sábado, 26 de abril de 2014

João Paulo - Cenas da derrocada da vida pública‏

Cenas da derrocada da vida pública

João Paulo
Estado de Minas: 26/04/2014


Praça Tiradentes, em Ouro Preto: não nos convidaram para essa festa (Marcos Michelin/EM/D.A Press)
Praça Tiradentes, em Ouro Preto: não nos convidaram para essa festa

Há a grande política e a política das pequenas coisas. E há, na mesma dimensão, a falência dos dois universos. Se a tradição da vida pública nos legou instâncias maiores de representação, com destaque para os partidos e sindicatos, a vida cotidiana alargou esse campo, muitas vezes como única forma de resistência em períodos em que o horizonte de liberdade se cerrou.

Hoje, em momento de democracia formal garantida, no entanto, continuam vigentes os expedientes que a todo momento inviabilizam o exercício pleno da liberdade política, tanto nos grandes cenários como na vida ao rés do chão. Convivemos com a repressão como se fosse normal, apenas pelo fato de existirem garantias formais de liberdade, ainda que não exercidas. Os exemplos são muitos.

A começar pela comemoração do 21 de abril em Ouro Preto, no começo da semana. Dando sequência a um período de proibição de participação popular, a Praça Tiradentes da cidade colonial foi fechada, inclusive aos moradores, para permitir que a solenidade oficial ocorresse sem problemas. Por problemas, entenda-se: gente. A nossa democracia detesta gente.

A democracia, todos sabem, não é algo natural. Construção histórica, ela é feita de um equilíbrio em permanente transformação entre consenso e conflito. Sem consenso, dado pelo eixo republicano, não há continuidade e império da lei; sem conflito, não se aprimoram as instituições nem se alarga o campo dos direitos. Pode parecer deselegante, mas sem protesto e grito, a democracia perde substância. Fica mofina.

Ouro Preto, que respondia pela capital do estado durante o evento em que dezenas de pessoas ganharam medalhas (nada mais infantil que destacar no cenário republicano pessoas que mereçam mais atenção que outras, pelo simples fato de exercerem suas funções na sociedade), foi exemplo da anulação do caráter democrático das ruas. Foi a capital do desrespeito estatal.

Com o povo de fora, a festa perdeu dimensão pública: foi um evento privado, ainda que a data e os atores fossem públicos, ambientado num espaço público, ainda que seu dono fosse impedido de participar. No limite, ao dar dimensão de segregação do público, o Estado extrapolou de seu papel de ordenador do espaço de todos para assumir o de invasor em nome de poucos. Foi um ato de força, uma intervenção na vida da cidade.

Mas o pior foi sentir como a sociedade estava escandida. No palanque, um dos oradores, o pré-candidato do PSDB, Aécio Neves, teve liberdade para criticar a presidente Dilma Rousseff. Nada mais justo e democrático. No entanto, aqueles que queriam protestar contra a ação de outras esferas de governo, ou até mesmo do próprio governo federal, não puderam fazê-lo com a mesma liberdade. Não havia faixas de professores, operários, estudantes, mulheres, movimentos contra a Copa etc. No limite, o 21 de abril de Ouro Preto não foi um ato cívico e plural, de franca liberdade da palavra, mas um comício.

Não é possível defender o esquema de segurança utilizado por qualquer tipo de argumentação, nem técnica, nem política. Ao impedir as pessoas de se aproximar de uma atividade pública, essa mesma atividade deixou de sê-lo para se configurar uma ação privativa e de interesse localizado. Para isso há espaços privados (ou mesmo públicos de acesso limitado, como palácios dos quais a cidade é servida).

Impedir o povo de circular numa cerimônia republicana é um contrassenso e um equívoco que pode redundar na pior das consequências: sua inutilidade e desprezo por parte dos cidadãos. Quando o povo não quiser mais protestar francamente nas praças, aí sim a democracia começa a correr riscos.

Se o cenário macropolítico foi conspurcado em Vila Rica, o mesmo pode ser percebido nos espaços intersticiais da política do dia a dia. Hoje, a ágora pública, por exemplo, é um centro de compras. De tal forma os shoppings se tornaram locais de convivência que passaram até mesmo a dividir seus espaços internos com nomes de ruas e alamedas, e a vender seus sanduíches gordurosos e outras porcarias em praças de alimentação.

Fosse mau gosto, já seria muito, mas há o indisfarçável travo da segregação: o shopping não é para todos. Apenas os sonhos que ele vende são universais, o acesso é selecionado por classe, cor e roupa, entre outras variáveis discriminatórias. As crianças perdem, com isso, o exercício da convivência entre diferentes e, em contrapartida, ganham o repertório do preconceito.

A praça não é do povo, na política. O shopping não é de todos, na vida cotidiana. A violência está em todos os lugares. A saída para a falta de democracia é mais democracia.

ENTREVISTA/LUIZ BRAS » Quando menos é mais‏ - Carlos Herculano Lopes

ENTREVISTA/LUIZ BRAS » Quando menos é mais

Depois de romances e coletâneas de histórias, escritor se arrisca no difícil gênero do miniconto
Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 26/04/2014


"Escrever essas histórias perversas foi a minha vingança contra as autoridades demoníacas que infestam as instituições públicas"

 (Tereza Yamashita/Divulgação)


Ele já foi o escritor Nelson de Oliveira. Mas, de uns anos para cá, de comum acordo com o personagem, resolveu conceder a ele uma tranquila aposentadoria, sem maiores traumas, para transformar-se em Luiz Bras – um ficcionista nascido em Cobra Norato, no Mato Grosso do Sul, e que estudou letras na USP. Como se não bastasse, o irrequieto Nelson de Oliveira, que na realidade é de Guaíra, no interior de São Paulo, mas mora há muito tempo na capital, agora é também Valério de Oliveira, junto ao qual tem cometido ótimas poesias. Seu novo livro, Pequena coleção de grandes horrores, é de autoria pura e exclusiva de Luiz Bras.

 Metamorfoses à parte, o que, aliás, não é uma coisa tão inusitada na literatura, certo é que Luiz Bras (antes já havia lançado o romance Sozinho no paraíso e o volume de contos Paraíso líquido), volta-se agora para o miniconto, gênero difícil, no qual se sai muito bem. É provável que tenha aprendido a escrever com Nelson de Oliveira.

 Nas dezenas de histórias dessa nova coletânea, que nunca ultrapassam a uma página e meia (algumas têm poucas linhas), Luiz Bras escreve sobre temas variados, mas sempre voltado para a irreverência e loucura dos tempos modernos, nos quais as pessoas, definitivamente, parecem não se entender. Conflitos internos, solidão, corrupção e desmandos políticos, tudo está presente no livro. Em alguns textos, Luiz Bras, com ousadia calculada, se apropria de textos de autores famosos, como Kafka, Guimarães Rosa e Cervantes, e dá a eles seu toque pessoal, tudo com boa dose de humor e ironia. E quanto a Nelson de Oliveira, como ele tem convivido com Luiz Bras e Valério de Oliveira? “Somos uma pequena família feliz”, afirma.

Depois de bom tempo navegando nas águas do romance, você volta ao conto e lança Pequena coleção de grandes horrores. Por que a opção pelas histórias curtas?

Na verdade, não costumo ser fiel a um só gênero literário. Aprecio todos, especialmente o conto, o romance e o poema. Enquanto escrevia o romance Sozinho no deserto extremo, lançado há dois anos, escrevi muitos dos minicontos reunidos nesse novo livro. Também escrevi uns poucos poemas, para o próximo livro de meu alter ego Valério Oliveira. A escritura de um romance, por ser uma atividade de longo prazo, sempre deixa espaços para o exercícios das formas mais breves.

Nas suas histórias, os conflitos humanos surgem a cada momento, de forma crua, tansparente, sem muita piedade. Essa loucura toda é inerente ao ser humano?

Os 60 minicontos da Pequena coleção de grandes horrores são narrativas cruéis, de humor negro. Neles, a maioria dos vícios humanos é exposta e ridicularizada. Essa foi a maneira que encontrei de refletir literariamente sobre o mundo em que vivemos. Gosto demais, por exemplo, dos minicontos que tratam da corrupção na política brasileira. Escrever essas histórias perversas foi a minha vingança contra as autoridades demoníacas que infestam as instituições públicas.

Então a matéria-prima estava toda aí, ao redor? Como as histórias foram surgindo?

De muitas maneiras. Principalmente incitado pelo desejo de jogar com a linguagem literária. Muitos dos minicontos subvertem as regras gramaticais, convidando o leitor a fugir da rotina. Fazem uso do monólogo interior, da anáfora, da quebra sintática. Outros homenageiam livros e autores que eu admiro. Há uma pequena série que se apropria do início de narrativas famosas, como Dom Quixote,  A metamorfose, Macunaíma, Lolita, Grande sertão: veredas e outras. Tudo com uma boa dose de ironia e humor.

Muitos andam apregoando que o conto anda em baixa, não vende. O que você está achando disso, já que resolveu investir?

Comercialmente, o romance tem se saído melhor. Hoje, as grandes editoras preferem publicar romances, até mesmo de baixa qualidade, porque sabem que o retorno financeiro será maior. Mas isso não significa que o conto, a crônica e o poema não estejam vivendo uma grande fase no Brasil. Critérios comerciais e estéticos raramente andam de mãos dadas. Num país em que há contistas do nível de Dalton Trevisan, um Rubem Fonseca, um Luiz Vilela e tantos outros, o conto jamais estará em baixa.

