sábado, 15 de dezembro de 2012

A nova classe -CLÓVIS BRIGAGÃO



O Globo - 15/12/2012

No total, 80% são negros,
quase 40% são nordestinos,
com representação de
53% das mulheres e
55% dos jovens brasileiros


Nunca antes... vivemos tamanho interesse (e certa comoção) no país inteiro diante de tantas aventuras e peripécias da nova classe média em ascensão, quer do ponto de vista econômico, social e até mesmo estético. O jovem novelista João Emanuel Carneiro, em “Avenida Brasil”, soube captar, como ninguém, o deslumbramento das tramas e dramas do núcleo do Divino que sociologicamente representaria os novos 37 milhões de pessoas que hoje formam a classe média brasileira.

É uma nova classe em ascensão, real e metafórica, com sua formação e caracteres muito mais heterogêneos. Bastaria afirmar que de seu total, 80% são negros, quase 40% são nordestinos, com representação de 53% das mulheres e 55% dos jovens brasileiros. Seria o 12º país mais populoso do mundo, algo a comemorar e a refletir como será feita a inserção no tecido social brasileiro, sua inclusão na educação e formação técnico- científica. Como isto está sendo realizado?

Sob a batuta da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, está sendo elaborado seu diagnóstico sobre as Vozes da Classe Média! É algo que, politicamente falando, será decisivo nas próximas eleições, as de 2014 e as seguintes. Quem chegar mais próximo e lançar seus apelos político-eleitorais irá capitalizar essa grande massa de eleitores. Até aqui o PT e também o PSB estão chegando mais cedo e lançando suas redes sobre esse enorme eleitorado, talvez decisivo! O PSDB do jovem Aécio Neves terá programa para ela?

Toca fundo na alma brasileira — com reflexos no exterior — essa escalada que apenas começou e que garante a cada membro da nova classe média estabilidade econômica, democratização mais profunda de nosso sistema político (a classe média é pendular, pode ir para a esquerda ou para direita facilmente) e uma sociedade bem à brasileira, que soma os mitos do Curupira (Norte), do Saci Pererê (Sul) e dos fantásticos e talentosíssimos Macunaíma ou Pedro Malasartes. Talento não nos falta: apenas buscam-se condições de trabalho decente, uma boa educação, com segurança e paz. Bem-vinda a nova classe média (a velha e tradicional classe média anda à míngua...) Mas cuidado. Assim como o filme do genial Elio Petri, “A classe operária vai ao paraíso” (1971, onde o operário Lulu deixa um de seus dedos na máquina, algo a comparar com o Brasil?), a nossa nova classe média está a caminho do paraíso? Todos esses milhões que passaram a se alimentar melhor, a estudar um pouco mais, com acesso a créditos financiados, cartões de crédito, plano de saúde (já que o Estado não assegura a universalidade da saúde pública), com automóvel, bens de consumo e viagem de avião etc. Como vai se autossustentar, ou começará a entender que o custo do novo padrão de vida deverá ser mais alto (nesse Brasil tão caro!) do que as provisões feitas com armadilhas sérias pela frente!

A entrada da nova classe média na economia, na política e na sociedade terá impactos significativos, singulares, comportamentos novos e sua avaliação será objeto de muitas especulações, pesquisas, estudos com impactos sobre a cultura brasileira, dando-lhe mais diversidade e democracia?

Clóvis Brigagão é cientista político

Oscar, Décio e Goebel - Zuenir Ventura


O Globo - 15/12/2012

Em menos de uma semana, foram-se Décio Pignatari, Oscar Niemeyer e Goebel Weyne. De uma maneira ou de outra, estive ligado a eles por laços profissionais ou de amizade. “Oscar” — intimidade que ele concedia até aos jovens estudantes — acostumara o país com a ideia de que, além de gênio, não ia morrer nunca. Corria até a piada de que o Brasil precisava cuidar do futuro de suas crianças e do de Oscar Niemeyer. Ele mesmo parecia acreditar nisso. Quando fez 102 anos, fui visitá-lo com Roberto D’Ávila, e ele estava tendo aulas particulares de astronomia, física e filosofia, preocupado com o destino da humanidade diante das ameaças do aquecimento global. “É preciso conscientizar os jovens para esse risco”, nos conclamou. Fazia pouco ele levara um susto ao ser submetido a uma cirurgia de risco. Ainda na UTI, segredou para o sobrinho, o neurocirurgião Paulo Niemeyer: “Paulinho, nessa eu quase me fodi, né?” Por isso, achei que o anúncio de sua morte agora era mais um boato. Cheguei a esperar o desmentido, que dessa vez não veio, e o país se conscientizou de que vai precisar de mais 105 anos para produzir um novo Oscar Niemeyer. Não há mais de um em cada século.

Dois dias depois foi a vez de seu amigo Goebel Weyne, um de nossos melhores designers gráficos. Um pouco antes, foi Décio Pignatari, o poeta concretista e teórico da informação a quem a semiótica muito deve. Goebel e Décio (entre outros, como eu) participaram da fundação da Escola Superior de Desenho Industrial, a primeira da América Latina. Criada há 50 anos pelo então governador Carlos Lacerda e por seu secretário de Educação, Flexa Ribeiro, a Esdi foi para o design o que a Bossa Nova foi para a música; o Arena para o teatro; o Cinema Novo para o cinema; e Brasília para a arquitetura. Foi matriz — serviu de regra e compasso.

Mas enfrentou reações. “Para que desenho industrial, se nem indústria temos?”, perguntava-se. Naqueles tempos de utopia, impregnados do espírito visionário de JK, nada tinha lógica. Brasília, um delírio. Garrincha, com uma perna torta. Pelé, uma criança na seleção. O cinema, além de ideias na cabeça, só tinha câmeras vagabundas. E o forte da música era a voz fraca de João Gilberto. A Esdi, gestada nesse clima, era uma improbabilidade a mais. Hoje, a escola multiplicou-se pelo país e o design melhorou a forma e a imagem de nossos produtos.

Agora, ao som de Tom e Vinicius, é possível que JK junte os três lá em cima para encomendarlhes um projeto grandioso, bem a seu estilo.

O tenista e o suicida - JOSÉ MIGUEL WISNIK

O Globo - 15/12/2012

Num livro excitante, para dizer o mínimo, que estou lendo, e que se chama “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”, de David Foster Wallace (que se suicidou em 2008, aos 46), há um ensaio sobre Roger Federer. Nele, Wallace diz que “o tênis na TV está para o tênis ao vivo como um vídeo pornográfico para a real sensação do amor humano”. Eu, que sou um curioso pelo tênis, que gosto de ver partidas pela TV, e que sou um fã total de Roger Federer, comemoro o fato de que o livro tenha chegado às minhas mãos no mesmo momento em que Federer chegou a São Paulo para algumas partidas-exibição. Shows nada sérios, do ponto de vista competitivo, mas ainda assim uma demonstração espetacular do que é o tênis máximo visto ao vivo.

Wallace comenta uma obviedade que a gente fatalmente esquece, quando vê tênis na TV. É que, para dar uma visão abrangente da quadra e da “geometria geral da troca de bolas”, o ângulo obrigatório é o de cima e de trás de uma das linhas de fundo, de onde a gente ocupa a posição virtual de um espectador que olhasse do alto para baixo. Essa perspectiva engorda e encurta a quadra, além de transformar a potência rebelde e incandescente da bola real num ponto neutro de luz riscando a tela, num ritmo já domado pelo olhar. Independente da propriedade da comparação feita por Wallace, o efeito está muito mais para o videogame do que para o vídeo pornográfico.

Eu queria ter, e tive, a experiência fascinante do susto produzido pela fisicalidade do jogo quando somos expostos, de um ângulo lateral e horizontal, à visão da potência e da velocidade da bola (que “é de meter medo”), e às reações instantâneas do jogadores tentando manipular o espaço e o tempo. Tive o cuidado de chegar no começo da partida preliminar, entre Bellucci e Tommy Robredo, para me aclimatar previamente à rotina do jogo, e para fruir, com a chegada de Federer, em disputa com Tommy Haas, a sensação da passagem do humano ao divino (o texto de Wallace chama-se “Federer como experiência religiosa”).

Por que divino? A explicação inicial pode ser bem básica e material: pela televisão, não fazemos ideia “da força com que esses profissionais batem na bola, da velocidade em que a bola está se deslocando, de como é curto o tempo que eles têm para alcançá-la e da agilidade com que são capazes de se mover, girar, rebater e se recuperar”. A continuação é óbvia: “nenhum é tão veloz nem faz isso parecer tão enganosamente fácil quanto Roger Federer”. E a decorrência metafísica: Federer é um desses “raros atletas preternaturais”, da ordem dos mutantes e dos avatares, “que parecem ter sido dispensados, pelo menos em parte, de determinadas leis físicas”, para quem a bola “flutua um décimo de segundo a mais do que deveria”, que assistem em câmera lenta ao jogo que disputam em alta velocidade, como se não suassem, enquanto os jogadores normais sofrem em alta velocidade o jogo que disputam em câmera lenta.

Mas só a televisão consegue mostrar uma dimensão frontal que a visão lateral esconde: a capacidade do jogador de “enxergar, ou criar, aberturas e ângulos para golpes vencedores que ninguém mais consegue visionar”. Na TV podemos visualizar o traçado geométrico do jogo se urdindo, golpe a golpe, até o bote de misericórdia, embora percamos muito da sensação de urgência e do peso da bola, e das modalidades que a fazem variar entre devolução chapada, a “chicotada líquida” e os efeitos pelos quais ela pode ir “mudando de forma no ar” e acabar escorregando insidiosamente sobre a quadra na altura do tornozelo do adversário.

Como se no tênis, assim como na observação subatômica da matéria, estivéssemos limitados, enquanto espectadores, a saber ou bem a velocidade de um elétron ou a bem a sua posição. A experiência toda me fez pensar que o tênis é, entre todos os jogos de bola, aquele mais próximo de uma redução quântica, fisicamente pura, da nossa imersão no mundo, como se ele instaurasse a simulação de um acelerador de partículas ao qual o tenista de ponta conseguisse responder ou corresponder, no caso de Federer com a máxima eficácia e a manifestação extrema da beleza cinética. O que equivale, beleza e eficácia reunidas, à conciliação da partícula com a onda, e a “reconciliação do ser humano com o fato de possuir um corpo”.

