IARA BIDERMAN
JULIANA VINES
DE SÃO PAULO
O Cadastro Nacional de Adoção acaba de completar cinco anos, mas ainda está longe de atingir seus objetivos: agilizar processos na Justiça e reduzir o número de crianças em abrigos.
Criado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), o cadastro tem 29.284 adultos em busca de um filho e 5.471 menores aptos a serem adotados. Pouco para um universo de mais de 45 mil crianças e jovens à espera de um lar.
Até hoje, 1.899 adoções foram feitas pelo cadastro. Os números não atendem as expectativas do CNJ. "Ainda está muito aquém do desejado", diz Gabriel da Silveira Matos, juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça.
O juiz Matos, no entanto, afirma que a ferramenta agilizou a aproximação e que o número de adoções resolvidas não pode ser desprezado.
Passo a passo da adoção
Ver em tamanho maior »
Há quase 40 mil crianças em abrigos que não estão no cadastro nacional porque ainda têm algum vínculo com a família biológica.
É uma segurança: a criança só é cadastrada quando há uma sentença de destituição do poder familiar e não há mais qualquer possibilidade de a família recorrer, explica o advogado Antonio Carlos Berlini, presidente da comissão de adoção da OAB-SP.
"Tem muito processo parado, muita criança crescendo em abrigos. Os números oficiais dizem cerca de 40 mil, mas estima-se que mais de 60 mil estejam em instituições hoje", afirma Berlini.
Esse problema é anterior ao CNA (sigla para cadastro nacional), diz a advogada Silvana do Monte Moreira, presidente da comissão de adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família.
"Falta equipe técnica nas Varas da Infância e da Juventude. Isso faz com que todos os processos demorem. A habilitação dos pretendentes, que depende de entrevistas e visitas domiciliares, atrasa."
A gerente executiva do Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo, Mônica Natale, conhece pretendentes que esperam há dois anos para entrar na fila. "A situação é pior no interior", avalia.
CAIXA -PRETA
Uma das vantagens trazidas pelo cadastro nacional foi a "abertura da caixa-preta dos abrigos", segundo Maria Bárbara Toledo, presidente da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção.
Mesmo sem incluir todos os processos, os números registrados pelo CNA nesses cinco anos formam um retrato mais preciso da situação da adoção no Brasil e permitem uma análise do que melhorou e de onde estão os principais gargalos.
Preconceito de cor, por exemplo, ainda atrapalha, mas vem caindo: em 2010, apenas 31% dos pretendentes afirmavam não se importar com a cor da pele da criança; hoje, 40% atestam isso no formulário do cadastro.
O perfil da criança buscada já mudou muito, segundo Moreira. A mudança começou a partir de 2009, quando passou a ser obrigatório para os candidatos a pais adotivos fazer um curso na Vara da Infância ou em grupos de apoio.
"Nesses cursos são debatidos aspectos da adoção inter-racial, de crianças mais velhas e de grupos de irmãos."
TEMPO E GENTE
Idade é o gargalo. Nove em dez pessoas querem crianças de até cinco anos, faixa que corresponde a menos de 10% das cadastradas. Para 90% entre oito e 17 anos, o percentual de adultos dispostos a adotá-las é em torno de 2%.
Bárbara Toledo afirma que os grupos de apoio fazem um trabalho de persuasão em favor das "adoções necessárias". Mas não dá para atribuir aos candidatos a pais adotivos toda a responsabilidade para resolver a questão.
"Falar que os pretendentes são preconceituosos por não quererem crianças mais velhas é covardia", diz ela.
A solução, para Silvana Moreira, passa pela contratação de profissionais para tornar os processos rápidos, sem arranhar os direitos das famílias. "Hoje muitas crianças ficam no limbo jurídico e acabam sendo filhas do abrigo."
Editoria de Arte/Folhapress |
|
CINCO ANOS DE ESPERA
Meu encontro com Manuela
RENATA RANGELCOLABORAÇÃO PARA A FOLHAEra um dia modorrento de outubro de 2011. Eu, à toa por conta do calor senegalês de Ribeirão Preto. Toca o telefone. Simone, psicóloga da Vara da Infância e da Juventude. "Como vai?". Eu: "Esperando". Ela: "Sua espera acabou. Sua filha chegou".
Eu me joguei no sofá, tremendo, suando, chorando. "Que idade ela tem?". Disse que tinha dois meses. Bebezinho! O que eu mais queria!
Uma criança de dois anos é considerada recém-nascida pelo Juizado. Portanto, difícil de adotar. Uma de dois meses é quase impossível.
Simone disse que eu deveria ir ao fórum no dia seguinte para saber a história da menina e então decidir. Fui.
Ela tinha sido abandonada ao nascer. A psicóloga perguntou se "traços negroides" eram problema. Nenhum. Então me disse que a bebê estava lá mesmo, no fórum.
Quando a vi, pensei que iria desmaiar. Tão pequenina, magra, com olheiras. Minha filha! Peguei-a no colo, fiz força para não chorar. Quando nos deixaram sozinhas, ela segurou meus dedos com força. Ficou me olhando, como se dissesse "me leve". Sussurrei: "Você é minha filhinha do coração, sou sua mãe". Então eu soube: estávamos predestinadas.