Há mais de 20 anos você organizou a antologia Geração 90: os transgressores, que na época deu o que falar. De lá para cá, como você tem visto a movimentação literária da nova geração? Muita gente escrevendo?

Muita gente. Dentro e fora do mainstream. Nos últimos meses, tive a sorte de esbarrar em quatro livros bastante inspirados, mas pouco comentados, de autores estreantes: Carne falsa, coletânea de contos da catarinense Patrícia Galelli; o romance Desabandono, do carioca Ricardo Josuá, e Remédio forte, coletânea de contos do baiano Gláuber Soares. Na poesia, não posso deixar de recomendar o livro de estreia da goiana Mariana Teixeira, Inversos paralelos, excelente.

Depois que Nelson de Oliveira se foi, como tem sido sua convivência com Luiz Bras e agora também com Valério Oliveira?

A convivência tem sido pacífica, sem atritos. Desde que Nelson de Oliveira aposentou-se da literatura e saiu do país, tudo ficou mais fácil. As disputas estéticas cessaram. Agora, eu divido o tempo com o poeta Valério Oliveira e o ilustrador Teodoro Adorno, que são alter egos menos competitivos. Somos uma pequena família feliz.


Nas ruínas do laboratório subterrâneo


“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso – Estava deitado sobre as costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha – As inúmeras pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos – Sonhos intranquilos, costas duras como couraça, inúmeras pernas, que importância tem tudo isso? – Nenhuma, querido – Que é a vida? – Um frenesi – Que é a vida? – Uma ilusão, uma sombra, uma ficção – O maior bem é tristonho, porque toda a vida é sonho, e os sonhos, sonhos são – Quando certa manhã você acordou metamorfeseado num inseto monstruoso, amorzinho, você demorou para lembrar & aceitar que jamais havia sido outra coisa – Deixe de bobagem, luz de minha existência – Nas ruínas do laboratório subterrâneo nunca existiu criatura que não fosse um inseto monstruoso – A medicina genérica e a engenharia genética universalizaram a metamorfose – Verdade & ilusão, conhecimento & ignorância agora são a mesma vertigem – Está ouvindo o imenso silêncio do universo? – Pare de estrebuchar, abra outra garrafa de vinho e aprecie o calor do infinito mistério – A vida é incêndio, docinho, e os incêndio, incêndios são.”

. Minoconto de Luiz Bras



Pequena coleção de grandes horrores

De Luiz Bras
Editora Circuito, 144 páginas, R$ 35

Guardião do tempo

Guardião do tempo
 
Livro resgata a memória da cidade e das gentes de Santa Maria de Itabira. Autora se revela contadora de histórias e pesquisadora atenta aos detalhes


Ângela Faria
Estado de Minas: 26/04/2014


Desta vez, Joana d’Arc apagou a fogueira. Nossa “heroína”, no caso, não nasceu na França nem se meteu em guerra, mas salvou do fogo um pequeno capítulo da história dos mineiros. Ao impedir que o sogro, Otávio, queimasse a velha papelada do pai, a professora e escritora Joana d’Arc Torres de Assis resgatou precioso acervo, caro não só à gente de Santa Maria de Itabira, município da Região Central do estado. Afinal de contas, o dono dos guardados, Francisco de Assis Gonçalves (1847-1926), o Sô Cotta, foi guardião de um pedaço dos séculos 19 e 20 que agora nos chega. Cuidadosamente, esse fazendeiro, comerciante, político e rábula (advogado sem diploma, de muita serventia aos conterrâneos) juntou 12,4 mil manuscritos e impressos com registros da economia, dos costumes e da cultura de seu arraial.

O gosto de contar histórias fez com que Joana d’Arc tirasse a papelada da gaveta – ou melhor, das 19 caixas que a abrigam. A montanha de documentos, bem socadinha, alcança impressionantes três metros de altura. Ali estão cartas pessoais, notas sobre a vida social do clã de Sô Cotta, circulares com pedidos de votos, petições, espólios e inventários, além de correspondência comercial e relativa a impostos, empréstimo de dinheiro. Francisco de Assis Gonçalves – um primor de arquivista, que envolvia rolos de documentos com fitas de algodão – não mantinha apenas os documentos de suas firmas Pio Gonçalves & Irmão e A Primavera. Protegia cuidadosamente flores e folhas enviadas por suas crianças, guardava o papelório dos antepassados.

No livro Santa Maria de Itabira: na lavra do tempo, editado pela Fundação Francisco de Assis, Joana d’Arc não revela apenas a história de sua terra, que se tornou município nos anos 1940, mas já no século 18 via passar gente em busca de ouro e riqueza. Ali está um pouco das Minas Gerais que não se limitavam a Ouro Preto, Mariana, São João del-Rei, Sabará e Pitangui – joias da coroa de nossas pesquisas históricas. Sobretudo, conhece-se um pouco do dia a dia da Minas provincial.

Aquele arraial não era um ponto fora da curva, como se diz. Pelo contrário: a papelada de Sô Cotta registra a labuta do povoado (vizinho de Itabira) para plantar algodão e café; testemunha a saga dos tropeiros; informa sobre a luta para fazer sal, tecidos, louças e artigos finos chegarem à Minas profunda; explica também como se fazia para transportar café, gado e produtos da região até o Rio de Janeiro. Autora de vários títulos – boa parte deles remete a seu rincão –, Joana Torres não é historiadora e nem escreveu propriamente um livro de história. Ancorada em farta documentação, ela tece o que chama de “miúda contação”, garimpando pepitas entre as memórias de sua gente.

Se o boom do ouro foi breve no estado, limitando-se a poucos anos do século 18, esse livro, por meio das anotações e documentos de Sô Cotta, mostra que o pequeno povoado sempre tratou de cuidar de seu “mercado interno”. Seja plantando algodão ou café, procurando pedras preciosas (vem de lá a famosa água-marinha Santa Maria), cuidando de bois e porcos. Interessante notar a força do comércio, que, de acordo com a autora, está no DNA dos santa-marienses. Sô Cotta e A Primavera não negociavam apenas com Itabira ou Sabará, mas com firmas de Juiz de Fora, Carangola, Sete Lagoas, Ponte Nova, Ouro Preto, Mariana, Conceição do Mato Dentro e, claro, Rio de Janeiro. No século 19, havia 18 empresas no pequeno povoado vendendo pano, armarinho, louça, chapéu, ferragens, calçados, ferro de passar – várias delas ofereciam também pasto para a tropa ou acomodações para os chamados cometas, caixeiros-viajantes.

Vista da antiga Santa Maria de Itabira, em imagem recuperada no Arquivo Público Mineiro     (Fotos: Raimundo A. Pinto/Reprodução)
Vista da antiga Santa Maria de Itabira, em imagem recuperada no Arquivo Público Mineiro



Famílias


Se boa parte do livro é centrada nos filhos da terra e no “cipoal” de famílias que lá se radicaram e se entrelaçaram – entre Drummonds, Lages, Alvarengas, Guerras, Bretas, Andrades, Sampaios, Rosas, etc –, várias passagens decerto atrairão os leitores “forasteiros”. Joana d’Arc busca valorizar o patrimônio oral de sua gente. Por meio de causos, ficamos sabendo do impacto das guerras mundiais na pequena cidade, do apreço do povo pela educação – Santa Maria de Itabira, aliás, é a terra da professora Beatriz Alvarenga, que ensinou física a gerações de mineiros. Diferentemente de cidades que pouca atenção davam à mulher, ali elas aprendiam a ler e escrever. Em 1828, uma escola já funcionava por lá. Quando Sô Cotta abriu a sua, pertinho da loja, havia apenas dois garotos no meio das meninas.

Os escravos também fizeram a história de Santa Maria de Itabira. Joana informa que desde os anos 1700 eles marcam presença na região, onde fica a comunidade quilombola de Barro Preto. Abrigava-se ali o único grupo de negros com autonomia para armazenar e vender a colheita de sua roça, fato raro na época. “Tobias, Joaquim Evaristo, Gustavo, Ana Domingas e Mariano: chegaram até nós bem poucos nomes”, anota a autora. “Subsistir em unidade, como o Barro Preto alcançou fazer em dois séculos, requer tutano e músculo”, resume ela.

Com 14 capítulos, 624 páginas e belo projeto gráfico de Marcelo Drummond e Marconi Drummond que reproduz documentos de época, Na lavra do tempo... é um “quase romance histórico” conduzido pelos papéis de Sô Cotta, que decerto interessarão a pesquisadores, historiadores e economistas. O projeto, com detalhada descrição do acervo, bem poderia inspirar gente de outras cidades a reviver sua própria saga.

O mutirão histórico-afetivo mobilizou o Grupo São Francisco, da família Bretas, patrocinador da obra por meio da Fundação Francisco de Assis, e vários conterrâneos da autora, que puxaram pela memória para construir essa trama. A lista de parceiros é imensa. Entre eles estão a professora Beatriz Alvarenga e o crítico de arte Márcio Sampaio (autor do prefácio), além de instituições como os museus de Artes e Ofícios, Mineiro, de Arte da Pampulha, Abílio Barreto e de História Natural, além do Arquivo Público Mineiro e o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha).

