Moradores de Bagdá relembram guerra que faz 10 anos hoje
Sobreviventes de ataques dos EUA e de massacre atribuído a Saddam Hussein relatam à Folha como é sua vida hoje
Em dez anos de invasão, morreram até 120 mil civis iraquianos, e os EUA gastaram um PIB brasileiro no conflito
SÉRGIO DÁVILAENVIADO ESPECIAL A BAGDÁHá dez anos, num fim de tarde de março de 2003, o bairro de Al Shola, um reduto xiita pobre na periferia de Bagdá, ouviu um barulho como nunca antes, seguido de gritos, choros, latidos e alarmes de (poucos) carros.
Um artefato explosivo atingira o mercado central do bairro, no que foi o maior massacre civil do início da Guerra do Iraque, que hoje completa dez anos. Ao menos 58 pessoas morreram e 49 ficaram feridas. Restos humanos se espalharam pelas calçadas do comércio, formando caminhos de sangue seguidos pelos olhares de curiosos, adultos e crianças.
Um deles era Fuad Ramadan, então com 25 anos. Já com os cabelos ralos, ele aparece no canto de foto feita pela
Folha na ocasião. Após uma busca de alguns dias que envolveu um tenente da polícia bagdali e dezenas de moradores, o comerciante foi localizado pelo jornal ontem.
Mais calvo, hoje vende bolinhos de falafel não muito longe de onde houve a explosão. Casado, tem um filho nascido três anos depois do massacre e se lembra bem do dia.
"Eu vendia kebabs quando ouvi o barulho", diz. "Corri ao local e fiquei aliviado ao saber que nenhum parente e amigo tinha morrido", continua, "mas revoltado ao ouvir que o artefato era de fabricação iraquiana". A tese, defendida pelos locais, é que se tratava de artilharia antiaérea de Saddam Hussein desviada por erro ou má-fé -o ditador, da minoria sunita, perseguia xiitas como Ramadan.
O vendedor acha a vida melhor hoje. Seu bairro não melhorou muito. O esgoto continua a céu aberto, as moscas abundam, há inundação nas chuvas. Mas as lojas vendem eletrônicos de última geração e celulares, num cenário não muito diferente das favelas paulistanas.
Em dez anos, de 110 mil a 120 mil civis iraquianos morreram, segundo o grupo Iraq Body Count. Cerca de US$ 2,2 trilhões foram gastos pelos EUA no conflito, de acordo com a Brown University -equivalente à riqueza produzida pelo Brasil em 2012.
Levantamento Gallup divulgado ontem conclui que 53% dos americanos acham que ir à guerra foi um erro. Não há pesquisas confiáveis entre os iraquianos, mas o sentimento geral parece ser de duplo alívio -com a queda, prisão e execução de Saddam e com a retirada dos americanos, no fim de 2011.
Outros personagens de 2003 aproveitam a data para um balanço. É o caso de Hazam Salah, hoje com 46 anos, que cuidava de um estacionamento ao lado do Ministério das Telecomunicações quando um míssil americano atingiu a rua sem ser detonado, deixando uma cratera.
O buraco foi coberto, mas as marcas estão lá. "Como não sou político nem religioso, Saddam me deixava em paz, mas as coisas de fato melhoraram", diz Salah, hoje dono de um estacionamento.
Menos feliz é a família Abdalla. Os irmãos, suas mulheres e seus filhos e netos moram desde o século 19 na mesma vizinhança. Que nos anos 70 recebeu o escritório central do correio iraquiano, seguido nos anos 90 por uma antena de telefonia, atingida em 2003 por um míssil.
Ao ver a foto da
Folha feita então, os Abdalla revelam que suas casas já foram destruídas três vezes: na Guerra do Golfo de 1991, na Operação Raposa do Deserto, em 1998, quando o governo de Bill Clinton atingiu alvos iraquianos, e na guerra de 2003.
Eles se dividem hoje entre duas salas improvisadas ao ar livre -Bagdá não vê chuva 330 dias por ano-e um contêiner dado pelos americanos antes de sua saída.
"Que culpa temos de morar aqui?", pergunta Mansur Abdalla, 39, que com a morte dos pais há dois dias virou o patriarca. "Quem vai nos ressarcir?"