Dito isso, continuo perseguindo no livro de David Foster Wallace as pistas enigmáticas do seu suicídio. Inutilmente, é claro. Um lindo discurso de paraninfo, entre seus escritos, não leva a crer que aquele jovem professor de literatura se mataria. Mas talvez ele estivesse, na vida, demasiado dentro do jogo, na posição da própria bola, e ao mesmo tempo, como o título indica, longe do fato de estar meio longe de tudo.

Xico Sá


O Corinthians como ele é
Corintiano sem sofrimento é católico sem hóstia na missa, judeu sem Torá, muçulmano sem Meca
Amigo torcedor, amigo secador, o Japão fez o favor de devolver, em menos de uma semana, o corintianismo ao Corinthians.
O time chegou ao outro lado do mundo na condição de favorito, depois de um ano de merecida glória e controle quase absoluto das partidas. Não é com esse status que decide amanhã, contra os azulões do Chelsea, a copinha do Mundial de Clubes.
E, convenhamos, corintiano sem sofrimento é católico sem hóstia na missa de domingo, judeu sem Torá, muçulmano sem Meca, evangélico sem culto, budista sem meditação etc.
O Corinthians que entra em campo amanhã é o alvinegro da velha mística do sofrimento e da quase tortura aos seus fiéis e orgulhosos fundamentalistas.
Quer moleza, vai torcer para o Barcelona do Lionel Messi.
Bastou aquele segundo tempo contra os egípcios para que todo corintiano voltasse a se sentir novamente mais corintiano. Algo andava muito estranho.
Mesmo na célere marcha de vitórias por 1x0, era uma equipe que mandava no jogo, sem risco, sem a vulnerabilidade que exibiu aos japoneses.
Bastou também um Chelsea mais ou menos organizado em campo, quase um Corinthians da Libertadores, para que o favoritismo fosse tingido do azul mais britânico. Cenário perfeito para o alvinegro do Parque São Jorge.
Até o meu poderoso corvo Edgar, que foi até o Japão no cargueiro do Lloyd, fez uma aliança de última hora com o gavião. Partiu ao Oriente com a certeza de que secaria o Corinthians.
Secou o alvinegro contra os bravos faraós do Egito. Secou o Chelsea contra os mariachis do Monterrey. Amanhã, pela sua lógica de secar sempre os favoritos, deve agourar os ingleses. Não pouparia o Timão caso ele permanecesse por cima da carne seca.
Se oriente, rapaz, pela constelação do cruzeiro do sul. A velha canção de Gilberto Gil, torcedor do Bahia e fã do Corinthians, tem muito o que ensinar, nesse perigo da hora, aos meninos do Tite.
Considere, rapaz, o privilégio de ter ido ao Japão.
Neste cenário, de resgate da cartilha do corintianismo, tudo pode acontecer. É mais jogo. Mais chance do churrasco matinal ser apagado apenas com o fim do mundo que está próximo.
O corintiano, o raro que conseguir dormir nas próximas 24 horas, amanhecerá mais fiel e nada estranho, corintianíssimo na sua possibilidade de superar o mais difícil.
O Japão, em menos de uma semana, reorientou o espírito centenário do time do povo.
Não deixa de ser algo budista. Medite, amigo, para secar ou para torcer em paz neste domingo.

    James Watson, pioneiro do DNA, revela história quase nunca contada sobre as hélices


    ROBIN McKIE

    DO "OBSERVER"
    na Folha de São Paulo
    Apontado como um dos maiores livros escritos sobre a ciência no último século, "A Dupla Hélice" tem sido saudado como uma obra que combina o enredo de um romance picante com percepções profundas sobre a natureza da pesquisa moderna.
    Mas o autor, James Watson, revelou que sua obra-prima esteve perto de ser suprimida. Em entrevista exclusiva ao "Observer", ele admitiu que seu relato sobre a descoberta da estrutura do DNA, quando apresentado a amigos e colegas no final dos anos 1960, causou tamanha hostilidade e indignação que parecia fadado a nunca aparecer na forma impressa.
    "Você invadiu rudemente a minha privacidade", queixou-se seu colega Francis Crick. Outro colaborador, Maurice Wilkins, objetou que o livro apresenta "uma imagem distorcida e desfavorável dos cientistas". Como Crick e Wilkins eram os homens com quem Watson havia dividido o Prêmio Nobel de Fisiologia de 1962 por seu trabalho na descoberta da estrutura do DNA, a oposição dos dois pesquisadores britânicos às palavras do jovem cientista americano era preocupante.
    Markus Schreiber - 11.out.04/Associated Press
    O cientista James Watson posa para foto atrás de uma reprodução do modelo de uma dupla hélice de DNA
    O cientista James Watson posa para foto atrás de uma reprodução do modelo de uma dupla hélice de DNA
    Muitos editores se assustaram com as ameaças de ações judiciais por parte de críticos do manuscrito. Watson descrevia vários cientistas de forma profundamente desabonadora, e a trama secundária do livro, focada na busca de Watson por moças --ou "popsies", como ele as chamava-- na região de Cambridge, foi considerada irrelevante e arrogante. A Harvard University Press, tendo aceitado o manuscrito Watson para a publicação, sofreu pressões dos dirigentes da universidade e cancelou o livro.
    Foi necessária a intervenção de lady Alice Bragg, esposa de um ex-chefe de Watson, lorde William Bragg, para salvar "A Dupla Hélice", revelou Watson. Bragg era diretor do laboratório Cavendish, em Cambridge, onde Watson trabalhara com Crick na estrutura do DNA na década de 1950, e que era parte das instituições britânicas.
    "Eu precisava de Bragg ao meu lado", explicou Watson ao "Observer" na semana passada. "Então eu sugeri que ele escrevesse o prefácio do meu livro. Isso o faria parecer aceitável para o 'establishment' e para a maioria dos meus críticos. Levei um tempo até juntar coragem para lhe escrever pedindo um prefácio, mas afinal o fiz."
    Bragg --a quem Watson certa vez comparou ao coronel Blimp-- ficou inicialmente enfurecido com a desfaçatez de Watson e com a mistura de fofoca com insultantes caricaturas de cientistas de destaque em "A Dupla Hélice". No entanto, ele foi convencido por lady Bragg, que havia gostado do livro, a mudar de ideia, e afinal ele aceitou redigir o prefácio, descrevendo "A Dupla Hélice" como "um drama da mais alta ordem; a tensão cresce sucessivamente, até o clímax final". Seu aval --ou mais precisamente a intervenção de lady Bragg-- foi decisivo, sabemos agora. "A Dupla Hélice" foi lançado em 1968, e se tornou um best-seller mundial.
    Em retrospecto, o sucesso do livro não chega a surpreender. A história de Watson, caracterizada por oportunismo científico, pela audácia e pela brilhante capacidade dedutiva, é um fio fascinante. É também de considerável importância. Ao mostrar que a estrutura do DNA, a substância da qual são feitos nossos genes, é a de uma dupla hélice, Crick e Watson explicaram o mecanismo subjacente à herança de características biológicas, e descobriram algo de imensa importância científica. Todo o campo da genômica, a identificação das "impressões digitais" do DNA e o desenvolvimento da ciência da biologia sintética teriam sido impossíveis sem a descoberta feita por Crick e Watson em Cambridge, em 1953.
    Estima-se hoje que "A Dupla Hélice" tenha vendido mais de 1 milhão de exemplares nos últimos 45 anos. Uma adaptação para TV também foi feita, em 1987, estrelada por Jeff Goldblum como Watson, Tim Pigott-Smith como Crick, e Alan Howard como Wilkins. E agora saiu uma edição especial anotada e ilustrada de "A Dupla Hélice", para celebrar o 50º aniversário do Prêmio Nobel dado a Watson, Crick e Wilkins.
    MATERIAL INÉDITO
    O livro, editado por Alexander Gann e Jan Witkowski, contém um grande volume de material inédito, incluindo uma série de cartas escritas por Crick, que só foram descobertas recentemente e revelam em detalhes a crescente fúria do cientista contra um livro que ele dizia ser "uma violação de amizade", e que ele descreveu como sendo mais "um fragmento da sua autobiografia" de uma história da descoberta da estrutura do DNA (no final, Crick --que morreu em 2004-- mudou de idéia e aceitou os méritos do livro, e ele e Watson continuaram amigos).
    Além disso, um capítulo eliminado da primeira edição foi restaurado, junto com resenhas contemporâneas do livro, a maioria das quais favoráveis, embora algumas poucas sejam hostis.
    A nova versão também inclui uma carta da escritora Naomi Mitchison --cujo filho Avrion foi amigo íntimo de Watson-- em que ela descreve o livro "como se fosse meu filho". Watson havia escrito a maior parte de "A Dupla Hélice" durante estadias em Carradale, a casa de Mitchison no promontório de Kintyre, e dedicou o livro a Naomi. "Talvez você nunca mais escreva esse tipo de coisa, não importa, você a escreveu de uma vez por todas", acrescentou Mitchison na sua carta.
    Foram palavras proféticas. Watson --hoje com 84 anos-- nunca chegou perto de repetir o sucesso de "A Dupla Hélice", embora tenha publicado vários outros livros. Por outro lado, continuou no centro do cenário público como um paladino da ciência, frequentemente com resultados polêmicos. Em 2007, depois de fazer declarações sobre diferenças raciais na inteligência entre africanos e outros, ele foi forçado a se aposentar do cargo de reitor do Laboratório de Cold Spring Harbor, em Nova York.
    Watson desde então nega veementemente que seja racista. Seus comentários foram apenas irrefletidos, argumentou. A julgar pelas páginas de "A Dupla Hélice", esse hábito --falar primeiro e pensar depois-- não é novidade. Além de sua atitude com as "popsies" e do desprezo por muitos de seus colegas, o tratamento que Watson dispensa a Wilkins e à sua colega Rosalind Franklin vem sendo criticado há anos. Wilkins e Franklin (que morreu de câncer em 1958) estavam estudando o DNA no King's College, em Londres. Crick e Watson estavam sediados em Cambridge, mas nunca realizaram uma experiência por contra própria. Em vez disso, eles exploraram parte das pesquisas de Franklin e Wilkins com a cristalografia dos raios-X para decifrar a estrutura do DNA. Ao mesmo tempo, Watson retrata Franklin de forma fria e antipática.
    Mas Watson insistiu na semana passada que não havia animosidade. "Nunca senti que estivéssemos fazendo nada de ruim com ela", afirmou ele ao "Observer". Franklin, com Wilkins, queria obter seus dados antes, e então resolver a estrutura do DNA. "Nós queríamos estar à frente dos dados." Enquanto Franklin e Wilkins continuaram o seu trabalho com os raios-X, Crick e Watson trabalharam em diferentes modelos da molécula de DNA, até encontrarem o correto, uma dupla hélice.
    Na verdade, se houve uma figura trágica na história do DNA foi a de Maurice Wilkins, insistiu Watson. Dos quatro cientistas que trabalhavam com o DNA em 1953 -- dois em Cambridge e dois em Londres, ele foi o único que havia pesquisado sua estrutura durante algum período. Franklin lhe foi imposta pelo chefe do seu laboratório, John Randall, que emerge das páginas de "A Dupla Hélice" como uma figura bastante maquiavélica. No final, Franklin e Wilkins mal se falavam, e Crick e Watson ficaram com a glória, para desgosto dos outros.
    O livro também revela que na época o MI5 [serviço britânico de inteligência] abria a correspondência de Wilkins, sob a suposição de que ele seria um espião comunista. "Ele não era", diz Watson. "Era só um indivíduo bastante trágico. Foi uma grande vergonha."
    Tradução de RODRIGO LEITE.

