era o ídolo perfeito de tão torto".
        O livro é farto em fotos do galã torto: no colo dos pais, fantasiado de chinês no Carnaval, com seu inseparável cavalo de madeira, na Pedra da Moreninha em Paquetá, nos tempos de estudante de medicina (a cara esculpida de um personagem de Dostoiévski), com as filhas, os netos, a mulher, com os amigos e os parceiros de longa data, com as cantoras. Há também partituras, manuscritos de letras e poemas, cartazes, capas de disco.
        E uma reprodução impagável do "Álbum das Punhetas", caderno artesanal com mulheres que saíam em trajes menores em revistas e jornais, e que era alugado por dia para adolescentes amigos.
        As muitas imagens da infância e juventude não estão ali à toa. Até porque, como observa Vianna, um bom começo para entender a arte do letrista é revisitar suas origens, os tempos alegres de criança em Vila Isabel, as incertezas com a mudança para o Estácio -onde sofreu "bullying" dos valentões do pedaço-, as marcas e os porres com a entrada na vida adulta.
        Aldir Blanc Mendes nasceu no dia 2 de setembro de 1946, no Estácio, mesmo berço dos compositores que, 17 anos antes, haviam formatado o samba como gênero urbano carioca. Mas quase não nasce: Helena precisou entrar no décimo mês de gravidez e gritar por quase 24 horas para que o rebento surgisse com a força de seus mais de quatro quilos. Sua mãe desenvolveu uma espécie de depressão pós-parto -quase não saía de casa, comportamento que o filho adotaria mais tarde- da qual jamais se livraria até morrer, em 2002, com 80 anos.
        Na véspera da morte, chamado à casa dos pais, na rua Maia de Lacerda, Aldir previu o desenlace. Começou a beber e bolou um ardil. Pediu a um amigo dentista para se passar por neurocirurgião. Quando ele chegou, todo vestido de branco, Aldir pediu: "É só um alento. Passa a mão nos joelhos dela e diz que está tudo bem".
        Alceu, ainda sacudido aos 90 anos, aparece nas crônicas do filho como Ceceu Rico (apelido de infância porque, ao contrário de outros meninos do Estácio, costumava brincar na rua de sapato fechado, e não descalço). Funcionário do antigo Iapetec, asmático, fumava Lincoln sem filtro e jogava sinuca e nos cavalinhos.
        De poucas palavras, com o tempo tornou-se o maior amigo de Aldir, a única pessoa com quem ele, hoje, arrisca uma saída rápida, de seu apartamento na Muda até um bar escondido nas redondezas.
        A Muda é uma espécie de bairro não oficial dentro da chamada grande Tijuca. É onde ele mora. Rua Garibaldi. Depois do Maracanã e antes da Usina e do Alto da Boa Vista. Ao contrário dos boêmios mais famosos do Rio, que sempre aprontaram na Zona Sul e perto da praia, Aldir escolheu essa parte da cidade e os botequins mais vagabundos para suas aventuras etílico-esportivas (era um bom jogador de sinuca).
        "Um bar perfeito como ainda são uns poucos da Tijuca precisa de algumas vomitadas no canto, uma briga histórica em seu currículo e um pequeno contingente de loucas fixas", explica o compositor. "Um boteco só merece nota 10 se uma morena bonita olhar de forma desafiadora enquanto abre um grampo nos dentes para afastar o cabelo da nuca suada".
        QUINTAL
        Na infância, a presença mais afetuosa era a do avô materno, o português Antônio Aguiar que, a partir dos três anos, praticamente criou o neto na casa de Vila Isabel. Ali estavam o cenário -quarador, caramanchão, goiabeira, quintal- e os tipos que Aldir reteve na memória e repassou para textos e letras.
        Proust escrachado dos subúrbios, voltou-se para aquele endereço, na rua dos Artistas, 257, quando começou a escrever crônicas passadas nos anos 1950, narradas por uma criança, para os jornais "Última Hora", "Tribuna da Imprensa" e a revista "Homem", até fixar-se no "Pasquim", em 1975. Logo passou aos livros: "Rua dos Artistas e Arredores", de 1978, e "Porta de Tinturaria", de 1981.
        Antes de serem reunidos num único volume -"Rua dos Artistas e Transversais", em 2006, pela editora Agir- eram edições disputadas a empurrões. Daniel Chomksky, da Berinjela, tradicional sebo da avenida Rio Branco, no Centro do Rio, conta que teve de apartar dois fregueses que já iam às vias de fato na disputa por um exemplar do mais raro "Porta de Tinturaria": um rapaz de óculos fundo de garrafa e pasta 007 e uma senhora um tanto gorda e bigoduda. A contenda foi resolvida em favor desta, que apresentou argumentos insuperáveis: dizia-se tijucana de quatro costados, "bruaca" e, mais importante, estava citada no livro alvo do litígio.
