Em livros que mergulham em suas memórias
mais ancestrais, Cheiro de goiaba e Viver para contar, Gabriel García
Márquez dialoga com o passado e recupera a seiva de vida que alimentaria
sua obra
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Pessoas acompanham a passagem do trem com imagem de García Márquez em Santa Marta, na Colômbia |
Memória
e solidão foram os grandes temas trabalhados pelo escritor Gabriel
García Márquez, que nos deixou em 17 de abril. Nos últimos anos, o
colombiano nascido em Aracataca, por ironia, vinha sofrendo de perda de
memória e, com a saúde debilitada, não atendia mais a pedidos de
entrevistas e evitava aparições públicas. A memória da história e das
lutas políticas e sociais, que ele tanto se empenhara por não ser
esquecida, logo a memória, a sua própria memória, traíra-lhe.
A
obra de García Márquez alçou voo e a literatura latino-americana passou a
ser conhecida por todo o mundo pelas palavras do criador de Macondo,
demonstrando que o continente ao sul do Rio Grande poderia fazer muito
mais que simplesmente balbuciar. Escritor, jornalista, crítico,
sonhador, García Márquez refletiu em suas obras sobre a América Latina,
sua política, seus caminhos e descaminhos. Inspirou-se na realidade
cotidiana, nas histórias contadas pelas pessoas simples, mas também na
literatura universal e nos grandes acontecimentos do século 20, que
afetaram o continente e o mundo.
Para os interessados em entender
a trajetória intelectual e literária do escritor, há duas obras
marcantes do colombiano, Cheiro de goiaba, publicada em 1982, e Viver
para contar, de 2002. Nessas obras, o escritor reflete sobre o passado e
a memória, sobre o modo de recordar esse passado e sobre o ofício de
escritor. A obra Viver para contar é a autobiografia de García Márquez e
Cheiro de goiaba trata-se de uma entrevista concedida ao amigo e
jornalista Plinio Apuleyo Mendonza. A entrevista gerou o livro que traz
como autor na capa o próprio Gabriel García Márquez, embora os direitos
autorais sejam reservados tanto para García Márquez quanto para Plinio
Apuleyo Mendonza.
Cheiro de goiaba é interessante por García
Márquez falar de suas origens, do início de sua carreira como escritor,
das leituras que exerceram influência em seu pensamento e em sua
formação literária, do ofício de escritor, de alguns de seus romances,
de sua vida intelectual, entre outros assuntos. Cheiro de goiaba cobre
um período da vida de García Márquez maior que o da autobiografia Viver
para contar, embora de forma menos detalhada, mas abarcando pontos-chave
da vida do escritor até aquele momento.
Já Viver para contar
cobre a vida do escritor dos seus tempos de criança, quando vivia com
seus avós na cidade de Aracataca, passando pelas lembranças dos colégios
onde estudou até o início do curso de direito, que nunca terminou,
chegando às suas experiências no jornalismo na Colômbia. A escrita se
encerra quando García Márquez vai para a Europa realizar uma cobertura
jornalística e acaba ficando por lá.
O texto da autobiografia
Viver para contar inicia-se com a chegada da mãe do escritor em
Barranquilla, cidade onde García Márquez trabalhava como jornalista e na
qual encontrou um grupo de amigos que influenciariam muito no seu
trabalho e na sua vida literária. Luisa Santiaga Márquez queria que o
filho viajasse com ela até Aracataca para vender a casa que fora de seus
pais. Essa viagem, empreendida quando García Márquez estava com 22
anos, funciona como fio condutor para a escrita de sua autobiografia,
quando o colombiano está com mais de 70 anos. Assim, os tempos se
confundem na obra, pois temos o tempo presente da escrita, o tempo dos
acontecimentos vivenciados e ainda suas recordações revividas tanto
durante a viagem quanto no momento da escrita.
As paisagens
vistas da janela do trem, algumas mudadas outras intactas, suscitam na
memória do escritor momentos vividos ali durante várias fases de sua
vida, da infância à adolescência. A viagem de barco pelo Rio Magdalena, a
paisagem dos bananais vista pelas janelas do velho trem de sua
infância, uma fazenda bananeira no caminho que tinha o nome “Macondo”
escrito no portal. Os povoados e suas velhas casas evocam lembranças,
bem como um novo olhar em direção ao passado e uma vontade de recordá-lo
para contá-lo. No momento dessa viagem, García Márquez ainda não havia
publicado nenhum de seus romances, apenas alguns contos em jornais.