    Cientistas fazem filme de zumbi em superacelerador de partículas


    Na trama, o bóson de Higgs transforma físicos em monstros
    FOLHA DE SÃO PAULODepois de um acidente no LHC, o maior acelerador de partículas do mundo, um grupo de estudantes luta para escapar das garras da equipe de manutenção do local, que foi transformada em zumbis pela exposição à radiação do experimento que localizou o bóson de Higgs.
    À primeira vista, o enredo do filme "Decay" é só mais uma das catástrofes científicas -que incluem até a formação de buracos negros- de que o experimento, nos arredores de Genebra, na Suíça, é acusado. A obra, no entanto, é de um time de físicos diretamente ligados ao LHC.
    Sem nenhuma experiência com cinema, mas com muita vontade de satirizar todo tipo de abobrinha que já foi relacionada ao LHC e ao Cern (Organização Europeia de Pesquisa Nuclear), o time idealizou um filme de zumbis recheado com todos os clichês do gênero, mas com muitas pitadas de sarcasmo e de divulgação científica.
    A produção levou dois anos para ficar pronta. O orçamento, de cerca de US$ 3.500, saiu todo do bolso da equipe, que conseguiu câmeras e outros itens de equipamento e cenografia emprestados. Os atores principais também são cientistas, físicos em sua maioria.
    Lançado como obra de domínio público, o thriller está disponível em www.decayfilm.com. http://www.symmetrymagazine.org/article/december-2012/zombies-invade-the-lhc-in-student-made-horror-film  O Cern não apoiou formalmente o projeto, mas tem sido bastante simpático a ele.

      Uma tradição em atualização médica - Julio Abramczyk


      PLANTÃO MÉDICO
      JULIO ABRAMCZYK
      [folha de são paulo]
      julio@uol.com.br
      PASSADOS pouco mais de 50 anos do lançamento de sua primeira edição, em 1957, pelos professores Felício Cintra do Prado, Jairo de Almeida Ramos e José Ribeiro do Valle, da Escola Paulista de Medicina/Unifesp, a obra "Atualização Terapêutica 2012/13" mantém a praticidade que motivou o êxito das sucessivas edições da obra ao longo de meio século.
      Nesta 24ª edição, em dois volumes, o professor Durval Rosa Borges, editor do volume "Diagnóstico e Tratamento", lembra que, além da abordagem de temas de atualização, a obra também tem por objetivo ajudar a organizar o conhecimento da medicina atual, permitindo ao médico "identificar o relevante e descartar o falacioso".
      São 601 temas distribuídos em 1.990 páginas e 23 capítulos (ou "partes").
      De forma didática, cada um dos temas é apresentado com base na experiência de seus autores.
      O segundo volume, "Urgências e Emergências", é coordenado pelos professores Álvaro Nagib Atallah, da Unifesp, e Dario Birolini, da USP.
      São 17 capítulos em 744 páginas analisando 147 temas de urgência, desde ocorrências com idosos e crianças às situações de risco de vida, como o acidente vascular cerebral, traumatismos abdominais e torácicos, às repercussões sistêmicas, como a disfunção de múltiplos órgãos.
      O livro é um instrumento de consulta rápida e eficiente para médicos brasileiros que atuam nas áreas estratégicas da urgência e da emergência.

      Antropólogo investiga 'fraude do século'


      Britânico especialista em evolução humana anuncia esforço para entender origem do chamado homem de Piltdown
      Anunciado há cem anos como elo perdido, fóssil era falsificação; grupo agora quer identificar fraudador, ainda ignoto
      REINALDO JOSÉ LOPESFOLHA DE SÃO PAULO EDITOR DE “CIÊNCIAS+SAÚDE”Cem anos depois que o público britânico foi engambelado pela apresentação do mais famoso fóssil falso de todos os tempos, um grupo de cientistas quer descobrir, de uma vez por todas, os responsáveis pela fraude.
      O fóssil em questão é o "homem de Piltdown", saudado em 1912 como o elo perdido por excelência -embora não passasse, na verdade, de uma mistura mal-ajambrada de ossos de humanos modernos e orangotangos.
      Demorou 40 anos para que a fraude de Piltdown ficasse clara, e há uma lista dos principais suspeitos de terem perpetrado a farsa, mas ainda não dá para apontar um culpado com razoável grau de certeza. E é aí que entram Chris Stringer e seus colegas.
      Stringer, pesquisador do Museu de História Natural de Londres e um dos principais especialistas em evolução humana do mundo, apresentou seu plano de investigação em artigo na última edição da revista científica "Nature".
      Junto com outros 15 colegas do museu e de várias universidades britânicas, ele está usando uma série de técnicas modernas -análises químicas e de DNA, testes de carbono-14 etc.- para determinar com precisão a idade verdadeira e a origem geográfica dos fósseis forjados.
      Mais importante ainda, Stringer e companhia querem saber quais métodos foram usados para envelhecer artificialmente os ossos, o que permitiu que muitos cientistas sérios da época engolissem a fraude de Piltdown.
      LISTA DE SUSPEITOS
      Segundo Stringer, justamente a metodologia de falsificação é que pode ajudar a equipe de "detetives" a distinguir entre os principais suspeitos da fraude.
      O que ocorre é que três escavações, em dois sítios diferentes, foram responsáveis por trazer à tona os restos do homem de Piltdown.
      Na primeira, a equipe liderada pelo caçador de fósseis amador Charles Dawson e pelo paleontólogo Arthur Smith Woodward achou uma mandíbula e fragmentos de um crânio, junto com ferramentas de pedra.
      Na segunda escavação, vieram à tona um canino e, o que hoje parece mais ridículo, um pedaço de osso de elefante com um formato que lembrava um taco de críquete.
      Finalmente, Dawson alegou ter achado mais fósseis num segundo sítio, a alguns quilômetros do primeiro.
      Para Stringer, se o método de falsificação for igual para os dois sítios, isso provavelmente significa que Dawson era o mentor da fraude, porque só ele chegou a trabalhar em ambas as localidades.
      Por outro lado, se o canino da segunda escavação apresentar origem diferente ou "tratamento" distinto dos outros fósseis, isso incriminaria o responsável por encontrar esse dente, alguém que se tornaria famoso: o jesuíta francês Pierre Teilhard de Chardin, que depois tentou uma junção entre a doutrina cristã e a teoria da evolução.
      Também pode ser que o mais absurdo dos "achados" -o tal taco de críquete- tenha sido plantado por alguém que estava tentando deixar claro para o público que era tudo mentira.
      Para Stringer, desvendar a autoria da fraude ajudará a entender as motivações do farsante e da má conduta científica de maneira geral.
      Tudo indica que, se Dawson foi o responsável, ele estava simplesmente atrás de reconhecimento e prestígio.
      Por outro lado, o falsário pode ter sido motivado pelo desejo de mostrar que o Reino Unido era o berço da humanidade. Ironicamente, a fraude atrasou o reconhecimento de um fóssil genuinamente espetacular, o Australopithecus africanus, achado na África do Sul e, por isso, "discriminado".

        FRASE
        "Seja lá quem tenha sido o responsável, a fraude de Piltdown é um lembrete claro de que, na ciência, se algo parece bom demais para ser verdade, é bom desconfiar. A fama do fóssil atrasou os estudos sobre evolução humana"
        CHRIS STRINGER
        especialista em origens humanas do Museu de História Natural de Londres

          Quadrinhos


          FOLHA DE SÃO PAULO
          CHICLETE COM BANANA      ANGELI

          ANGELI
          PIRATAS DO TIETÊ      LAERTE

          LAERTE
          DAIQUIRI      CACO GALHARDO

          CACO GALHARDO
          NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES

          FERNANDO GONSALES
          PRETO NO BRANCO      ALLAN SIEBER

          ALLAN SIEBER
          QUASE NADA      FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ

          FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ
          HAGAR      DIK BROWNE

          Potências racham sobre internet e há temor de 'guerra fria digital'


