A burocracia ainda trava o desenvolvimento na ciência brasileira. Uma delas diz respeito ao patrimônio genético, que inclui informações sobre moléculas, extratos de plantas e animais
Carolina Mansur
Estado de Minas: 19/11/2012
A burocracia ainda é entrave para que o Brasil desponte no cenário científico mundial. Isso porque quando se fala em acessibilidade ao patrimônio genético – que são todas as informações apresentadas em forma de moléculas, substâncias metabólicas e extratos retirados de organismos com ou sem vida –, os pesquisadores ainda encontram impedimentos. A justificativa, segundo eles, é que hoje as discussões giram mais em torno da repartição de benefícios, que é a regularização do ganho de capital sobre cada uma dessas informações, do que dos incentivos às descobertas. “Na comparação com outros países, o Brasil encara o excesso de burocracia como fator que atrasa a pesquisa e desenvolvimento da ciência”, defende o professor do Departamento de Bioquímica e Imunologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Adriano Pimenta, que utiliza as informações para pesquisas feitas pela instituição.
De acordo com o professor, hoje toma-se por base a ideia de que há um "tesouro" escondido na biodiversidade brasileira que pode ser descoberto e resultar em ganhos financeiros. Entretanto, ele garante que 99% das moléculas estudadas nunca chegarão a ser comercializadas e, consequentemente, nunca resultarão em dividendos. Portanto, o ideal seria deixar de lado as preocupações com a repartição de benefícios e focar a discussão na obtenção de mais exemplos de transformação biotecnológica como ocorreu com a cana-de-açúcar, proveniente da Ásia, que foi transformada no Brasil em etanol e cachaça. “Devemos tirar proveito de maneira sustentada da nossa capacidade de cultivar esses alimentos ou outros insumos, assim como melhoramos o café e a soja ou produzimos a cachaça e o etanol a partir da cana”, exemplifica.
Segundo Pimenta, o marco legislativo brasileiro que diz respeito ao patrimônio genético é a Medida Provisória (MP) 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, que prevê a necessidade de autorização para o acesso a essas informações a ser concedida pelo Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen), órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, mas por ser mal articulada é apontada como um dos principias entraves da ciência nacional. “Tamanha é a confusão resultante dessa MP, feita às pressas, que há vários outros instrumentos de legislação pendurados e amontoados na medida inicial. Muitas vezes, eles pioram o entendimento do texto original, que não é dos mais corretos do ponto de vista técnico e científico”, afirma o professor.
Uma das críticas da comunidade científica é justamente não ter sido ouvida ou consultada durante as discussões de criação da MP. “Não houve inicialmente um cuidado em escutar a comunidade acadêmica, e as discussões, essencialmente políticas, resultaram em uma legislação caótica, que cerceia absurdamente a ciência e o desenvolvimento biotecnológico no Brasil”, acrescenta Adriano Pimenta. Uma das sugestões dos pesquisadores brasileiros é transformar o termo “patrimônio genético” para “recursos genéticos”, já que patrimônio dá ideia de posse de bens e o conceito é errado do ponto de vista científico, já que as fronteiras políticas de um território não são coincidentes com as fronteiras populacionais de uma determinada espécie biológica. “Passa-se a impressão de que o Brasil, como nação, é o dono de uma espécie de micro-organismo, planta ou animal. O termo "recurso" seria mais bem empregado, pois dá a ideia de que o recurso existe, pode e deve ser aproveitado em nosso território”, defende Pimenta.
IMPACTOS Ainda de acordo com o professor da UFMG, os reflexos de uma MP mal articulada vêm no desempenho do próprio CGen, que deveria agilizar o acesso às informações e em 10 anos de funcionamento concedeu menos de 90 autorizações de acesso ao patrimônio genético. “Embora apenas neste ano cerca de 30 autorizações tenham sido concedidas, as instituições de pesquisa ou empresas que pedem o acesso são bombardeadas com uma avalanche burocrática, com a exigência de uma série de documentações, muitas vezes incoerente”, comenta.