Outro ilustre colaborador de Joana era aparentado de Sô Cotta, filho de um primo dele chamado Carlos de Paula Andrade. Por 10 anos, a autora correspondeu-se com Carlos Drummond de Andrade, itabirano interessadíssimo nos papéis de Francisco Assis Gonçalves – batizado de Acervo FAG. Ela deu ao poeta de presente três cartas escritas pelo pai, além de um tesouro – caro à poesia brasileira: o comprovante de compra de três compoteiras de cristal, adquiridas por Carlos de Paula Andrade na loja A Primavera.

Quando era pequeno, Drummond ficava hipnotizado por aquelas finas peças – e não por causa do sagrado pecado da gula. É que o trio, ao acolher os raios solares, fazia a sala explodir em cores. Mais tarde, ele escreveu: “Quero três compoteiras (...) Não é para pôr doce/ em nenhuma das três./ É para pôr o sol”.


SANTA MARIA DE ITABIRA: NA LAVRA DO TEMPO

De Joana d’Arc Torres de Assis
Fundação Francisco de Assis, 624 páginas

TeVê

TV paga

Estado de Minas: 26/04/2014

 (Warner/Divulgação )

Adrenalina pura


Uma noite com muita ação. É o que o assinante vai ter neste sábado, com as duas principais estreias dos canais de filmes. Na HBO, às 22h, Sean Penn, Ryan Gosling, Josh Brolin e Emma Stone estrelam Caça aos gângsteres (foto), uma trama policial ambientada na Los Angeles da década de 1949. No mesmo horário, o Telecine Premium exibe Homem de Ferro 3, com Robert Downey Jr., Gwyneth Paltrow, Guy Pearce e Don Cheadle. Fica ao gosto do freguês.

Uma seleção feita pata
aterrorizar o assinante


Sábado é dia também das sessões especiais, como o Apocalipse zumbi do Megapix, que emenda os filmes Quarentena (18h30), Quarentena 2 (20h15), Madrugada dos mortos (22h) e Resident evil 3: a extinção (0h). No Universal, algo parecido, com Resident evil 4: recomeço (20h), O lobisomem (21h45) e Um drink no inferno (23h35). No Telecine Action, mais duas fita de terror: Pânico na floresta 4 (20h10) e Pânico na floresta 5 (22h).

Cinema nacional ganha
espaço na programação


Três produções brasileiras merecem a atenção do assinante esta noite: Salve geral, às 21h, no AXN; Como fazer um filme de amor, no Canal Brasil; e Luzia Homem, no Futura, ambas às 22h. Na mesma faixa das 22h, mais oito alternativas: À procura da felicidade, no A&E; O otário, no Comedy Central; J. Edgar, na HBO 2; Berberian Sound Studio, no Max; Sherlock Holmes – O jogo de sombras, no Max HD; O vingador do futuro, no Max Prime; Sem vestígios, na MGM; e Muito barulho por nada, no Telecine Cult. E ainda A mentira, às 21h30 no Sony; e Miami Vice, às 22h30, no FX.

Canal History reprisa
a minissérie Barrabás


O canal History reapresenta hoje a minissérie Barrabás, com os dois episódios em sequência, a partir das 21h. Na MTV, a partir das 11h, serão exibidos episódios em sequência de The vampire diaries. Na Fox Life, uma maratona culinária, com quatro edições do Programa da Palmirinha, a partir das 22h30.

Mesmo ultrapassada,
a Kombi ainda tem fãs


No segmento dos documentários, o canal +Globosat exibe, às 23h, Eu sou uma Kombi, com histórias curiosas em torno deste ícone da indústria automobilística, reunidas pela cineasta Claudia Marchal. Na Cultura, às 23h30, a atração é Um lugar ao sol, em que Gabriel Mascaro mostra o universo dos moradores de coberturas de prédio das cidades do Recife, Rio de Janeiro e São Paulo.

Pacotão sonoro vai do
rap à música erudita


Por falar em Cultura, a música é outro forte da emissora, começando com o rapper Amiri no programa Manos e minas, às 17h. Às 18h, tem o Cultura livre, que hoje recebe a banda carioca Baleia. E às 21h30, na série Clássicos, será apresentada uma montagem da ópera A flauta mágica, de Mozart, pela Metropolitan Opera House de Nova York. No Multishow, às 18h30, o programa Bastidores invade os ensaios do show do DVD de 20 anos da cantora Ivete Sangalo, em Salvador. No Film & Arts, às 21h, tem o encontro do pianista clássico Lang Lang com o jazzista Herbie Hancock no Schleswig-Holstein Festival Orchestra, em Berlim. E no Canal Bis, às 21h30, vai ao ar o último especial da série que lembrou os 20 anos da morte de Kurt Cobain, vocalista da banda Nirvana.


Ecletismo e inspiração
Simone Castro

Fernanda Takai fala da carreira e o novo CD no Metrópolis, na Cultura, e em entrevista no GNT (TV Cultura/Divulgação)
Fernanda Takai fala da carreira e o novo CD no Metrópolis, na Cultura, e em entrevista no GNT
Cantora, compositora e cronista, Fernanda Takai marca presença amanhã no Metrópolis, às 20h, na TV Cultura. Entre outros assuntos, ela fala sobre seu mais recente álbum solo, Na medida do impossível, e surpreende com esse novo CD pelo ecletismo de gêneros e de convidados. Fernanda canta músicas de Benito Di Paula e Reginaldo Rossi e versões em português de sucessos de George Michael e Julieta Venegas e ainda abraça a música católica, sem receios, ao fazer dueto com o padre Fábio de Melo em Amar como Jesus amou. Entre seus parceiros estão Pitty, Marcelo Bonfá, Marina Lima, Zélia Duncan e Samuel Rosa. Se Na medida do impossível marca o reencontro de Fernanda com a composição, já que é dela a maioria das canções, sua maior inspiração foi a filha Nina, de 10 anos, que um dia pediu para ouvir da mãe uma música que viesse da “sua cabeça”. Vocalista do Pato Fu há 22 anos, Fernanda coleciona vários prêmios, incluindo um Grammy Latino, e apresentações na Inglaterra, Japão e Estados Unidos. Também é cronista e tem três livros publicados. E mais: às 22h, no GNT (TV paga), Fernanda Takai é a convidada do Marília Gabriela entrevista.

HOMENAGEM DEIXA
THALES EMOCIONADO


No Programa Raul Gil, hoje, no SBT/Alterosa, o cantor gospel Thalles será homenageando pelos amigos, que prometem revelar histórias emocionantes. Entre eles os músicos dos grupos Pixote e Jota Quest, Damares, Naldo, Regis Danese, Ana Paula Valadão e Ivete Sangalo. Ao final, Thalles canta Dias de sucesso e Cheios do espírito santo. No quadro “Elas querem saber”, o convidado é o cantor Leo Santana, que responde às perguntas afiadas de Thammy Miranda, Val Marchiori, Dani Bolina e Penélope Nova.

REPÓRTER ECO ANALISA
AQUECIMENTO GLOBAL


Os impactos causados pelo aquecimento global sobre a vida das pessoas é tema de amanhã do programa Repórter eco, às 17h30, na Cultura (TV paga). O entrevistado será o meteorologista José Marengo, especialista do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O programa traz ainda uma matéria com dicas práticas de como economizar água em casa, inclusive descobrindo se há vazamentos, considerados os vilões do desperdício, e assim baixar o valor da conta nesta época de preocupação com o abastecimento.

FEIRA DE EROTISMO É
ATRAÇÃO DO PENETRA


Erotika Fair, maior feira de erotismo da América Latina, realizada em São Paulo, é atração do programa Penetra de hoje, às 20h, no Sexy Hot (TV paga). Entre os convidados do bate-papo, Mariana Blac, uma ex-testadora de brinquedinhos eróticos, que revela os gadgets que recomenda, como vibradores produzidos exclusivamente para colecionadores em versão limitada. Outra atração é uma conversa para lá de caliente com Kid Bengala, considerado uma lenda dos filmes adultos, e a apresentadora Bianca Jahara recebeu até cantada: “Eu tenho um tesão enorme por você”, disse o ator. E ainda tem a especialista em comportamento sexual Nathalia Ziemkiewicz, tirando as dúvidas mais frequentes que recebe em seu blog Pimentaria.

JEAN PAULO CAMPOS
RENOVOU COM O SBT


O ator mirim Jean Paulo Campos, o Cirilo da novela Carrossel, personagem com o qual se tornou conhecido em todo o Brasil, renovou contrato com o SBT, segundo nota divulgada ontem pela assessoria de imprensa da emissora. Atualmente o ator está no ar na segunda temporada da série Patrulha salvadora, no papel de garoto com o superpoder do “coração puro”. Jean Paulo Campos já está gravando a terceira temporada. Há alguns dias especulou-se que o ator mirim trocaria de emissora. Ele já recebeu várias homenagens e prêmios por seu trabalho. No ano passado, foi eleito revelação de 2012 no Troféu Imprensa. O ator também venceu o Prêmio Contigo! 2013, o Troféu Raça Negra 2012, Prêmio Uol Pop Tevê 2012 e foi finalista do Prêmio Extra 2012, entre outros.