          Países decidem, em evento da ONU, fazer apenas referência genérica à governança da web
          Brasil foi um dos 89 que assinaram tratado, ao lado de Rússia e China; Estados Unidos e mais 54 países rejeitaram
          NELSON DE SÁFOLHA DE SÃO PAULOA Conferência Mundial sobre Telecomunicações Internacionais, realizada nas últimas duas semanas pela ONU, nos Emirados Árabes Unidos, terminou ontem como havia começado: com forte divisão entre os países-membros.
          Os acordos finais foram aprovados por 89 países, entre eles, Brasil, China, Arábia Saudita e África do Sul, contra 55 que se negaram a assinar, entre eles Alemanha, Japão, Qatar e Colômbia.
          O primeiro grupo foi identificado com a Rússia, o segundo com os EUA, o que levou observadores a questionarem se o mundo corre risco de "guerra fria digital".
          O maior fator de divisão, ao longo da conferência, foi uma eventual menção à internet -o que era defendido desde o princípio pela Rússia, com apoio da China e de países árabes, e questionado por EUA e países europeus.
          No final, depois de ameaças de abandono pela delegação americana e dias inteiros de negociação, houve referência genérica à governança da internet num texto paralelo, não obrigatório.
          SPAM
          Mas os EUA questionaram outros pontos, presentes nas resoluções de adoção obrigatória pelos signatários, sobretudo a defesa de regulação de spam -o que exigiria reconhecer conteúdo de internet, na visão americana, arriscando a liberdade de expressão.
          Também foi destacada pelos EUA a descrição das entidades do setor, num dos textos finais, a pedido da Rússia, como "agências operadoras", o que abrange empresas de internet, e não "agências operadoras reconhecidas", o que limitaria o escopo às teles.
          Apesar do racha, o chefe da comitiva dos EUA, Terry Kramer, afirmou ontem que "não é o fim do diálogo sobre o papel de governos e das partes interessadas no crescimento dos setores de telecomunicações e internet".
          Em tom amistoso, disse que "a conversação global vai continuar". Acrescentou depois que muitos dos signatários acabarão tendo "remorso de comprador", quando acordarem para as vantagens econômicas da internet sem interferência estatal.
          Também o ministro Paulo Bernardo (Comunicações), que chefiou a comitiva brasileira, sublinhou que o diálogo segue até nova reunião plenária da União Internacional de Telecomunicações (UIT), marcada para 2014 na Coreia do Sul. "Vai continuar, vai ter um avanço."
          Ele espera novas adesões ao tratado nos próximos meses, porque "muitos países que se alinharam com os EUA declaram que vão consultar as suas capitais para saber se assinam ou não".
          ADOÇÃO
          A adoção plena do novo tratado só deve acontecer em 2015, após a ratificação pelos países no novo encontro da UIT. E não há definição ainda quanto à maneira de obrigar seu cumprimento pelos signatários. Quanto aos que recusarem o novo tratado, como os EUA agora, deverão seguir com as normas de telecomunicações estabelecidas em 1988 pela mesma UIT.
          "A despeito da marcação de posição negativa de países importantíssimos [como os EUA], achamos que houve avanços expressivos", diz Bernardo, lembrando a aprovação de normas para "roaming" e pontos regionais de tráfego, questões mais ligadas às telecomunicações.
          Para ele, o apoio de países democráticos ao tratado, como México, Indonésia, Brasil e outros, "dissipa qualquer possibilidade de alguém falar que foi união de países com visão autoritária".

            FRASE
            "Mesmo com a marcação de posição mais dura dos americanos, nós avançamos com eles na questão dos pontos regionais de tráfego e do "roaming". E as negociações vão continuar. Para nós, foi bom"
            PAULO BERNARDO
            ministro das Comunicações

            Para cidades, Lei da Antena é 'devaneio'
            Projeto fixa em 60 dias o prazo para resposta aos pedidos de instalação de estações de banda larga e telefonia móvel
            Municípios alegam que o prazo é muito curto e que faltam técnicos para emitir pareceres em tão pouco tempo
            HELTON SIMÕES GOMESCOLABORAÇÃO PARA A FOLHAAprovada anteontem em votação que reuniu quatro comissões do Senado, a Lei Geral das Antenas corre o risco de não ser aplicada de fato, segundo Paulo Ziulkoski, presidente da Confederação Nacional dos Municípios.
            "[A lei] é um devaneio", disse à Folha. O projeto prevê que os municípios respondam em 60 dias aos pedidos de instalação das estações de rádio bases, responsáveis pelo serviço de telefonia celular e de banda larga móvel. Caso contrário, as teles ficarão autorizadas a atuar.
            Segundo o texto, as licenças terão prazo de dez anos (prorrogáveis por igual período) e as teles deverão compartilhar sua infraestrutura -as que não o fizerem deverão se justificar.
            Para Ziulkoski, "o prazo de 60 dias não tem cabimento". "É um vezo do Congresso fixar prazo para os municípios em questões cuja realidade eles desconhecem."
            Segundo ele, as administrações municipais não têm corpo técnico capaz de emitir pareceres em tão pouco tempo, o que fará com que as antenas sejam instaladas automaticamente.
            O projeto da Lei das Antenas deve seguir para a Câmara na quarta-feira que vem. A expectativa dos parlamentares é de que a lei entre em vigor no início de 2013.
            "A gente vai ter que chegar a um meio-termo entre 60 dias e seis meses, porque hoje os processos mais rápidos duram seis meses, o que já é demorado", afirma Artur Coimbra, diretor de Banda Larga do Ministério das Comunicações.
            Na análise do governo, a Lei das Antenas e um decreto em análise na Casa Civil são os dois mecanismos para agilizar a implantação de infraestrutura de telecomunicações.
            "O governo tem metas agressivas para 2014 e 2015 que, mais do que dinheiro para investimento, dependem de um processo mais célere", afirma Coimbra. A Folhaantecipou que as teles terão um incentivo fiscal de R$ 7 bilhões para investir até 2016.
            O decreto prevê que toda obra pública de infraestrutura (ferrovia, rodovia, gasoduto ou saneamento básico) deverá reservar espaço para a instalação de cabos de telecomunicação.
            Se a obra for privada, as empresas executoras deverão tornar pública a possibilidade aos interessados.
            Além disso, apresentará regras mais claras para o compartilhamento de postes por empresas de telecomunicações e de energia e isentará as teles de pagar a taxa pelo direito de passagem.
            Para definir como as exigências serão cumpridas em cada obra, o Ministério das Comunicações negocia com as pastas de Cidades, Planejamento, Transportes e Minas e Energia.
            A expectativa era que o decreto fosse publicado ainda neste ano, mas, devido às negociações, deve ficar para o primeiro trimestre de 2013.

              FRASES
              "É um vezo do Congresso fixar prazo para os municípios em questões cuja realidade eles desconhecem"
              PAULO ZIULKOSKI
              presidente da Confederação Nacional dos Municípios
              "A gente vai ter que chegar a um meio termo entre 60 dias e seis meses"
              ARTUR COIMBRA
              diretor de Banda Larga do Ministério das Comunicações

                'Megastore' da Cultura será inaugurada no centro do Rio


                FOCO
                FOLHA DE SÃO PAULO
                LUCAS VETTORAZZo 
                DO RIO
                Em 1969, quando a alemã Eva Herz abriu a primeira Livraria Cultura, no edifício Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, o conceito americano de "megastore" certamente não era conhecido no Brasil.
                Quarenta e três anos após o surgimento da primeira unidade, a Cultura inaugurará uma megastore no centro do Rio de Janeiro, na próxima segunda-feira.
                A filial, reivindicação antiga dos clientes cariocas, terá 3.400 metros quadrados, 900 a menos que a matriz. Ela seguirá o modelo da Cultura do Conjunto Nacional- terá um teatro de 186 lugares, um café e um espaço gourmet.
                O local receberá também a mais recente novidade da empresa, o chamado espaço Geek, destinado aos fãs de ficção científica, games e itens de colecionador.
                Assim como sua irmã paulistana, a Cultura será instalada onde funcionou um cinema, o Cine Vitória. Datado de 1939, o prédio em estilo art déco é tombado como patrimônio histórico cultural do município.
                A loja terá quatro pavimentos e o teatro será instalado no subsolo. Uma rampa em espiral conecta os quatro andares, que são vazados. A rampa abrigará parte dos 70 mil títulos à venda.
                Neto de Eva e presidente-executivo da Livraria da Cultura, Sergio Herz, contou que sua maior dificuldade foi encontrar um terreno disponível para uma "megastore" no Rio.
                Herz disse que não teme que, por ser no centro, a livraria tenha baixo movimento durante os finais de semana. "A livraria terá vida própria. Nós vamos habitar o centro do Rio", disse ele.
                Será a segunda unidade da livraria na capital fluminense. Em agosto do ano passado, a empresa inaugurou uma filial no Fashion Mall, em São Conrado, na zona sul da cidade. A livraria, contudo, é muito menor, com 1.000 metros quadrados.

                  CLÁUDIA LAITANO - Um disco e um presente

                  Zero Hora: 15/12/2012

                  Eu gosto de gostar de Caetano – mas nem sempre gosto do que ele faz.

                  Caetano Veloso, pra mim, é como aquele amigo de infância que você ama sinceramente, mas com o qual tem cada vez menos contato. Não importa o quanto suas vidas se distanciem, você sempre vai achar tempo para ouvi-lo. Mas essa velha amizade, às vezes, parece se alimentar mais do eco distante de um big bang de afinidade do passado do que de uma genuína comunhão de interesses do presente. Até que algo que ele diz ou faz reacende alguma coisa em você, despertando a lembrança de todos os motivos pelos quais, afinal, esse amor discreto, mas intenso, tornou-se um dos laços mais consistentes e permanentes da sua vida.

                  Achava que passar um fim de semana inteiro ouvindo um disco de Caetano Veloso era daqueles prazeres da juventude que eu nunca mais repetiria – como acampar, virar a noite conversando com as amigas ou pedir carona na estrada (ainda bem que meus pais não estão lendo isso...). Ledo e ivo engano.

                  Eis que esse senhor de 70 anos recém-completados acaba de surpreender novos e antigos fãs com canções que pedem para ser ouvidas não uma, mas várias vezes em sequência – primeiro porque a sonoridade nos pega pelo cangote e depois porque cada letra esconde um verso ou um jogo de palavras que vai se iluminando um pouco mais a cada nova audição.

                  Ao contrário de Chico Buarque, que no ano passado gravou um disco solar acompanhado por músicos veteranos, Caetano compôs um álbum melancólico, noturno, porém apoiado na energia renovada de jovens instrumentistas. O contraste entre a música que vai para um lado e a letra que parece ir para o outro cria um estranhamento interessante em canções como O Império da Lei, uma música alegre e dançante que lembra mortes estúpidas e impunes no interior do Brasil: “O império da lei há de chegar no coração do Pará/ Quem matou meu amor tem que pagar/ E ainda mais quem mandou matar”.

                  O conteúdo político aparece também em Um Comunista, composição do não comunista Caetano em homenagem ao guerrilheiro Carlos Marighela: “Vida sem utopia/ Não entendo que exista/ Assim fala um comunista/ Porém a raça humana/ Segue trágica sempre/ Indecodificável/ Tédio, horror, maravilha/ Ó mulato baiano/ O samba o reverencia”.

                  A canção que abre o disco é uma espécie de charada com título e refrão provocativos (“A bossa nova é foda”), em que Caetano se diverte lançando pistas para serem decifradas pelo ouvinte. O “bruxo de Juazeiro”, claro, é João Gilberto, mas para encontrar Carlos Lyra no “magno instrumento grego antigo” e Bob Dylan no “bardo judeu romântico de Minnesota” é preciso um pouco mais de empenho.