Como resultado ele diz que a ciência brasileira perde em competitividade, na comparação com outros países. Pimenta lembra, por exemplo, que para ele desenvolver um medicamento erétil e poder usar as informações genéticas de uma molécula já publicada no meio científico há um grande esforço junto ao CGen. “Estou preparando as documentações para ter acesso às informações dessa molécula há muito tempo e, enquanto isso, pesquisadores australianos e suíços também estão de olho na mesma molécula”, diz. “Como eles não sofrem com a burocracia em seus países de origem, podem dar o primeiro passo antes de nós. Eu poderia tentar protegê-la em forma de patente, mas isso só é possível se tiver a documentação no CGen”, acrescenta. Segundo o professor, no mundo inteiro as moléculas são de domínio público, mas no Brasil isso ainda é feito de maneira incoerente, atrasando o desenvolvimento.
O que é patrimônio genético?
São informações genéticas apresentadas em forma de moléculas, substâncias metabólicas e extratos retirados de organismos com ou sem vida que têm amostras de materiais de que foram coletados em um território. Por essa razão, órgãos como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) são parceiros do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen). Cabe a eles avaliar se determinado objeto é patrimônio nacional e como deve ser o procedimento diante dele, seja uma árvore,
um animal, uma molécula, um óleo ou determinada rocha.
z PASSO A PASSO
Veja como é o procedimento para se chegar ao patrimônio genético de espécies
vegetais, fúngicos, microbianos ou animais
Exemplo 1: Ciclo vegetal
1º - Coleta de cupuaçu ou cacau
2º - Extração da manteiga de um deles
3º- Identificação e seleção do grupo de moléculas ou substâncias com potencial de conferir emoliência, hidratação da pele. Por exemplo, os ácidos graxos
4º - Utilização dos ácidos graxos na formulação de hidratantes para o corpo
Exemplo 2: Ciclo animal
1º - Coleta da cobra jararaca
2º - Extração do veneno da cobra
3º - Identificação e seleção das substâncias com potencial de redução da pressão arterial
4º - Utilização da substância selecionada na formulação de medicamentos para a hipertensão
Fonte: Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen)
Novo cenário internacional pode reformular lei brasileira
Estado de Minas: 19/11/2012
Com a aprovação do Protocolo de Nagoya, durante a Conferência das Partes da Convenção sobre a Diversidade Biológica, em 2010, inaugura-se um novo cenário internacional com boas perspectivas para a reformulação da legislação nacional e, por consequência, desenvolvimento da ciência, conforme explica a gerente de Assuntos Regulatórios e Repartição de Benefícios do Departamento do Patrimônio Genético do Ministério do Meio Ambiente, que exerce a função de secretaria executiva do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen), Francine Soares da Cunha. O protocolo foi encaminhado pela presidente Dilma Rousseff ao Congresso Nacional durante a Rio +20, evento ocorrido em junho no Rio de Janeiro, e aguarda sua ratificação pelo Legislativo.
“A ideia é que ele concilie os interesses da pesquisa, inovação, desenvolvimento de produtos, academia, e povos e comunidades tradicionais, reconhecendo que esses são atores importantes para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade”, diz Francine. De acordo com ela, para garantir melhor aplicação da legislação, CGen tem investido em medidas internas que aceleram os processos para o acesso ao patrimônio genético utilizado na bioprospecção, pesquisa ou desenvolvimento tecnológico. Além do credenciamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que autoriza o acesso ao patrimônio genético para qualquer finalidade a partir de uma plataforma informatizada mais rápida, há parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para emitirem as autorizações.
“Com essas parcerias estamos imprimindo velocidade nas autorizações e promovendo um diálogo mais eficiente”, garante Francine da Cunha. Ela confirma que entre 2001 e 2011 o dado acumulado de contratos de repartição de benefícios do patrimônio genético, que facilitam o acesso dos pesquisadores às informações, anuídos pelo CGEN era de 29, mas assegura que até setembro deste ano foram anuídos 39 contratos. Além disso, neste ano o CGEN e suas credenciadas (Ibama, CNPq e Iphan) emitiram mais de 600 autorizações de acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais associados para fins de pesquisa científica, bioprospecção e desenvolvimento tecnológico. “A reformulação da legislação é o que se espera de forma mais estratégica, mas, concomitantemente, medidas de gestão já estão sendo implementadas com resultados bastante positivos”, reforça Francine.