FRASES
"Ganho dez vezes mais -US$ 250 por mês- e posso falar o que penso"
FUAD RAMADAN
comerciante, comparando sua vida em 2003 e hoje, depois da guerra; ele foi fotografado pela Folha dez anos atrás
"Como não sou político nem religioso, Saddam me deixava em paz, mas as coisas de fato melhoraram"
HAZAM SALAH
dono de estacionamento em Bagdá, sobre mudança no dia a dia da cidade
"Que culpa temos de morar aqui? Quem vai nos ressarcir?"
MANSUR ABDALLA
patriarca de família cujas casas foram atingidas três vezes desde 1991 e hoje mora em contêiner e sala improvisada
Iraque é viável, diz embaixador brasileiro
DO ENVIADO A BAGDÁHá pouco mais de um ano e pela primeira vez em duas décadas, o Brasil conta com embaixada própria em Bagdá, depois de um período de representação à distância, na vizinha Jordânia.
Seu titular, Ánuar Nahes, 60, tomou posse em março de 2012, num dos postos mais perigosos da diplomacia mundial e mais bem pagos da brasileira. Leia trechos da entrevista que ele concedeu por e-mail à
Folha.
(SD)
Folha - Em que as relações Brasil-Iraque mudaram entre 2003 e 2013?Ánuar Nahes - Na esteira da invasão do Kuait em 1991 por tropas do regime de Saddam Hussein, o Brasil desativou sua embaixada em Bagdá e a transferiu para Amã, inicialmente como seção da Embaixada na Jordânia.
Mas, tão logo instaurado pela ONU o regime de Petróleo por Alimentos, o Brasil retomou contatos comerciais. À medida que o Iraque pós-2003 começou a se reestruturar, eles foram aumentando.
Com a retirada das tropas americanas, em 2011, o governo brasileiro considerou ser o momento de reabrir sua embaixada. Eu já estava em Amã desde dezembro de 2011 e cuidei da transferência. Nunca interrompemos as relações: só as adequamos às circunstâncias da história.
O Iraque já foi um dos principais parceiros comerciais do Brasil, nos anos 80. Como aumentar e tornar mais variada a pauta comercial entre os dois?O Iraque é um país rico, precisa se reconstruir, luta para se reerguer internamente e se reposicionar internacionalmente. Atualmente, não focamos as relações apenas no setor comercial. Há cooperação cultural, educacional, coordenação política.
É só dar tempo ao tempo, aproveitar as oportunidades e seguramente o relacionamento bilateral se intensificará.
O Iraque é viável como país? A violência sectária não pode inviabilizar o projeto de união?Sim, é viável. Sempre existem os interessados em fazer o jogo étnico ou sectário para atender a seus projetos de poder. Se o Iraque mantiver o regime democrático e fizer eleições regularmente nos próximos 10 a 20 anos, terá vencido a batalha. No Brasil foi assim. Democracia se constrói com paciência e pertinácia.
Dez anos depois, os ônibus de dois andares estão de volta a Bagdá. Sumidos desde a queda de Saddam Hussein, em 2003, os típicos veículos vermelhos londrinos circulam pela cidade para alegria dos bagdalis -são os únicos com ar-condicionado. Londrinos, pero no mucho: da marca Elba, são fabricados na Jordânia. E têm o motor desligado caso o motorista resolva se desviar da rota preestabelecida.
Apesar disso, são raros os ônibus em Bagdá (risco de terrorismo + calor de 50ºC no verão + descaso do governo). Mais raros ainda são os motoqueiros -e inexistentes os motoboys.
Há dez anos, o Iraque era isolado da comunidade financeira internacional pelo bloqueio das Nações Unidas.
Assim, para o estrangeiro no país receber dinheiro, tinha de encontrar um iraquiano confiável com conta na Jordânia, que dava o equivalente em dinares locais aos dólares que fossem depositados para ele lá fora, menos uma comissão.
Hoje, saques em caixas eletrônicos (a maioria deles ainda em hotéis) são operação corriqueira.
O dinar também se valorizou. Não era incomum ver pessoas com quilos de notas com o rosto de Saddam Hussein em barracas na rua -ninguém roubava, ninguém ligava, a cotação era 3 milhões de dinares para US$ 1.
Atualmente, mil dinares novos compram o mesmo tanto de dólares.
Dependendo da divisão do islamismo a que pertence e do povoado ou da tribo de que vêm, os homens árabes podem se cumprimentar com três beijos, como os cariocas. No Iraque, a juventude economiza tempo dando os três na mesma bochecha.