                  A doce e melancólica Estou Triste é tão linda, que vale a pena transcrever inteira: “Estou triste tão triste/ Estou muito triste/ Por que será que existe o que quer que seja?/ O meu lábio não diz, o meu gesto não faz/ Sinto o peito vazio/ E ainda assim farto/ Estou triste tão triste/ E o lugar mais frio do Rio/ É o meu quarto”.

                  Como é bom voltar a gostar de quem a gente nunca deixou de amar.

                  Eu também gosto de gostar de Luis Fernando Verissimo – mas desse eu gosto sempre. O cronista mais lido e querido do Brasil voltou para casa ontem e em breve volta para esta página também. Isto sim é presente de Natal: o resto é lembrancinha.

                  Grandes jornais dos EUA dão sinais de melhora


                  Ações do setor sobem até 37% com otimismo
                  DE NOVA YORKNos últimos seis meses, as ações de algumas das maiores editoras de jornais dos EUA subiram acima de 20%, demonstrando otimismo com o novo modelo de negócios de algumas publicações.
                  As ações do New York Times Company subiram 37%, as da Gannett (que edita treze jornais, entre eles o "USA Today"), 34%. A McClatchy, que edita 30 diários, entre eles, o "Miami Herald", viu suas ações se valorizarem em 24% nesse período.
                  Os lucros da divisão de jornais da Hearst aumentaram em 25%, o melhor número desde 2007.
                  O "New York Times" já alcançou quase 600 mil assinantes digitais, que aceitaram pagar pelo conteúdo que têm acesso na internet, nos smartphones e nos tablets.
                  A renda obtida com a circulação aumentou em US$ 55 milhões nos primeiros nove meses do ano, chegando a US$ 695 milhões.
                  Novos investidores também aninam a indústria. Em maio, o fundo Berkshire Hathaway, do megainvestidor Warren Buffett, comprou vários jornais regionais da empresa Media General.
                  Segundo o "New York Times", o prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, que começou a construir seu império das comunicações e da informação financeira em 1982, estaria de olho na compra do diário britânico "Financial Times", um dos de maior prestígio no mundo, que é avaliado por especialistas em US$ 1,2 bilhão e que pertence ao grupo Pearson.
                  A compra envolveria ainda 50% da "Economist".
                  O "Financial Times" foi um dos primeiros a instalar o muro de acesso para cobrança ("paywall") e tem 600 mil assinantes.
                  Cerca de um quarto dos jornais americanos já cobram pelo conteúdo digital. Até há pouco, apenas jornais segmentados e de informações consumidas pelo mercado financeiro, como o "Wall Street Journal" e o "Financial Times", cobravam pelo conteúdo on-line.
                  Jornais de informação geral temiam que a cobrança produzisse uma queda violenta na audiência na internet, o que não aconteceu.
                  Segundo pesquisa do banco JPMorgan, o tráfego de internautas em jornais que passam a cobrar pelo acesso ao conteúdo on-line cai em média 20% -garantindo verbas de publicidade e das assinaturas.

                    Mais da metade da população tem acesso a internet no Brasil


                    Pesquisa do Ibope Media inclui crianças com acesso em casa
                    DE SÃO PAULOPouco mais da metade da população brasileira tem acesso à internet. Segundo dados do Ibope Media, no terceiro trimestre de 2012, 94,2 milhões de brasileiros tinham algum tipo de acesso.
                    O número considera maiores de 16 anos com acesso em qualquer ambiente (casa, trabalho, escolas, LAN houses), mais crianças e adolescentes (de 2 a 15 anos de idade) com acesso em casa.
                    Até o segundo trimestre deste ano, o Ibope não considerava a fatia da população menor de 15 anos com acesso em casa.
                    Excluindo esse público, o uso da internet aumentou 2,4% no terceiro trimestre sobre o anterior.
                    O acesso no local de trabalho aumentou 14%, atingindo 72,4 milhões de brasileiros em novembro. O crescimento do acesso nas residências foi ainda maior: 16% (69,5 milhões).
                    O número de usuários ativos, no local de trabalho ou em casa, chegou a 53,6 milhões em novembro -alta de 12% com relação ao mesmo mês do ano passado.
                    MAIS TEMPO
                    O número de pessoas que moram em casas com acesso a internet aumentou 14% em novembro, para 44,7 milhões, na comparação com novembro de 2011.
                    No entanto, o tempo de uso do computador, em casa ou no trabalho, caiu 3,6% entre novembro e outubro. Em média, cada internauta passou 62 horas e 8 minutos e 38 segundos na internet em outubro, e 59 horas, 52 minutos e 51 segundos em novembro.
                    No e-commerce, as categorias com maior crescimento no número de usuários únicos em novembro foram as de companhias aéreas, com aumento mensal 11,4%.
                    Em segundo lugar vieram as empresas de pagamento seguro de compras online (alta de 5,4%).
                    Em terceiro, as de informações e produtos para animais domésticos -crescimento de 14,1%.

                      De fato e ficção - João Paulo‏

                      Estado de Minas: 15/12/2012

                      Dois livros lançados recentemente, por caminhos diversos e intenções quase opostas, trazem ao leitor motivos para reflexões importantes sobre a paz. Mais que nunca, precisamos de paz. A sensação de que estamos cercados por tumultos de toda ordem tem tornado a vida pesada, temperada de ansiedade e de certo fastio de viver. O barulho é muito, a educação é pouca. O tempo da delicadeza está cada vez mais distante dos nossos dias.

                      A leitura, nessas horas, costuma ser um dos poucos caminhos capazes de trazer tranquilidade ao espírito. Nosso tempo é do imediato. Arte boa é a que diverte, distrai e consola. A literatura tem uma temporalidade diferente, ela primeiro precisa dominar nosso ritmo de pensamento e emoção para, só então, começa a funcionar. Somos habitados pela leitura e, por isso, como queria Borges, ler é uma atividade mais divertida que escrever, já que não aprisiona em um único sentido.

                      Os livros que me fizeram pensar que é tempo, mais que nunca, de procurar a paz, são Onde está tudo aquilo agora? – Minha vida na política, de Fernando Gabeira; e O pacifista de John Boyne. O primeiro é um volume de memórias, o segundo um romance de ficção. Gabeira é brasileiro, Boyne é irlandês. As lembranças do jornalista brasileiro são da segunda metade do século 20; o romance de Boyne é ambientado, em sua maior parte, nos anos 1910-1920.

                      Como todo romance quer ser história, Boyne cria personagens que parecem reais; como todos os livros de memória querem merecer o título de arte, Gabeira capricha no modo de contar. O pacifista, assim, parece um livro de história da Primeira Guerra Mundial pelo olhar de dois amigos. Onde está tudo aquilo agora? é um depoimento que se lê como um romance, embora tenha o desprestígio ou melancolia de narrar coisas acontecidas de fato.

                      A ideia de paz, que marca presença desde o título da novela de John Boyne, é também o contratexto do livro de Gabeira, um político que pegou em armas para combater a ditadura e foi aprendendo com o tempo que a paz é uma arma muito mais poderosa, embora também de mais difícil domínio. O pacifista é um livro sobre guerra; Onde está tudo aquilo agora? um exercício de memória. No horizonte, a certeza de que não estamos prontos para a vida até que a cortina do real se abra.

                      Duas perguntas

                      No fim dos anos 1970, o jornalista Fernando Gabeira voltava ao Brasil nos braços da conquista da anistia pela sociedade brasileira. Militante de organizações de esquerda, ele havia participado do sequestro do embaixador norte-americano. Foi preso, torturado (num sinal de elegância humana nunca descreveu as sevícias que sofreu, embora tenha sido corajoso para denunciar o que foi feito aos colegas) e, por fim, exilado em troca da vida de outro embaixador sequestrado. 

                      A volta ao Brasil fez de Gabeira uma espécie de testemunho do presente. Depois de prestar contas do passado recente no precioso O que é isso, companheiro?, começou a registrar em livros suas mudanças pessoais e as transformações da sociedade brasileira. Escreveu-viveu sobre machismo, modelos familiares, estilo de vida, violência contra a mulher. Homem político, passou a compartilhar com o país outra revolução, que deixava os signos socialistas do vermelho para se colorir do verde da ecologia.

                      O destino de Gabeira foi semelhante a de outros companheiros de geração, aqui e em outros países, que passaram a refletir sobre o que haviam vivido e a buscar novos modelos de convivência humana, felicidade coletiva e atitude política. É esse movimento que se acompanha nas páginas de Onde está tudo aquilo agora?. Com o mesmo empenho em perguntar, ainda que a outros companheiros, o jornalista e político parece afirmar que continua sem certezas absolutas. Humildade, em alguns momentos, é a única saída que nos resta. 

                      O livro é curto, não chega a 200 páginas, mas reúne histórias que vão da infância em Juiz de Fora aos dias de hoje. Gabeira, depois de recuperar rapidamente o que já havia registrado em outros livros, concentra suas reflexões sobre sua trajetória política no parlamento e nas campanhas majoritárias das quais participou no Rio de Janeiro. Narrador distinto, constrói sua história pessoal com fatos, avalia alguns reveses históricos recentes dos quais participou, julga, sem temor, os canalhas que lhe cortaram o caminho.

                      Há em Gabeira uma atitude que conquistou admiração até dos adversários: a capacidade de expor seus princípios e lutar por eles. O fato de sua investidura na vida pública se dar em torno de projetos, e não de votos conquistados em acordos e frutos de interesses, deu a ele uma mobilidade libertadora. Mas nem por isso sua atuação foi fácil, sobretudo quando se tratava de questões que afetam o que de mais sagrado o conservadorismo brasileiro cultua: o estilo de vida burguês e o senso de propriedade. Sem ser libertário nem comunista, Gabeira trouxe para a vida pública brasileira uma coerência importante em temas como a ecologia (como instrumento de garantia de sustentabilidade e preservação, o que afronta os cultores do progresso) e o comportamento (na defesa, por exemplo, da dignidade das prostitutas).

                      Livro que mira o passado, Onde está tudo aquilo agora? parece anunciar uma nostalgia de tempos de mais consistência. As esperanças do passado estão lá atrás esperando para ser resgatadas. Não melhoramos como gente, mas pelo menos temos a força criativa das memórias.

                      Outra guerra

                      O pacifista, de John Boyne é um romance que impressiona desde as primeiras linhas. O autor irlandês ficou conhecido mundialmente com o livro  O menino do pijama listrado, que conta a história da amizade de dois garotos, um judeu encarcerado num campo de concentração e um alemão, filho do diretor do campo de trabalhos forçados. A inocência dos meninos é o contraponto do horror que destrói todas as possibilidades de redenção.