ESTRELA BRITÂNICA

O Cine magazine, hoje, às 20h30, na Rede Minas, vai destacar a carreira de Emma Thompson, atriz emblemática do cinema britânico dos anos 1990. Em 55 anos de vida ela já participou de mais de 40 filmes e é a única a acumular o Oscar de melhor atriz e melhor roteirista. Embora nos últimos anos tenha se dedicado ao público infantil, Emma é conhecida pelos filmes de época que abordam questões femininas. Entre eles, Razão e sensibilidade e Retorno a Howard’s end. No quadro “Primeiro plano”, ensaio de Paulo Augusto Gomes sobre O escorpião de Jade, escrito e dirigido por Woody Allen em 2001. E no “Plano geral”, Lichtenberg, curta-metragem de animação em preto e branco, uma ficção científica alemã escrita por Walter Benjamin sobre seres lunares que resolvem investigar a infelicidade humana, adaptada pelo professor e doutor em artes visuais Lau Caminha Aguiar.

VIVA
Marieta Severo no episódio de anteontem de A grande família (Globo). A despedida de Nenê do bebê Lineuzinho foi simplesmente emocionante.

VAIA

Laerte (Gabriel Braga Nunes) continua o homem obsessivo de sempre. O comportamento do músico na trama de Em família não é dos mais normais.

Orelha

Estado de Minas: 26/04/2014 

O filósofo Slavoj Zizek aceita debate de alto nível sobre religião   (Wikipedia Commons/Divulgação)
O filósofo Slavoj Zizek aceita debate de alto nível sobre religião


O téologo e o comunista

Num diagnóstico rápido, a contemporaneidade poderia ser definida como a era do fim das grandes narrativas (entre elas o comunismo) e o retorno do teológico, muitas vezes na figura de fundamentalismos e outros desvios. Mas o debate tem convocado muita gente boa, além da simples condenação cientificista da religião, na linha de Richard Dawkins. E é essa polêmica que anima o livro A monstruosidade de Cristo, que contrapõe o filósofo Slavoj Zizek e o teólogo John Milbank. Zizek, como é de seu estilo, mistura Hegel, Lacan e Hitchcock para propor uma leitura dialética do cristianismo, saudando a negação da transcendência no evento da encarnação de Deus num indivíduo humano. John Milbank, por sua vez, apoiado em Agostinho e mestre Eckhart, defende uma visão de Cristo como paradoxo, simultaneamente humano e divino. O lançamento é da Editora Três Estrelas.


Capitoa

A escritora Bernadette Lyra revela, em seu romance histórico, a vida emocionante de Luiza de Grimaud, uma das primeiras mulheres a comandar um estado brasileiro, o Espírito Santo, em pleno século 16. O livro A capitoa mistura ficção com elementos da realidade histórica. A vida das mulheres, protagonistas da novela, se desenrola numa sesmaria selvagem, em meio a índios, fidalgos, degredados, bastardos, piratas, escravos e traições.


Inquieto


 (Rocco/Divulgação)


Depois de Paulo Leminski e Ana Cristina César, outro poeta que ajudou a definir a sensibilidade lírica contemporânea no Brasil, Waly Salomão (1943-2003 - foto) também ganha edição de sua obra completa pela Companhia das Letras. Poesia total vai reunir todos os livros de versos do autor, do já clássico Me segura que eu vou dar um troço ao Pescados vivos. O volume trará ainda seção com letras de canções (Waly foi parceiro de Caetano, Gil e Macalé, entre outros) e estudos assinados por Antonio Cícero, Francisco Alvim e Davi Arrigucci Jr.


Imagem

A Editora G. Gili está lançando dois livros sobre fotografia bastante singulares. O primeiro é Leia isso se quer tirar fotos incríveis, de Henry Carroll, que quebra as convenções mais correntes na área dos manuais de iniciação à fotografia. Nada de gráficos, jargões e quinquilharias. A ideia do autor é mostrar imagens icônicas, antigas e modernas, e a partir delas apresentar elementos como luz, composição e lentes. A base de tudo é a observação e o bom gosto. O outro lançamento, que dá um passo à frente, é Por trás da imagem. Pesquisa e prática em fotografia, de Anna Fox e Natascha Caruana. O candidato a fotógrafo é estimulado a pensar o que gostaria de fotografar e, a partir daí, como organizar todas as fases de uma pesquisa, do desejo inicial ao financiamento do projeto.


Distopia

 (Gutenberg/Reprodução)


A brasileira Marcela Mariz (foto) mora nos EUA há quase 10 anos, onde trabalha como advogada. A carioca, que também é atriz e roteirista, escreveu em inglês o livro de ficção científica The chosen of Gaia, que ela mesma publicou na Amazon. Mais de 20 mil e-books depois, o livro chega ao Brasil, em tradução de Santiago Nazarian, pelo selo Gutenberg. O romance narra a história de um jovem de 15 anos, Albert, escolhido para pertencer a uma sociedade avançada, que logo percebe que há algo estranho por trás de tanta perfeição.


Para crianças

A ideia é do romancista italiano Alessandro Baricco: recontar grandes histórias para jovens leitores. Para isso, foram escolhidos escritores contemporâneos, que elegeram suas obra favoritas. Chegam agora às livrarias dois títulos da série: O nariz, de Gógol, recontado por Andrea Camilleri; e Don Juan, com texto do próprio Baricco. Os próximos livros já foram anunciados, Cyrano de Bergerac, de Edmond Ronstand, recontado por Stefano Benni; e Crime e castigo, de Dostoiévski, por Abraham B. Yehoshua. Os lançamentos são do selo Galera, da Record.


Lançamentos

Lucia Helena Monteiro Machado lança o livro Retratos em busca de uma história, segunda-feira, às 19h, no BDMG Cultural, Rua Bernardo Guimarães, 1.600, Lourdes, (31) 3219-8486.

A construção social do acesso público à informação no Brasil – Contexto, historicidade e repercussões, organizado por Maria Aparecida Moura, tem lançamento terça-feira, às 16h Biblioteca Central da UFMG, câmpus Pampulha, Avenida Antônio Carlos, 6.627.

Depois do sucesso com a ficção chick-lit Freud, me tira dessa!, a jornalista Laura Conrado lança seu segundo romance escrito sob as bênçãos do pai da psicanálise, Freud, me segura nessa! No enredo, as mesmas angústias femininas frente às escolhas afetivas. Terça-feira, às 19h, na Livraria Leitura do Pátio Savassi, Av. do Contorno, 6.061, São Pedro.

O voo da borboleta - Michelle Márcia Cobra Torre

Em livros que mergulham em suas memórias mais ancestrais, Cheiro de goiaba e Viver para contar, Gabriel García Márquez dialoga com o passado e recupera a seiva de vida que alimentaria sua obra


Michelle Márcia Cobra Torre
Estado de Minas: 26/04/2014



Pessoas acompanham a passagem do trem com imagem de García Márquez em Santa Marta, na Colômbia (Fredy Builes/Reuters)
Pessoas acompanham a passagem do trem com imagem de García Márquez em Santa Marta, na Colômbia

Memória e solidão foram os grandes temas trabalhados pelo escritor Gabriel García Márquez, que nos deixou em 17 de abril. Nos últimos anos, o colombiano nascido em Aracataca, por ironia, vinha sofrendo de perda de memória e, com a saúde debilitada, não atendia mais a pedidos de entrevistas e evitava aparições públicas. A memória da história e das lutas políticas e sociais, que ele tanto se empenhara por não ser esquecida, logo a memória, a sua própria memória, traíra-lhe.

A obra de García Márquez alçou voo e a literatura latino-americana passou a ser conhecida por todo o mundo pelas palavras do criador de Macondo, demonstrando que o continente ao sul do Rio Grande poderia fazer muito mais que simplesmente balbuciar. Escritor, jornalista, crítico, sonhador, García Márquez refletiu em suas obras sobre a América Latina, sua política, seus caminhos e descaminhos. Inspirou-se na realidade cotidiana, nas histórias contadas pelas pessoas simples, mas também na literatura universal e nos grandes acontecimentos do século 20, que afetaram o continente e o mundo.

Para os interessados em entender a trajetória intelectual e literária do escritor, há duas obras marcantes do colombiano, Cheiro de goiaba, publicada em 1982, e Viver para contar, de 2002. Nessas obras, o escritor reflete sobre o passado e a memória, sobre o modo de recordar esse passado e sobre o ofício de escritor. A obra Viver para contar é a autobiografia de García Márquez e Cheiro de goiaba trata-se de uma entrevista concedida ao amigo e jornalista Plinio Apuleyo Mendonza. A entrevista gerou o livro que traz como autor na capa o próprio Gabriel García Márquez, embora os direitos autorais sejam reservados tanto para García Márquez quanto para Plinio Apuleyo Mendonza.

Cheiro de goiaba é interessante por García Márquez falar de suas origens, do início de sua carreira como escritor, das leituras que exerceram influência em seu pensamento e em sua formação literária, do ofício de escritor, de alguns de seus romances, de sua vida intelectual, entre outros assuntos. Cheiro de goiaba cobre um período da vida de García Márquez maior que o da autobiografia Viver para contar, embora de forma menos detalhada, mas abarcando pontos-chave da vida do escritor até aquele momento.

Já Viver para contar cobre a vida do escritor dos seus tempos de criança, quando vivia com seus avós na cidade de Aracataca, passando pelas lembranças dos colégios onde estudou até o início do curso de direito, que nunca terminou, chegando às suas experiências no jornalismo na Colômbia. A escrita se encerra quando García Márquez vai para a Europa realizar uma cobertura jornalística e acaba ficando por lá.