Na
memória de García Márquez, os vestígios daquele povoado revolvem
sentimentos em seu interior com algo de sobrenatural, uma vez que sua
infância, vivida ali, foi povoada de histórias contadas por sua avó. O
contato com aquela paisagem novamente faz com que ele se lembre de
vários acontecimentos extraordinários que ouviu os adultos contarem
quando criança. Essas imagens ficariam impregnadas em sua memória e
somente deixariam de persegui-lo quando conseguisse colocá-las em seus
contos ou romances.
Assim, em sua autobiografia, García Márquez
compartilha com o leitor as dificuldades e descobertas do ato da escrita
de um conto, de uma reportagem ou de um romance. Pois como conta, vivia
com os originais de seu primeiro romance em uma pasta que levava para
todos os lugares, colhendo leituras críticas de amigos para
aperfeiçoá-lo. Rasgava folhas e folhas e passava horas na máquina de
escrever do jornal, depois do expediente. Em Cheiro de goiaba, desabafa
que não existe nada mais angustiante para um escritor que estar diante
de uma folha em branco, e aconselha que o melhor é interromper uma
jornada de escrita apenas quando se sabe o que irá escrever no dia
seguinte. García Márquez também acredita ser o ofício de escritor o mais
solitário do mundo, uma vez que ninguém pode ajudá-lo a escrever, e
compara o ofício com a imagem de um náufrago no meio do mar.
Em
Cheiro de goiaba, ele comenta que o ponto de partida de seus livros é
uma imagem visual. Assim, O enterro do diabo nasceu da imagem de um
velho que leva o neto a um enterro, e Ninguém escreve ao coronel parte
da imagem de um velho coronel esperando uma lancha no mercado de
Barranquilla. O ponto de partida de Cem anos de solidão foi a imagem de
um velho que leva um menino para conhecer o gelo que estava sendo
exibido como curiosidade. Essa última imagem inspira-se diretamente em
uma experiência do escritor quando criança, conta. Seu avô, o coronel
Nicolás Márquez, levou-o para conhecer o gelo no acampamento da
companhia bananeira. Chegando lá, ordenou que se abrisse uma caixa de
pargos congelados e fez com que o menino tocasse o gelo.
Em Viver
para contar, o escritor conta ao leitor, às vezes de maneira implícita e
outras vezes explícita, de onde partiu a inspiração de alguns de seus
personagens. Ao relatar episódios vividos por ele quando criança, por
seus pais, seus tios ou avós, García Márquez deixa para o leitor o
prazer de estar fazendo uma descoberta da fonte de inspiração de seus
personagens. É como se o leitor tivesse que montar um quebra-cabeça com
as características e episódios ocorridos com diversos parentes para
chegar à elaboração do personagem, ou melhor, desmontar um personagem e
descobrir de onde cada parte foi inspirada na vida dos Márquez.
Por
exemplo, sua avó Tranquilina pode se parecer muito com Úrsula de Cem
anos de solidão, e seu avô, o coronel Márquez, não deixa de oferecer
episódios e características para a composição do coronel Aureliano
Buendía do mesmo romance, fabricando seus peixinhos de ouro, ou mesmo
esperando a pensão por ter lutado na Guerra dos Mil Dias, como o coronel
de Ninguém escreve ao coronel. Mesmo o romance entre certa moça e um
telegrafista, proibido pelos pais dela, foi vivido na vida real por seus
próprios pais – seus avós levaram Luisa Santiaga por uma longa jornada
para que ela se esquecesse do telegrafista, o que não adiantou, pois,
tal qual no romance, eles continuaram se comunicando com a ajuda de
amigos telegrafistas que viviam nos povoados por onde ela passava.