                      Em O pacifista o escritor recua até a Primeira Guerra Mundial para narrar outra história de amizade entre dois homens, desta vez rapazes incorporados ao Exército inglês. Tristan Sadler, um jovem londrino de 21 anos, resolve, depois de perder o amigo William Bancroft em circunstâncias que só serão reveladas ao final da narrativa, procurar a irmã dele em Norwich, com o objetivo de devolver a ela as cartas das quais se tornara portador.

                      Escrito com delicadeza e melancolia, o romance vai deixando entrever, em meio aos diálogos, uma história de violência da qual a guerra é apenas um dos motivadores. Em capítulos que intercalam o tempo da guerra e o encontro entre Tristan e a irmã de Will, vai sendo desenhado outro enredo, feito de preconceitos, falsidades e sombras. Na guerra, nada é o que parece ser. Na vida em tempos de paz, a ausência de certezas é ainda mais perversa.

                      O pacifista é um livro político. Sua mensagem, feita de muita dor e perda, mescla todas as inclemências do militarismo, da convenção, da religião, da razão e da psicologia, para propor um olhar mais profundo sobre as relações humanas. Não saímos em paz da leitura. A grande paz é a que nos deixa sempre em estado de exasperação. A mais extrema das situações não é a guerra, mas a batalha que faz parte do coração do homem.


                      jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

                      República de amigos - Rubens Goyatá Campante‏

                      Para enfrentar a corrupção de forma mais eficiente e democrática é preciso ir além do voluntarismo e do formalismo judicial e também restituir à imprensa sua função de formadora de opinião pública plural 

                      Rubens Goyatá Campante
                      Estaodo de Minas: 15/12/2012 
                      “Aos amigos tudo, aos inimigos a lei.” Não por acaso este é um dos ditados mais famosos do folclore político brasileiro. Sua autoria é discutida, fala-se em Getúlio Vargas, menciona-se Pinheiro Machado, todo-poderoso caudilho da República Velha, e mesmo o ex-governador mineiro Benedito Valadares. Todos políticos que se notabilizaram pela astúcia. A frase é sinônima da esperteza política no uso seletivo da lei – do lado punitivo desta e do aparato judicial para atingir os inimigos. Assim, uma versão mais completa do ditado é: “Aos amigos tudo, aos inimigos os rigores da lei”. 

                      Foi como inimigo que sofre os rigores da aplicação política e seletiva da lei que o Partido dos Trabalhadores (PT) viu algumas de suas figuras mais influentes sofrerem pesadas condenações judiciais por conta de acusações de corrupção, formação de quadrilha, tráfico de influência, lavagem de dinheiro, entre outras. 
                      Tem-se discutido, na seara jurídica, a justeza das condenações, estribadas em clara mudança jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal (STF), com a maioria de seus ministros abandonando a rigidez formalista que predominava naquela corte nos procedimentos de prova e convencimento. Dizem os especialistas que a inovação jurisprudencial do Supremo deu-se no uso da teoria do domínio do fato para condenar os acusados, um entendimento que permite ao Judiciário condenar um réu que não tenha deixado provas concretas da participação direta em um crime, mas que, pelo alto cargo que ocupa e pela influência que possua em uma instituição, tenha contribuído decisivamente para sua realização. 

                      Criada, segundo o jurista alemão Claus Roxin, um de seus idealizadores, a partir da inquietação com os julgamentos dos crimes nazistas, a teoria do domínio do fato visava fazer com que os indivíduos em posição de comando, que comprovadamente davam ordens e planejavam estrategicamente a execução de delitos, fossem julgados como autores efetivos deles, juntamente com os executores diretos, e não como meros participantes, como o fazia a jurisprudência. Foi com base em tal teoria que os ex-presidentes Jorge Rafael Videla e Alberto Fujimori, da Argentina e do Peru, respectivamente, foram condenados – não “sujaram as mãos” executando pessoalmente os crimes tenebrosos de seus governos, mas comprovou-se que deram as ordens. 

                      Não basta, entretanto, para se aplicar tal entendimento, que o acusado esteja ou tenha estado em uma posição de comando e influência, de um lado, e que tenham ocorrido delitos em sua administração ou área de influência, por outro. É preciso provar o nexo entre os dois fatos, ou seja, que o acusado emitiu a ordem para o crime. Não bastam os indícios ou a suposição de que essa ordem existiu apenas pela posição hierárquica superior do acusado – “isso seria um mau uso da teoria”, afirmou Roxin, “a posição hierárquica, em si, não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ‘ter que saber’ não basta”. O paradigma do domínio do fato, portanto, redimensiona e abranda o formalismo processual do direito, mas de forma alguma o exclui, pois ele representa uma garantia de cidadania contra o voluntarismo sem peias na aplicação da lei. 

                      Os críticos às condenações do STF na Ação Penal 470 afirmam justamente que os réus foram condenados pela mera posição hierárquica, que não restaram provados o nexo entre os delitos e as ordens efetivas e mesmo alguns delitos em si. Os defensores das condenações afirmam que os delitos e as ordens foram confirmados e ainda que o próprio uso – correto – da teoria do domínio do fato não é novidade na Corte Suprema.

                      Ainda que as condenações sejam justificadas em termos estritamente técnico-jurídicos (até onde o direito possa ser estritamente técnico), vale dizer que, do ponto de vista social e político, essa justificativa é dúbia. Não por uma suposta inocência do PT mas pelo fato de que somente ele foi, até agora, condenado por práticas que são recorrentes e disseminadas no sistema político brasileiro – isso não o torna menos culpado, em termos sociais e políticos, mas faz com que a condenação pesando somente sobre suas costas tenha a indisfarçável marca da aplicação seletiva da lei, ditada por conveniências políticas.

                      A defesa jurídica do PT alegava que o único delito perpetrado pelo partido e seus integrantes foi o do financiamento de campanhas políticas. Ocorrera “somente”, segundo seus advogados e o discurso do partido, o famigerado caixa dois eleitoral. Alegação compreensível, em termos de estratégia jurídica, já que se trata de conduta punida de forma mais branda e limitada. Mas o caixa dois eleitoral nunca é algo brando e limitado, mas a ponta do iceberg de toda uma dinâmica de circulação ilegal e imoral de dinheiro no sistema político – é a face visível e uma das portas principais de entrada desse esquema absolutamente nefasto em termos de qualidade democrática. 

                      A democracia de massas e a expansão quantitativa e qualitativa do conhecimento técnico, do sistema financeiro mundial e dos meios de comunicação têm feito da política uma atividade cada vez mais cara. Por uma questão de sobrevivência os partidos e políticos necessitam de dinheiro, especialmente para campanhas políticas (nas quais a propaganda e o marketing funcionam, tanto mais quanto menor for o grau de cultura geral e de cultura política de uma sociedade), mas também para assessorias, consultorias, estudos, pesquisas, etc. Quem oferece a maior parte desses recursos é o grande capital, especialmente o financeiro – não de graça, é claro. Esse é um sério problema estrutural, e não só da política brasileira. Basta ver os escândalos que, na Europa, atingiram partidos tanto de esquerda como de direita, e políticos da importância de Felipe González, Willy Claes, Bettino Craxi, Alain Juppé, Edith Cresson, Jacques Chirac, Helmut Kohl, entre outros, tendo como pano de fundo as relações entre a política e o dinheiro, geralmente envolvendo o financiamento de campanhas eleitorais. 

                      Se o Judiciário brasileiro passar a usar, nos casos presentes e futuros de corrupção, a mesma régua, os mesmos parâmetros que usou para condenar os acusados na Ação Penal 470, o país terá de construir mais prisões para albergar os milhares de políticos, administradores e empresários sentenciados. Como afirmou Boaventura Santos, a impunidade e a falta de limites para o crime organizado e o crime político ameaçam a estrutura política de uma nação, mas “o mesmo pode ocorrer se a punição dessa criminalidade, pela sua sistematicidade e dureza, cortar as ligações do sistema político com tal tipo de criminalidade no caso de tais ligações serem vitais para a reprodução do sistema político”. Ilícitos políticos como as doações eleitorais “por fora” e a circulação ilegal de dinheiro no sistema político têm sido vitais para a reprodução deste, aqui e alhures. A grande e urgente questão estrutural é cortar ou ao menos diminuir tais ligações. 

                      Controle público No Brasil, com o incremento dos sistemas e instituições de controle público como a Receita Federal, a Polícia Federal, o Ministério Público, os Tribunais de Contas, a Controladoria da União, as CPIs etc., vários escândalos de corrupção têm sido denunciados e apurados, mas poucos resultaram em condenações judiciais. As operações Satiagraha e Castelo de Areia, da Polícia Federal, foram boicotadas e impedidas política e judicialmente, CPIs que envolviam corrupção de forças políticas diversas, como a do Banestado, foram arquivadas, e o processo que investiga o envolvimento de políticos do PSDB mineiro em esquema de corrupção semelhante ao que condenou políticos do PT, inclusive com o mesmo “operador”, Marcos Valério, caminha a passos lentos no Supremo, embora a denúncia seja anterior. 

                      Para esses casos tem prevalecido o excesso de formalismo legal e a parca e fragmentada cobertura da mídia. Mídia que mal informa a população sobre o projeto de lei que visa fazer com que as empresas denunciadas por corrupção sejam julgadas com base na responsabilidade objetiva e não mais subjetiva – graças a esta última, as empresas denunciadas sempre alegam que seus empregados agem por conta própria, sem conhecimento da direção. Caso vingue a responsabilidade objetiva poderão ser condenadas, assim como seus dirigentes, se provado que a empresa se beneficiou do ilícito. Mas a opinião pública, em geral, pensa que a corrupção é um problema somente do Estado ou dos “políticos ladrões”. Sim, há muitos deles, mas a questão é mais complexa.

                      Complexidade que a cultura geral e política da sociedade não está preparada para perceber e que a mídia, salvo exceções, não apresenta. É mais fácil apresentar e perceber o problema da corrupção pela ótica subjetiva e simplificadora da má índole dos políticos. É o discurso da mídia brasileira, que extrapolou sua tradicional e crucial função de formadora da opinião pública para se alçar à condição de “justiceira”, no vácuo da ineficiência da Justiça e da segurança pública no Brasil. 