No pedido de adoção, o postulante diz o que quer. Cor, idade, se aceita doenças, deficiência etc. Nossas ressalvas eram só para soropositivo ou vítima de violência.
Nosso pedido foi feito no fórum central de São Paulo, onde eu vivia então. A fila era de 1.200 candidatos. Nas conversas com a assistente social e a psicóloga fomos avisados de que o processo demoraria.
Não imaginei que demorasse tanto. Foram cinco anos até minha filha surgir.
Nesse tempo, tudo mudou: me separei, voltei para Ribeirão, de onde saí aos 18. O médico me aconselhou a levar uma vida menos estressante.
A decisão de adotar surgiu por causa da minha saúde. Fiquei internada 15 dias com uma doença grave. No dia da alta, meu ex, ao lado da cama, me disse: "Não acha que é hora de fazermos algo importante?" Respondi: "Sim, adotar nossa filha." E entramos com o processo.
Mais tarde, já separada, fui a São Paulo saber do processo. Arquivado. Fiquei seis meses pensando se o desejo de um filho era projeto só do casal ou meu também.
Pesei prós e contras de criar um filho sozinha e decidi: EU quero! Desarquivei o processo e o transferi para Ribeirão. Repetiram-se as entrevistas. Fui aprovada novamente. Recomeçou a espera.
Tenho meus motivos para crer que meu encontro com Manuela estava decidido em algum lugar do Universo.
Em agosto de 2011, fiz uma novena para Santa Rita de Cássia que incluía três pedidos: um impossível, um necessário e um de negócios. Mas só pedi pela minha filha. Pois foi em agosto, dia 4, que ela nasceu. Creio que Santa Rita a escolheu para mim.
Manuela estava em um abrigo com outros recém-nascidos. Visitei-a todos os dias por uma semana. Já no primeiro dia levei minha mãe, Jacy, que se apaixonou por ela -paixão correspondida.
Em três dias montei o quarto dela com a ajuda de minha cunhada. Berço com o anjo da guarda da família, banheira, roupinhas, tudo!
Ela chegou na manhã de 12 de outubro. Minha irmã Patrícia e as filhas vieram recebê-la. E Lucia, minha empregada e amiga, com a filha. Ambas ajudaram muito.
Recebi a guarda provisória por seis meses e depois de outros seis saiu a adoção definitiva. Está lá, na certidão de nascimento: Manuela Garcia Rangel. Minha filha!
Manuela é linda, espertíssima e, melhor, alegre. Já tem 90 cm e 11 quilos. Dorme a noite toda, acorda cantando, fala numa língua que só ela domina, corre pela casa.
Esperei cada dia desses meses todos que me chamasse de "mãe". Em 17 de janeiro, correu em minha direção de braços abertos e gritou: "Mamãe!". Fiquei eufórica.
Manu corre pelo quintal, gosta de dançar. Às vezes, dança segurando as pontas do vestido. Já joga charme, a danadinha. É amada e acalentada por uma trupe: mãe, vovó, Lucia, babá e pai.
Sim, surgiu um relacionamento. Vasco já vivia comigo quando Manu chegou. É louco por ela e ela, por ele. É pai de fato e será de direito. Vai entrar com pedido de adoção.
Minha vida mudou. Estou bem de saúde, calma. Minha mãe, 82, renasceu. Manuela veio para renovar a família. Quando dizem que fiz algo maravilhoso ao adotá-la, digo: não, que maravilha ela fez por mim! Tenho um anjo em casa. O meu maior amor.
Quando o economista José Marcelo Monteiro, 44, casou com a administradora de empresas Luciana Marques, 42, há 13 anos, ele sonhava em ter três filhos. "Nem pensar", disse Luciana, e o marido se conformou em ter um só.
Luciana não conseguiu engravidar. Depois de vários tratamentos de fertilização assistida fracassados, o casal resolveu adotar um filho, de até quatro anos, no máximo.
Começaram a frequentar grupos de apoio à adoção, enquanto esperavam ser chamados pela Vara da Infância do Rio de Janeiro, onde moram. O filho idealizado foi sendo trocado pela expectativa de uma criança real.
Primeiro, ampliaram a faixa etária até seis anos. Depois, em vez de um, pensaram em adotar dois. "Imaginava um casal", diz Luciana.
Quatro anos atrás, o casal recebeu um aviso sobre três irmãos aptos à adoção.
"Era muita criança para administrar", diz Luciana. Mas os dois foram ao abrigo para conhecer Alexandre, Thaiane e Kaio -na época com dez, oito e três anos.
"As pessoas falam que é um momento mágico quando você encontra seus filhos, mas não foi nada disso. Não vimos estrelinhas brilhando, só a possibilidade de formar uma família", diz Marcelo.
Tiveram medo também. "Se você adota criança mais velha, precisa enfrentar o medo da rejeição. E se ela não nos aceitar?", diz Luciana.
Mas a afinidade foi forte. "Nos primeiros oito meses não fomos pais, fomos bombeiros", diz a mãe.
O mais difícil foi colocar limites naqueles três irmãos que moraram na rua e sofreram violência doméstica. "Claro, não iam confiar de cara na gente", diz Luciana.
Para ela, a adoção não é ato heroico ou caridade. "Já me perguntaram até se foi para pagar promessa. Não foi, não serei abençoada por isso. Foi o desejo de ser mãe, de constituir uma família. Formei a minha e sou superfeliz."