Experiência da solidão
Outra questão comentada pelo escritor é o tema da solidão, que o
acompanhou durante anos, quando viveu longe da família em colégios de
outras cidades e já adulto, quando exercia o ofício de jornalista em
Cartagena, Barranquilla ou Bogotá. Acordava durante a noite apavorado
após os pesadelos – herança das histórias que sua avó Tranquilina lhe
contava sobre os mortos. O tema da solidão atravessa grande parte das
obras de García Márquez, o homem solitário que mesmo com outros entes à
sua volta ainda se sente só no mundo. García Márquez toca nesse tema
durante a escrita de sua autobiografia, contando momentos de sua vida em
que sentia uma imensa solidão. Ao que parece, relata esse sentimento
com a intenção de que o leitor atente para o fato de que esse é um
grande tema que perpassa sua obra.
Nos anos de colégio, longe da
família, Gabriel García Márquez encontrou na leitura um consolo para
sua solidão. Assim, ao ler A metamorfose, de Kafka, na juventude,
descobriu que queria ser escritor. Quando rapaz, queria ser poeta,
começando a se interessar pela literatura através da poesia. Leu Neruda,
Rubén Darío e muita poesia popular. Ele comenta que lia tudo que lhe
caía nas mãos. Entre suas influências, cita Sófocles, Rimbaud, Kafka,
Virgínia Woolf, Faulkner, Hemingway, Joyce e a poesia espanhola do
Século de Ouro. Com a leitura de Mrs. Dalloway, seu senso de tempo se
transformou completamente e afirma que seria um autor diferente do que é
se não tivesse lido esse livro aos 20 anos.
O escritor
colombiano também acrescenta a essas influências literárias outras
extraliterárias que foram decisivas para a sua obra. A avó Tranquilina e
sua maneira de relatar histórias foi uma dessas influências, bem como o
avô coronel Márquez com seus relatos das guerras civis de que tinha
participado. A tradição do relato oral, proveniente da região da costa
colombiana do Mar das Antilhas, também marcou sua forma de narrar.
Refletindo
sobre a memória, García Márquez comenta que “até a adolescência, a
memória tem mais interesse no futuro que no passado, e por isso minhas
lembranças da cidadezinha ainda não estavam idealizadas pela nostalgia”.
Tal concepção assume que as lembranças, após certo tempo, passam a
ganhar um novo contorno na memória. E ainda, as transformações pelas
quais as lembranças passam podem deturpar o passado: “A nostalgia, como
sempre, havia apagado as lembranças ruins e aperfeiçoado as boas.
Ninguém se salvava de seus estragos”.
García Márquez se
transforma em personagem em sua própria escrita. Ele descreve seus
sentimentos, seus desejos, suas lembranças e se reinventa. Escreve sobre
si, se fazendo personagem de ficção, o personagem que é o escritor
colombiano que viveu ou ouviu sua família contar todas aquelas histórias
mágicas. Aquele que foi levado pelo avô para ver o gelo tal como
ocorreria com o coronel Aureliano Buendía. O escritor que ao ler Kafka
pela primeira vez na juventude decidiu que seguiria esse ofício.
Para
García Márquez, recordar o passado é uma maneira de buscar episódios,
lugares e histórias que uma vez impregnados na memória passam a fazer
parte da sua escrita, mas também é uma forma de reconstituir os
elementos de sua vida, fazendo uma segunda leitura do que já se viveu.
Os acontecimentos ganham uma nova significação na memória de quem os
recorda, e a escrita da história de si não está isenta da
intencionalidade e nem mesmo da ficcionalização, pois como adverte o
próprio García Márquez no início de Viver para contar, “a vida não é a
que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para
contá-la”.
Para os leitores do colombiano, uma coisa é certa: as
suas personagens vão continuar a caminhar pelas ruas, habitando nossas
lembranças. Sempre que borboletas amarelas nos rodearem vamos nos
lembrar de Cem anos de solidão; quando um aceno calçado em luvas brancas
nos surpreender, vamos recordar de O outono do patriarca; se um vento
forte provocar uma revoada, nos lembraremos de O enterro do diabo;
quando um galo cantar, Ninguém escreve ao coronel virá à tona de nossa
memória; e se um papagaio se enroscar nos galhos de uma árvore a memória
trará O amor nos tempos do cólera. E a brisa do mar do Caribe, com sua
infinidade de vozes, estará para sempre na memória dos latino-americanos
que se recordarem deste grande escritor e intelectual chamado García
Márquez.
Michelle Márcia Cobra Torre é jornalista, historiadora, mestre e doutoranda em estudos literários pela UFMG