O texto da autobiografia Viver para contar inicia-se com a chegada da mãe do escritor em Barranquilla, cidade onde García Márquez trabalhava como jornalista e na qual encontrou um grupo de amigos que influenciariam muito no seu trabalho e na sua vida literária. Luisa Santiaga Márquez queria que o filho viajasse com ela até Aracataca para vender a casa que fora de seus pais. Essa viagem, empreendida quando García Márquez estava com 22 anos, funciona como fio condutor para a escrita de sua autobiografia, quando o colombiano está com mais de 70 anos. Assim, os tempos se confundem na obra, pois temos o tempo presente da escrita, o tempo dos acontecimentos vivenciados e ainda suas recordações revividas tanto durante a viagem quanto no momento da escrita.

As paisagens vistas da janela do trem, algumas mudadas outras intactas, suscitam na memória do escritor momentos vividos ali durante várias fases de sua vida, da infância à adolescência. A viagem de barco pelo Rio Magdalena, a paisagem dos bananais vista pelas janelas do velho trem de sua infância, uma fazenda bananeira no caminho que tinha o nome “Macondo” escrito no portal. Os povoados e suas velhas casas evocam lembranças, bem como um novo olhar em direção ao passado e uma vontade de recordá-lo para contá-lo. No momento dessa viagem, García Márquez ainda não havia publicado nenhum de seus romances, apenas alguns contos em jornais.

Na memória de García Márquez, os vestígios daquele povoado revolvem sentimentos em seu interior com algo de sobrenatural, uma vez que sua infância, vivida ali, foi povoada de histórias contadas por sua avó. O contato com aquela paisagem novamente faz com que ele se lembre de vários acontecimentos extraordinários que ouviu os adultos contarem quando criança. Essas imagens ficariam impregnadas em sua memória e somente deixariam de persegui-lo quando conseguisse colocá-las em seus contos ou romances.

Assim, em sua autobiografia, García Márquez compartilha com o leitor as dificuldades e descobertas do ato da escrita de um conto, de uma reportagem ou de um romance. Pois como conta, vivia com os originais de seu primeiro romance em uma pasta que levava para todos os lugares, colhendo leituras críticas de amigos para aperfeiçoá-lo. Rasgava folhas e folhas e passava horas na máquina de escrever do jornal, depois do expediente. Em Cheiro de goiaba, desabafa que não existe nada mais angustiante para um escritor que estar diante de uma folha em branco, e aconselha que o melhor é interromper uma jornada de escrita apenas quando se sabe o que irá escrever no dia seguinte. García Márquez também acredita ser o ofício de escritor o mais solitário do mundo, uma vez que ninguém pode ajudá-lo a escrever, e compara o ofício com a imagem de um náufrago no meio do mar.

Em Cheiro de goiaba, ele comenta que o ponto de partida de seus livros é uma imagem visual. Assim, O enterro do diabo nasceu da imagem de um velho que leva o neto a um enterro, e Ninguém escreve ao coronel parte da imagem de um velho coronel esperando uma lancha no mercado de Barranquilla. O ponto de partida de Cem anos de solidão foi a imagem de um velho que leva um menino para conhecer o gelo que estava sendo exibido como curiosidade. Essa última imagem inspira-se diretamente em uma experiência do escritor quando criança, conta. Seu avô, o coronel Nicolás Márquez, levou-o para conhecer o gelo no acampamento da companhia bananeira. Chegando lá, ordenou que se abrisse uma caixa de pargos congelados e fez com que o menino tocasse o gelo.

Em Viver para contar, o escritor conta ao leitor, às vezes de maneira implícita e outras vezes explícita, de onde partiu a inspiração de alguns de seus personagens. Ao relatar episódios vividos por ele quando criança, por seus pais, seus tios ou avós, García Márquez deixa para o leitor o prazer de estar fazendo uma descoberta da fonte de inspiração de seus personagens. É como se o leitor tivesse que montar um quebra-cabeça com as características e episódios ocorridos com diversos parentes para chegar à elaboração do personagem, ou melhor, desmontar um personagem e descobrir de onde cada parte foi inspirada na vida dos Márquez.

Por exemplo, sua avó Tranquilina pode se parecer muito com Úrsula de Cem anos de solidão, e seu avô, o coronel Márquez, não deixa de oferecer episódios e características para a composição do coronel Aureliano Buendía do mesmo romance, fabricando seus peixinhos de ouro, ou mesmo esperando a pensão por ter lutado na Guerra dos Mil Dias, como o coronel de Ninguém escreve ao coronel. Mesmo o romance entre certa moça e um telegrafista, proibido pelos pais dela, foi vivido na vida real por seus próprios pais – seus avós levaram Luisa Santiaga por uma longa jornada para que ela se esquecesse do telegrafista, o que não adiantou, pois, tal qual no romance, eles continuaram se comunicando com a ajuda de amigos telegrafistas que viviam nos povoados por onde ela passava.

Experiência da solidão Outra questão comentada pelo escritor é o tema da solidão, que o acompanhou durante anos, quando viveu longe da família em colégios de outras cidades e já adulto, quando exercia o ofício de jornalista em Cartagena, Barranquilla ou Bogotá. Acordava durante a noite apavorado após os pesadelos – herança das histórias que sua avó Tranquilina lhe contava sobre os mortos. O tema da solidão atravessa grande parte das obras de García Márquez, o homem solitário que mesmo com outros entes à sua volta ainda se sente só no mundo. García Márquez toca nesse tema durante a escrita de sua autobiografia, contando momentos de sua vida em que sentia uma imensa solidão. Ao que parece, relata esse sentimento com a intenção de que o leitor atente para o fato de que esse é um grande tema que perpassa sua obra.

Nos anos de colégio, longe da família, Gabriel García Márquez encontrou na leitura um consolo para sua solidão. Assim, ao ler A metamorfose, de Kafka, na juventude, descobriu que queria ser escritor. Quando rapaz, queria ser poeta, começando a se interessar pela literatura através da poesia. Leu Neruda, Rubén Darío e muita poesia popular. Ele comenta que lia tudo que lhe caía nas mãos. Entre suas influências, cita Sófocles, Rimbaud, Kafka, Virgínia Woolf, Faulkner, Hemingway, Joyce e a poesia espanhola do Século de Ouro. Com a leitura de Mrs. Dalloway, seu senso de tempo se transformou completamente e afirma que seria um autor diferente do que é se não tivesse lido esse livro aos 20 anos.

O escritor colombiano também acrescenta a essas influências literárias outras extraliterárias que foram decisivas para a sua obra. A avó Tranquilina e sua maneira de relatar histórias foi uma dessas influências, bem como o avô coronel Márquez com seus relatos das guerras civis de que tinha participado. A tradição do relato oral, proveniente da região da costa colombiana do Mar das Antilhas, também marcou sua forma de narrar.

Refletindo sobre a memória, García Márquez comenta que “até a adolescência, a memória tem mais interesse no futuro que no passado, e por isso minhas lembranças da cidadezinha ainda não estavam idealizadas pela nostalgia”. Tal concepção assume que as lembranças, após certo tempo, passam a ganhar um novo contorno na memória. E ainda, as transformações pelas quais as lembranças passam podem deturpar o passado: “A nostalgia, como sempre, havia apagado as lembranças ruins e aperfeiçoado as boas. Ninguém se salvava de seus estragos”.

García Márquez se transforma em personagem em sua própria escrita. Ele descreve seus sentimentos, seus desejos, suas lembranças e se reinventa. Escreve sobre si, se fazendo personagem de ficção, o personagem que é o escritor colombiano que viveu ou ouviu sua família contar todas aquelas histórias mágicas. Aquele que foi levado pelo avô para ver o gelo tal como ocorreria com o coronel Aureliano Buendía. O escritor que ao ler Kafka pela primeira vez na juventude decidiu que seguiria esse ofício.

Para García Márquez, recordar o passado é uma maneira de buscar episódios, lugares e histórias que uma vez impregnados na memória passam a fazer parte da sua escrita, mas também é uma forma de reconstituir os elementos de sua vida, fazendo uma segunda leitura do que já se viveu. Os acontecimentos ganham uma nova significação na memória de quem os recorda, e a escrita da história de si não está isenta da intencionalidade e nem mesmo da ficcionalização, pois como adverte o próprio García Márquez no início de Viver para contar, “a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”.

Para os leitores do colombiano, uma coisa é certa: as suas personagens vão continuar a caminhar pelas ruas, habitando nossas lembranças. Sempre que borboletas amarelas nos rodearem vamos nos lembrar de Cem anos de solidão; quando um aceno calçado em luvas brancas nos surpreender, vamos recordar de O outono do patriarca; se um vento forte provocar uma revoada, nos lembraremos de O enterro do diabo; quando um galo cantar, Ninguém escreve ao coronel virá à tona de nossa memória; e se um papagaio se enroscar nos galhos de uma árvore a memória trará O amor nos tempos do cólera. E a brisa do mar do Caribe, com sua infinidade de vozes, estará para sempre na memória dos latino-americanos que se recordarem deste grande escritor e intelectual chamado García Márquez.