                      A mídia, porém, não tem os meios e a legitimidade institucional para isso. Primeiro porque falta a referência legal suficiente para, ao mesmo tempo, garantir e limitar o direito de expressão e informação, como acontece com todo direito constante de um ordenamento legal democrático, que não comporta direitos absolutos, mas sempre relativos e limitados uns pelos outros. Afirmar que o direito de expressão é absoluto, e que o Estado não deve regulá-lo – incluindo nessa regulação o estímulo à desconcentração dos grupos midiáticos em prol da pluralidade da opinião pública – é de um liberalismo tão extremo que chega a ser antidemocrático. Segundo, porque não tem a neutralidade política necessária para essa tarefa, apresentando, muitas vezes, os escândalos políticos que lhe convêm e na medida que lhe interessam. E finalmente porque, ao simplificar e subjetivar as causas da corrupção, escamoteia o principal problema subjacente a ela: o fato de que ela expressa uma perversão maior que é a privatização do Estado brasileiro pelo grande capital. Privatização que se manifesta em nossa injustiça tributária, que taxa o consumo e a renda dos pobres e da classe média e alivia a grande propriedade e o grande capital; na hegemonia financeira que abocanha quase metade do orçamento público; na degeneração da representação política pela força do dinheiro. 

                      Combater a corrupção é necessário, porém mais importante é combater a privatização do Estado. Para isso, a agenda é extensa e difícil: redimensionar o formalismo jurídico para que a Justiça seja mais eficiente mas sem deixar os cidadãos à mercê do voluntarismo judicial; reformar o papel da imprensa, retirando-lhe o papel de “justiceira” guiada por interesses próprios e recolocando-a em sua função de formadora de uma opinião pública necessariamente plural; e, finalmente, desprivatizar o Estado brasileiro. Enquanto tais providências não sejam encaminhadas continuará a vigorar no Brasil a conveniência do “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. 


                      Rubens Goyatá Campante é doutor em ciência política pela UFMG e pesquisador da Escola Judicial do TRT- MG
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                      Romance da vida real (Mário Palmério) - João Paulo‏

                      Conhecido como romancista, Mário Palmério construiu um mito em torno de sua atuação política e empresarial. Para o pesquisador André Azevedo da Fonseca, o escritor é um subproduto do varguismo 

                      João Paulo
                      Estado de Minas: 15/12/2012 

                      Em imagem publicada por ocasião da assinatura de um contrato de financiamento da sede de ginásio de sua propriedade, o jovem Palmério, aos 27 anos, está sentado no centro de uma longa mesa no gabinete da prefeitura, circundado por nove autoridades, incluindo o prefeito, todos em uma posição levemente curvada a ele. De acordo com a interpretação de André Azevedo da Fonseca, há uma luz irradiando desse centro. %u201CA composição da imagem guarda semelhanças com a representação clássica da Santa Ceia. A imagem causou uma impressão duradoura no imaginário da cidade.%u201D


                      André Azevedo da Fonseca, de 37 anos, sempre foi fascinado pelo romance Vila dos Confins, de Mário Palmério, publicado em 1956. “Brasilianistas como Thomas Skidmore argumentam que esse livro é uma das melhores maneiras de compreender a atmosfera do coronelismo no Brasil”, pontua. Vem daí o interesse do pesquisador por deslindar o contexto histórico que havia influenciado o escritor, o que acabou por gerar a pesquisa de doutorado em história, feito na Universidade do Estado de São Paulo (Unesp), que deu origem ao livro A construção do mito Mário Palmério. Da literatura para a vida, o escritor criou seu próprio roteiro existencial, que o levaria a ocupar vários postos políticos de destaque e levar adiante empreendimentos de vulto na área da educação. 

                      Nada foi feito sem método e, menos ainda, sem despertar polêmica e oposição. Terçando com eficiência as armas que movimentam o teatro social, entre elas a bajulação e a construção do mito do salvador da pátria, Mário Palmério passou a escrever e encenar o roteiro de sua própria consagração nas entrelinhas de sua ascensão profissional. “Ele foi tão bem-sucedido nessa ficção social que, no final dos anos 1940, já era representado pela imprensa local como um ‘herói’ imbuído de um ‘compromisso sagrado’, que fazia ‘sacrifícios’ em nome de um ‘apostolado’ pela educação.” 

                      Para quem conhece apenas o Mário Palmério escritor, autor de apenas dois romances, mas que faz parte da história literária brasileira de forma destacada, o esforço de história social de André Azevedo da Fonseca surpreende. De tal forma a trajetória política do escritor avulta em sua região que chegou a circular a lenda de que ele não seria sequer autor de seus livros, sendo sua literatura resultado de uma fraude. “No que diz respeito à história, tanto Vila dos Confins como Chapadão do Bugre exploram algumas das piores práticas políticas que ocorriam no interior, da fraude eleitoral à chacina de adversários. Mas Palmério alcança uma dimensão universal ao abordar o lado sombrio dos sentimentos humanos, como a mágoa, a vingança, a traição, o medo e a ânsia por poder”, analisa o pesquisador.

                      E é exatamente sobre ânsia por poder que parece ter se guiado Mário Palmério em sua trajetória de homem, político, empresário e artista. Em entrevista ao Pensar, André Azevedo, que hoje é professor da Universidade Estadual de Londrina, ajuda a desvendar o mito. 

                      O que despertou seu interesse pela figura pública de Mário Palmério?


                      A questão era: quais foram as experiências reais de Mário Palmério na política? Isso era um enigma na história da literatura. Vila dos Confins, publicado em 1956, é um romance indispensável para compreender a brutalidade das práticas políticas no interior do país. O próprio autor dizia que Vila dos Confins havia começado como relatório. Quando publicou o romance, Palmério já tinha seis anos de experiência como deputado federal. Portanto, estudar a história que o levou a escrever Vila dos Confins foi meu ponto de partida. Mas no decorrer da pesquisa fiquei absolutamente surpreso com a habilidade do jovem Mário Palmério na construção meticulosa de sua própria carreira política. Ele aprendeu a manipular uma série de símbolos de prestígio e, tal como um personagem de si mesmo, trabalhou conscientemente para encenar um protagonista de destaque no imaginário de sua cidade. Ou seja, ele percebeu que a vida pública local era um teatro onde atores sociais representavam papéis em uma cena política para impressionar os cidadãos e conquistar prestígio. 

                      De que forma e com que instrumentos o escritor construiu sua imagem na região de Uberaba e do Triângulo Mineiro?

                      Desde os seus 24 anos, Palmério sabia que era preciso encenar para conquistar prestígio na cidade. Ele era o caçula da família e teve que se empenhar para deixar de lado a imagem de garotão irresponsável. Para diferenciar-se dos irmãos, deixou o bigode crescer e tratou de produzir dois clichês fotográficos, artefatos caros na época, para serem utilizados nas notícias sobre as suas escolas. Somente em 1940 ele conquistou a emancipação simbólica do pai, deixou de ser apresentado como mais um filho do Francisco Palmério e finalmente apareceu por si próprio. Ao anunciar seus empreendimentos, ele exagerava no currículo, sobrevalorizando as experiências profissionais e alçando sua biografia às alturas. Ele ingressou rapidamente no jogo de lisonja e adulação que animava as elites de Uberaba. Nas fotografias que apareciam nos jornais, é notável o cuidado de Mário Palmério com detalhes do figurino, da postura corporal e do cenário. Ele se posicionava na frente de estantes de livros ou rodeado por seus alunos. 

                      Como era a região na época em que Mário Palmério começa a buscar projeção e de que maneira ele ligou os anseios do Triângulo à sua trajetória?

                      Uberaba era uma cidade que tinha forte nostalgia do período de prosperidade, que durou até o final do século 19. A cidade havia passado por um longo período de decadência urbana, mas a partir do Estado Novo começava a ensaiar um renascimento. As elites se empenhavam para convencer a todos e a si mesmo que a cidade estava prestes a se tornar o maior polo irradiador de civilização do Brasil central. Dizia-se que a cidade tinha arranha-céus, que estava repleta de palácios etc. Naturalmente, essa riqueza era altamente concentrada. Um relatório do final dos anos 1920 mostra que a cidade tinha 3 mil residências e apenas 15 palacetes. Mas veio daí essa obsessão em inventar uma vida social fictícia que procurava simular uma sociedade europeia no sertão. A partir de 1945, quatro grandes crises inspiraram um discurso apocalíptico em Uberaba, que ecoou pelo Triângulo. A principal foi a crise econômica, resultado da quebra dos pecuaristas. Havia muita especulação no preço do gado. Quando a bolha estourou, fortunas inteiras desmoronaram e isso devastou a economia da cidade. 

                      Simultaneamente, o pós-guerra foi um período de racionamento que angustiava muito as pessoas. Faltou pão, carne, leite, açúcar, além dos problemas com abastecimento de água e energia, que eram um desastre. Havia a crise política: as disputas locais em torno dos partidos criados após a queda de Vargas criaram situações que deixavam a população perplexa. E por fim havia a crise identitária. Com o fim do Estado Novo, as lideranças passaram de um debate sobre municipalismo a um discurso aberto em favor da separação do Triângulo Mineiro em relação a Minas. 

                      Como Mário Palmério reagiu a essa situação?
                      Mário Palmério leu cada uma dessas crises e, sustentando-se em uma trajetória bem-sucedida e no capital de prestígio que acumulara, apresentou as soluções de modo espetacular por meio do manifesto “Carta aos triangulinos”. Ele propôs a diversificação da economia local como forma de se livrar da dependência exclusiva da pecuária, defendeu o trabalhismo como ideal político, propôs a união suprapartidária para o fortalecimento do poder de negociação regional e ergueu a bandeira da separação do Triângulo Mineiro como forma de unir toda a população em nome de uma causa libertadora. Nessa mitologia, o Estado do Triângulo representava a terra prometida. Como toda a região havia acompanhado a sua ascensão, pois Uberaba era uma cidade polo, seu discurso foi reconhecido como legítimo e entusiasmou uma geração de eleitores.