        São personagens, garante Aldir, que de fato existiram (à exceção de Penteado, o gozador que arremata o deboche com frases de efeito): o primo Esmeraldo, conhecido pelas domésticas da Penha como "Simpatia-É-Quase-Amor", cognome que inspirou a criação do famoso bloco carnavalesco de Ipanema; Lindauro, notório boçal, mas que tinha um coração do tamanho de um bonde; Belizário, que bebia para não esquecer; Tatinha (melhor calar sobre ela); Pelópidas, a tranquilidade em pessoa; e mais Gogó de Ouro, Paulo Amarelo, Waldir Iapetec, Tuninho Sorvete.
        Entre tais cascudos, o chope nunca era pedido do mesmo jeito: "Garçom, mais 18 sepulturas da memória!"; "Solta mais 20 canarinhos da gaiola!"; "Uma rodada de Alfavacas ao Luar para todos!".
        Aldir orgulha-se de ter realizado uma aspiração de garoto ao escrever essas crônicas. Sempre nutriu admiração pelos compositores que exerceram ao mesmo tempo uma atividade jornalística ou literária. Não importa se um cronista da importância de Antônio Maria, um letrista pioneiro como Orestes Barbosa ou um humorista e turfista como Haroldo Barbosa.
        O que conta é a embocadura. Daí que seu estilo personalíssimo e hiperbólico tem muito a ver com letra de música. Um ritmo, uma síncope, uma levada, um batuque de quem está ouvindo um samba ou um choro -uma segunda parte de Bide, um solo de flauta de Benedito Lacerda- enquanto escreve.
        A mesma pegada emprestou ao projeto coletivo (com André Sant'Anna, Veronica Stigger, Carlito Azevedo, entre outros) para encerrar um folhetim de que Nelson Rodrigues só deixou escrito o primeiro capítulo -o livro sai neste ano.
        A experiência o animou a retomar um romance policial que já lhe custa duas décadas de fabulação e experimentação. Segredo total: sabe-se apenas que uma das chaves da história é "O Mistério da Cruz Egípcia", de Ellery Queen.
        A fascinação -quase obsessão- pela leitura ele herdou do avô Antônio. Dos gibis -Fantasma, Príncipe Namor, Hapalong Cassidy- pulou para os livros, primeiro os das coleções Paratodos e Terramarear, depois de todos os tipos: a Bíblia, um grosso volume de "História de Portugal", ficção, ensaios, biografias, compêndios sobre a Segunda Guerra, tratados de psiquiatria.
        Seu amplo apartamento na rua Garibaldi abriga mais de 15 mil volumes. Até uma mesa "profissa" de sinuca, que ocupava inteiramente a sala, antes de ser vendida, tinha livros empilhados no feltro verde. Se um amigo perguntar se ele "já leu tanta coisa", corre o risco de ser posto para fora. O que não entra mesmo lá é Paulo Coelho.
        "Sou vidrado em alguns autores. Anthony Burgess é uma de minhas taras. Cheguei a fazer umas investidas, com meu inglês da praça Mauá, nos originais. Há livros dele que li várias vezes, e é sempre a primeira vez. Cultura assustadora, excelente copo e um boa-praça gozador. Dizem até que foi grande músico, mas nunca ouvi nada. Quando morre um desses é uma cacetada. Perco um amigo. Foi assim com o Kurt Vonnegut, o John Updike, o Norman Mailer", revela.
        Mais intensamente sentiu as perdas, no ano passado, de Ivan Lessa e Millôr Fernandes: "Uma bomba de fragmentação", define. Também se deprimiu com a morte, em outubro, de Batuque, labrador homenageado pelo dono com a música "Constelação Maior". Aldir confessa não ter sofrido tanto desde a morte das gêmeas.
        Nessas horas, melhor mesmo é ficar em casa, ao da mulher Mary Sá Freire, com quem é casado desde 1988, e as filhas Mariana, Isabel (do primeiro casamento de Aldir), Patrícia e Tatiana (do primeiro casamento de Mary). Além de cinco netos. Todos são tratados como um "grande time de futebol", sem distinção, e ai de que disser o contrário.
        DUPLA
        Um nome desconhecido -Pedro Lourenço Gomes- merece virar verbete nas enciclopédias de música brasileira como "inventor" da dupla João Bosco-Aldir Blanc. Foi ele quem, de passagem por Ouro Preto em 1970, impressionou-se com um jovem que tocava violão num barzinho (temas próprios, ainda sem letra).
        Apresentou-se e disse que tinha um amigo no Rio, com quem participava de um grupo de estudos sobre antipsiquiatria, que adoraria ouvir aquelas melodias. Mais ainda, tinha certeza de que ele iria botar letras nelas.
        Meses depois, Aldir chegou a Ponte Nova (MG), terra natal de João, numa Kombi na qual ainda estavam Pedro, o compositor Paulo Emílio e o músico Darcy de Paulo. Comeram o espaguete à bolonhesa preparado por dona Lilá, mãe do violonista, e abriram os trabalhos. Do lote inicial de mais de 30 músicas, três ganharam letra imediatamente: "Agnus Sei", "Bala com Bala" e "Angra".