Michelle Márcia Cobra Torre é jornalista, historiadora, mestre e doutoranda em estudos literários pela UFMG

Paisagem desolada

Sai no Brasil o primeiro volume da saga em quadrinhos Aâma, de Frederik Peeters. Trama futurista mescla experimentos científicos e questionamentos existenciais

Valf
Estado de Minas: 26/04/2014
 (Nemo/Reprodução)


A carreira do suíço Frederik Peeters sempre recebeu reconhecimento traduzido em importantes premiações. Na França, seu álbum Sandcastle (Castelo de areia, na publicação brasileira), obra realizada em parceria com o diretor e roteirista francês Pierre-Oscar Lévy, ganhou, em 2011, o prêmio de melhor graphic novel de ficção científica no festival Utopiales Science Fiction. Dois anos depois, ainda na França, duas outras produções foram também premiadas – Lupus, na categoria de ficção científica, e RG, quadrinho policial que contou com a colaboração de um amigo da polícia francesa.

Quando, porém, recebeu, em 2013, o prêmio de melhor série pelo segundo volume de Aâma no mais importante festival de histórias em quadrinhos da Europa, na cidade francesa de Angoulême, o multipremiado artista o considerou especial, pois recebeu a honraria das mãos de uma personalidade que, de forma indireta, havia sido parte mais que importante em sua carreira – Jean-Pierre Dionnet. Um dos fundadores da seminal revista francesa Métal Hurlant, ele foi responsável pela publicação de novos talentos e também de grandes nomes dos quadrinhos europeus em meados dos anos 1970, e assim por mais de uma década. Enki Bilal, Philippe Druillet, Caza, Moebius entre vários outros poderiam ser citados. Influência de toda uma geração de fãs de quadrinhos, dentre eles o artista suíço.

Moebius, por exemplo, que Frederik aponta como sendo uma de suas maiores referências, chegou a escrever o prefácio de Pachyderm, uma das HQs de Peeters. Curioso, porém, é que, apesar de toda a influência e prêmios recebidos por histórias de ficção científica, o autor não se considera um grande fã do gênero. Diz preferir usar a liberdade dada pelo estilo apenas como base para outros tipos de discussões. E é o que parece acontecer em sua recém-lançada obra no Brasil, Aâma: O cheiro da poeira quente, pela Editora Nemo.

Nela, uma intrincada trama ambientada em um futuro distante se divide entre os questionamentos e problemas de seu personagem principal e a busca de um experimento científico. Somos apresentados ao protagonista de uma forma muito bem-feita. Em uma bela série de planos (que será por vezes utilizado de maneira importante na HQ), ele surge em meio ao que parece ser o local de uma explosão sobre um monte, em uma paisagem desolada. Acorda sem saber quem é e não tendo nenhuma referência de onde está. Ainda entorpecido, tenta achar respostas para seus questionamentos, mas somente imagens pouco claras aparecem em sua mente, fazendo aumentar o clima de confusão.

Subindo a encosta do monte, aparece em cena Churchill, um gorila-robô, que demonstrando verdadeira satisfação por ver o aturdido personagem vivo e em boas condições, apresenta ao leitor o protagonista. Seu nome é Verloc Nim. Tentando elucidar a situação, Verloc questiona o gorila. Novamente, utilizando um plano muito bem escolhido, o artista mostra o protagonista de costas, enquanto Churchill, em um detalhe de seu olhar vago, opta pelo silêncio. E então lhe oferece um diário. A narrativa ganha novas dimensões. O diário se transforma no fio condutor que vai revelando, por meio de flashbacks, um pouco sobre o ocorrido com Verloc Nim nos dias que se antecederam e sobre a complexa e mais que turbulenta vida do personagem.

Marginal e drogado

Com saltos narrativos entre o presente e o passado, a história vai sendo pouco a pouco construída de forma instigante. Verloc é um pária que, abandonado pela mulher, não pode se aproximar da filha. Prefere viver à margem da sociedade, por não aceitar ser subjugado pela dependência da tecnologia, e vive como um junkie, afundado nas drogas, por não conseguir encarar sua inadequação. Em uma bad trip de shia (a droga que usa), Verloc é resgatado por seu irmão Conrad e pelo gorila-robô Churchill (guarda-costas de Conrad). Conrad convence Verloc a acompanhá-lo a uma viagem ao planeta Ona(ji), onde um grupo de cientistas e seu importante experimento científico haviam sido abandonados alguns anos antes e agora deveriam ser recuperados. Os três personagens partem para o distante planeta e descobrem que nada seria tão simples. No grupo deixado à própria sorte, o trio encontra intrigas, complôs, fugas e mistérios.

Aâma, O cheiro da poeira quente é a primeira parte de uma quadrilogia (os volumes 2 e 3 já foram lançadas na Europa e são prometidos ainda para este ano no Brasil) é um ótimo álbum. Frederik Peeters nos brinda com um belo trabalho, que traz tanto uma bem realizada construção de personagens quanto um refinado enredo e maneira de contar essa estória. Agora é esperar os próximos números e montar o quebra-cabeça.

AÂMA: O CHEIRO DA POEIRA QUENTE

De Frederick Peeters
Editora Nemo, 88 páginas, R$ 39

Sujeito, sociedade e o negócio da droga - Oscar Cirino

Estado de Minas: 26/04/2014 



O neurocientista Carl Hart desfaz o estereótipo do drogado fissurado pelo prazer imediato (Eillen Barroso/Divulgação)
O neurocientista Carl Hart desfaz o estereótipo do drogado fissurado pelo prazer imediato

“Fumei um celular” ou “cheirei uma TV” são enunciados que, considerados fora do contexto, nos soam desvairados e absurdos. Deparamo-nos também com barganhas inusitadas: “Troquei uma moto por 10 pedras” ou “o botijão de gás por pó”. Qual é o nexo que perpassa esses negócios?

A economia relacionada ao tráfico internacional de drogas e os bilhões de dólares que este movimenta, por outro lado, não nos causam estranheza, visto que respondem com clareza à lógica do mercado e do lucro. Há também um tipo de consumo que pouco nos espanta, consonante com essa mesma lógica. Encontramos bom exemplo no personagem interpretado por Leonardo DiCaprio no recente filme, dirigido por Martin Scorsese, O lobo de Wall Street: Jordan Belfort ingere comprimidos de methaqualone (Mandrix), cheira carreiras de cocaína para ficar mais esperto e agressivo na construção voraz e nada escrupulosa da posição de destaque na bolsa de valores, usufruindo e exibindo todos os signos do poder social.

Quem também comungou com esse receituário neoliberal de Wall Street foi o ex-presidente argentino (1989-1999) Carlos Menem, que, além de ligações com o narcotráfico, possuía várias comunidades terapêuticas para o tratamento de “dependentes químicos”.

Será que todo consumidor de drogas compartilha dessa mesma lógica? Nem sempre. Trainspotting (1996), filme britânico sobre dependentes de heroína, é paradigmático a esse respeito, ao retomar e subverter um dos valores fundamentais do discurso capitalista: a liberdade de escolher, de escolher para produzir e consumir. Com trilha sonora frenética, a película apresenta, na primeira cena, jovens correndo pelas ruas enquanto uma voz em off enuncia: “Escolha uma vida, escolha um emprego, escolha uma carreira... Escolha uma TV grande, máquina de lavar, carros... Escolha saúde, colesterol baixo... Escolha prestações fixas para pagar, uma casa, roupas e acessórios... Escolha um futuro, uma vida”. Na sequência, um dos jovens, agora deitado, sob o efeito da heroína, enquanto a voz prossegue: “Por que eu ia querer isto? Preferi não ter uma vida. Preferi outra coisa. E os motivos? Não há motivos. Para quê motivos quando se tem heroína? ’’

Assim, o toxicômano ou dependente de drogas muitas vezes recusa-se a fazer carreira e a pertencer ao sistema que sustenta toda a circulação da competição na sociedade. Colocando-se à parte, não corre como todos os demais para afirmar-se e alcançar a realização social. Nesse sentido, ele pode ser um perigo para o mercado e sua conexão entre produção e consumo.

Seguramente podemos discordar de que “não há motivos” para a adesão mortífera a esse objeto, pois sabemos que a função da droga varia para cada sujeito e depende do contexto em que se dá o consumo. Pesquisa etnográfica realizada com crianças e jovens em situação de rua no Brasil constatou que eles necessitavam de substâncias excitantes (cocaína) à noite, para não dormir, por medo de abuso físico e sexual; de relaxantes (cola) pela manhã, para diminuir o estresse; e de maconha ao meio-dia, para se alimentar. Já um jovem psicótico, que fuma dez cigarros de maconha por dia, enuncia que eles acalmam os pensamentos invasivos e assustadores que assaltam sua cabeça.

No mês de maio desse ano, virá ao Brasil o único negro a obter uma cátedra de neurociência na Universidade de Columbia (EUA). Trata-se do neuropsiquiatra Carl Hart, que realiza pesquisas no campo das toxicomanias que podem contribuir para melhor entendimento do que acontece com muitos dependentes de drogas, especialmente do crack, no Brasil. Sua concepção deixa claro que o foco nas internações compulsórias e no acirramento das leis antidrogas não são as melhores soluções para a questão. Explicita ainda que a obsessão das neurociências em explicar a dependência apenas pelo poder viciante da substância nos circuitos de recompensa cerebral é extremamente redutora, pois as pessoas se tornam dependentes de drogas por uma série de fatores e que se elas têm problemas com as drogas certamente ele não é o único. Possível explicação para essa obsessão, segundo dr. Hart, é a de que os cientistas sabem que terão mais dinheiro para as pesquisas se continuarem dizendo aos governantes que vão encontrar a solução para esse complexo problema.