                      ENTREVISTA/ANDRé AZEVEDO DA FONSECA » Publique-se a lenda 
                      Pesquisador analisa a construção do mito em torno de Mário Palmério, autor de Vila dos Confins e Chapadão do Bugre, deputado petebista e empresário do ensino na região do Triângulo Mineiro
                       

                      João Paulo
                      As obras de Mário Palmério fazem parte do cânone da literatura brasileira do século 20. No entanto, em sua terra natal, o escritor é muito mais célebre pela atuação real e simbólica que exerceu nos campos da política e da educação. Fundador de colégios, escolas profissionalizantes e faculdades, Mário Palmério foi deputado ligado a Getúlio Vargas e ao trabalhismo e, em sua atuação parlamentar, se especializou na área da educação, tendo canalizado recursos para sua região, sobretudo para sua cidade, Uberaba. Perspicaz, percebeu cedo que havia um espaço importante a ser ocupado e, para isso, se investiu da figura do herói civilizador, responsável por levar o progresso ao abandonado centro brasileiro. Acompanhar a trajetória de Palmério ajuda a entender a política brasileira na primeira metade do século. Mas é sobretudo um exercício de compreensão de um homem que gostava de se reinventar a cada fase da vida nacional e que, já velho, resolve abandonar seus negócios e parte em busca de um sonho na região amazônica. O verdadeiro Mário Palmério talvez seja o personagem mais interessante criado pelo escritor. O professor André Azevedo de Fonseca, ao dissecar o mito, revela ainda histórias interessantes, como a contenda entre Uberaba e Uberlândia e as lutas pelo separatismo na região.

                      Como foi a atuação parlamentar de Palmério, quais foram suas principais bandeiras?


                      Não estudei profundamente a sua atuação parlamentar, pois me interessei pela sua ascensão nos anos 1940 até a eleição em 1950. De qualquer forma, notei que no início do mandato ele participou da comissão de Educação e atuou como porta-voz do movimento separatista no Congresso. Mário Palmério era um homem partidário, fiel a Getúlio Vargas e propagador do ideal trabalhista. No Triângulo Mineiro, seus principais adversários eram Rondon Pacheco (UDN) e Vasconcelos Costa (PSD). Em Uberaba, seus adversários diretos na campanha de 1950 eram o prefeito Boulanger Pucci (PSP) e o ex-deputado Fidelis Reis (UDN). Naturalmente, no seu empenho por consagração ele sofreu muita oposição, algumas delas bem grosseiras. Desde o início de sua carreira profissional ele foi visto com ressalvas pelos setores conservadores da cidade. Como o seu propósito era criar escolas com preços acessíveis às classes populares, e essas escolas, por economia de recursos, acabaram admitindo turmas mistas, Palmério causou embaraços nas famílias que preferiam a separação de turmas femininas e masculinas. Mais tarde, suas escolas passaram a ser acusadas de oferecer um ensino de qualidade duvidosa e, quando criou a Faculdade de Odontologia, diziam que sua instituição de ensino era meramente tecnicista, ao contrário da faculdade criada pelos padres, que teria um caráter mais humanista. 

                      Por que, em determinado momento, ele foi considerado um inimigo pelos uberlandenses?

                      Essa história é interessante e tem dois elementos principais. Na campanha eleitoral de 1958 começou a circular o slogan de que Mário Palmério era o inimigo público número de Uberlândia. O motivo era simples: nas duas campanhas anteriores (1950 e 1954) Palmério prometera criar faculdades em todo o Triângulo, mas na prática criara apenas em Uberaba. Mas naquela época Uberlândia contava com Rondon Pacheco (UDN) e Vasconcelos Costa (PSD). Nessa época, o Correio de Uberlândia era controlado por udenistas e trabalhou conscientemente para desconstruir a aura de Palmério. Outra questão é relevante: naquele período de mobilização separatista, a cidade de Uberlândia, sob a liderança de Rondon, definiu-se como integracionista. A cidade não participou do congresso de prefeitos que defendia a emancipação e marcou posição pró-Minas. Apesar daquele começo consagrador, a carreira política de Mário Palmério fracassou. Para se ter uma ideia, em 1970, no mesmo ano em que Rondon se tornava governador de Minas, Palmério perdia as eleições para a prefeitura de Uberaba. 

                      Como foi o rompimento de Mário Palmério com o governo militar e como foi a atuação diplomática do escritor no Paraguai do ditador Alfredo Stroessner?
                      Mário Palmério foi exonerado do cargo de embaixador brasileiro no Paraguai poucos dias depois do golpe civil-militar de 1964. Ele preferiu se afastar da política e aproveitou o tempo livre para terminar seu segundo romance: Chapadão do Bugre, que seria publicado em 1965. Apesar de ser filiado ao PTB e ter se entusiasmado pelo trabalhismo de Vargas, Palmério não chegou a ser ameaçado ou perseguido, talvez por causa de suas boas relações com os militares: ele havia estudado na Escola Superior de Guerra em 1955, escreveu uma monografia defendendo a interiorização do desenvolvimento no país e estava em sintonia com o patriotismo do período. A atuação de Palmério na embaixada teve pelo menos um período relevante, pois ele foi encarregado de acalmar os ânimos nacionalistas paraguaios no período das negociações sobre a instalação de uma grande hidrelétrica em Sete Quedas – a futura Itaipu. Os jornais da época registravam que, nesse período, Palmério era o “homem mais atarefado da diplomacia brasileira”. Ele ficou conhecido também por transformar a embaixada em um refúgio de intelectuais e políticos de oposição.

                      Ele chegou a compor guarânias que se tornaram célebres…
                      Suas relações com o governo paraguaio foram cordiais. Ele esteve na missão brasileira designada para acompanhar a posse do general em 1963 e manteve uma relação de amizade duradoura com Stroessner, chegando a oferecer abrigo quando o ex-ditador se exilou no Brasil em 1989. O embaixador Mário Palmério, ou Don Mario, se tornou muito popular no Paraguai por causa das guarânias que viria a compor. Saudade e No digas no são as mais famosas.

                      Independentemente do mito, quais são as principais realizações de MP que ficam para a história?


                      Os dois romances são uma contribuição duradoura para a cultura brasileira. As suas guarânias também serão lembradas. Os resultados de sua atuação política ainda precisam ser estudados. Assim como o seu período amazônico. É difícil mensurar a contribuição de suas escolas para o desenvolvimento do Triângulo Mineiro. Em 1945 o Ginásio já tinha mais de 500 alunos que não teriam oportunidade de estudar nas escolas tradicionais. O Ginásio Triângulo Mineiro era acessível, não exigia uniformes caros e cobrava uma anualidade compatível com a renda das classes trabalhadoras. Além disso, muitos alunos ganhavam bolsa de um pecuarista que decidiu contribuir para capitalizar a escola. O impacto provocado por milhares de jovens escolarizados é difícil de medir. 

                      Quando ele se retira e vai para a Amazônia, disposto a viver num barco, já havia abandonado a política e mesmo a condução de seus negócios na área educacional. Foi mais uma invenção do homem que sempre quis ser um mito?

                      Apesar de não ser o tema do livro, me interessei por isso também; mas depois de ler seus diários pessoais, analisar inúmeras cartas, notícias de jornal, slides, fotografias e documentos pessoais, confesso que essa aventura ainda é um mistério para mim. Tenho algumas hipóteses. Em primeiro lugar, creio que ele queria escrever um grande romance amazônico, mas como já estava mais velho, aposentado, acabou se deliciando com as rotinas inúteis da procrastinação. Seus diários são muito reveladores disso. Mas gosto de arriscar outra hipótese. No livro explico que o jovem Mário Palmério avançou socialmente em uma trajetória meteórica porque, entre outras coisas, aprendeu a lidar com as propriedades mágicas da polidez, do cerimonial, da lisonja e da adulação. Ora, ele foi embaixador, que vive da arte da pompa e circunstância. Pois bem. Quem conviveu pessoalmente com Mário Palmério afirma que ele odiava essas cerimônias de gente de nariz empinado. Ele tinha hábitos simples, preferia conversar com pessoas comuns e não suportava a ostentação e o pedantismo. Talvez – e isso é apenas uma hipótese pessoal – o refúgio na Amazônia tenha ocorrido quando ele perdeu toda a paciência com toda aquela encenação. Talvez tenha sido uma resposta radical contra aquela sociedade das aparências. E devemos notar que esse exílio foi concebido, não por acaso, em um período em que ele já não mais conseguia se impor com antes, porque os símbolos de prestígio que ele dominava não eram mais valorizados. Por isso, é plausível a hipótese de que ele queria se reinventar. Seu brilho político já tinha se extinguido no decorrer dos anos 1960. Na verdade, o mito que ele encenara já havia entrado em um processo irreversível de decadência. Mário Palmério recriou a sua imagem com essa fase na Amazônia e, de fato, fundou uma nova mitologia para a sua figura. E parte disso foi consciente. 

                      De que maneira a trajetória de Mário Palmério é exemplar na vida pública brasileira? Que outros políticos e empresários se fizeram a partir de uma estratégia semelhante?


                      O estudo sobre a ascensão de Mário Palmério deixa claro que, para alcançar sucesso eleitoral, um político precisa desenvolver uma sintonia profunda com a sua sociedade. Ninguém vence ou fracassa apenas pelas qualidades individuais. Há uma trama de circunstâncias sociais que levam um candidato à vitória. No caso de Palmério, tudo conjurou para o seu sucesso: ele construiu uma carreira bem-sucedida em um setor altamente valorizado pela própria sociedade; ele atuou conscientemente, por vários anos, para registrar no imaginário de seus contemporâneos uma narrativa biográfica exemplar, repleta de lutas e sacrifícios – experiências valorizadas em nossa cultura; e soube ler e interpretar as quatro crises – social, econômica, política e identitária – que angustiavam a sua sociedade. Por fim, ele vinculou-se a um projeto nacional muito popular; elaborou um discurso convincente para responder àquelas crises e, graças ao capital social que tinha acumulado, tornou-se um símbolo legítimo das aspirações regionais. Ou seja, surgindo do epicentro da crise, com sua palavra e sua encenação social, Mário Palmério teve a virtú e a fortuna de verbalizar os desejos de seu povo na exata melodia que as pessoas queriam ouvir. Por meio de sua atuação, a sociedade se viu representada. A relação com os eleitores não era apenas política, mas sobretudo cultural. Ele expressou o que as pessoas já acreditavam, mas que ainda não haviam verbalizado. A sintonia foi legítima. Não estudei outros personagens com profundidade, mas este período da experiência democrática brasileira no pós-guerra é repleto de casos semelhantes. Naturalmente, o maior deles é o próprio Getúlio Vargas. O historiador Jorge Ferreira tem alguns excelentes trabalhos sobre vários aspectos da mítica do getulismo. De certa forma, em termos regionais, o jovem Mário Palmério foi um subproduto dessa mitologia.