        Começava um casamento perfeito, um choque cultural entre Minas e Rio, um encontro que pertence ao mundo do imponderável, a começar pelo fato de um torcer pelo Flamengo e o outro pelo Vasco. E que ainda teve na voz da gaúcha Elis Regina um poderoso terceiro vértice (as músicas da parceria sempre eram mostradas a ela em primeiro lugar).
        "Conversávamos todo dia por telefone, ele mandava o texto ou eu a música, e dava tudo certo. Metemos fundo o pé no acelerador porque sabíamos que a máquina estava quente e azeitada", lembra João Bosco, e desfia a sequência incrível de obras-primas: "Mestre-Sala dos Mares", "Dois Pra Lá, Dois Pra Cá", "Latin Lover", "Caça à Raposa", "Rancho da Goiabada", "Falso Brilhante" e "O Bêbado e a Equilibrista", a mais famosa.
        Aldir é capaz de fazer letra dormindo: "Escadas da Penha" é literalmente um sonho que teve com João. "Posso ter duas táticas totalmente distintas", explica. "A que chamo de embrenhar pelo ouvido consiste em ouvir a música direto, com fones no ouvido, geralmente de madrugada, até me levar a um estado de loucura. De repente, você se descobre alucinado correndo atrás de lápis e papel. Porque a letra começou e eu não posso perder. Foi assim com 'Dois Pra Lá, Dois Pra Cá'. Fiz com tanta velocidade que só depois fui ouvir a fita para ver se tinha uma frase a mais ou a menos".
        "Ou pode ser o contrário", continua ele: "Assim que você começa a ouvir a música, a letra vem imediatamente. Aí disfarço, faço igual à cobra do desenho Mowgli, pego o papel e pronto, a letra está mortinha".
        Em meados da década de 1980, a dupla deu um tempo. Sem brigas nem traumas, embora na época ninguém acreditasse: "Nossos interesses ficaram divergentes. O João se internacionalizou, eu fiquei mais suburbano. Costumo dizer que todas as versões para o rompimento, por mais estapafúrdias e escrotas, são corretas".
        "Não saímos na pernada. Tanto que, quando voltamos, foi como se tivéssemos nos visto na noite anterior", conta o parceiro, que em 2009 gravou o CD "Não Vou Pro Céu, Mas Já Não Vivo no Chão". O título é um verso do "Samba de Caramujo", no qual Aldir, em primeira pessoa, fala como se fosse João Bosco. Nunca antes tão afinados.
        O letrista se abriu a parcerias com Moacyr Luz, ampliando a vertente do samba sincrético ("Medalha de São Jorge"), e o violonista Guinga, com o qual levou ao paroxismo o trabalho de letrar nota por nota de uma melodia ("Catavento e Girassol"). Atualmente tem trocado figurinhas com o cantor e compositor Moyseis Marques -já nasceu um baião.
        Em 1996 um CD com 20 músicas lembrou os 50 anos do artista (na foto da capa, ele aparece fumando cigarrilha e mirando as pernas de Monique Evans). Foi mesmo uma festa, com participação de Edu Lobo, Paulinho da Viola, Nei Lopes.
        Na abertura, Dorival Caymmi cravou: "Estamos falando do ourives do palavreado. Estamos falando de poesia verdadeira. Todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca mesmo".
        No pesado e pessoal "Vida Noturna", de 2005, Aldir interpreta as 12 faixas de sua autoria. É um CD certeiro em capturar o universo do anacoreta da Muda. Mary, sua mulher, saiu-se com a melhor crítica: "É um disco para ouvir no térreo".
        Ao lado de Carlos Lyra, com quem nunca havia composto, fez a trilha do musical "Era no Tempo do Rei", baseado no romance de Ruy Castro e com adaptação de Heloisa Seixas e Julia Romeu. Para canções, valsas, polcas, viras, choros, toadas, tangos, marchas, Aldir criou letras de absurda riqueza verbal -numa delas há nada menos que dez sinônimos para vagabundo: bilontra, escroque, sarnento, lapuz, tuna, labrosta, mamparra, mucufa, groma, labrego.
        A estreia, em 2010, registrou a última aparição pública de Aldir Blanc; a íntima foi ano passado, no aniversário da neta Cecília, quando se fez acompanhar, ou "escoltar", como ele próprio definiu, por dois amigos: o artista plástico Mello Menezes e o advogado Edu Goldenberg. Tudo correu bem.
        "Trabalhar com o Aldir foi uma delícia", lembra Heloisa. "Mas uma espécie de montanha-russa: ficávamos meses sem ter notícia, aí de repente chegava uma enxurrada de letras espetaculares, cinco ou seis numa semana. Ele é uma flor de delicadeza. E aquela voz... Quando o Aldir deixava recado na minha secretária eletrônica, minha gata Colette se assanhava toda: era eu botar para ouvir a mensagem e ela começava se esfregar no telefone...".
        Um malandro inteiramente normal, como se vê.