Droga e racismo Nos anos 1980, ocorreu uma explosão do consumo de crack nos EUA, e Carl Hart, em seu livro High price, analisa o “alto preço” que a comunidade negra teve que pagar na chamada “guerra às drogas”. Em outras palavras, o foco dessa guerra era a pobreza, o racismo, o desemprego e outros problemas sociais.

Sua pesquisa inicial deu-se com os tradicionais ratos de laboratório. Constatou-se que, mesmo para esses roedores, o ambiente era fundamental no estabelecimento da dependência. Os ratos criados solitários, e que não tinham outras opções, continuavam pressionando a alavanca para a obtenção da cocaína até à morte,mas, quando se enriquecia o seu ambiente, dando-lhes acesso a um doce, a um parceiro sexualmente ativo ou deixando-os brincar com outros ratos, eles deixavam de pressionar a alavanca.

No entanto, o experimento mais instigante foi realizado com seres falantes. Dr. Hart recrutou dependentes, oferecendo-lhes a chance de ganhar até 950 dólares enquanto fumavam crack feito a partir de cocaína farmacêutica. A maioria dos entrevistados eram homens negros de baixa renda. Para participar, tinham que viver em uma enfermaria de hospital por várias semanas.

No início de cada dia, uma enfermeira colocava certa dose de crack, que variava diariamente, em um tubo. Apesar de fumar, o participante ficava de olhos vendados para que não pudesse ver a quantidade da dose. Em seguida, depois do uso inicial, eram oferecidas a cada participante mais oportunidades para fumar a mesma dose. Porém, a cada vez que a oferta era feita, os participantes também tinham opção de escolher outra recompensa (dinheiro ou um vale de cinco dólares para a compra de mercadorias), à qual só teriam acesso quando deixassem o hospital no fim do experimento, semanas depois. Dr. Hart constatou que quando o prêmio era de US$ 5 eles escolhiam a droga na metade das vezes, mas quando aumentou o valor para US$ 20, o consumo do crack foi preterido, pois só escolhiam o dinheiro ou o vale.

O neuropsiquiatra desfez a caricatura do dependente fissurado que não consegue resistir à próxima dose e abrir mão do prazer imediato da droga. Em outras palavras, conceber que o problema se concentra apenas nas características químicas do crack é desconhecer a presença dos aspectos subjetivos e sociais. O que o crack pode oferecer, como também a cachaça, é alívio temporário para os de “vida severina” que se encontram em situação socialmente desfavorável, como é o caso de grande parte dos brasileiros envolvidos. Seus problemas são maiores que o crack e se concentram na falta efetiva de educação, de moradia, de emprego, de oportunidades reais de construir um futuro melhor. O negócio é o seguinte: para seres falantes não há remédio sem convivência e laço social.

Oscar Cirino é psicanalista e integra a equipe do Centro Mineiro de Toxicomania.

João Paulo - A descoberta do gelo‏

A descoberta do gelo 
 
O escritor colombiano Gabriel García Márquez, que morreu na semana passada, ampliou a arte do romance de modo a abarcar a totalidade humana e fundamentar a crítica ao poder 
 
João Paulo
Estado de Minas: 26/04/2014

Homem recebe uma borboleta amarela depois da cerimônia em honra à memória de García Márquez, em Aracataca, na Colômbia (Joaquin Sarmiento/AFP)
Homem recebe uma borboleta amarela depois da cerimônia em honra à memória de García Márquez, em Aracataca, na Colômbia

Algum tempo depois da morte de Gabriel García Márquez, diante das centenas de páginas escritas sobre ele em todo o mundo, o leitor haveria de recordar o dia em que foi apresentado a um livro capaz de mudar sua vida.

Essa parece ser uma situação comum entre os milhares de leitores de Cem anos de solidão. Assim como acontece com o 11 de setembro ou com a morte de Elis Regina, todos parecem se lembrar de onde estavam e o que sentiram na época da primeira leitura do romance.

Essa é apenas uma das sensações que cercam a criação do escritor. Além do impacto emocional e da marca na memória de afetos, García Márquez pode ter criado uma região pessoal entre ele e o leitor, que se traduz numa espécie de familiaridade ou compartilhamento. Como se as palavras brotassem da realidade, dirigidas de forma peculiar a apenas um leitor, que se revelou, com o tempo, representar a experiência de milhões em todo o mundo.

Mas a gentileza do estilo é apenas uma das muitas singularidades do romancista. Lido hoje, com a distância de décadas e depois do reconhecimento mundial, a obra do autor de O outono do patriarca carrega algumas características que se revelam quase uma sequência de paradoxos. O primeiro deles é o que parece opor inteligência e sensibilidade, o discernimento e a intuição.

Gabriel García Márquez agradou a todo tipo de leitor. Como Machado de Assis propõe na abertura de suas Memórias póstumas de Brás Cubas, há duas grandes colunas de opinião, a dos graves e a dos frívolos. E ele supunha que seu livro de além-túmulo teria o condão de desagradar aos dois lados. Gabo fez exatamente o contrário: deu aos graves a certeza de que tinham em mãos algo de novo e desafiador, e aos frívolos a certeza de uma história verdadeiramente encantadora. E estava certo nas duas apostas.

Temos a canhestra certeza, que quase sempre se revela equivocada, de que a inteligência e a emoção andam em vias separadas. García Márquez, sem qualquer teoria (como romancista, ele sempre mostra, não perde tempo em anunciar o que vai dizer), desdiz essa raia absurda que cinde o engenho humano. Ele é um grande escritor exatamente pela capacidade de juntar a mão esquerda e a direita para criar um som peculiar, que não existiria sem essa união.

O escritor mais celebrado, tudo indica, é o contador de histórias fabuloso, capaz de criar uma nova cosmologia, de parir genealogias, de encantar com batalhas, ciúmes e outros portentos menores. No entanto, em García Márquez há uma inteligência linguística quase sublime em sua realização única, que inaugura novos modos de expressão, cria estruturas perfeitas, domina o ritmo da narrativa. O inventor de mundos e passados e o artífice da linguagem se igualam.

A técnica do escritor, que se tentou resumir no rótulo de realismo mágico, na verdade se realiza como uma busca destemida da totalidade. Em García Márquez, como propôs seu desafeto, o romancista peruano Mario Vargas Llosa (honesto o suficiente para escrever o melhor estudo já publicado sobre o colega colombiano), há uma soma do real objetivo – com sua história familiar, hierarquias sociais, presença de classes e destinos individuais – com o real imaginário, que funde o mágico, o milagroso, o mítico e o fantástico.

O que surpreende é que, para realizar essa tarefa aparentemente impossível, de figurar o mundo num recanto e dar universalidade à aldeia, passando sempre pelo coração do homem em situação e do indivíduo em sua centúria de solidão, García Márquez precisou inventar um jeito de nomear o mundo. Para os que se perdem em meio à pletora de maravilhas do entrecho e da linguagem, fica escondido na sombra o esforço para tornar possível o milagre da expressão.

Em seu O amor nos tempos do cólera, logo no primeiro parágrafo o autor fala da morte de um homem que se mata com veneno para se ver livre dos tormentos da memória. Era o adversário mais compassivo de partidas de xadrez do narrador. O romance, que é um elogio da permanência da lembrança, parece dar uma pista do jogo que se segue. Gabo é um cuidadoso seguidor das regras da narração. Entre elas, a de não ir depressa demais, mas sem deixar de manter o leitor interessado no desfecho.

Há nos romances do escritor, como nas partidas de xadrez de grandes mestres ou nas raquetadas de Roger Federer, um senso de temporalidade que compassa o tempo, diminui a pressa, antevê os lances com antecipação não apenas para dar o xeque ou matar o ponto. Cada jogada é ao mesmo tempo necessária e preparatória. Sem ela, a brincadeira perde o encanto, mesmo que pareça existir apenas para adiar a consagração do instante.

Os romances são sempre tocados por essa condução lúdica, ainda que de certa forma suplantada pela força da narração, pela aventura da história ou pela revelação do humano. Além disso, a construção é sempre equilibrada por um dedicado esforço de pesquisa, como no bom jornalismo, que parece sempre deixar implícito que há muito trabalho por trás de cada palavra para que ela surja como necessária.

Gabo sempre fez questão de relevar a importância do jornalismo em sua obra e chegou a publicar grandes reportagens e reuniões de textos e críticas saídas em periódicos. Fundou com o irmão, em Cartagena, onde militou como repórter na juventude, uma fundação dedicada a incentivar o jornalismo, que ainda hoje atrai jovens de todo o mundo. Não se trata de um benefício condescendente ao ofício. Sua obra de ficcionista deve muito ao trabalho do profissional de imprensa que um dia foi: o apego ao fato, às pessoas, às verdades. O bom romance é uma grande reportagem sobre fatos que se esqueceram de acontecer.

Além disso, o criador deve ao jornalismo a mais humilde das disposições de alma do artista: a vontade de ser lido e compreendido. Arte iluminista por excelência, o jornalismo tem como tarefa política dar às pessoas instrumentos para que tomem conta de sua vida e melhorem o mundo na medida de suas parcas qualidades. Para isso, precisa acreditar que todos são iguais e podem saber tudo.

Um jornalismo para poucos é quase uma contradição, já que ele existe exatamente para reafirmar a comunidade de iguais. Um romancista poucas vezes pensa assim, tendo uma queda para o happy few de Sthendal. Ao escrever para todos – e, o que é mais difícil, alcançá-los –, García Márquez realizou o intento dialético de tornar quantidade em qualidade.

Muitos que tentaram imitá-lo perderam a mão, destacando o populismo e exotismo que não fazem parte de sua obra. Gabo, além de criar sua genealogia, foi capaz de elidir a descendência. Os dias de sua arte foram os dias de sua vida. Inclusive em suas demasias, como na política.

Contra o poder Um dos aspectos que mais chamam a atenção na obra do escritor, e que de certa forma desliza para a vida, é a relação com a política. Há dois julgamentos imediatos: o de que o romancista foi um crítico do poder e o que aponta sua ligação com a esquerda, sobretudo sua amizade com Fidel Castro. O que se observa é que eles acabam por se justapor, como se a vida negasse a obra.

O anacronismo é um pecado mortal em história. Por meio dele avaliam-se com critérios posteriores atitudes que se relacionam com outro universo de valores. A ligação com Castro, por exemplo, tem peso diferenciado no correr da história. Torna-se cada vez mais problemática com o passar do tempo, quanto mais o governo cubano se aproxima de atitudes condenáveis em termos políticos e relacionados aos direitos humanos.

Em literatura, o risco é ainda maior. Muitos autores foram condenados por suas posições ideológicas, sem consideração à qualidade de seu trabalho estético. É o caso, por exemplo, de Jorge Luis Borges, com sua identificação com o pensamento conservador e defesa episódica de ditadores, como Pinochet. Borges, possivelmente, perdeu o Nobel em razão da ideologia, embora tenha sido o maior escritor do mundo em boa parte de sua vida.

Com Márquez, há uma dupla inscrição da questão política. Ser contra o poder, sobretudo o imperialismo, faz parte não apenas de sua ética, mas do núcleo de sua ficção e visão de mundo. A figura do ditador é muito mais que um tema para o romancista, é uma obsessão. E é por entender tanto de ditadores e seus epígonos que García Márquez se dedicou a tentar decifrar a solidão do poder.

Em entrevista a Régis Debray, Fidel chegou a dizer que desconfiava da “firmeza revolucionária do escritor colombiano”. Ele estava certo. O romancista tinha a sedução do patriarca e o nojo do poder, atitudes que dificilmente geram bons revolucionários. García Márquez, mesmo errado na história em alguns momentos, parece que acertou na arte.

A comparação entre Borges e Márquez diz muito da América Latina. Os dois escritores, com armas distintas e ideologias opostas, deram maior dimensão ao continente no concerto mundial. Borges mostrou que a inteligência e a erudição do Sul eram imbatíveis; Gabo, que a literatura de invenção não havia acabado com o realismo do século 19. No entanto, por uma dessas reviravoltas do espírito, estamos condenados a entender a arte suprema de Borges em meio a seu engenho, e a decifrar a inteligência espantosa de Márquez em seus entrechos maravilhosos.

Devemos ao avô de García Márquez, que contou a ele as primeiras histórias, o empenho em se maravilhar com o mundo, em nomear as coisas e em conhecer as pessoas. Devemos ao escritor, herdeiro daquelas lições, a infância, os mitos, a magia, a política e até os pelotões de fuzilamento, que anunciam o fim dos dias logo no começo de tudo. Mas devemos, sobretudo, à descoberta do gelo, que brilha como um diamante na abertura de seu maior romance.

A obra de Gabriel García Márquez foi a decifração desse mistério.

Eduardo Almeida Reis - Convinhável‏

Convinhável 

Na atual conjuntura, homens sérios não podem perder tempo com tolices. Portanto, o negócio é coçar o ex-ventre de burguês e tocar a vida



Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 26/04/2014

Como sabem aqueles que se divertem com tolices, convinhável, adjetivo de dois gêneros, entrou em nosso idioma no ano de 1278, sendo portanto mais antigo do que o doutor Mantega no ministério. O administrador da fazenda pantaneira do engenheiro Samuel da Costa Marques, sempre que o patrão sugeria algum trabalho, respondia: “Convinhava, doutor”. Vejo agora no Houaiss que o vocábulo convinhável supõe um verbo convinhar, do qual se depreenderia um “rad. + tema –a-, sob a forma convinha-, + -vel”.

O administrador era mineiro triangulino ou alto-paranaibano, sempre me confundo com essa divisão que botou o Araxá no Alto Paranaíba, quando sempre foi município do Triângulo Mineiro. Não posso falar de roça, que é para não irritar meus amigos interioranos, mas é certo que o interior de Minas conservou durante séculos palavras que sumiram das cidades. Já lhes contei do cabo PM do Oeste de Minas, que dizia “filosomia” em vez de fisionomia do sujeito que botava na cadeia. A gente morre de rir até descobrir que filosomia é puro Camões. Só uma coisa é certa: devemos todos convir em que o adjetivo convinhável é da melhor supimpitude.

Falemos do frio, assunto recorrente nesta bela coluna. Voltei a usar camisetas por baixo das camisas. Camisetas brancas, mangas curtas, as melhores que encontrei nas compras do ano passado. O diabo é que me coçavam a barriga do lado esquerdo. E o beócio se coçava atribuindo a coceira à pele da barriga, aliás ex-barriga, ou à ineficiência da nova máquina de lavar e secar, uma LG de alevantadas qualidades eletrodomésticas.

Na atual conjuntura, homens sérios não podem perder tempo com tolices. Portanto, o negócio é coçar o ex-ventre de burguês e tocar a vida, mas creio ter descoberto, sem querer, o motivo da coceira. A camiseta bacana tem uma etiqueta interna, do lado esquerdo, com as recomendações de lavagem, depois de informar que é 100% algodão.

Etiqueta inútil, porque as melhores operadoras de fogões e máquinas de lavar nunca leram etiquetas. E o diabo da etiqueta coçava até que descobri, num raro acesso de inteligência, que tem desenhada uma linha e a figura de uma tesoura, que é para ser cortada.


Deplorável
Pegou mal, muito mal mesmo, a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de investigar as denúncias de que ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) fizeram viagens ao exterior acompanhados de suas mulheres com diárias pagas pelo STJ. Queriam o quê? Pretendiam que suas excelências os senhores ministros viajassem com as namoradas ou recorressem às garotas de programa na Ásia e na Europa? Desde quando viajar com a velha companheira é crime?

Os documentos analisados pelo CNJ provam que um número elevado de viagens ao exterior foi realizado por ministros do STJ e suas mulheres por conta do erário. Tudo bem: erário, do latim aerarium,ií – conjunto dos recursos financeiros públicos, tesouro, fazenda, os dinheiros e bens do Estado – não foi inventado para desfrute do zé-povinho, mas para deleite, deleitação, deleitamento da nobreza, do mandachuva, autoridade, cacique, cacutu, caudilho, chefão, curema, figurão, figuro, gunga, gunga-muxique, jabarandaia, magnata, magnate, maioral, manda, mandarim, manda-tudo, morubixaba, pajé, paredro, tutu, tutumumbuca, tutunqué.

Feliz do país em que o tutumumbuca do STJ ainda tem mulher, pouco importa se primeira, segunda, terceira – e viaja com ela. Pelo andar da carruagem, não vejo distante o dia em que só existam companheiros de ministros e companheiras de ministras, tutunqués viajando por conta do erário.


O mundo é uma bola
26 de abril de 1500: frei Henrique de Coimbra, OFM, oficia a primeira missa no Brasil. Dom frei Henrique Soares de Coimbra (1465-1532), frade e bispo lusitano, célebre missionário na Índia e na África, foi confessor de dom João II e observante em Alenquer, no primeiro convento franciscano de Portugal.

Na frota de Pedro Álvares Cabral, Henrique dirigia um grupo de religiosos destinados às missões no Oriente. Em Calecute, na Índia, depois do descobrimento do Brasil, cinco dos oito religiosos foram mortos num recontro com muçulmanos na sequência da traição do Samorim. Diante do fracasso da missão, Henrique voltou a Portugal. Dom Manuel I o acolheu como bispo de Ceuta, confirmado pelo papa Júlio II em 30 de janeiro de 1506.

Em 1564, batizado de William Shakespeare, suposto de ter nascido dia 23 de abril, pois o costume da época era batizar a criança três dias depois de nascer. Em 1933, fundação da polícia política nazista, a Gestapo, acrônimo em alemão de Geheime Staatspolizei, isto é, “polícia secreta do Estado”.

Em 1952, circula a primeira edição da revista Manchete, de Bloch Editores. Em 1964, Zanzibar e Tanganica se fundem para formar a Tanzânia. Em 1965, fundação no Rio de Janeiro da Rede Globo de Televisão. Em 1986 ocorre o acidente nuclear de Chernobil, que botou o mundo com as barbas de molho no capítulo da usinas nucleares. Em 1994, primeiras eleições multirraciais na África do Sul.

Em 2009, canonização de Nuno Álvares Pereira, também conhecido como Santo Condestável, Beato Nuno de Santa Maria (hoje São Nuno de Santa Maria) ou simplesmente Nun’Álvares (1360-1431), guerreiro e nobre português.


Ruminanças
“O sal de frutas é o parente pobre do champanhe” (Sofocleto, 1926-2004).